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A estética surrealista hispano-americana: trânsitos e aportes
Márcia Arbex (UFMG/ CNPq)
Sabe-se que o surrealismo foi um movimento historicamente datado cuja
internacionalização se fez por meio de um movimento convergente de artistas
provenientes de diferentes países em direção a Paris, assim como de sua difusão em
outros países e continentes. Octavio Paz lembra que “embora tenha nascido na
França e suas principais manifestações, em matéria poética, tenham sido em língua
francesa, o surrealismo foi um movimento internacional” (1999, p. 164). Nosso objetivo
é apresentar alguns exemplos significativos dos trânsitos e das conexões
estabelecidas entre a Europa e as Américas durante esse período rico, mas
conturbado, da história, evidenciando a participação de artistas hispânicos na
constituição de algumas das bases do surrealismo e buscar demonstrar em que
medida a cultura hispânica foi representativa do pensamento poético, tal como o
surrealismo o concebia. Duas coletâneas que tratam do assunto e que contribuíram
para este trabalho merecem destaque especial: Nouveau Monde Autres Mondes:
Surréalisme & Amériques (1995), publicação organizada por Daniel Lefort, Pierre
Rivas e Jacqueline Chénieux-Gendron, e Surreaslimo e Novo Mundo, livro organizado
por Robert Ponge e publicado em 1999.
Observaremos inicialmente a recepção de alguns artistas hispânicos no
grupo surrealista parisiense, buscando destacar os aspectos de suas obras que mais
atraíram e contribuíram com a formação do movimento, nos anos 20.
Considera-se o ano 1924 como ano de fundação do movimento, com a
publicação do Manifesto do surrealismo, por André Breton. Nele, o poeta crítico expõe
suas bases: elogio da liberdade e da imaginação, processo da “atitude realista”,
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exaltação do poder onírico e do maravilhoso, definição da imagem poética surrealista
e do procedimento de escrita automática e, por fim, definição do termo surrealista e
dos “segredos da arte surrealista”. Naquele momento, ainda que Breton dedique
apenas uma nota de rodapé aos artistas, considerando que o campo da ação
surrealista devesse se concentrar na poesia, o nome de Picasso é citado como o
artista que é “de longe o mais puro” (BRETON, 1983, p. 40). A admiração de Breton
por Picasso é inigualável. Para citar apenas um exemplo, é ele quem aconselha o
colecionador Jacques Doucet a adquirir o quadro Les Demoiselles d’Avignon, naquele
mesmo ano de 1924.
Desde 1920, entretanto, o catalão Juan Miró já havia se instalado
parcialmente em Paris e realizado na capital francesa sua primeira exposição (Galeria
Licorne), encontrado Tristan Tzara, Max Jacob e André Masson com os quais forma o
“grupo da rua Blomet”. No ano da publicação do Manifesto (1924), Miró encontra
Breton, Aragon e Eluard, e no ano seguinte inicia suas pinturas ditas oníricas,
participando da exposição surrealista realizada na galeria Pierre, ao lado de Max
Ernst, Picasso, Chirico, Paul Klee, entre outros. A partir de então, participa das
atividades do grupo, utiliza técnicas e procedimentos ditos surrealistas e realiza
trabalhos em colaboração com poetas e outros pintores. Em 1936, com o início da
Guerra Civil, deixa definitivamente a Espanha para se instalar em Paris.
Em Le Surréalisme et la peinture (1928), André Breton cita em primeiro
lugar Pablo Picasso, esse “criador de brinquedos trágicos para os adultos”, atribuindo-
lhe um lugar primordial: “Se o surrealismo busca determinar para si uma linha de
conduta, basta-lhe passar por onde passou e passará Picasso” (BRETON, 1965, p.
