O documento discute o anti-semitismo na Europa hoje, apontando duas manifestações: 1) Uso de retóricas anti-semitas clássicas no contexto do conflito israelo-palestino; 2) Aumento de ataques violentos contra judeus e instituições judaicas. Apesar de distintas, essas manifestações se alimentam mutuamente e desafiam as sociedades europeias a lidar com esse problema.
O ressurgimento do anti-semitismo na Europa Ocidental
1. ANTI-SEMITISMO NA EUROPA HOJE
Bila Sorj
RESUMO
O termo “anti-semitismo” é utilizado nas manifestações de
hostilidadecontraosjudeusdesdeaAntiguidade.Noentanto,comofenômenohistórico,oanti-semitismoéparteinte-
grante das dinâmicas socioculturais e políticas de cada sociedade.Este artigo enfoca particularmente as especificidades
que ele assume hoje na Europa Ocidental.
PALAVRAS-CHAVE: anti-semitismo;identidades comunitárias;
anti-sionismo.
SUMMARY
The term “anti-Semitism” is employed in manifestations of
hostility against Jews since Antiquity.However,as a historical phenomenon,the anti-Semitism is part of the sociocul-
tural dynamic and politics of each society.This article focuses particularly on its specificities in Western Europe today.
KEYWORDS: anti-Semitism;communitarian identities;anti-Zionism.
97NOVOS ESTUDOS 79 ❙❙NOVEMBRO 2007
O termo “anti-semitismo” tem sido usado para
designar,de forma genérica,as manifestações de hostilidade contra
judeusdesdeostemposgreco-romanosatéosdiasdehoje.Alongevi-
dade e a persistência desse fenômeno social e a sua designação por
meio de um único termo abrangente,“anti-semitismo”,têm encora-
jadoexplicaçõesdecarátera-históricoqueempobrecemouessencia-
lizamofenômenoesuasinterpretações,dificultandooentendimento
de seus diferentes significados e formas de expressão em contextos
societáriosespecíficos.
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2. [1] Para uma crítica à premissa do
“eterno anti-semitismo”, presente
sobretudo entre muitos historiado-
res, ver Arendt, Hannah. Origens do
totalitarismo I – O anti-semitismo, ins-
trumentodepoder.RiodeJaneiro:Edi-
toraDocumentário,1979[1973].
[2] Bauman, Zigmunt. Life in frag-
ments: essays in postmodern morality.
Oxford:Blackwell,1995[1988].
O conteúdo universal e atemporal do termo “anti-semitismo” é
reforçadonointeriordojudaísmopelaformaapartirdaqualaidenti-
dade judaica se construiu desde os tempos bíblicos,através de uma
narrativaqueenfatizaahistóriadeumpequenopovo,opovodeIsrael,
rodeado de inimigos que procuravam aniquilá-lo.Com a destruição
doSegundoTemplopelosromanosnoano70d.C.,quemarcaofimdo
reinodaJudéiaeatransformaçãodopovojudeuemumpovodiaspó-
rico,anarrativaseconsolidouepermaneceuassociadaaosentimento
deinsegurançadeumaminoriacondenadaaconstantesperseguições.
Talpremissaforneceuaosjudeusumsentidodedestinocomumcom-
partilhado por gerações e fortaleceu os laços de solidariedade intra-
grupalentreasdiversasdiásporas.
Ainclusãodoanti-semitismonaculturajudaica,comoumacons-
tante universal1,foi incentivada pelas elaborações teológicas do cato-
licismo e do islã,que justificaram,sob perspectivas diferentes,o des-
tinotrágicodosjudeusjáquerejeitavamaderiràsnovasrevelações.O
resultado foi que o anti-semitismo assumiu, nas várias religiões
monoteístas,um estatuto,por assim dizer,teológico,isto é,um sis-
temadecrençasqueseauto-representacomoeternoe,portanto,loca-
lizadoforadahistória.
Todavia,oanti-semitismo,comoqualqueroutrofenômenohistó-
rico,éparteintegrantedasdinâmicassocioculturaisepolíticasespecí-
ficas a cada sociedade,de tal forma que seus significados acompa-
nhamastransformaçõessociaiseconferemnovossentidosàsrelações
entre os judeus e a sociedade mais ampla.Porém,ao mesmo tempo,
comoveremos,asnovasmanifestaçõesdeanti-semitismonaEuropa
freqüentementerecolhemsuaformadeexpressãodaretóricadoanti-
semitismo clássico.Nesse sentido,procuraremos mostrar as conti-
nuidades e descontinuidades do fenômeno do anti-semitismo no
mundocontemporâneo,focalizandoparticularmenteasespecificida-
desqueeleassumehojenaEuropaOcidental.
ANTI-SEMITISMO E MODERNIDADE
Segundo Bauman2, a animosidade em relação aos judeus na
modernidade pode ser mais bem compreendida não como um senti-
mentodehostilidadeemfacedodiferenteoudaquiloquenãoéfami-
liar (heterofobia),mas como um sentimento de desconforto perante
aquelesquenãoseenquadramfacilmentenaestruturadeummundo
ordenado (proteofobia),que não podem ser claramente classificados
nascategoriasestabelecidasdo“nós”e“eles”.Essesseresambivalen-
tes,queemitemsinaiscontraditóriosdeconduta,acabamporexporas
fragilidades e as fissuras da aspiração por um modelo ideal de vida
socialordeira,previsívelesemriscos.
98 ANTI-SEMITISMO NA EUROPA HOJE ❙❙Bila Sorj
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3. 99NOVOS ESTUDOS 79 ❙❙NOVEMBRO 2007
[3] Entre essas elites se destacam os
fundadores do movimento sionista,
que propunham a normalização do
povojudeumedianteaconstruçãode
um Estado nacional e as instituições
filantrópicas dedicadas a alterar a
estrutura ocupacional dos judeus.
Paraumaanálisedosempreendimen-
tos filantrópicos no Brasil, ver Sorj,
Bila.“‘Normalizando’opovojudeu:a
experiência da Jewish Colonization
AssociationnoBrasil”.In:Identidades
judaicas no Brasil contemporâneo.Rio
deJaneiro:Imago,1997.
[4] ApudBauman,op.cit.,p.219.
[5] Também cresceu, neste mesmo
período, a hostilidade dirigida a
outros grupos,notadamente árabes,
muçulmanos,refugiados e imigran-
tes, ou assim percebidos. Para a
França,segundodadosdoMinistério
do Interior,desde 2000 a incidência
de atos de ameaça e de violência de
natureza anti-semita supera aqueles
de natureza racista e xenofóbica (Co-
mmission Nationale Consultative de
Droits de l’Homme,La lutte contre le
racisme,l’antisémitismeetlaxénophobie:
rapports d’activité,Paris,La Documen-
tation Française,2006,www.lesrap-
ports.ladocumentationfrançaise.fr/
BRP/064000264).
A ordem na Europa moderna foi construída,segundo esse autor,
pelo Estado-nação,e seu poder político se legitimou na produção de
uma identidade coletiva que rejeitava costumes regionais,dialetos
locaiseminoriasétnicas.EmumaEuropaassimconcebida,denações,
EstadoseEstados-nações,osjudeuserampraticamenteoúnicogrupo
que não se enquadrava nesse modelo.Não formavam uma minoria
étnica própria a cada Estado nacional,uma vez que estavam espalha-
dosportodaaEuropa;tampoucoeramresidenteslocaisdeumanação
vizinha,situaçãocomumnaEuropadefronteirascambiantesdaquele
momento.Eram,defato,percebidoscomosímbolodaincongruência:
uma nação não-nacional que lançava uma nódoa na perfeição alme-
jadapelosprojetosnacionais.Aimagemdosjudeuscomoos“forade
lugar”foialémdaquestãodasfronteirasnacionaiseforneceuachave
para as percepções,então correntes,a respeito do lugar social dos
judeusnassociedadeseuropéias,inclusiveentreasnovaselitesjudai-
cassecularizadas3.Em1882,LeoPinsker,ummédicojudeunaRússia
e precursor do sionismo,sintetizou as diferentes miragens em circu-
laçãonaEuropa:“paraosvivosojudeuéummorto;paraosnativos,um
estranho e vagabundo;para os pobres e explorados,um milionário;
paraospatriotas,alguémsempátria;paratodasasclasses,umconcor-
rente odioso”4.O anti-semitismo europeu foi então produto de uma
lutacontraaambivalênciaencarnadapelosjudeus,quejáentraramna
modernidade carregando consigo a marca do “eterno judeu”,cons-
truída pelo cristianismo no afã de diferenciar a nova religião da sua
fonteoriginal,ouseja,ojudaísmo.Integrados,masforasteiros;iguais,
masdiferentes;admirados,masassustadores.
