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Território, Cultura e Saúde no SUS
1. REVISTA DE BIOLOGIA E CIÊNCIAS DA TERRA ISSN 1519-5228
Volume 20 - Número 1 - 1º Semestre 2020
TERRITÓRIO, CULTURA E SAÚDE – UMA ANÁLISE CRÍTICA
Flávio Henrique Ferreira Barbosa1
RESUMO
Segundo Rafaela Pereira em seu texto Território, Saúde e Ambiente: Novas Formas de Articulação,
publicado em 2009 (Geografia - v. 18, n. 1, jan./jun. 2009 – Universidade Estadual de Londrina,
Departamento de Geociências), em uma realidade global sustentada por um complexo modelo de
produção-consumo, a compreensão da relação entre saúde e ambiente passa a exigir novos arranjos
teórico-conceituais, que levem a apreensão dos novos desdobramentos gerados pela dinâmica desta
relação. No presente artigo, a partir de uma discussão acerca dos conceitos de saúde, ambiente e
saúde ambiental, procurar-se-á oferecer subsídios teóricos de permitam, além de uma reflexão sobre
o tema, pensar nos caminhos a serem adotados perante essa realidade global vigente. No contexto
da saúde coletiva, o conceito de território está presente em múltiplas dimensões e sentidos. Aparece
em documentos que expressam princípios e diretrizes das políticas de saúde e no planejamento das
ações locais, e é elemento central para organizar a rede de cuidado no SUS. O presente artigo busca
discutir brevemente o conceito de território e seus usos nas práticas da atenção à saúde pelo Brasil.
Tal reflexão possibilita pensar o território em sua complexidade, como espaço, processo e
composição, de forma a potencializar a relação entre serviço, cultura, produção do cuidado e
produção de subjetividade.
Palavras-chave: Território, Cultura, Saúde, SUS.
TERRITORY, CULTURE AND HEALTH - A CRITICAL ANALYSIS
ABSTRACT
According to Rafaela Pereira in her text Territory, Health and Environment: New Forms of
Articulation, published in 2009 (Geografia - v. 18, n. 1, jan./jun. 2009 – Universidade Estadual de
Londrina, Departamento de Geociências), in a global reality supported by a complex production-
consumption model, understanding the relationship between health and the environment starts to
demand new theoretical-conceptual arrangements, which lead to apprehension of the new
developments generated by the dynamics of this relationship. In this article, starting from a
discussion about the concepts of health, environment and environmental health, we will try to offer
theoretical subsidies to allow, in addition to a reflection on the theme, to think about the paths to be
adopted in view of this current global reality. In the context of collective health, the concept of
territory is present in multiple dimensions and meanings. It appears in documents that express
principles and guidelines of health policies and in the planning of local actions, and is a central
element to organize the care network in SUS. This article seeks to briefly discuss the concept of
territory and its uses in healthcare practices in Brazil. Such reflection makes it possible to think of
the territory in its complexity, as space, process and composition, in order to enhance the
relationship between service, culture, production of care and production of subjectivity.
Keywords: Territory, Culture, Health, SUS. 61
2. INTRODUÇÃO
Em seu trabalho sobre a história da
Saúde Pública, George Rosen defende a ideia de
que os problemas de saúde vividos pelo homem
durante toda a sua história vinculam-se à
organização comunitária e à estrutura social
desenvolvida. A confluência histórica dos
contornos encontrados na contenção das
epidemias desde a melhoria do ambiente físico,
a provisão de águas, a assistência médica e
outras medidas originou o que atualmente se
conhece como Saúde Pública (SILVA, 2017).
A noção atual de Saúde Pública ganha
nitidez no Estado liberal burguês do fim do
século XVIII. Porém, será na segunda metade do
século XIX que a higiene se torna um saber
social que envolve toda a sociedade e faz da
Saúde Pública uma prioridade política. São
desse momento as primeiras tentativas de
relacionar a saúde à economia, reforçando a
utilidade do investimento no setor. (SILVA,
2017).
