1. FACULDADE JESUÍTA DE FILOSOFIA E TEOLOGIA – FAJE
REDE BRASILEIRA DE CENTROS E INSTITUTOS DE JUVENTUDE
PÓS-GRADUAÇÃO LATO SENSU
EM JUVENTUDE NO MUNDO CONTEMPORÂNEO
A GANGUE DOS INVISÍVEIS
A “INVISIBILIDADE” DA PJ NA IGREJA CATÓLICA
(3ª parte do artigo “PROTAGONISTAS GESTADORES DE
PROTAGONISMO ARTICULAÇÕES JUVENIS, CATÓLICAS, DA
AMÉRICA LATINA, Artigo apresentado ao Curso de Pós-graduação
Lato Sensu em Juventude no Mundo Contemporâneo como
requisito para grau de especialista.)
ONIVALDO DYNA DA SILVA
Prof. Dr. Hilário Dick
FERNANDÓPOLIS
2011
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2. A gangue dos invisíveis - A “invisibilidade” da PJ na Igreja Católica
Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara.
(José Saramago, Ensaio sobre a cegueira – pensamento introdutório do livro)
Na pesquisa realizada a partir do texto de autoria do padre Hilário Dick, “Silêncios juvenis
Latino-Americanos na Travessia da Historia”, chegamos a uma outra realidade que nos pareceu
gritante quando analisamos a questão dos “silêncios juvenis”. Defrontamos-nos com uma realidade
que não se percebe de maneira palpável aos nossos olhares de pastoralistas mas que se nos desvenda
ao olhar de pesquisador das juventudes. O pesquisador não se contenta com o simples olhar mais vai la
dentro mesmo dos olhares e a realidade que os olhares nos revelam mostrou uma realidade que
chamamos de “invisibilidade juvenil”.
Os jovens estão ai em nossa realidade pastoral e presentes na realidade eclesial, mas a
juventude que se vê é somente aquela que se quer ver, aquela que dá visibilidade há um jeito de ser
Igreja.
Ao mesmo tempo desenvolvia uma pesquisa sobre o Protagonismo Juvenil na Pastoral da
Juventude também nos defrontamos com a mesma realidade dos “silêncios juvenis” e, principalmente
dentro da proposta evangelizadora da Igreja Católica no Brasil. A pesquisa em desenvolvimento
tentava perceber como se dá o protagonismo juvenil e quais as dificuldades que os jovens ditos
“pejoteiros” encontram quando assumem uma militância concreta dentro de uma Diocese ou Paróquia
ou Comunidade Eclesial.
Dentro desta realidade juvenil encontramos inúmeras reflexões que a temática juventude vem
despertando nos dias de hoje. Não só na academia onde existe um “ESTADO DA ARTE” muito vasta
mas também em dezenas de ONGs e mesmo na área governamental encontramos a preocupação com a
questão juventude.
Neste processo de pesquisa foi “saltando aos olhos” um aspecto muito impressionante na
realidade juventude que pouco chama a atenção de pesquisadores (as) e mesmo de educadores (as). Em
algumas bibliografias, ou artigos e mesmo algumas teses da academia aparece referencias à
“invisibilidade juvenil”.
Esta expressão instigou uma nova pesquisa e é este viés do “protagonismo juvenil” que será
desenvolvida nesta parte. O que quer dizer mesmo “invisibilidade juvenil”? Existe alguma pesquisa ou
referencias bibliográficas sobre o assunto? E o que mais despertou “curiosidade” é o de pesquisar se
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3. também não existe uma “invisibilidade religiosa” quando se refere à juventude. E mais precisamente
no momento atual de evangelização da juventude como se entende mesmo esta questão quando se
constata em muitas realidades eclesiais um certo “deixar de lado” uma proposta de evangelização que
atende pelo nome de “Pastorais da Juventude”.
Analisando a proposta atual de evangelização da juventude nos defrontamos com alguns
questionamentos que nos levaram a perceber pontos “contraditórios” da proposta presente
especialmente no documento da CNBB, Evangelização da Juventude, desafios e perspectivas pastorais.
O que se propõe é que todos os seguimentos que hoje estão trabalhando com juventude tenham
como referencial evangelizador este Documento. E por seguimentos entendemos todos os
Movimentos, Congregações Religiosas alem das próprias Pastorais da Juventude. Acontece que o
referencial do documento é o referencial que as Pastorais da Juventude foram elaborando ao longo dos
últimos 25anos de sua presença no meio da juventude. Quando falamos de contradição queremos
assinalar exatamente isto.