O ANTI-SEMITISMO CONTEMPORÂNEO NA EUROPA
Nas sociedades européias atuais,caracterizadas por boa parte da
bibliografia como pós-modernas,as identidades coletivas criadas
pelosEstadosnacionaisjánãoapresentamamesmacapacidadenor-
mativa de conferir sentido e cristalizar o pertencimento dos indiví-
duos a uma comunidade de destino.Simultaneamente,surge uma
profusão de identidades coletivas baseadas em laços religiosos,étni-
cos,diaspóricos e de caráter transnacional.Tais desenvolvimentos
poderiam,emprincípio,sugerirqueospreconceitoseashostilidades
contra os judeus estariam desaparecendo,uma vez que a percepção
sobreumapossível“duplalealdade”aoEstadonacionaljánãoconsti-
tuiriamaisaforçamotrizdoanti-semitismo.
Não obstante,a Europa vem assistindo,desde o início do século
XXI,aumaondademanifestaçõesantijudaicasimpulsionadapelocon-
flitoentreIsraeleospalestinos5.Oentendimentodessefenômeno,tra-
tadopelosestudiososcomoum“novoanti-semitismo”,émuitasvezes
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4. [6] Para um levantamento dos inci-
dentes anti-semitas na Europa nos
últimosanos,verMcClintock,Michel
&Sunderland,Judith.L’Antisémitisme
en Europe: um défi à la indefférence offi-
cielle. Human Rights First, 2004
(www.HumanRightsFirst.org).
[7] Essas ocorrências estão detalha-
das no relatório de Michel Posner,
diretor executivo do Human Rights
FirstapresentadoaoStateCommittee
onForeignRelationsdosEstadosUni-
dos em abril de 2004 (www.human-
rightsfirst.org/discrimination/antise-
mitism/Antisem_test_final4.pdf).
afetado pela carga emotiva,ideológica e política que envolve o debate.
Duas visões, igualmente extremadas, mostram-se insatisfatórias:
aquela que minimiza o fenômeno,atribuindo-lhe caráter meramente
episódicoeinconseqüente,quedecorreriadosconfrontoslegítimosno
contexto do conflito israelo-palestino,e a que superdimensiona o
enraizamentodoanti-semitismoaoestabelecerrelaçãodesimplescon-
tinuidadecomopassado,atualizandoanarrativado“eternoanti-semi-
tismo”.Trivializaçõeseexcessosàparte,ofatoéquenosúltimosanoso
problemadoanti-semitismoentrounodebatepúblicoeuropeumobi-
lizando governos de diferentes países,organizações internacionais,
institutosdepesquisa,organizaçõesnão-governamentais,academiae
estimulando um amplo debate sobre o que passou a ser conceituado
como“novoanti-semitismo”.
Podemos identificar na atualidade manifestações antijudaicas
emdoisregistrosque,emboradistintos,éprovávelquesealimentam
mutuamente. O primeiro diz respeito à utilização dos repertórios
clássicos, típicos do anti-semitismo moderno, para se referir em
especial a Israel e aos judeus, no contexto do conflito no Oriente
Médio.Taismanifestaçõesverbais,queserãoprecisadasmaisadian-
te, podem ser encontradas nos meios universitários, por vezes na
imprensa e na televisão,nos insultos e nas intimidações proferidos
por alunos nas escolas, em grafites espalhados nas periferias das
grandescidadeseuropéias,nasmanifestaçõesdosmovimentosanti-
globalização e em sermões proferidos em algumas mesquitas do
Continente.Provêm,assim,de espaços sociais e políticos notada-
mentedistintosdaquelestributáriosdoanti-semitismotradicional,
como partidos e organizações de extrema-direita,elites tradicionais
esegmentosdocleroedecamponeses.
O segundo se refere à escalada de atentados violentos contra
judeus,oupessoasassimconsideradas,esuasinstituiçõescomunitá-
rias. Apesar das dificuldades de registrar dados precisos sobre o
volume dessas ocorrências,pela própria natureza dos atos em ques-
tão,osdadosoficiaisindicamumintensocrescimentodesuapresença
noespaçoeuropeudesde20006.
Sinagogas foram cobertas de slogans racistas e danificadas com
explosivos e bombas incendiárias;cemitérios judeus e memórias do
Holocausto foram profanados; escolas judaicas foram pilhadas e
incendiadas.OincidentemaisgraveocorreunaTurquiaemnovembro
de2003,país-membrodoConselhodaEuropa,quandoduassinago-
gas foram atacadas com bombas,provocando 24 mortes e deixando
pelomenostrezentosferidos.
Osexemplossãoabundantes7.AFrança,queabrigaamaiorcomu-
nidade judaica da Europa Ocidental (aproximadamente 500 mil
judeus) destacou-se por exibir no período os mais altos níveis de vio-
100 ANTI-SEMITISMO NA EUROPA HOJE ❙❙Bila Sorj
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5. [8] Estamosexcluindodenossaaná-
lise o anti-semitismo da extrema-
direita,umavezquenãoésobreessas
manifestações que o debate público
atualseconcentra.
[9] Váriosencontrosgovernamentais
foram realizados nos últimos anos
para lidar explicitamente com esse
problema.OmaisrecentefoiaConfe-
rência sobre Anti-Semitismo e outras
Formas de Intolerância,em Córdoba,
Espanha,emjunhode2005.
lência.Pelo menos duas sinagogas foram incendiadas em 2003.Em
marçode2004,umcoquetelmolotovfoilançadocontraocentrocomu-
nitáriodeToulon,queabrigaduassinagogas.Escolasjudaicastambém
foram alvo de ataques. Um incêndio criminoso contra uma escola
judaicaemGagny,naperiferiaparisiense,destruiuboapartedoedifício
emnovembrode2003.Emoutubrode2003,orabinoMichelSerfaty
foi atacado quando chegava com seu filho à sinagoga de Ris-Orangis,
umapequenacidadepertodeParis.Umgrupodentrodeumautomóvel
lançou insultos racistas e ameaças evocando os conflitos do Oriente
Médio.Outros ataques foram contidos a tempo pela polícia.Na Bél-
gica,umacrechecomunitáriafoipilhadaeprofanadanacidadedeUccle,
emjulhode2003.Ummêsantes,umhomemtentouexplodirumauto-
móvelcheiodegarrafascomgásemfrenteaumasinagogaemCharle-
roi;umanoantes,tirosdemetralhadoraforamdisparadoscontraoutra
sinagoganamesmacidade.NaAlemanha,emsetembrode2003,apolí-
ciadetevesuspeitosparaevitarumatentativadeatentadoàbombapre-
visto para ocorrer em 9 de novembro,data do aniversário do pogrom
conhecidocomoa“NoitedeCristal”,quemarcouaperseguiçãosiste-
mática aos judeu-alemães pelo regime nazista. O atentado estava
previsto para acontecer durante a cerimônia de lançamento da pedra
fundamental deumasinagogano centro deMunique,daqualpartici-
pariam centenas de judeus e de políticos.Judeus e estabelecimentos
judaicostambémforamalvodeataquesnaRússiaeemoutroslugares
da antiga União Soviética:uma granada foi lançada contra a sinagoga
em Derbent em janeiro de 2004,três coquetéis molotov contra uma
sinagoga em Chelyabinsko em fevereiro de 2004,e menos de dois
mesesdepoisumasinagogaemNizhnyNovgorodfoiatacada.Tentati-
vasdeincêndioforamreportadasemsinagogasdeMinsk,naRepública
deBelarus(ex-Bielo-Rússia),emagostode2003.Afachadadoedifício
foidanificadanestaquefoiaquintatentativadeincêndioemdoisanos.
Registraram-se incidentes semelhantes nos demais países europeus,
notadamentenaGrã-BretanhaenaHolanda.
Esses dois registros,da retórica e das agressões físicas dirigidas
contra os judeus,não configuram um movimento coerente e articu-
lado.Apresentam,contudo,algumas características comuns a partir
dasquaisoanti-semitismocorrenteassumeumanovaconfiguração,
sobretudonaEuropaOcidental8.
A primeira característica diz respeito ao fato de o anti-semitismo
atual,diferentemente do período que antecede a Segunda Guerra
Mundial,eemcontrastecomodospaísesdoantigoblocosoviéticono
período pós-guerra,encontrar-se sobretudo na sociedade e não no
Estado.Praticamente em todos os países da Europa as autoridades
estataisrejeitamexplicitamenteoanti-semitismoeimplementamleis
epolíticasquevisamcombatê-lo9.