19). Recriminando as etiquetas de cubismo ou de surrealismo, assim como as
fronteiras entre pintura e literatura, naquele momento Breton vê em Picasso aquele
que “alçou ao último grau o espírito, não de contradição, mas de evasão!” (BRETON,
1965, p. 18).1
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Juan Miró também é citado por Breton como o artista que praticou “o
automatismo puro”; e por isso mesmo pôde ser considerado o mais surrealista de
todos (BRETON, 1965, p. 61). Em Genèse et perspective artistiques du surréalisme
(1941), apesar de identificar no pintor o que ele chama de “retardo da personalidade
no estado infantil”, Breton reconhece que Miró marcou uma etapa importante no
desenvolvimento da arte surrealista, pela espontaneidade da expressão, a inocência e
a liberdade sem igual. Com Miró, Breton realiza um trabalho de colaboração que
resultou, em 1958, na publicação da obra Constellations, um conjunto de vinte e três
guaches do artista acompanhados de textos do poeta.
Salvador Dali, por sua vez, legou o conceito de “paranóia-crítica” e,
juntamente com o espanhol Luis Buñuel, realizou os filmes que marcaram a história do
cinema e a estética surrealista: Um cão andaluz e A Idade de Ouro. A participação de
Dali, contudo, é controvertida: se por um lado a atividade “paranóia-crítica” é
reconhecidamente, como diz Breton, um amálgama da lição de Leonardo da Vinci e
dos procedimentos preconizados por Max Ernst (frottage) para “intensificar a
irritabilidade do espírito”, se sua técnica é considerada ultra-retrógrada e acadêmica,
apesar da engenhosidade da encenação, que não interessam ao surrealismo
(BRETON, 1965, p. 102), por outro lado a personalidade do artista e suas pinturas
contribuíram largamente para a difusão do movimento através do mundo.
Os anos 20 foram, portanto, marcados pelo afluxo de artistas em direção à
capital francesa; por outro lado, na década de 30, com a aproximação da Segunda
Guerra Mundial e a vitória de Franco na Espanha, vários artistas e poetas instalados
em Paris procuraram novos rumos: muitos surrealistas foram mobilizados, alguns
escolheram Nova Iorque como terra de asilo, outros dirigiram-se para o México, como
André Breton que vai ao encontro de Trotsky, em 1938, ambos acolhidos por Diego
Rivera e Frida Kahlo; país para onde convergem ainda Benjamin Péret e sua esposa
Remedios Varo, ou o peruano César Moro, entre outros. É também para o México que
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se dirigiu Antonin Artaud à procura da cultura dos Tarahumaras. Considerado “o mais
surrealista de todos” por Breton, o México foi eleito o palco para a Exposição
Internacional do Surrealismo, em 1940.
Os trânsitos que acabamos de evocar são determinados por questões
históricas e circunstanciais, mas também intrínsecas ao projeto surrealista: “Os
surrealistas dão primazia às terras que os apaixonam, às regiões portadoras de
culturas que podem ajudá-los na busca da verdadeira vida”, sublinha Robert Ponge
(1999, p. 68), em especial as culturas populares e indígenas das Américas e as
culturas pré-colombianas, para nos limitarmos ao tema a que nos propomos.
Buscaremos identificar alguns aspectos da cultura hispânica privilegiados pelos
surrealistas e demonstrar como eles forneceram importantes bases para a
consolidação de sua estética.
De acordo com Leclercq, o primeiro contato que os surrealistas
estabelecem com as culturas mais distantes passa pelos objetos. Eles tentam associar
sua própria imagem à dos objetos ditos “primitivos” através de uma identificação
recíproca, até mesmo de apropriação, no período do entre-guerras. Em 1927, por
exemplo, o grupo parisiense organiza uma exposição na qual objetos da América pré-
colombiana são expostos ao lado de telas de Yves Tanguy (Yves Tanguy et Objets
d’Amérique). No texto do catálogo, Breton estabelece uma ponte entre “as antigas
cidades do México” e o universo do artista que nos convida, diz ele, a ir a seu encontro
num lugar que ele realmente descobriu (BRETON apud LECLERCQ, 2006). José
Pierre destaca que
se o movimento de entusiasmo que conduziu os surrealistas no rumo das
civilizações indígenas da América obedeceu, num primeiro momento, ao impulso
de admiração suscitado pelas qualidades poéticas e plásticas das obras de arte
provindas dessas civilizações, foi, por outro, rapidamente reforçado pela
descoberta de informações relativas ao pensamento e à filosofia dos homens que
haviam criado aquelas obras (PIERRE,1999, p. 86).