Neste sentido, Rousseau (2003) afirmava
que a liberdade natural do homem, seu bem-
estar e sua segurança seriam preservados através
de um contrato social. A composição do
conjunto de regras que forma a noção de Estado
é estabelecida pela aglutinação de sociedades, as
quais, situadas em determinado território,
visando à proteção da propriedade privada e a
regulação de atribuições gerais e coletivas, se
submetem a regras e acordos comuns
(FERNANDES, 2013).
Na geografia tradicional, no sentido
jurídico-político o território sempre foi
entendido como espaço limitado pelas estruturas
de poder. Por isso, correspondia à área
delimitada pelas fronteiras de um país, estado,
município ou distrito. Os limites artificialmente
determinados respondiam a critérios de controle
administrativo - contudo, faz-se necessário
ressaltar que território também compreende o
sentido etológico, aludindo ao espaço necessário
para a sobrevivência animal. Pensar o território
nessa perspectiva implica atribuir-lhe identidade
intrínseca à constituição da vida social, seja no
âmbito da organização dos poderes, seja nas
formas de produção e distribuição das riquezas.
As condições de moradia e de ocupação dos
territórios nas mais diversas configurações
socioambientais são produtos das relações entre
desenvolvimento econômico e social, dos quais
derivam os demais indicadores de qualidade de
vida de dada população (JUNGES &
BARBIANI, 2013).
O território socialmente configurado
determina a situação sanitária da população que
o habita, sendo a saúde dialeticamente ligada e
determinada por esse espaço social,
possibilitando o surgimento de redes sociais de
apoio e convivência. Neste sentido, pode-se
dizer que território é a área de atuação das
equipes de saúde que tem como particularidade
o fato de não se reduzir ao espaço geográfico. O
território envolve recursos e trocas que o sujeito
usa e estabelece em sua comunidade e fora dela,
na sociedade (RIGOTTO & AUGUSTO, 2007).
Pode-se inferir então, que a importância
do território, em suas múltiplas dimensões, para
a compreensão dos processos saúde-doença-
cuidado-assistência decorre da necessidade de
que o território deve ir além dos limites das
instituições, abrangendo os anseios e as
necessidades do sujeito. Fica claro que a
promoção da saúde passa pela construção de
uma interface ativa com outros setores
governamentais e não governamentais, como
educação, cultura, esporte, lazer, justiça,
assistência social, visando ampliar a
abrangência e a resolutividade das intervenções
(SANTOS & RIGOTTO, 2010).
Sendo assim, algumas questões vêm à
tona: de que forma os processos de
territorialização podem ser realizados de modo a
garantir a apreensão da complexidade do
território, as territorialidades e suas implicações
sobre a saúde? E qual a importância dos
determinantes culturais para o processo de
trabalho em saúde?
A territorialização é em um dos
pressupostos básicos dos trabalhos envolvendo
atenção à saúde. No entanto, a tarefa de
territorialização adquire, pelo menos, três
sentidos diferentes e complementares:
demarcação de limites das áreas de atuação dos
serviços; reconhecimento do 'ambiente', da
população e da dinâmica social existentes nessas
áreas; e estabelecimento de relações horizontais
com outros serviços adjacentes e verticais, como
centros de referência (PEREIRA &
BARCELLOS, 2006).
Sob tal ótica, os serviços do sistema de
saúde precisam funcionar em interação com esse
3. espaço social. A efetividade do acesso e da
resposta às necessidades dependerá de sua
inserção no espaço das sociabilidades cotidianas
dos usuários, e também de seus determinantes
culturais, que não se identificam simplesmente
com a definição administrativa de território. Só
assim será possível detectar contextos de
vulnerabilidade e coletar dados epidemiológicos
efetivos sobre a situação sanitária daquela
comunidade. Por isso, o conceito de território na
gestão e na prática de saúde sempre adquiriu
maior importância, acerca do espaço geográfico
e fomentando o surgimento de novo campo de
conhecimento na interface entre geografia e
saúde (FARIA, 2019).