101NOVOS ESTUDOS 79 ❙❙NOVEMBRO 2007
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6. [10] Os países pesquisados foram
Áustria,Bélgica,Dinamarca,França,
Itália,Alemanha,Holanda,Espanha,
Suíça,Grã-Bretanha,HungriaePolô-
nia. A pesquisa mostra que a idade
mais avançada e o menor nível de
escolaridade são fatores-chave na
probabilidade de os entrevistados
concordarem com os estereótipos
anti-semitas (Anti-Defamation Lea-
gue, Attitudes towards Jews in twelve
Europeancountries,maio2005).
[11] Certamente, a extrema-direita
européia continua a ver os judeus
como agentes de uma modernidade
incontrolável que ameaça as virtudes
das sociedades nacionais fundadas
natradição.
[12] Emalgunspaíses,opicodosinci-
dentesocorreuduranteomêsdeabril
de2002,justamentenomomentoem
que o exército israelense ocupou vá-
rias cidades palestinas,provocando
acirrada controvérsia sobre a política
de ocupação e os métodos utilizados
paraconteraSegundaIntifada.
[13] Arendt,op.cit.
Comrelaçãoaograudepenetraçãodeidéiasanti-semitasnapopu-
laçãodaEuropa,asindicaçõesdisponíveissãocontraditórias.Nãofal-
tamevidênciasaindicarqueosjudeushojeseencontrambemintegra-
dos nas sociedades européias e que não enfrentam obstáculos ao
desenvolvimento de suas vidas pessoais e comunitárias.Muitos paí-
ses celebram seus judeus e sua cultura:proliferam museus,antigas
sinagogassãorestauradas,cursosdeiídichesãooferecidosemestabe-
lecimentos de educação para adultos,e música e culinária judaicas
adquiremgrandepopularidade.
Em contrapartida,informações obtidas por meio de pesquisas de
opinião destinadas a mensurar o nível de difusão dos preconceitos
antijudaicoschegamaconclusõesdivergentesdaapreciaçãoanterior.
Pesquisa recente realizada em doze países europeus pela Anti-Defa-
mation League e publicada em 200510 mostra a força de afirmações
estereotipadas:“os judeus são mais leais a Israel do que a este país”
obteveaconcordânciade43%dosentrevistados,“osjudeustêmmuito
poder no mundo dos negócios” contou com a concordância de 30%,
“os judeus têm muito poder no mercado financeiro internacional”
obteve 32% de concordância e 42% consideraram como provavel-
mentecorretaaproposição“osjudeusaindafalammuitosobreoque
lhesaconteceunoHolocausto”.
Asegundacaracterísticadasrecentesmanifestaçõesdehostilidade
contraosjudeuséquehojenãoconfiguram,namaiorpartedoscasos,
um movimento organizado de mobilização política,tal como ocorria
nopassado.Asmanifestaçõessãodifusas,poucoarticuladaseosauto-
resnemsempresedeclaramanti-semitas.Essasituaçãocontribuisig-
nificativamente para tornar o “novo anti-semitismo” um conceito
contestado.Critériosquesãovistosporalgunscomocentraisnadefi-
nição do “novo anti-semitismo” – como,por exemplo,o anti-sio-
nismo–sãocompletamenterejeitadosporoutros.Tratando-sedeum
terrenoquepossuiumaexcepcionalcarganormativaeemotiva,abre-
se espaço para intensas disputas terminológicas e políticas sobre a
tipificaçãodesseseventos,comoveremosadiante.
Aterceiracaracterísticarefere-seaolugarcentralqueoconflitono
OrienteMédioassumiunamotivaçãodasmanifestaçõesdeanimosi-
dadecontraosjudeus11.Amudançadaorigemdaanimosidade–antes
orientadaparaacondiçãoestruturaldosjudeusnaEuropaOcidental
ehojeparaacondiçãodediásporaculturalepolíticadeIsrael–marca
uma significativa diferença com o anti-semitismo moderno12.Como
afirma Arendt13,a origem do anti-semitismo moderno decorreu da
posiçãosocialdosjudeusnassociedadeseuropéiasdoséculoXVIIIe
XIX,particularmentedarelaçãoqueseestabeleceuentreeleseosEsta-
dosnacionaisemformação.Argumentaque,comoosjudeusestavam
foradaestruturadeclassessociaisestabelecidas,dependiamdaprote-
102 ANTI-SEMITISMO NA EUROPA HOJE ❙❙Bila Sorj
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7. [14] Para um inventário que identi-
fica os autores dos atentados, ver
European Monitoring Centre on
Racism and Xenophobia, Manifesta-
tions of anti-Semitism in the EU-2002-
2003,2005 (http://eucm.eu.int).O
relatórioalerta,todavia,paraoslimi-
tesdosdadoscoletados,umavezque
a maior parte das classificações dos
autores dos ataques foi baseada ape-
nas nas percepções das vítimas e de
testemunhas.
çãodoEstadonacional,que,porsuavez,necessitavadaelitefinanceira
dosjudeusparasustentarsuastransaçõescomerciais.Adependência
recíproca,entreosjudeuseoEstado,gerouumanoçãoexageradaares-
peito do poder que os judeus detinham nessas sociedades.Em con-
traste,o anti-semitismo contemporâneo não se funda,de maneira
geral,em uma concepção específica da condição socioeconômica dos
judeusnaestruturadassociedadeseuropéias,masnasuaestreitaliga-
çãocomIsrael.
Aquartacaracterísticadizrespeitoaosresponsáveispelosatosde
violência dirigidos contra os judeus e contra suas instituições comu-
nitárias.Pesquisas revelam que boa parte dos autores de atentados
não é militante de extrema-direita,mas “jovens mulçumanos”,“pes-
soas de origem norte-africana” ou “imigrantes”, notadamente na
França,na Bélgica e na Grã-Bretanha14.Cabe destacar que,muitas
vezes,o recurso a tais categorias amplas para caracterizar pessoas
parece sustentar a hipótese da existência de comunidades homogê-
neas que compartilhariam certas características resultantes do seu
contextoétnicooureligioso.Aidentificaçãodosautorescomomem-
bros de “comunidades” pode levar, de modo geral, à atribuição de
responsabilidadescoletivasaatosindividuais,produzindoa“islamo-
fobia”, fenômeno correlato ao anti-semitismo. Nesse sentido, é
importantequeseretenhaaperspectivadeque“comunidades”apre-
sentam diferenciações internas,não apenas no que diz respeito à sua
inserção na estrutura socioeconômica,mas também na sua adesão a
diferentesreferênciasidentitárias.
ANTI-SEMITISMO: GLOBALIZAÇÃO E IDENTIDADES COMUNITÁRIAS
Duas ordens de razões são freqüentemente apresentadas para
explicaraassociaçãoentreosatosdeanimosidadeverbaleosdeviolên-
ciafísicadirigidasaosjudeusporindivíduosligadosaessascomunida-
desque,ameuver,nãosãoexcludentes.Aprimeiradizrespeitoàtrans-
nacionalização dos conflitos do Oriente Médio.Jovens oriundos das
comunidadesdeimigrantesdepaísesárabesemuçulmanosnaEuropa
teriamumfortesentimentodeidentificaçãocomodestinodospalesti-
nos.Talidentificaçãoseriaparticularmentepromovidaporveículosde
comunicaçãodealgunspaísesárabescaptadosviasatéliteemterritório
europeu,por sermões proferidos em algumas mesquitas por líderes
radicaisislâmicos,pordiscursospronunciadosporváriosgovernantes
depaísesárabesemuçulmanos.Essesdiscursosnormalmenteprodu-
zemumafusãodascategorias“judeus”,“israelenses”,“sionistas”,“Es-
tadodeIsrael”,“políticasdogovernodeIsrael”,“comunidadejudaica”
e“religiãojudaica”,transformandocadajudeuindividualmente–bem
comoassuasmaisvariadasinstituiçõescomunitárias–emalvoauto-
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8. [15]Roy,Olivier.GlobalisedIslam.The
search for a new ummah. Nova York:
ColumbiaUniversityPress,2004.
[16] Cohen, Martine. “Les Juifs de
France:modernité et identité”.Revue
d’Histoire,n.66,abr.-jun.2000.
[17] Ibidem.
máticodaexpressãodeindignaçãocomasituaçãodoOrienteMédio.
Assim,todojudeuépercebidocomo“representante”dasimagenspolí-
ticasquesãoelaboradasarespeitode“Israel”.