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Três principais focos de interesse podem ser destacados: o mágico, o
político e o mítico. Vejamos o caso do México. De acordo com Gérad Roche, o México
ocupa no imaginário surrealista um lugar eletivo, o qual tem bem pouco a ver com
um banal exotismo, mas, antes, com a atração mágica. [...] [O México] exerce de
fato uma poderosa atração através de sua fauna, de sua flora, de sua história
tumultuada e deixará na história do surrealismo traços duradouros [...] (ROCHE,
1999, p. 215).
A viagem de Antonin Artaud a esse país em 1936 pode ser considerada
quase uma viagem de iniciação. Naquele momento Artaud não pertencia mais ao
grupo surrealista, mas ainda veiculava seus valores e conceitos, os quais apresentou
em conferências que se tornaram célebres. Nos textos que escreveu no México e após
seu retorno, textos que formam o essencial do “ciclo visionário e halucinado” dos
Tarahumaras, fica claro que Artaud esperava dessa viagem uma “revelação-
revolução”; ele evoca a “realidade mágica” de uma cultura perdida nas lavas
vulcânicas, presas ao solo, vibrante no sangue indígena (LAMBERT, 1982, p. 281).
Em total oposição aos valores culturais europeus, os rituais místicos, as danças e
crenças dos Tarahumaras inspiraram, por exemplo, as reflexões de Artaud sobre a
essência do teatro.
No plano político, o México se destaca aos olhos de André Breton pelo fato
de ser um regime político herdeiro de uma revolução vitoriosa e uma terra de asilo
para Trotsky, em quem os surrealistas viam o defensor do espírito bolchevique contra
o stalinismo triunfante. Foi em parceria com Trotsky e Diego Rivera que Breton
escreve o manifesto “Para uma arte revolucionária independente” que proclama a
liberdade da atividade artística à época dos totalitarismos. Colecionador, Breton, após
seu retorno à França em 1939, organiza uma exposição de objetos de arte e populares
trazidos do México em 1939 (Galeria Renou et Colle). Em 1940 é a vez da cidade do
México acolher a exposição surrealista, onde foram expostas, ao lado de obras
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provenientes da Europa, obras da arte pré-colombiana, provenientes da coleção de
Rivera, além de objetos da Oceania. Artistas mexicanos como Frida Kahlo, Diego
Rivera e os poetas César Moro também figuravam na exposição (ROCHE, p. 227).
Assim, a estada de Breton no México ocupa um lugar essencial na história do
surrealismo, tendo exercido sobre o poeta uma “extraordinária influência e poder de
sedução”, como comprova a seguinte afirmação: “O que dizer daquilo que se ama e
como fazê-lo amar? Toda tentativa parece ainda mais vã em relação a um país do que
a um ser?” (BRETON apud ROCHE, 1999, p. 227).
Para além de uma revolução social, o surrealismo se preocupa com a
denúncia dos mitos antigos e a elaboração de uma mitologia moderna, aberta. Isso
supõe uma assimilação de elementos sociológicos e etnológicos que ampliam seu
campo de ação. A imagem mítica que os surrealistas formam do México, de acordo
com Andrade (1999, p. 234) relaciona-se com a arte e o mundo indígenas: a cultura e
o passado desse país representam uma possibilidade de renovação vital, muito além
de aspectos meramente formais ou de estilo: a “beleza convulsiva” da deusa
mitológica Coatlicue, o poder de conciliação da vida e da morte, nas palavras de
Breton, o humor negro dos bonecos funerários, os rituais mágicos que envolviam o
sujeito em estados segundos, comparáveis ao automatismo preconizado pelo
surrealismo, são alguns desses elementos.