Definitivamente, os indivíduos não
podem ser reduzidos a uma definição que
envolva apenas aspectos biológicos. A busca
pela saúde não deve se ater a um processo
isolado, mas imbricado a uma complexa trama
estabelecida e interdependente da questão
econômica, cultural, informacional. Diferenças
profissionais ou de poder aquisitivo, por
exemplo, não são suficientes para explicar a
disparidade de status em um determinado
território. Nessa perspectiva, práticas sanitárias
que não se comprometam em conhecer as
singularidades e configurações sociais
específicas dos territórios de saúde assemelham-
se à condição de estrangeiro que, mesmo falando
o idioma desse território, não compreende sua
teia de significados, que é sua própria cultura
(FARIA, 2019).
Essa compreensão manifesta-se, por
exemplo, nos territórios das equipes de
Estratégia de Saúde da Família (ESF),
entendidos como espaço das sociabilidades
cotidianas dos usuários e não como adscrição
territorial definida por critérios numéricos e
administrativos. Essa íntima interação entre
saúde, cultura de um povo e espaço geográfico
exige pensar o ambiente como lugar da
reprodução social da vida, e a saúde sob uma
ótica ecossistêmica.
A ampliação do olhar dos profissionais
da Atenção Básica à Saúde sobre o território é
estratégica para superar as barreiras nas relações
entre saberes tradicionais e científicos na
produção do cuidado. A superação dos limites
da unidade de saúde e das práticas do modelo de
atenção convencional; a (re)construção do
vínculo dos profissionais e do sistema de saúde
com o lugar; a adequação das ações de saúde à
singularidade de cada contexto sócio histórico
específico; e a incorporação efetiva do
paradigma da promoção da saúde e da
participação. Não é uma panaceia, mas sim, um
ponto de partida fértil (SANTOS & RIGOTTO,
2010).
As questões de saúde do trabalhador e de
saúde ambiental estão no cotidiano de pessoas,
famílias, comunidades e grupos sociais,
exercendo relevante influência na qualidade de
vida, no adoecer e no morrer dos segmentos
sociais. O sistema público de saúde precisa
avançar nos esforços que vem fazendo para
contemplar essas dimensões no cotidiano dos
serviços, desde o nível primário. As conexões
entre território, cultura e saúde e as implicações
sobre o processo de trabalho em saúde aqui
esboçada representa, obviamente, um esforço de
conhecimento do território que vai muito além
do tradicional processo de territorialização que
vem sendo implementado na Atenção Básica à
Saúde e na ESF.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Trabalhar a complexidade do cuidado
em saúde e ambiente demanda muito mais
tempo da equipe e o envolvimento ativo e
dialógico de todos os seus profissionais.
Demanda, também, conteúdos, habilidades e
atitudes nem sempre oferecidas nos tradicionais
processos de formação na área da saúde. É
permanente e processual: sempre haverá o que
conhecer na dinâmica das territorialidades.
Supõe, ainda, uma compreensão
ampliada do processo saúde-doença na
complexidade dos sociosespaços
contemporâneos, e do papel do Estado na
garantia do direito à saúde. Supõe também, é
claro, que as questões básicas de direitos
trabalhistas e condições de trabalho estejam
equacionadas no sistema.
Segundo Rigotto e Augusto (2007), é na
conexão entre território, cultura e saúde onde
encontramos um caminho para planejar ações de
promoção e de atenção integral à saúde. Por
meio desta nova forma de olhar e fazer, os
projetos de saúde nascem das necessidades de
saúde da comunidade (e não de programas
verticais que vêm do 'nível central' para a
4. 'ponta'), produzindo e difundindo conhecimento,
mobilizando, educando, criando ou fortalecendo
redes, empoderando sujeitos coletivos e projetos
de equidade e sustentabilidade, ou seja, de
verdadeiramente construir saúde.
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2017.
______________________________________
1 – Prof. Flávio Henrique Ferreira Barbosa, PhD
Biólogo / Professor Adjunto
Departamento de Morfologia
Sub-área: Microbiologia e Imunologia
Universidade Federal de Sergipe – UFS
flaviobarbosaufs@gmail.com
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