Aforteidentificaçãodejovensdescendentesdeimigrantesoriun-
dos notadamente do Norte da África com os palestinos pode ser
entendida com base na emergência do que Olivier Roy15 denominou
“islãglobalizado”.Segundooautor,oislãvemseafirmando,tantona
sua versão pietista como nas suas formas mais radicais e políticas,
comoumaummah(nação)globalizada,desconectadadeumterritório
e de uma cultura particular.Uma evidência da nova configuração é o
crescente número de jovens descendentes de imigrantes do Norte da
África e do mundo árabe que,no Ocidente,definem-se prioritaria-
mentecomodeidentidademuçulmanaenãosegundoopaísouacul-
turadeorigemdeseuspais.Osucessodesseprojetoreligiososedeve
àcapacidadedeofereceralgumareferênciaidentitáriaquepreenchao
vazio deixado pela perda de raízes e da cultura herdada e pela frouxa
identificação com a cultura dominante.A nova concepção do islã,
segundo o autor,tem na internet um instrumento perfeito para fazer
avançar o modelo de comunidade abstrata de crentes,desligados de
qualquerculturaespecíficanacional.
Os judeus na França também mostram claros sinais de que sua
identidade está em franca reestruturação.O modelo clássico de inte-
graçãoformuladonoperíododaemancipaçãodosjudeusapósaRevo-
lução Francesa,cujo mote era “tudo aos judeus como indivíduos e
nadacomonação”,exibeclarossinaisdedesgaste16.Sobváriosaspec-
tos,épossíveldiscernirofortalecimentodaidentidadejudaicadetipo
“comunitarista”.Indicaçãoeloqüentenessesentidoconsistenoquase
desaparecimento do termo “israelita” como auto-identificação dos
judeusesuasubstituiçãopeladesignação“judeu”.Otermo“israelita”,
quealudeaumaconfissãoaserpraticadanaesferadavidaprivada,foi
adotado pelos judeus assimilados do século XIX,que assim preten-
diam evitar o uso do termo “judeu” pelo que carregava de pejorativo.
Hoje,a situação se inverteu.Os judeu-franceses passaram a se auto-
identificar como “judeus” enquanto o termo “israelita” tornou-se
quasepejorativo,justamenteporaludiraumjudeuenvergonhado,que
teriareprimidosuaidentidadeemnomedaassimilação.
Nas últimas duas décadas,a freqüência de crianças em escolas da
comunidadeaumentou.Comefeito,osjudeussemostrammaisincli-
nados a participar da vida comunitária17. Ademais,começaram a se
afirmarcomoatoresvisíveisnoespaçopúblico,bemcomoaexpressar
sua proximidade com Israel,que passou a ter um importante papel
para aqueles judeus que reclamam para si uma identidade “étnica”.À
semelhança de outras comunidades que reivindicam alguma origem
nacionalanterioràimigraçãoparaassociedadeseuropéias,osjudeus
104 ANTI-SEMITISMO NA EUROPA HOJE ❙❙Bila Sorj
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9. [18] Suzan,Bénédicte&Dreyfus,Jean-
Marc. MuslimsandJewsinFrance:com-
munal conflits in a secular state. The
Brookings Institution U.S.-France
Analysis,Washington,2004 (http://
www.brookings.edu/fp/ cusf/analy-
sis/suzan20040229.pdf).
[19] Durkheim, Émile. “Antisémi-
tisme et crise social”. In: Victor Ka-
rady (org.), Textes, vol. 2 – Religion,
morale, anomie. Paris: Éditions de
Minuit,1975.
[20] Ibidem,p.253.
também teriam a sua nação originária,Israel.Não é a nação de onde
efetivamenteimigraram(nocasodaFrança,osjudeussãomajoritaria-
mente oriundos dos países do Norte da África),mas de uma nação
mítica cujos laços são constantemente emulados pelo governo de
Israel e por várias lideranças comunitárias,embora nem todos defi-
nam em Israel o foco da sua identidade e,menos ainda,mostrem-se
inclinadosaimigrarparaaquelepaís.
Dessemodo,acentua-seoprocessoderecomposiçãodasidentida-
desdeárabes/muçulmanosedejudeus.Noprimeirocaso,emfunção
dodistanciamentodeumaherançanacionaledaadesãoaumacomu-
nidade religiosa transnacional;no segundo,em razão do enfraqueci-
mentodaidentificaçãocomomodelorepublicanoedofortalecimento
da identidade comunitária. Ambos os grupos passaram, então, a
repercutirdemaneiramaisintensaosconflitosdoOrienteMédio.
A segunda ordem de razões considera que a hostilidade contra os
judeusnaEuropanãopodeserentendidaapenascomoconseqüência
direta da transferência e da apropriação dos problemas políticos do
Oriente Médio. Suzan e Dreyfus18 argumentam que a violência é
sobretudoaexpressãododescontentamentocomasdificuldadesque
parcelas importantes de imigrantes árabes/muçulmanos e seus des-
cendentestêmenfrentadonaintegraçãoàsociedadefrancesa,particu-
larmente no sistema educacional e no mercado de trabalho.Assim,o
discurso antiocidental,antiisraelense e antijudeu permitiria a esses
jovensexpressarsuafrustraçãoelhesdariaumanovafiliaçãoidentitá-
ria.Analogamente,areaçãodosjudeusàviolênciasedeveriamenosao
conflitonoOrienteMédioouaotemordacomunidademulçumanae
mais ao medo do ressurgimento do anti-semitismo na população
francesaemgeral.Tratadossobessaótica,osatosdehostilidadecon-
traosjudeusadquiremumadimensãopropriamentenacional,naqual
estariam em jogo os antagonismos entre minorias e o próprio futuro
dasociedadefrancesa.Mas,seéassim,aperguntaquesesegueé:por
queosjudeusnaEuropasetornaramoalvoprivilegiadodasmanifes-
tações de descontentamento de grupos de imigrantes árabes/mulçu-
manoseseusdescendentesnaEuropa?
Algunsestudiososadotamavelhanoçãode“bodeexpiatório”para
explicaraanimosidadecontraosjudeus.Segundotalinterpretação,o
anti-semitismoemanariadeumasituaçãodecriseoudeumepisódio
defrustraçãosocialintensa.Durkheim19 jáhaviapropostoessaexpli-
cação em 1899,a propósito do caso Dreyfus,escândalo político que
dividiuaFrançapormuitosanos,provocadopelafalsacondenaçãopor
traiçãodeumoficialdoExércitodeorigemjudaica.Oautorafirmaque
“quandoasociedadesofre,elatemnecessidadedeencontraralguéma
quem imputar seu mal”20.Para esse papel de bode expiatório seriam
designadosaquelescujaimagemjácarregaalgumtipodejuízonega-
105NOVOS ESTUDOS 79 ❙❙NOVEMBRO 2007
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10. [21] Rosenbaum,Aléxis.L´Antisémi-
tisme.Paris:Breal,2006.
[22] Cohen,op.cit.
[23] Wieviorka, Michel. La tentation
antisémite:hainedesjuifsdanslaFrance
d´aujourd´hui.Paris:Lafont,2005.
[24] A pesquisa foi realizada a partir
de entrevistas com jovens muçulma-
nosencarceradosempresídios.
[25] Wieviorka,op.cit.,p.195.
[26] Chaumont,Jean-Michel.Lacon-
currencedesvictimes:génocides,identité,
reconnaissance. Paris:La Decouverte,
1997.
tivo da opinião pública.Interpretada por essa chave analítica,Rosen-
baum21 considera que as dificuldades de inserção socioeconômica na
sociedade mais ampla seriam vividas como frustrações de minorias
queseprojetampormeiodaincriminaçãodosjudeus(“elescontrolam
osmeiosdecomunicação”,“elestêmtudo,nósnãotemosnada”).Uma
vez que a maioria dos judeus descende de imigrantes do Norte da
África,a animosidade se agrava pela facilidade de estabelecer compa-
ração com os demais imigrantes da região,alimentando a inveja e a
hipersensibilidadeperanteosdestinossociaisdosgrupos.
De fato,o processo de integração dos judeus na França foi bem-
sucedido e passou a simbolizar um modelo que parece inacessível a
outras minorias, especialmente às de origem norte-africana. Em
2002,mais da metade dos domicílios de judeu-franceses situava-se
na região parisiense;quase metade dos chefes de família tinha grau
universitário,índicesuperioràmédiadosfranceses22.
Todavia,aexplicaçãoapartirdacategoriado“bodeexpiatório”,que
remete prioritariamente às desigualdades socioeconômicas entre
“comunidades” e a processos de ordem psicológica,não atenta para o
poderdasimagenserepresentaçõesconstruídasacercadarelaçãoentre
“Israel” e “os palestinos” sobre a formação identitária dos jovens imi-
grantesoudescendentesdeimigrantesdospaísesárabes/muçulmanos.