A proposta de evangelização surge da experiência acumulada das Pastorais de Juventude para
todos os seguimentos que atuam hoje junto à juventude católica, mas em muitas realidades eclesiais
(dioceses, paróquias e comunidades) não se aceita mais a existência desta experiência das Pastorais da
Juventude. Se diz que a proposta evangelizadora agora é para que se entenda como pastoral aquilo que
os movimentos e outras experiências de juventude estão desenvolvendo.
Os grupos de “PJ” paroquiais vão pouco a pouco desaparecendo e os jovens que vivenciam sua
experiência como “pejoteiros (as)” vão se sentido marginalizados, excluídos da realidade diocesana.
Em alguns lugares se diz que o grupo de “PJ” pode existir mas não mais com organização diocesana.
Assim quando nos deparamos com a expressão “invisibilidade” logo surgiu esta imagem
também para a realidade desta juventude “pejoteira”. Uma pergunta logo veio à tona: não estaria a
juventude “pejoteira” nesta realidade de “invisibilidade eclesial”?
Mas o que é mesmo Invisibilidade? A resposta para esta pergunta exige mais do que responder
como aparece nos Dicionários. No Dicionário Houaiss da língua portuguesa Invisibilidade é um
substantivo feminino que significa qualidade, condição, atributo do que é invisível, do que não
apresenta visibilidade. Procuramos ainda saber o que é invisível. É substantivo masculino: aquilo que é
ou se mostra invisível e diz ser um adjetivo de dois gêneros:
1 que, por sua natureza, não tem visibilidade
Ex.: o ar é i.
2 que não corresponde a uma realidade sensível
Ex.: forças i.
3 não visível a olho nu, devido a grande distanciamento ou por sua extrema pequenez ou finura;
imperceptível
Ex.: fio i.
3.1 Regionalismo: Norte do Brasil, Nordeste do Brasil.
3
4. que se usa para prender os cabelos (diz-se de diminuto grampo ou rede finíssima)
4 que não é manifesto, que não se deixa conhecer
Ex.: ameaça i.
5 Derivação: sentido figurado.
que se recusa a ser visto
Ex.: o ministro disse estar i. durante a tarde
Para compreender melhor o significado de como o olhar se nos revelou quando nos deparamos
com a questão da invisibilidade e baseamos nossa fundamentação em um poema do original de
Armando Tejada Gómez, Canção para uma criança na rua e em livro de Fernando Braga da Costa
denominado Homens Invisíveis.
A esta hora exatamente...
Canción para un niño en la calle
Mercedes Sosa com Calle 13
(Armando Tejada Gómez - Ángel Ritro)
[Letra] Calle13 ft. Mercedes Sosa - Para un
niño de la calle A esta hora exatamente,
A esta hora exactamente, Há uma criança na rua
Hay un niño en la calle.... Há uma criança na rua!
¡Hay un niño en la calle!
Es honra de los hombres proteger lo que crece, É honra dos homens protegerem o que cresce,
Cuidar que no haya infancia dispersa por las Cuidar que não exista infância dispersa pelas
calles, ruas,
Evitar que naufrague su corazón de barco, Evitar que naufrague seu coração de barco,
Su increíble aventura de pan y chocolate Sua incrível aventura de pão e chocolate.
Poniéndole una estrella en el sitio del hambre. Pondo-lhes uma estrela no lugar da fome.
De otro modo es inútil, de otro modo es absurdo De outro modo é inútil, de outro modo é absurdo
Ensayar en la tierra la alegría y el canto, Ensaiar na terra a alegria e o canto,
Porque de nada vale si hay un niño en la calle. Porque de nada vale se houver uma criança na
rua.
Todo lo toxico de mi país a mi me entra por la
nariz Todos os tóxicos do meu país
Lavo autos, limpio zapatos, huelo pega y también Entram pelo meu nariz
huelo paco Lavo carros, limpo sapatos
Robo billeteras pero soy buena gente soy una Cheiro cola e também cocaína
sonrisa sin dientes Roubo carteiras, mas sou gente boa
Lluvia sin techo, uña con tierra, soy lo que sobro Sou um sorriso sem dentes
de la guerra Chuva sem teto, unha com terra
Un estomago vacío, soy un golpe en la rodilla que Sou o que sobrou da guerra
se cura con el frío Um estômago vazio
El mejor guía turístico del arrabal por tres pesos Sou uma ferida no joelho que se cura com o frio
te paseo por la capital O melhor guia turístico do subúrbio
No necesito visa pa volar por el redondel porque Por três pesos te passeio pela capital
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5. yo juego con aviones de papel Não preciso de visto para voar pelos arredores
Arroz con piedra, fango con vino, y lo que me Porque eu brinco com aviões de papel
falta me lo imagino. Arroz com pedra, lama com vinho
E o que me faltar... eu imagino.
