O documento discute dois inquéritos sobre a arquitetura portuguesa - o Inquérito à Arquitetura Regional Portuguesa dos anos 1950 e o Inquérito à Arquitetura do Século XX entre 2003-2004. Ambos partiram para documentar a arquitetura existente no território português, revelando a diversidade e complexidade da arquitetura vernacular e erudita ao longo dos séculos. No entanto, pouco do registado nos inquéritos permanece hoje intacto devido à transformação dos espaços rurais e urbanos ao longo do tempo.
1. Tiragem: 41267
País: Portugal
Period.: Semanal
Âmbito: Informação Geral
Pág: 38
Cores: Cor
Área: 25,83 x 31,55 cm²
Corte: 1 de 2ID: 47480616 03-05-2013 | Ípsilon
associação que essas populações
fizeram deste mundo antigo à
pobreza e até à sua destruição e
substituição por sinais de
“progresso”.
Ainda assim a pergunta do
regime de Salazar não ficou pelo
caminho. Não existia obviamente
uma casa portuguesa, existiam
sim variadas e complexas
respostas ao meio, determinadas
pelas contingências de vida das
populações. Existia variedade,
complexidade e adequação, uma
associação que o mundo
contemporâneo e a arquitectura
em particular teria muita
dificuldade em concretizar.
O Inquérito à Arquitectura
Regional é hoje uma viagem no
tempo que nos permite ir a
determinados lugares antes de
uma certa entropia se ter
instalado. Essa viagem dá-nos
através das fotografias a
atmosfera, a temperatura dos
materiais, a maneira como a luz
se comportava, dá-nos uma ideia
da paisagem construída sem a
perturbação de alguns elementos
mais recentes cuja presença hoje
temos dificuldade em
compreender. Pode dar também
uma suposta imagem de
harmonia entre o Homem e meio.
Essa ideia de harmonia contudo
provinha das condições de vida
da população, arredadas do que
seria de esperar para os meados
do século XX. Ainda assim até
hoje é possível encontrar estas
fotografias em publicações sobre
arquitectura contemporânea
erudita, que resgatam do
inquérito, legitimamente, um
fascínio pela intemporalidade da
arquitectura vernacular e pela
referida adequação desta à
paisagem.
Hoje pouco se pode visitar dos
aglomerados registados no
Inquérito, salvo raras excepções.
A noção de progresso que
dominou Portugal desde o final
da década de 1960 favoreceu a
sua transformação quase
completa ao ponto do
irreconhecível. O trabalho de
Duarte Belo confirma este facto
quando fotografa, de modo
sistemático, os aglomerados
urbanos, mas revela uma
paisagem menos transformada
onde não existem aldeias ou
cidades. A grande excepção vai
para os lugares que acolheram as
barragens. As paisagens de
Duarte Belo deixam adivinhar um
território que sobreviveu intacto
pelo sua condição de abandono.
O Inquérito à Arquitectura do
Século XX, lançado pela Ordem
dos Arquitectos, coordenado pela
investigadora Ana Tostões, da
qual fiz parte enquanto
coordenador de uma equipa, não
partiu para o terreno à procura
da confirmação de uma tese –
estava, como o trabalho de
Duarte Belo, disponível para
registar o que não conhecia
previamente. Neste sentido em
pouco se assemelha ao Inquérito
à Arquitectura Regional, já que se
Está em exibição na galeria da
Fundação EDP do Porto a
exposição Território Comum
construída a partir do conjunto
de fotografias que integraram a
investigação do Inquérito à
Arquitectura Regional
Portuguesa. Este material foi, nas
últimas décadas, amplamente
divulgado no meio da
arquitectura, mas a exposição,
comissariada por Sérgio Mah,
permite hoje alargar o público
deste património gerado pelos
arquitectos que percorreram
Portugal entre 1955 e 1957. A
exposição é também um
pretexto, nesta crónica, para
revisitar dois trabalhos
complementares, o Inquérito à
Arquitectura Portuguesa do
Século XX (IAP20) e o trabalho do
arquitecto e fotógrafo Duarte
Belo, que publicou em 2011 o
livro Portugal. Luz e Sombra,
também este uma viagem, desta
vez como um palimpsesto gerado
sobre o trabalho fotográfico do
geógrafo Orlando Ribeiro.
Embora o Inquérito à
Arquitectura Regional Portuguesa
seja uma referência da disciplina
a partir do final da década de
1950 (e em particular a partir da
sua publicação em 1961), que
coincide com a crítica
internacional ao Movimento
Moderno, a sua acção de
questionar o processo de
transformação do território não
estava isolada. Entre 1930 e 1940
engenheiros agrónomos do
Instituto Superior de Agronomia
conduziram um Inquérito à
Habitação Rural, trabalho que foi
recentemente reeditado e que
inevitavelmente aborda a
arquitectura portuguesa. O
escrutínio ao meio provinha de
várias disciplinas e olhares.