Wieviorka23 assinalajustamenteaimportânciadelevaremconta
asduasdimensõesdoproblema:ade“dentro”(condiçãodeexclusão)
eade“fora”(oconflitoentreIsraeleospalestinos)paraexplicaraani-
mosidade antijudaica. O autor conseguiu captar, no discurso dos
seusentrevistados24,acorrespondênciamíticaquejovensdescentes
de imigrantes do Norte da África estabelecem entre o mundo defi-
nidopeloviéspalestinoeasituaçãodelesnaFrança.Dessemodo,os
jovenssublinham
aimpotênciadosárabesnomundo(eadelesprópriosnaFrança),aincapa-
cidadedeosárabeseosmulçumanosseajudarem(oqueelesobservamque
tambémocorreentreseuscorreligionáriosnaFrança),ainaptidãodospaí-
ses muçulmanos para socorrer os palestinos e,enfim,a hegemonia de um
pequeno país,Israel,sobre o mundo muçulmano (do mesmo modo que o
judeu imaginário imporia à França os interesses de uma pequena comuni-
dademinoritária)25.
Aconstruçãodeumaretóricadevitimização,comoobservaChau-
mont26,marcaamaneirapelaqual,naatualidade,gruposexcluídosse
auto-representam e definem suas estratégias políticas para obter
acesso privilegiado a recursos materiais e simbólicos.Visto por esse
prisma,osconflitosentreminoriaspodemserentendidoscomouma
disputaparaocuparo“camposocialdavitimização”.Comohipótese,
106 ANTI-SEMITISMO NA EUROPA HOJE ❙❙Bila Sorj
05_BilaSorj.qxd 12/7/08 9:46 PM Page 106
11. [27] Foxman, Abraham H. Never
again? The threat of the new anti-Semi-
tism.Nova York:HarperCollins/Har-
perSanFrancisco,2003;Dershowitz,
Alan. The case for Israel. Hoboken,
New Jersey: John Wiley & Sons,
2003; Chesler, Phyllis. The new anti-
Semitism: the current crisis and what we
must do about it. San Francisco: Jos-
sey-Bass,2003.
[28] Sarfati, Georges-Elia. L’Antisio-
nisme. Israël/Palestine aux miroirs
d’Occident. Paris: Berg Internatio-
nal,2002.
[29] Para uma visão da diversidade
atualdepontosdevistaacercadosio-
nismo na elite intelectual, política e
acadêmicadeIsrael,verFlint,Guila&
Sorj,Bila.Israel,terraemtranse.Demo-
cracia ou teocracia? Rio de Janeiro:
CivilizaçãoBrasileira,2000.
o autor sugere que os excluídos de hoje não dispõem dos mesmos
recursosqueosexploradosdeontemparanegociarumasituaçãomais
favorável no sistema,como,por exemplo,a ameaça de paralisação da
produção por meio de greve. Na falta de outra moeda de troca, o
recurso à posição de vítima passa a ser o único instrumento disponí-
velparavalidarasreivindicaçõesdegruposminoritários.
No ambiente de concorrência entre vítimas,os judeus e o Holo-
causto são percebidos como ocupando por muito tempo um amplo
espaço e hostilizados pelas “novas vítimas”,que os acusam de mono-
polizaraculpacoletivalocal.Adisputapelolugardevítimamuitasvezes
resvala para a banalização do sofrimento do concorrente,quando não
paraapróprianegaçãodoHolocausto,comoveremosaseguir.
UM “NOVO ANTI-SEMITISMO”?
Aescaladadeviolênciaantijudaicanosúltimosanosdeuorigema
um debate complexo e muitas vezes confuso sobre a presença de um
“novo” anti-semitismo na Europa27.O anti-semitismo atual seria
basicamentedefinidocomooposiçãoàexistênciadoEstadodeIsrael,
um Estado criado como resultado das atividades do movimento sio-
nistaentre1897e1948,bemcomodadecisãodasNaçõesUnidasem
1947.Segundo essa visão,os ataques à existência de Israel seriam
manifestaçõesinerentementeanti-semitas,poisrecusamaosjudeuso
direito nacional à autodeterminação,isto é,o direito de decidir sobre
suaprópriavidacomunitária,suasleisesuasregras,suasinstituições,
seussímboloseseudestinopolítico28.Emcontraposição,outroscon-
sideramoanti-sionismoumdiscursopolíticolegítimo,semimplica-
çõesxenofóbicas.Argumenta-seque,emboraamaioriadosanti-semi-
tasautodeclaradosdehojeusearetóricaanti-sionista,historicamente
muitos anti-semitas eram pró-sionistas.De fato,na Alemanha e na
Polônia,antes da Segunda Guerra Mundial,muitos políticos anti-
semitasapoiavamaemigraçãoouaexpulsãodosjudeusparaaPales-
tinacomoformadesolucionaro“problemajudaico”.Oanti-sionismo
tambémmarcapresençaentrecorrentesminoritáriasdeultra-ortodo-
xos,emIsraelenoexterior,querejeitamosionismoporquecontraria-
riaavontadedivinaderedençãomessiânica;hátambémjudeussecu-
laresedeesquerdaemIsraelqueseopõemàexistênciadeIsraelcomo
umestadoespecificamentejudeuepropõemqueeledeveriasersubs-
tituído por um estado secular no qual judeus e árabes teriam os
mesmo direitos;outros ainda consideram que a criação do Estado de
Israel não teria sido a melhor solução para as dificuldades que os
judeus enfrentavam na diáspora,mas,uma vez que ele existe,não é
possível voltar ao status quo anterior29.Assim,a visão crítica do sio-
nismonãoéalheiaàprópriahistóriainternadojudaísmo.Entretanto,
107NOVOS ESTUDOS 79 ❙❙NOVEMBRO 2007
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12. [30] Finkelstein, Norman. Beyond
chutzpah:onthemisuseofanti-Semitism
and the abuse of history. Califórnia:
Universityof CaliforniaPress,2005.
[31] Instituição criada pela União
Européia para monitorar as manifes-
taçõesderacismoeanti-semitismono
Continente.VerManifestationsof anti-
SemitismintheEU-2002-2003,cit.
[32] Ibidem,p.13.
[33]The American Israel Public
AffairsCommittee(AIPAC)éumdos
maisimportanteslobbiesamericanos.
Em seu site, a seção “quem somos”
traz explicitamente esse reconheci-
mento.A organização assim se apre-
senta: “Por essas razões, o The New
York Times chamou o AIPAC a mais
importante organização que afeta a
relação entre os Estados Unidos e
Israel,enquanto a revista Fortune sis-
tematicamente classifica o AIPAC
entre os mais poderosos grupos de
interesse da América” (http://www.
aipac.org/about/).
ao contrário de vários outros movimentos políticos,religiosos e de
governos,particularmente nos países árabes ou muçulmanos,esses
grupos recusam a utilização da força para transformar a realidade
atual.Em princípio,pode-se dizer que anti-semitismo e anti-sio-
nismo não são sinônimos.Se,para alguns,tratá-los como conceitos
equivalentesseriaapenasumaestratégiadefensivaparainibirascríti-
casàspolíticasdoEstadodeIsrael30;paraoutros,insistirnaseparação
radical entre eles dificultaria a apreensão dos preconceitos antijudai-
cosquesedissimulamnodiscursoanti-sionista.
Diante da acirrada disputa sobre a relação entre críticas a Israel e
anti-semitismo,oEuropeanMonitoringCentreonRacismandXeno-
phobia31 elaborouumadefiniçãodeanti-semitismodecaráteropera-
cional,que permitiria separar o anti-sionismo como um preconceito
baseado em visão estereotipada do “judeu” e aquele cujo sentido é
baseadoemumacausapolíticaquepodenãoser,emsimesma,antiju-
daica.Assim,considera-se anti-semitismo “qualquer ato ou atitude
quesebaseianapercepçãodeumsujeitosocial(individual,grupo,ins-
tituição ou país)” como “o (enganoso,corrupto,conspiratório etc.)
judeu”32.Emoutraspalavras,oanti-semitismoocorrequandojudeus
sãopercebidosetratadossegundoatributostípicosdojudeuimaginá-
rio,construídopormeiodecategoriasestereotipadas.Noquedizres-
peitoaIsrael–incluindo-seaítantoasposiçõescontraaexistênciado
Estadocomoaquelasquecriticamaspolíticasdogoverno–,conside-
rou-sequequandoépercebidocomorepresentantedo“judeu”,istoé,
como representante dos traços construídos pelo anti-semitismo
acercadosjudeus,taismanifestaçõesseriamclaramenteconsideradas
expressõesdeanti-semitismo.