No debe andar el mundo con el amor descalzo
Enarbolando un diario como un ala en la mano Não deve andar o mundo com o amor descalço
Trepándose a los trenes, canjeándonos la risa, Hasteando um jornal como uma asa na mão
Golpeándonos el pecho con un ala cansada. Subindo nos trens, trocando risadas,
No debe andar la vida, recién nacida, a precio, Batendo no peito com uma asa cansada.
La niñez arriesgada a una estrecha ganancia Não deve andar a vida, recém nascida, a preço,
Porque entonces las manos son inútiles fardos A infância arriscada a um estreito lucro
Y el corazón, apenas, una mala palabra. Porque então as mãos são inúteis fardos
E o coração, apenas, um palavrão.
Cuando cae la noche duermo despierto, un ojo
cerrado y el otro abierto Quando cai a noite durmo acordado
Por si los tigres me escupen un balazo mi vida es Um olho fechado e o outro aberto
como un circo pero sin payaso Na dúvida de que os tigres me cuspam uma bala
Voy caminando por la zanja haciendo malabares Minha vida é como um circo, mas sem palhaços
con 5 naranjas Vou caminhando pela vala
Pidiendo plata a todos los que pueda en una Fazendo malabarismos com cinco laranjas
bicicleta en una sola rueda Pedindo dinheiro a todos os que eu puder
Soy oxigeno para este continente, soy lo que Numa bicicleta de uma roda.
descuido el presidente Sou oxigênio para este continente
No te asustes si tengo mal aliento, si me ves sin Sou o que descuidou o Presidente.
camisa con las tetillas al viento Não te assustes se eu tenho mal cheiro
Yo soy un elemento mas del paisaje los residuos Ou se me vês sem camisa
de la calle son mi camuflaje Com os mamilos ao vento
Como algo que existe que parece de mentira, algo Sou um elemento mais da paisagem.
sin vida pero que respira Os resíduos da rua são minha camuflagem
Como algo que existe que parece mentira
Pobre del que ha olvidado que hay un niño en la Algo sem vida, mas que respira.
calle,
Que hay millones de niños que viven en la calle Pobre daquele que esqueceu que há uma crianca
Y multitud de niños que crecen en la calle. na rua,
Yo los veo apretando su corazón pequeño, Que há milhões de crianças que moram na rua
Mirándonos a todas con fábula en los ojos. E multidão de crianças que crescem na rua.
Un relámpago trunco les cruza la mirada, Eu os vejo apertando seu coração pequeno,
Porque nadie protege esa vida que crece Olhando-nos a todos com fábula nos olhos.
Y el amor se ha perdido, como un niño en la Um relâmpago interrompido lhes atravessa o
calle. olhar,
Oye a esta hora exactamente hay un niño en la Porque ninguém protege essa vida que cresce
calle E o amor perdeu-se, como uma criança na rua.
Hay un niño en la calle.
A esta hora exatamente,Há uma criança na rua
Há uma criança na rua!
No último disco de Mercedes Sosa, um CD duplo chamado “Cantora", gravado entre junho de
2008 e março de 2009, de duetos com músicos de diferentes estilos e épocas há uma das músicas mais
surpreendentes do disco que é a versão "Hay un niño en la calle" com Calle13.
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6. Calle 13 é um grupo formado por dois irmãos de Puerto Rico que mistura ritmos populares
como tango, cumbia colombiana com estilos de música urbana. Em todos eles, Calle 13 imprime uma
crítica social frontal e incisiva. Em seu último lançamento “Los de atrás vienen conmigo” (os de trás
vêm comigo) foram acompanhados de grandes figuras da música popular latina: Rubén Blades, Café
Tacvba e nesta música que trazemos hoje, por Mercedes Sosa. A nova versão da bela canção
de Armando Tejada Gómez e de Angel Ritro, cantada por Mercedes Sosa e por Calle 13, que atualizou
a letra. (Existe um vídeo do jornalista Fabián Scabuzzo, autor do blogue www.ensulaberinto.com.ar).