Em comum encontramos uma
abordagem à “casa portuguesa”,
tema que estimulou uma relação
tensa entre os vários meios
disciplinares e o regime. Mas o
Estado Novo não estava isolado
no desejo de inquirir o seu país à
procura de uma e só uma
identidade. Regimes como o de
Mussolini também apoiaram este
tipo de investigação (o livro
Architettura Rurale Italiana, de
1936, é o melhor exemplo), na
expectativa de poder construir
uma retórica nacionalista apoiada
numa forma perene de expressão
do homem no território – a
arquitectura.
Para uma pergunta algo
primária como a da existência
fundadora de uma casa
portuguesa, como aquela
elaborada pelo Estado Novo, que
justificava o investimento no
Inquérito, os arquitectos
encontraram uma resposta mais
profunda e revelaram a
complexidade que está na base de
tudo o que possui significado
cultural. Não encontraram uma
casa encontraram várias,
distintas de norte a sul.
Encontraram formas de
arquitectura tão diversas como os
espigueiros que se elevam do solo
e as açoteias do Algarve que
rematam as vilas piscatórias.
Fixaram o território num período
de rápida transformação, de
alteração de paradigmas,
permitindo que hoje possamos
ter acesso, numa viagem no
tempo, a esses lugares. Foi
possível registar a paisagem e a
arquitectura popular de um país
que estava a acabar – pela
concentração das populações no
litoral, pela emigração, pela
explosão da actividade da
construção civil na década de
1960, pelo desejo de urbanidade
dos habitantes que ficaram, pela
Arquitectura:
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Do mesmo modo que nos anos 1950 vários
arquitectos olharam para um arquitectura
em vias de desaparecimento, entre 2003
e 2004 novas gerações partiram em viagem
para ver o que a arquitectura erudita
do século XX tinha operado no território.
Convidado RicardoCarvalho*Opinião
Capela de Nossa Senhora
de Guadalupe, Vila do Bispo
- Arquivo Orlando Ribeiro e
Arquivo Duarte Belo
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inevitavelmente, porque como
manifestação cultural que
também é manifesta-se de um
modo complexo e em vários
estratos.
O olhar retrospectivo de um
Inquérito não serve apenas
propósitos de investigadores.
Como o Inquérito à Arquitectura
do Século XX pretendeu-se
partilhar o trabalho colectivo de
uma comunidade. Comunidade
essa que, provavelmente, antes
da realização destes trabalhos
não estava atenta ao seu valor e
eventual relevância fora da vida
quotidiana. O Inquérito sobre o
século XX não teve ainda uma
exposição à sua altura. Nem um
catálogo. Há centenas de
fotografias em arquivo à espera
de uma exposição que as revelem
como merecem.
Não deixa de ser surpreendente
que o velho Inquérito sobre a
arquitectura popular, hoje
passível de um olhar lacónico
sobre um passado já distante,
continue a alimentar o debate e a
merecer vários pontos de vista,
enquanto que este outro, sobre o
mundo contemporâneo, continue
por se expor à complexidade das
interpretações do presente. Será
esta apenas mais uma
manifestação do medo da não
inscrição que o filósofo José Gil
refere no livro de 2004 Portugal
Hoje. O Medo de Existir?
*Ricardo Carvalho é arquitecto,
professor universitário, curador
e critico de arquitectura
realizou num país em democracia
e, nesse período, capaz de
recorrer a apoios europeus para
projectos de investigação. Do
mesmo modo que nos anos 1950
vários arquitectos se ocuparam
em olhar para um arquitectura
em vias de desaparecimento,
entre 2003 e 2004, novas
gerações partiram em viagem (em
brigadas) para ver o que a
arquitectura erudita do século XX
tinha operado no território.
Muitas das obras registadas são
de autores desconhecidos, muitas
outras foram amplamente
publicadas dentro e fora de
Portugal. Muitas obras não irão
permanecer, outras estão
profundamente alteradas e o seu
significado original difícil de
descodificar. Mas aquilo que
emerge desse trabalho é um
conjunto de obras qualificadas
em estão dispersas por todas as
décadas do século XX.
São sedes do Banco de
Portugal, estações de Caminho-
de-Ferro, fábricas, escolas,
tribunais, barragens, bairros,
casas, universidades,
monumentos, entre muitos
outros programas. Este foi o
século que procurou romper com
uma ideia de tradição e que
depois se reconciliou com a
mesma - e o Inquérito à
Arquitectura Regional Portuguesa
foi disso sinal. Foi o século que
hesitou em afirmar se o projecto
da modernidade estava em aberto
ou se estava já superado. A
arquitectura reflectiu tudo isso,
Fotografia de Orlando Ribeiro de 1944/ fotografia de Duarte Belo.
Idanha-a-Nova