Nodebatepúblicoatualasfronteirasentreessesdoisplanosmui-
tasvezesseconfundem,poisautilizaçãodaretóricaedeimagenstípi-
cas do anti-semitismo clássico para criticar o Estado de Israel é
freqüentementeacionada.Passaremosaidentificaralgumasmanifes-
tações retóricas do anti-sionismo que,a meu ver,configuram a con-
fluênciaentreanti-sionismoeanti-semitismo.
ANTI-ISRAEL E ANTI-SEMITISMO
CasotípicodecríticaaIsrael,quepodeserinterpretadacomoati-
vadoradepreconceitosantijudaicos,expressa-senasacusaçõesdirigi-
dasàinstituição“lobbypró-Israel”,emWashington,queexerceriaum
poder conspiratório e manipulador da política externa norte-ameri-
cana.O caráter preconceituoso associado a essa instituição,muitas
vezes chamada de “lobby judeu”,residiria menos no reconhecimento
de sua força,o que aliás é publicamente reconhecida pela sua lide-
rança33,e mais nos tipos de acusação a ela imputadas,tais como de
108 ANTI-SEMITISMO NA EUROPA HOJE ❙❙Bila Sorj
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13. [34] DailyTimes,20/3/2003.
[35] Essetextoapócrifo,publicadono
início do século XX,descreve o plano
dos judeus para dominar o mundo;é
consideradoummarcoqueinauguraa
teoriadaconspiraçãojudaica.
[36] Al-Doustour (Jordânia), 17/4/
2003. Esse extrato e o seguinte são
citadosemWieviorka,op.cit.,p.112,e
constamdoinventáriorealizadopelo
sitewww.proche-orient.info.
“duplalealdade”deseusativistas,de“agircontraosinteressesameri-
canos”ede“controlarogovernoamericano”.Essasincriminaçõessão,
comefeito,apropriadasàretóricaanti-semitatradicionalqueacionaa
figuraimagináriado“judeu”:nãoimportaondeestejam,osjudeusfor-
mamumEstadodentrodoEstado,aprisionandoasociedadenointe-
riordaqualvivem.Provavelmente,esseéumdosúnicoslobbiesnorte-
americanos cujos críticos,não todos evidentemente,acionam uma
linguagem desse tipo.Outros lobbies,apesar de muito criticados,não
são alvo da mesma retórica.Como exemplo,a crítica ao dos latinos
anticastristas, igualmente ativo e bem-sucedido, não se vale do
mesmo tipo de condenação moral,nem mesmo pelos simpatizantes
daRevoluçãoCubana.Interessantenotarqueanovaconstruçãomoral
da categoria “lobby pró-Israel” foi acompanhada de uma mudança na
percepçãoarespeitodeIsrael.Atépoucotempoatrás,Israeleraperce-
bidocomomeropaís-fantochedosinteressesdosEstadosUnidosno
Oriente Médio.Hoje a situação se inverteu.Os Estados Unidos pas-
saramafigurarcomomeroinstrumentodosinteressesdeIsrael.
A retórica do poder manipulador dos judeus aparece também em
discursosdealgumasliderançaspolíticasereligiosasdepaísesárabese
muçulmanosecirculamlivrementenaimprensadetaispaíses.Exem-
plo freqüentemente citado de discurso nesta direção foi proferido na
10th Session of the Islamic Summit Conference,em 16 de outubro de
2003,por Mahathir Mohamad,ex-primeiro-ministro da Malásia.
Assimseexpressou,comummistodeanimosidadeeadmiraçãopelos
judeus,depoisdecondenarousodeataquesterroristasporpalestinos:
Oinimigoprovavelmenteirásaudaressaspropostasenósconcluiremos
queosproponentestrabalhamparaoinimigo.Maspensem.Estamosenfren-
tandouminimigoquepensa.Elessobreviveram2milanosdepogromsnão
porque revidaram,mas porque pensaram.Eles inventaram o socialismo,o
comunismo,osdireitoshumanoseademocraciaparaqueaperseguiçãoaeles
parecesse errada e para que pudessem gozar de direitos iguais aos demais.
Comisso,agoraganharamocontroledopaísmaispoderoso,eessaminúscula
comunidadetornou-seumpodermundial34.
A retórica de confrontação e condenação política que faz uso de
repertórioanti-semitaéveiculadalivrementenaimprensadoOriente
Médio,mas também via internet,para o mundo todo.Nesses textos
sãoapresentadasacusações,novelhoestilodosProtocolosdosSábiosde
Sião35,nos quais os israelenses são retratados como praticantes de
rituaiscriminosos:“Asfatwas[pronunciamentolegaldeumlíderreli-
gioso] israelenses apelam abertamente para a matança de crianças
palestinasmenoresdeonzeanos,inclusivedefetos,comoobjetivode
depuraçãoétnica”36.Aimagemsegundoaqualosjudeusseorganiza-
109NOVOS ESTUDOS 79 ❙❙NOVEMBRO 2007
05_BilaSorj.qxd 12/7/08 9:46 PM Page 109
14. [37] Akher Saa’a (Egito), 26/02/
2003.
[38] O Alcorão relata que alguns ju-
deussecomportaramcomotraidores
doProfetaMaomé.
[39] Kramer, Martin. The salience of
Islamic anti-Semitism. Institute of
JewishAffairsReports,Londres,n.2,
out.1995(http://www.geocities.com
/martinkramerorg/Antisemi-
tism.htm).
[40] Wieviorka,op.cit.
riamsobumpodercentralconspiratóriotambémécomum.Resenha
elogiosa de um livro de Fahti-el-Ibyari detalha o funcionamento do
poder judaico:“os judeus do mundo são dirigidos por uma organiza-
çãoultra-secretachamada‘Kahila’,oucérebrodiabólico,compostade
trezentos diabos ou representantes de Satã”37.Essa instituição seria
responsável pelo assassinato de sábios nucleares egípcios,pela des-
truição da economia mundial,pelas guerras na Ásia e na África e pelo
colapsodaUniãoSoviética.
Conquantosejapossívelencontraralgumasreferênciaspreconcei-
tuosassobreosjudeusnoAlcorão,comoporexemploseremconside-
rados traidores de Maomé38,a tradição islâmica não transformou os
judeusconcretamentemencionadosnoAlcorãono“eternojudeu”ou
no“judeuabstrato”,àsemelhançadaversãopredominanteatépouco
tempoatrásnocristianismo.OAlcorãoinclusivecontémalgunsver-
sos que indicam relações amigáveis entre o Profeta e alguns judeus,e
na tradição islâmica os judeus são vistos como membros de uma
comunidadelegítimadecrentesemDeus,o“povodoLivro”destinado
aosofrimento. Ateologiaislâmica,vistadessemodo,contrastacomas
concepções católicas do judeu abstrato,que carrega para sempre a
marca da traição de Jesus.Dessa forma,não é possível afirmar que o
anti-semitismo islâmico hoje seja um produto autenticamente islâ-
mico.E,mesmoseocompararmosaosregistrospreconceituososem
relaçãoaosjudeusemboapartedahistóriacristã,veremoscertamente
queoislamismoapresentaníveisdetolerânciasuperiores.
Assim,alguns estudiosos interpretam o anti-semitismo islâmico
recente como decorrência da criação do Estado de Israel e do perma-
nente conflito entre israelenses e palestinos.Todavia,a utilização de
imagens estereotipadas dos judeus para se referir ao conflito do
OrienteMédiofazsuporqueháalgomaisemjogodoquesomenteo
sionismo e as políticas de Israel.Como sugere Kramer39,trata-se da
influência do anti-semitismo religioso e racial do Ocidente sobre o
proselitismo antijudaico do Oriente Médio.Tal influência foi propi-
ciadapelacirculaçãodeelitesintelectuaisislâmicasnasuniversidades
européias,elites que assimilaram a visão preconceituosa e estereoti-
pada dos judeus e a deslocaram para o contexto do Oriente Médio.
Transformada em acusação genérica aos judeus,que se estende além
doanti-sionismo,osjudeuspassaram aocupar o lugar dosconspira-
dores,semelhante àquele que ocuparam no discurso anti-semita da
Europamoderna.
SegundoWieviorka40,onovoanti-semitismo,baseadoemdiferen-
tescamadasdoantijudaísmocristãoemoderno,nãoprovémdaqueles
quetêmumapráticaconcretaderelaçãocomosjudeus,sejamosára-
besdeIsrael,sejamospalestinosquevivemnosterritóriosocupados.
Emtaisregiões,essasimagensencontrampoucoespaçoderepercus-
110 ANTI-SEMITISMO NA EUROPA HOJE ❙❙Bila Sorj
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15. [41] IranFocus,11/2/2006.