A cantora de resistência argentina, conhecida como “a voz dos sem voz”, morreu aos 74 anos,
domingo, 4 de Outubro de 2009, em Buenos Aires. A canção é parte do poema original de Armando
Tejada Gómez, tomada del libro Antología de Juan (1958) - Ediciones Juárez Editor- 1973.
Esta poesia ou parte dela foi bem conhecida nas décadas de 70 e 80 e marcou a vida dos jovens
militantes destas décadas e ainda hoje é referencia. Quando me deparei com a questão da
“invisibilidade juvenil”, dos silêncios juvenis sempre veio a mente esta poesia transformada em musica
por Mercedes Sosa e que não fala de jovens, mas de crianças: “nesta hora exatamente há uma criança
na rua”. E quando escutei esta versão de atual juntam, ente com a voz de Calle 13 aumentou ainda
mais minha certeza da invisibilidade juvenil. Quando Armando Tejada Gómez escreveu este poema ele
tinha presente as crianças na rua e toda a sua trajetória difícil de abandono. Mas fui mais alem e meu
olhar entrou na realidade destas crianças que com o passar do tempo cresceram tornando-se jovens e
adultos e com certeza se não morreram estão, na grande maioria, invisíveis.
“É honra dos homens protegerem o que cresce,” é um dos gritos da canção e fica mais evidente
quando Calle 13 desmascara esta honra afirmando que “Todo lo toxico de mi país a mi me entra por la
nariz”. É com certeza o grande grito silenciado nos dias de hoje e um grito silenciado que brota no
meio de nossas juventudes, principalmente das juventudes pobres e marginalizadas.
Na pesquisa nos deparamos ainda com inúmeras realidades que estão na “invisibilidade”: Da
invisibilidade do negro nos estudos e no trabalho, na invisibilidade das mulheres, da Invisibilidade do
preconceito e violência racial, na feminização da velhice e a invisibilidade da violência contra o idoso,
da exclusão social, invisibilidade e inclusão no sistema penal e do morador de rua.
E a musica continua com seu grito ainda valido para crianças e jovens: “Y el amor se ha
perdido, como un niño en la calle. Oye a esta hora exactamente hay un niño en la calle. Hay un niño
en la calle”.
Invisibilidade publica
“Por que foi que cegamos, Não sei, talvez um dia se chegue a conhecer
a razão, Queres que te diga o que penso, Diz, Penso que não cegamos, penso
que estamos cegos, Cegos que vêem, Cegos que, vendo, não vêem.”
(Saramago,183)
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7. “Lutar foi sempre, mais ou menos, uma forma de cegueira, Isto é diferente, Farás o que melhor
te parecer, mas não te esqueças daquilo que nós somos aqui, cegos, simplesmente cegos, cegos
sem retóricas nem comiserações, o mundo caridoso e pitoresco dos ceguinhos acabou, agora é
o reino duro, cruel e implacável dos cegos, Se tu pudesses ver o que eu sou obrigada a ver,
quererias estar cego, Acredito, mas não preciso, cego já estou, Perdoa-me, meu querido, se tu
soubesses, Sei, sei, levei a minha vida a olhar para dentro dos olhos das pessoas, é o único
lugar do corpo onde talvez ainda exista uma alma, e se eles se perderam”( Saramago, 75)
Quando pesquisava sobre a questão da invisibilidade entrei a historia do psicólogo social
Fernando Braga da Costa. Recordo que pelos idos de 2003 li uma reportagem sobre sua historia e
muito me chamou a atenção, mas encontrando sua historia neste momento da pesquisa sua historia teve
outra conotação para mim. Fernando Braga da Costa varreu as ruas da USP para concluir sua tese de
mestrado sobre “invisibilidade publica”. “Fingi ser gari por oito anos e vivi como um ser invisível”.
Ele comprovou que, em geral, as pessoas enxergam apenas a função social do outro. Quem não
está bem posicionado sob esse critério, vira uma mera sombra social. Fernando Braga da Costa vestiu
uniforme e trabalhou oito anos como gari, varrendo as ruas da Universidade de São Paulo. Ali,
constatou que, ao olhar da maioria, os trabalhadores braçais são “seres invisíveis, sem nome”.
Em sua tese de mestrado, pela USP, conseguiu comprovar a existência da “invisibilidade
pública”, ou seja, uma percepção humana totalmente prejudicada e condicionada a divisão social do
trabalho, onde enxerga-se somente a função e não a pessoa. Fernando Braga da Costa trabalhava
apenas meio período como gari, não recebia o salário de R$ 400 como os colegas de vassoura, mas
garante que teve a maior lição de sua vida: “Descobri que um simples bom dia, que nunca recebi como
gari, pode significar um sopro de vida, um sinal da própria existência”, explica o pesquisador.