No plano mítico, a relação de Péret com o México é particularmente
interessante. O poeta traduziu o livro sagrado dos maias Quiché, Livro de Chilam
Balam2
, e após coletar ali o material necessário, redigiu uma Antologia dos mitos,
lendas e contos populares da América (1960). Vale ressaltar ainda seu grande poema
épico “Ar mexicano”, no qual alude a sua história desde tempos pré-hispânicos até a
Revolução.
Esta breve exposição, cujo objetivo foi o de delinear as relações entre o
surrealismo europeu, mais especificamente francês, e as culturas hispânicas, nos
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permite observar que, se na década de 20 são sobretudo os espanhóis que vão em
direção à capital francesa, para participar ativamente do movimento e deixar ali
marcas definitivas, nas décadas de 30 e 40 há um movimento de expansão do grupo
em direção aos países da América Hispânica, e das Américas em geral,3
que gerou
trocas essenciais para a continuidade do movimento. Os surrealistas, buscando
estabelecer contatos com o México, o Haiti, a Martinica, para citar apenas alguns
exemplos, abrem-se para o “outro” e, ao contrário do que se costuma ouvir, como
sugere Durozoi e Lecherbonnier (1972, p. 67), tal abertura constitui a realização do
movimento e não seu naufrágio.
Referências
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In: PONGE, Robert. Surrealismo e Novo Mundo. Porto Alegre: Ed. da Universidade/
UFRGS, 1999. p. 229-265.
BRETON, André. Manifestes du surréalisme. Paris: Gallimard, 1983.
______. Le surréalisme et la peinture, (1928). Paris: Gallimard, 1965.
LAMBERT, Jean-Clarence. Mexique. In: BIRO, A., PASSERON, R. (Dir.). Dictionnaire
du surréalisme et ses environs. Paris: Presses Universitaires de France, 1982.
LECLERC, Sophie. L'appropriation surréaliste des objets d'art “indigènes". Arts &
Sociétés, 23 nov. 2006. Disponível em: <http://www.artsetsocietes.org>. Acesso em:
jul. 2008.
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LEFORT, Daniel; RIVAS, Pierre; CHÉNIEUX-GENDRON, Jacqueline. Nouveau Monde
Autres Mondes: Surréalisme & Amériques. 1995.
MIRO, Juan. Ceci est la couleur de mes rêves. Entretiens avec Georges Raillard.
Paris: Seuil, 1977. p. 163-168.
PAZ, Octavio. Sobre o surrealismo hispano-americano: o fim do papo furado. In:
PONGE, Robert. Surrealismo e Novo Mundo. Porto Alegre: Ed. da Universidade/
UFRGS, 1999.
PIERRE, José. A América indígena e o surrealismo. In: PONGE, Robert. Surrealismo e
Novo Mundo. Porto Alegre: Ed. da Universidade/ UFRGS, 1999. p. 77-105.
PONGE, Robert. Surrealismo e viagens. In: Surrealismo e Novo Mundo. Porto Alegre:
Ed. da Universidade/ UFRGS, 1999. p. 55-75.
ROCHE, Gérard. O lugar surrealista por excelência (André Breton no México: da
beleza convulsiva ao manifesto por uma arte revolucionária independente). In:
Surrealismo e Novo Mundo. Porto Alegre: Ed. da Universidade/ UFRGS, 1999. p. 215-
227.
Notas
1
As traduções de citações do francês foram realizadas pela autora deste artigo.
2
PÉRET, Benjamin. Introduction au Livre de Chilám Balám de Chumayel. Paris: Denoël, 1955.
3
Do outro lado do Atlântico, considera-se que o primeiro grupo surrealista da América Latina
originou-se na Argentina, em 1926, por iniciativa de Aldo Pellegrini, seguido pela adesão ao
movimento dos poetas chilenos (Braulio Arenas, Enrique Gómez-Correa) que fundaram a
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célebre revista Mandrágora, para citar apenas alguns nomes dentre os inúmeros autores
hispano-americanos. Com o fim dos conflitos mundiais, Paris acolhe, por sua vez, os
mexicanos, como Octavio Paz (de 1946 a 1951) e Tamayo, que realiza ali sua primeira
exposição parisiense (1950).