[42] JerusalemPost,10/2/2006.
são.São,sobretudo,os meios de comunicação da Jordânia,da Arábia
Saudita,doLíbanoedoEgitoquefornecemessefluxodeimagenspre-
conceituosas sobre os judeus.Desse modo,encorajam os leitores a
odiarIsraeleosjudeusemgeral,oquepermite,segundooautor,acria-
çãodeumasupostacausaárabeemuçulmanacomum,cujoobjetivoé
evitaracríticainternaaosregimespolíticosvigentes.
Em meio à retórica antijudaica,é cada vez mais notável a repre-
sentaçãodosjudeuscomometáforadoOcidente.Issopodeserilus-
tradopelamaneiracomoosjudeuseIsraelforamenvolvidosnacha-
mada “controvérsia das charges de Maomé”, que teve início em
setembro de 2005. Na impossibilidade de conseguir alguém que
ilustrasse a biografia de Maomé escrita por um autor dinamarquês,
o jornal Jyllands-Poste publicou charges do Profeta consideradas
ofensivas ao islã, especialmente a que mostra Maomé com uma
bombanoturbante.EsseincidenterepercutiurapidamentenoOci-
denteeensejouumcalorosodebatesobredemocraciaeoslimitesda
liberdade de imprensa. Em vários países árabes e mulçumanos
desencadeou-seumaondademanifestaçõesderuaviolentas,coma
ritualqueimadebandeiras,inclusiveadeIsrael,ecomapelosaoboi-
cote de produtos dinamarqueses na região. Na seqüência dos pro-
testos,aimprensademuitospaísesárabesemuçulmanosresolveu,
como retaliação à Europa,publicar caricaturas que aludiam à cons-
piração judaica para controlar o mundo,que debochavam do Holo-
causto e apresentavam imagens demoníacas e estereotipadas dos
judeus(narizgrande,casacapreta,chapéudeabaslargas,corpodis-
forme etc.), semelhantes àquelas que se tornaram habituais na
imprensaanti-semitadaEuropamoderna.
AdespeitodeIsraeledosjudeusnãoestaremnaorigemdesseepi-
sódio,eles foram envolvidos na disputa.Aqueles que se sentiram
insultados alegaram que os judeus estavam por trás do incidente.O
presidente do Irã,Ahmadinejad,declarou na ocasião que “aqueles
[queinsultamofundadordoislã]sãorefénsdossionistas.Eospovos
daEuropaedosEstadosUnidospagaramumaltopreçoporteremse
transformado em reféns dos sionistas”41. O líder do Hezbollah,
SheikhHassanNasrallah,queencabeçouamanifestaçãodemilhares
de pessoas no Líbano,alegou que,se as vítimas do insulto fossem
judeus,o Ocidente teria agido rapidamente:“É o mundo islâmico
menosimportantequeumpunhadodesionistas?Nãopodemosacei-
tarisso...VamoslevaramensagemdeDeusnãoapenaspelanossavoz,
mas pelo nosso sangue”42.O que importa reter desse evento é que
Israeldeixoudeserumarealidadegeográfica,políticaenacionalcon-
creta para se transformar nos “judeus”,e esses,por sua vez,em sím-
boloquecondensaasrepresentaçõesnegativasacercadaEuropaedo
Ocidenteemgeral.
111NOVOS ESTUDOS 79 ❙❙NOVEMBRO 2007
05_BilaSorj.qxd 12/7/08 9:46 PM Page 111
16. [43] Said, Edward W. “Réponse aux
intellectuctuells árabes fascinés par
Roger Garaudy.Israel-Palestine,une
troisième voie”. Le Monde diplomati-
que,ago.1998 (http://www.monde-
diplomatique.fr/1998/08/SAID/
10786).
[44] Para um levantamento de pro-
nunciamentos “negacionistas” na
Europa e no Oriente Médio, ver
www.Wikipedia.org/wiki/Holo-
caust_denial. O pronunciamento
de maior repercussão na mídia oci-
dental foi proferido pelo presidente
do Irã, Mahmoud Ahmadinejad, na
reunião da Organization of Islamic
Conference (OIC), realizada em
Mecaem2005.Assimseexpressouo
presidente iraniano: “Alguns países
europeus insistem em dizer que
Hitler matou milhões de inocentes
judeus em crematórios, e eles insis-
tem nisso, e, se alguém provar qual-
quer coisa em contrário, eles conde-
nam essa pessoa e a colocam na
prisão”. O pronunciamento foi for-
temente criticado pelo Muslim Pu-
blicAffairsCouncil,organizaçãoque
trabalha em prol dos direitos civis
dosamericanosmuçulmanos.
[45] Uma vez que o movimento anti-
globalizaçãocongregadiferentesgru-
pos,não é possível generalizar mani-
festações que ali ocorrem como se
fossem representativas do movi-
mento como um todo.Naomi Klein,
escritora e ativista do movimento
antiglobalização e severa crítica das
políticas do governo israelense,
manifestou sua preocupação com o
fato de que “enquanto o movimento
antiglobalizaçãosempresemanifesta
corretamente contra o antiislamis-
mo, nunca se pronuncia contra a
onda de anti-semitismo na Europa”.
Esuaindignaçãocontinua:“Todavez
que eu acesso o site de livre acesso de
notícias de ativistas do movimento,
Outrotemaquesedestacananovaretóricaanti-semitaconsistena
negação do Holocausto e na associação de Israel aos símbolos nazis-
tas.OHolocaustoé,comcerteza,oprincipaleventoaoredordoquala
identidade judaica contemporânea se construiu,particularmente na
diáspora.AconexãoentreotemadoHolocaustoeIsraelsefortaleceu
recentemente como estratégia do governo de Israel para legitimar a
existênciadoEstadoemfacedocrescimentododiscursoanti-sionista
deseusadversários.
AnegaçãodoHolocausto,queseiniciounaEuropacomoschama-
doshistoriadores“negacionistas”,penetrounaconsciênciadeparce-
las expressivas do islamismo radical nos últimos anos43.Mais preci-
samente,em um primeiro momento,mencionava-se o Holocausto
nãoparanegá-lo,masparaargumentarqueasoluçãodoproblemado
anti-semitismo europeu não poderia recair sobre o povo palestino.
Emseguida,observa-seumamudançanarelaçãocomoHolocausto,
cuja existência é negada.Para os “negacionistas”,o Estado de Israel
não pode se justificar pelo Holocausto,já que nunca teria existido44.
Desta forma,o “negacionismo” europeu foi assimilado pelo radica-
lismoislâmicocomoestratégiapolíticanalutacontraaexistênciado
EstadodeIsrael.
Ao mesmo tempo,aparece no espaço público,com certa assidui-
dade,a construção simbólica de analogias entre Israel e os nazistas.
Tais analogias – que certamente contradizem o discurso “negacio-
nista”,já que sua força retórica repousa justamente na associação de
Israelcomo“malabsoluto”–sãocomunicadaspormeiodecaricatu-
rasecartoons,grafitesnosmurosdascidadeseuropéias,emfaixasecar-
tazesexibidosnasmanifestaçõesderuanaPalestinaeemdiversospaí-
ses árabes e muçulmanos,bem como em passeatas realizadas pelo
movimento antiglobalização45.Nesses diferentes espaços,a estrela-
de-davi é igualada à suástica,ou a suástica é sobreposta ao mapa de
Israeleaorostodosseusgovernantes.SegundoMarkovits46,autiliza-
çãodossímbolosnazistasparacaracterizarIsraelaspiraacumprirtrês
objetivos:oprimeiroédeslegitimá-lo,associando-oaosímbolomais
conhecido do “mal absoluto”;o segundo pretende humilhar o povo
judeu,igualando-oaosperpetradoresdogenocídioquequaseoelimi-
nouhásessentaanos;oterceiropretendeliberaraEuropadaculpaque
guardapelarelaçãohistóricatumultuadaquemantevecomosjudeus.
E,finalmente,ao imputar aos israelenses e a Israel qualidades demo-
níacas e inumanas,permite,em conseqüência,legitimar qualquer
meiodedefesaemfacedaameaçaqueelesrepresentariam.
Conforme sugerem os exemplos acima descritos,o discurso anti-
sionista,principalmente aquele irradiado do Oriente Médio,tem
assumidoumalinguagemqueacionaantigospreconceitoseestereó-
tipostípicosdaretóricaanti-semitadaEuropamoderna.