O psicólogo sentiu na pele o que é ser tratado como um objeto e não como um ser humano.
“Professores que me abraçavam nos corredores da USP passavam por mim, não me reconheciam por
causa do uniforme. As vezes, esbarravam no meu ombro e, sem ao menos pedir desculpas, seguiam me
ignorando, como se tivessem encostado em um poste, ou em um orelhão”, diz. Apesar do castigo do
sol forte, do trabalho pesado e das humilhações diárias, segundo o psicólogo, são acolhedores com
quem os enxerga. E encontram no silencio a defesa contra quem os ignora.
A conclusão de sua tese foi publicada em livro: “Homens invisíveis: relatos de uma humilhação
social” (O termo foi criado pelo próprio autor da monografia, Fernando Braga da Costa, hoje doutorando em Psicologia
Social pela Universidade de São Paulo (USP), mas ainda estudante de graduação na época em que constatou na própria
pele o descaso por determinadas classes trabalhadoras). Dentre a bibliografia pesquisada este é o livro que
melhor apresenta esta questão da “invisibilidade”. Não é só uma descrição teórica, mas sim fruto de
uma vivencia por anos que Fernando Braga da Costa vivenciou como gari da USP. Para melhor
entender onde quero chegar apresento alguns pontos que considero fundamentais na obra do autor.
A leitura do livro provoca questionamentos que se repetem a cada página. Quantas vezes não
notei um varredor na rua? Quantas vezes não lhe dei um simples bom dia? Quantas vezes passei por
7
8. ele como se estivesse passando ao lado de um item paisagístico? "Um poste, uma árvore, uma placa de
sinalização de trânsito, um orelhão, uma pessoa em uniforme de gari na atmosfera social: todos
parecem valer a mesma coisa", constata Fernando em seu livro.
Diferentes capítulos mostram a forma arrogante como alunos, professores e funcionários da
USP costumam (quando os notam) tratar os garis que trabalham para a prefeitura da universidade –
foram esses, os garis da USP, os trabalhadores escolhidos por Fernando ainda durante sua graduação.
"Tem gente que passa aqui, é como se a gente não existisse", conta um de seus companheiros.
Vestindo o uniforme de gari, Fernando quase nunca foi reconhecido ao cruzar com professores
ou colegas estudantes do Instituto de Psicologia. Depois de um tempo, acostumou-se. Mas, no começo,
a sensação era desconcertante, como revela no livro: "As pessoas pelas quais passávamos não reagiam
à nossa presença. (...) Nenhuma saudação corriqueira, um olhar, sequer um aceno de cabeça. Foi
surpreendente. Eu era um uniforme que perambulava: estava invisível".
Mas quem é o gari, “o gari da USP”?
“O oficio de gari parece acentuadamente atravessado por um fenômeno de gênese e
expressão intersubjetivas: a invisibilidade publica – espécie de desaparecimento
psicossocial de um homem no meio de outros homens. Bater o ponto, vestir o uniforme,
executar trabalhos essencialmente simples (como varrer ruas, cortar mato, retirar barro que
se acumula junto às guias), estar sujeito a repreensões mesmo sem motivo, transportar-se
diariamente em cima da caçamba de caminhonetes ou caminhões em meio às ferramentas
ou ao lixo são as tarefas delineadas do trabalho daqueles homens. Tarefas nas quais
pudemos reconhecer marcados pela degradação e pelo servilismo. São atividades
cronicamente reservadas a uma classe de homens subproletarizados; homens que se tornam
historicamente condenados ao rebaixamento social e político.” (Costa, 2004, 57)
Esta descrição de quem é o gari torna-se importante porque este homem invisível publicamente
cuida para que toda a natureza ao derredor da USP esteja sempre limpo mesmo que ninguém pergunte
quem limpou ou porque limpou ou quem são estas pessoas que fazem este trabalho diariamente.
Na sequencia Fernando Braga da Costa relata três episódios, que depois serão o fio condutor de
toda a sua experiência narrada no livro e que transcrevo literalmente pela força das palavras do próprio
autor.
“Episódio da vassoura. Depois do almoço, reiniciamos a varrição. Impressionava a solidão no
exercício daquela função, mesmo trabalhando em um grupo de dez pessoas. A distancia
interpessoal é produzida e patrulhada, se não pelos supervisores, pelos próprios garis: “Porque
peão que conversa não quer trabaiá”.
Conversavam periodicamente, e sempre demonstrando algum constrangimento. Em certo
momento, primeiro um, e depois três ou quatro varredores, começaram a se queixar do curto
comprimento do cabo das vassouras e da flexibilidade exagerada de suas cerdas. Com as
reclamações, vinham também muitas reivindicações, todas a mim dirigidas como a um
delegado: “Ó! Fala lá que as vassouras aqui é assim, ó! Cê tá conseguindo varrer com elas?
Fala lá pra gente!”
Nessa situação, pareciam querer contar com um individuo que tivesse poder suficiente para
atuar em sua defesa perante seus “superiores”.
O que exatamente os fazia imaginar que eu pudesse auxiliá-los? Não teriam a quem reclamar
junto à Prefeitura da Cidade Universitária? Quando porventura se dispõem a reivindicar algo a
seus superiores, são atendidos? São ouvidos, ao menos?”(Costa, 2004, 57-58)
8
9. No "episódio do uniforme", Fernando atravessou o prédio do Instituto de Psicologia, onde
estuda, trajando as roupas de gari e, contrariando suas expectativas, não foi reconhecido por nenhum
colega ou professor. As pessoas nem sequer o olharam, desviando-se dele como de um obstáculo. "Eu
era um uniforme que perambulava. Estava invisível” (Costa, 2004, 58), conta. A humilhação vem
desde sentir-se objeto aos olhos dos outros, da experiência de não aparecer como pessoa estando no
meio de tanta gente. O trabalho - executado em condições insalubres, com ferramentas inadequadas,
em veículos precários e sem proteções básicas, como luvas ou botas, - é também marcado a todo o
momento por manifestações de humilhação social, como degradação e servilismo. A hierarquia é forte,
os horários são cobrados com rigidez e qualquer conversa durante o serviço é reprimida - por isso os
interlocutores são colocados para trabalhar longe um do outro. Ao pesquisador cabe contar o que
sentiu com a vassoura em punho, o que viveu ao trocar a caneta pela enxada e narrar, como ele mesmo
gosta de dizer, as histórias que nele foram escritas.
Episódio da caneca. No primeiro dia de trabalho paramos pro café. Eles colocaram uma
garrafa térmica sobre uma plataforma de concreto. Só que não tinha caneca. Havia um clima estranho
no ar, eu era um sujeito vindo de outra classe, varrendo rua com eles. Os garis mal conversavam
comigo, alguns se aproximavam para ensinar o serviço.
Um deles foi até o latão de lixo pegou duas latinhas de refrigerante cortou as latinhas pela
metade e serviu o café ali, na latinha suja e grudenta. E como a gente estava num grupo grande, esperei
que eles se servissem primeiro.
Eu nunca apreciei o sabor do café. Mas, intuitivamente, senti que deveria tomá-lo, e claro, não
livre de sensações ruins. Afinal, o cara tirou as latinhas de refrigerante de dentro de uma lixeira, que
tem sujeira, tem formiga, tem barata, tem de tudo. No momento em que empunhei a caneca
improvisada, parece que todo mundo parou para assistir à cena, como se perguntasse: „E aí, o jovem
rico vai se sujeitar a beber nessa caneca?‟ E eu bebi.
Imediatamente a ansiedade parece que evaporou. Eles passaram a conversar comigo, a contar piada,
brincar. (Costa, 2004, 59-60)
“Nunca deixo de cumprimentar um trabalhador. Faço questão de o trabalhador saber que eu
sei que ele existe. Eles são tratados pior do que um animal doméstico, que sempre é chamado pelo
nome. São tratados como se fosse uma coisa.” (este trecho faz parte de uma entrevista de Fernando Braga da
Costa e publicada em diversos veículos de comunicação, principalmente na internet. Aqui um dos endereços onde aparece
na internet: http://www.velhosamigos.com.br/DatasEspeciais/diagari.html)
Haveria uma invisibilidade juvenil religiosa?
9
10. Este tema da “invisibilidade” levou a questionar se não existe em nossa realidade de
evangelizadores-as uma “invisibilidade juvenil”. Estes dois referencias apresentados anteriormente, a
música "Hay un niño en la calle" de Mercedes Sosa e Calle 13 e a vivencia do psicólogo social
Fernando Braga da Costa entre garis da USP, levaram a uma reflexão séria sobre esta realidade que
também pode estar presente entre os educadores – as junto às juventudes presentes na Igreja Católica
do Brasil. È um questionamento e não um afirmação!