112 ANTI-SEMITISMO NA EUROPA HOJE ❙❙Bila Sorj
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17. como o Indymedia.org, eu me con-
fronto com um fio de teorias conspi-
ratórias sobre os judeus acerca do 11
deSetembroecomcitaçõesdoProto-
colo dos Sábios de Sião.O movimento
antiglobalização não é anti-semita,
ele apenas ainda não enfrentou as
implicaçõesdemergulharnosconfli-
tos do Oriente Médio [...].É possível
criticar Israel e condenar vigorosa-
mente o crescimento do anti-semi-
tismo. E é igualmente possível ser a
favor da independência da Palestina,
sem adotar uma visão simplista e
dicotômica ‘pró-Palestina/anti-Is-
rael’,imagemqueespelhaaequação‘o
bem versus o mal’, tão cara ao presi-
dente George W. Bush” (Toronto
Globe & Mail, 24/4/2002, http://
www.zmag.org/content/Acti-
vism/klein_oldhates.cfm).
[46] Markovits, Andrei S. “‘Twin
brothers’: European anti-Semitism
and anti-Americanism”. Jerusalem
Center for Public Affairs,Post-Holo-
caustandAnti-Semitism:WebPubli-
cations,n.6,8/1/2006(http://www.
jcpa.org/phas/phas-markovits-
06.htm).
[47] Bell, Daniel A. Communitaria-
nism and its critics. Oxford: Oxford
University Press,1993;Taylor,Char-
les. The ethics of authenticity. Cam-
bridge: Harvard University Press,
2000.
[48]Taguieff, Pierre-André. La force
dupréjuge:essaisurleracismeetsesdou-
bles. Paris: Éditions La Decouverte,
1987.
CONCLUSÕES: REPENSANDO O MULTICULTURALISMO
A combinação peculiar da retórica anti-sionista em circulação no
OrienteMédiocomorepertóriotípicodeimagensesímbolosdoanti-
semitismomodernoeuropeuencontrahojenaEuropaumespaçopro-
píciodereproduçãonaquelessetoresduplamentecondicionadospela
identificaçãoquemantêmcomasversõesmaisradicaisdacausapales-
tina e pela experiência de exclusão e forte sentimento de injustiça
socialnassociedadeseuropéias.
Aescaladadoanti-semitismonaEuropaapresentaumsériodesa-
fio às expectativas mais otimistas de uma vida pública baseada em
“comunidades”edesuacapacidadedepromover obem-estarcomum.
Com o fim da Guerra Fria e dos regimes autoritários do bloco sovié-
tico,a retórica política no Ocidente,centrada no ideário da democra-
cia liberal,de liberdade e direitos individuais,passou a ser percebida
comoultrapassadaepoucoatraenteparamobilizaraparticipaçãodos
cidadãos na política.Em contrapartida,as “comunidades” com suas
práticas e crenças foram redescobertas na sua capacidade de oferecer
umavisãomaissubstantivadoself,tornarapolíticamaisricaepromo-
verumsignificativoavançodobemcomum47.
Osregimesliberais,pornãoreconheceremoqueseencontravafora
desuajurisdição,foramdesafiadospelachamada“políticadasidenti-
dades”,ou seja,desafiados pelas atividades de grupos e movimentos
sociaisquereivindicamarepresentaçãodosinteressesdesetorespar-
ticularesdasociedade.Taisgruposcompartilhariamumaexperiência
comum,realoupercebida,deinjustiçasocialcomrelaçãoàsociedade
maisampladaqualparticipam.
A“políticadaidentidade”significamaisqueoreconhecimentode
identidades desfavorecidas pelos estereótipos e preconceitos domi-
nantes.Implicalevaraauto-identificaçãoreligiosa,culturalouétnica
paraocentrodavidapolíticaeinstitucional.Oespaçopúblico,assim
redefinido,seria,então,o locus da co-habitação das diferenças e suas
correspondentes narrativas.Os seus defensores,em geral,só conce-
bemcomohipótesenegativadessemodeloaemergênciadeumaindi-
ferençarelativistaentreasculturas,demodoqueahipótesedeconflito
entre “comunidades” em um contexto multicultural é em geral igno-
rada.Todavia,as“culturas”,“etnicidades”e“religiões”nãosãoneces-
sariamente virtuosas e,muito freqüentemente,são apropriadas por
lideranças políticas e religiosas que constroem identificações imagi-
nárias,segundo as quais aos indivíduos são designadas categorias
fixasepresumivelmenteautênticasdepertencimento.Inversamente,
a identidade coletiva,como classe de pertencimento,passaria a ser a
únicaaplasmaraqualidadedeumverdadeiroindivíduo,istoé,umser
único,singulareindivisível48.
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18. [49] Klug,Brian.“ThecollectiveJew:
Israel and the new anti-Semitism”,
Patterns of Prejudice (Londres: Rou-
tledge), vol. 37,n. 2,jun. 2003,apud
Slim, Hugo. How we look: hostile per-
ceptions of humanitarian action,2004
(http://www.hdcentre.org).
Esse jogo de identidades produz,desse modo,a indiferenciação
dosindivíduos:cadaaçãopessoalépercebidacomoexpressãodeuma
coletividade.Especificamente,nocasodequeestamostratando,essa
construção supõe que ações condenáveis do governo de Israel sejam
responsabilidadedaentidade“povojudeu”,ouqueumachargedeum
humoristadinamarquês,percebidacomoofensiva,incriminao“Oci-
dente”,que,por sua vez,é simbolizado pelos “judeus”.Na mesma
chavedeinterpretação,umatoterroristaéconsideradoculpado“islã”,
ou um ato de agressão de um jovem descendente de imigrantes é um
crime cometido por “árabes”.Assim,sucessivamente,pessoas são
categorizadas em termos da suposta tradição,religião ou cultura que
herdaramdasuacomunidadedeorigem.
Klug49,através de um experimento teórico,nos convida para uma
reflexãoarespeitodasvivênciasimagináriasdeumcertorabinoidoso
que fora retirado do ônibus 73 em Londres pela motorista Mary.Na
calçada,o rabino Cohen reflete se foi vítima de anti-semitismo.Em
outraspalavras,seráqueeleexperimentouahostilidadebásicaquese
manifesta contra o judeu como o “judeu”? E se o rabino Cohen esti-
vessefumandonoônibus?Mesmoquealongabarbaeosolidéuobvia-
mente o identificassem como judeu,talvez Mary simplesmente o
tivesse colocado para fora do ônibus porque ele estava fumando no
interiordoveículo.Dessamaneira,Marynãolheteriadispensadoum
tratamentodiferenteaodadoaJaneSmithouaBhupindaSingh,tam-
bém retirados do ônibus naquele mesmo dia.Se é assim,a decisão
decorreu do fato de ele ser fumante,e não de ser judeu.E se Mary
tivesse retirado o rabino do ônibus por ele cantar uma música reli-
giosa,profundamenteimportanteparaelecomojudeu,nomáximoda
sua voz? Será que ela o teria expulsado porque ele cantava ou porque
cantavaumamúsicajudaica?Teriasidoporquecantavacomojudeuou
porquecantavaalto?Foieleretiradodoônibusporserjudeuouporser
barulhento?EseMaryfoi,defato,preconceituosaeintolerantenasua
atitudecomorabinoCohen?Elaconheceessetipodepessoaedecidiu
pô-lo ostensivamente para fora do ônibus não porque estava can-
tando,mas porque,na verdade,ele é um estrangeiro criador de caso
que,paracomeçodeconversa,nemdeveriaestarali.Bastaolharparao
rabinoCohen,comsuaaparênciaoriental,sualongabarbaeseuboné
esquisito,para confirmar a Mary exatamente o que ele é:um desses
mullahs.“Caifora,Abdul”,gritaelaenquantooempurraparaacalçada,
onde o rabino Cohen reflete,filosoficamente,se não teria sido uma
vítimadaislamofobia!
Islamofobia, racismo, xenofobia e anti-semitismo guardam a
mesma estrutura elementar de classificação,apesar dos diferentes
temas selecionados pelos seus respectivos discursos.Nela,as indivi-
dualidadessãodissolvidasemnomedoconfortoqueadivisãototali-
114 ANTI-SEMITISMO NA EUROPA HOJE ❙❙Bila Sorj
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19. tária entre o “nós” e o “eles” confere aos habitantes de sociedades em
constante mudança.Nesse sentido,a forte demanda por reconheci-
mento das identidades como meio para a promoção do bem comum
nãoéevidente.Eésobreessenovoparadigmadeorganizaçãopolítica
queaEuropaOcidentalsedebateatualmente.
Bila Sorj é professora titular de sociologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).É
autoradeIdentidadesjudaicasnoBrasilcontemporâneo(Imago,1997),eco-autora,juntocomGuilaFlint,
deIsrael,terraemtranse.Democraciaouteocracia?(CivilizaçãoBrasileira,2000).
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Recebidoparapublicação
em30demarçode2007.
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