Se há “gritos silenciados, mas evidentes” como escreve Hilário Dick no seu livro com este mesmo
titulo, tudo leva a crer que há jovens invisíveis em nosso meio. E invisíveis aqui como apresentamos
anteriormente, especialmente na visão de Fernando Braga da Costa. São invisíveis porque não
queremos ver, porque ignoramos e porque não escutamos estes gritos... - silenciados!
Em um artigo de Luiza Mitiko Yshiguro Camacho (Professora do Departamento de Didática e
Prática de Ensino e do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Espírito
Santo – UFES. Doutora em Educação pela Universidade de São Paulo-USP), denominado A
invisibilidade da juventude na vida escolar, ela discute a identificação dos educandos, pela instituição
escolar, se como alunos, se como crianças ou se como jovens. Aborda, também, o tratamento
conferido aos destinatários das ações da escola, à presença ou não da preocupação com a faixa etária
enquadrada como juventude e seus desdobramentos.
A escola segundo Camacho vem sofrendo um processo de inadequação no tratamento aos seus
alunos ao não reconhecê-los como jovens. Este quadro acaba desencadeando impactos como: a
desinstitucionalização da condição juvenil, a dificuldade dos alunos na construção da sua identificação
com a escola e a ruptura da comunicação entre jovens alunos e educadores.
Este alerta feito pela professora Luiza M.Y. Camacho creio que pode ser também questionado
dentro da própria instituição Igreja. Que imagem o mundo adulto tem dos jovens que participam
ativamente da vida da Igreja? A inadequação da escola apontada pela professora parece ser a meu ver,
a mesma enfrentada pela Igreja. Aqui não se trata de um maior aprofundamento, mas somente em
sinalizar e questionar esta realidade apresentada no referido artigo.
“Os sujeitos focalizados, além de alunos, são, acima de tudo, jovens. A idéia de jovem é
construída social e culturalmente e, portanto, muda conforme o contexto histórico, social,
econômico e cultural. Não se pode conceber, pois, uma juventude, mas juventudes. As
diferentes situações
existenciais dos sujeitos permitem a construção de concepções diversificadas de jovem ou de
juventude (SPOSITO, 1994; LEVI; SCHMITT, 1996;CAMACHO, 2000; SPOSITO;
CARRANO, 2003)”. (Camacho, 2004, 06)
Esta citação traz em si mesma toda uma pesquisa feita pó Luiza M.Y.Camacho e com
contribuição de diversos autores como aparecem na referida citação.
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11. Ainda é importante neste contexto trazer aqui algumas conclusões que este artigo apresenta,
pois creio que nos ajudam a entender melhor o que queremos expressar quando falamos de
“invisibilidade juvenil” e, de modo particular, quando falamos desta invisibilidade aplicada à realidade
da Pastoral da Juventude hoje. São três considerações importantes que transcrevemos abaixo:
a- “Considerando as idéias de Abad(2003, 2003a), (Miguel Abad é psicólogo argentino e
consultor internacional em temas de juventude - E-mail: jmabad@gmail.com) é possível pensar
que a escola, ao não ter a capacidade de construir relações condizentes com as
características, interesses, expectativas, linguagens dos seus jovens alunos, termina por
criar rupturas, às vezes irreversíveis, entre o mundo escolar e o mundo juvenil do aluno.
A conseqüência pode ser o afastamento não apenas simbólico mas real desses jovens da
escola. E dessa situação pode ocorrer o processo de desinstitucionalização do jovem
causado pela própria incapacidade da escola de se comunicar, de interferir na formação
de seus alunos.
Se por um lado, os profissionais da escola não têm clareza sobre os seus destinatários
ao não conseguirem compreender a condição juvenil presente ao lado e para além do
aluno, estes, por outro lado, fazem distinção entre o ser aluno e o ser jovem. E sentem-
se mais felizes na condição de jovem.” (Camacho, 2004: p 14)
b- “A inadequação da escola no tratamento aos alunos ocasionada pela falta de
visão mais alargada capaz de enxergar os seus destinatários como jovens alunos, pode
vir a se constituir num dos fatores responsáveis pelo desencadeamento do fenômeno
denominado por Abad de desinstitucionalização da condição juvenil. A incapacidade da
escola de interferir na vida dos jovens alunos e a emergência de forte influência dos
meios de comunicação acabam provocando a substituição de agências socializadoras.
Se, por um lado, a escola e seus profissionais não têm noção de quem sejam seus jovens
alunos, por outro lado, eles próprios se reconhecem com clareza como jovens e como
alunos. Fazem uma distinção entre essas duas condições e agem conforme a
conveniência do momento e da situação. Assim, se a escola não vê o aluno como jovem,
ela não reconhece o direito dele à moratória, seja ela social ou vital. E daí decorre uma
verdadeira
intolerância da instituição e de seus representantes às condutas eminentemente juvenis.
Para contornar tal situação, as novas gerações acabam o estratégias: dentro dos limites
do espaço escolar se expressam como alunos na presença dos adultos e como jovens nas
suas relações de sociabilidade com seus pares.” (Camacho, 2004: p 15 e 16)
c- “Dentre os impactos que esta visão míope da escola – que não vê o jovem que
há para além do aluno – pode causar estão a ruptura da comunicação entre as diferentes
gerações e a dificuldade da construção da identificação
dos jovens alunos com a instituição escolar. O reconhecimento de que a condição de
jovem precede a condição de aluno e de que ambas estão intimamente ligadas poderia
ser o primeiro passo a ser dado pela escola em direção à visibilidade da juventude no
espaço escolar e à transformação de seus alunos em jovens alunos.” (Camacho, 2004: p
16)
Como assinalamos em diversos momentos no texto aqui queremos somente levantar
questionamentos e nos levar a aprofundar mais e mais a que jovens mesmo nós queremos levar a boa
Nova de Jesus Cristo. A pergunta feita ainda não tem resposta: “não estaria a juventude “pejoteira”
nesta realidade de “invisibilidade eclesial”?
O que queremos que se leve em conta são os “silêncios juvenis”, os “gritos silenciados, mas
evidentes” de nossas juventudes. Queremos juventudes protagonistas e mais ainda, gestadores de
protagonismo. È, em suma, o que o cardeal Cardijn apresentava como ação concreta da juventude:
Jovens, evangelizando jovens!
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12. Estas são as considerações que o texto do Hilário Dick, Silêncios juvenis Latino-Americanos na
Travessia da Historia, e de modo particular o capitulo ARTICULAÇÕES JUVENIS, CATÓLICAS,
DA AMÉRICA LATINA nos trazem. Alem de olhar toda a realidade das articulações refletimos
também alguns questionamentos que a Pastoral da Juventude hoje pode estar vivendo e, como tantas
outras articulações juvenis do passado, a exemplo da ação Católica Especializada, não se pode deixar
no esquecimento da historia.
O titulo “A gangue dos invisíveis” - A “invisibilidade” da PJ na Igreja Católica quer ser um
alerta e, ao mesmo tempo um grito não silenciado e sim bem “evidente” das nossas juventudes. Pode
parecer muito pesado a palavra “gangue”, mas foi a melhor que encontramos para justamente
representar este grito silenciado. No dia a dia tempos utilizado a expressão “grupo de jovens”, mas
aqui é justamente “gangue” para mostrar as contradições. A “gangue” é um grupo de jovens
normalmente surgidos nas periferias e é classificado como jovens com “disposições agressivas”.
O caminho da reflexão esta apenas iniciando e há muito por se fazer ainda. Esperamos que
estes questionamentos sirvam para que haja cada vez mais educadores e educadoras inseridas no
mundo dos jovens. Na ultima vez que estive com Padre Gisley ele presenteou-me com um exemplar do
livro Evangelização da Juventude e na dedicatória assim escreveu: “Estimado Onivaldo, que este
documento – conquista para a juventude – abra horizontes. Na ternura jovem, Pe. Gisley”. Foi no
Curso de Inverno – julho de 2007. É o que de fato precisa acontecer: conquista e horizontes abertos,
mas não invisíveis!
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CAMACHO, Luiza Mitiko Yshiguro. A invisibilidade da juventude na vida escolar. PERSPECTIVA,
Florianópolis, v. 22, n. 02, p. 325-343, jul./dez. 2004
http://www.ced.ufsc.br/nucleos/nup/perspectivas.html.
CNBB. “Evangelização da Juventude – Desafios e Perspectivas Pastorais”. Brasília: Publicações da
CNBB nº. 3, 2007.
COSTA, Fernando Braga da. Homens invisíveis: relatos de uma humilhação social. São Paulo.
Editora Globo, 2004.
SARAMAGO, José. Ensaio sobre a cegueira. Versão digital do site:
http://pt.scribd.com/doc/3504654/Jose-Saramago-Ensaio-Sobre-a-Cegueira, Carregado: 21/06/2008.
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