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Baixar para ler offline
ano XV
nº172 / 2011
R$ 9,90
PALESTINA
Terceira Intifada
contra a repressão
RIO DE JANEIRO
Índios querem
Universidade
Grupos estrangeiros
expropriam o etanol brasileiro
BÁRBARA MENGARDO CECÍLIA LUEDEMANN CLAUDIUS DÉBORA PRADO EDMUNDO VERA MANZO EDUARDO SÁ EMIR SADER
FREI BETTO GABRIELA MONCAU GERSHON KNISPEL GILBERTO FELISBERTO VASCONCELLOS GUTO LACAZ JESUS CARLOS
JOÃO PEDRO STEDILE JOEL RUFINO DOS SANTOS JOSÉ ARBEX JR. LÚCIA RODRIGUES MARCOS BAGNO MC LEONARDO PEDRO
ALEXANDRE SANCHES RENATO POMPEU ROBERTO OLIVEIRA RODRIGO VIANNA SÉRGIO VAZ SORAYA MISLEH TATIANA MERLINO
ENTREVISTA
Esteban Volkov
NETO DE TROTSKY
DEFENDE O AUTÊNTICO
SOCIALISMO
FARRA DAS TELES
COM BENS PÚBLICOS
UNIÃO PODE PERDER
ATÉ R$ 30 BILHÕES
REFORMA
POLÍTICA
SERÁ MESMO
PRA VALER?
A PRIMEIRA À ESQUERDA
ANTONIO CANDIDO
Perfil do crítico
e militante
KASSAB
MILITARIZA
A PREFEITURA
DE SÃO PAULO
pag_01_capa_172.indd 1 29.06.11 18:36:39
CAROS AMIGOS ANO XV 172 JULHO 2011
EDITORA CASA AMARELA
REVISTAS • LIVROS • SERVIÇOS EDITORIAIS
FUNDADOR: SÉRGIO DE SOUZA (1934-2008)
EDITOR E DIRETOR: WAGNER NABUCO DE ARAÚJO
Capa:
Montagem de Ricardo
Palamartchuk em foto
de Jesus Carlos.
Reportagem da Caros Amigos conta que a expansão
do etanol da cana – um combustível incluído na pau-
ta mundial como alternativa imediata ao petróleo – no
Brasil está sob a ameaça dos grandes grupos internacio-
nais – os mesmos que durante décadas controlaram outros
combustíveis – e do capitalismo ascendente nos países asi-
áticos. A voracidade dos estrangeiros tende a retirar do Es-
tado brasileiro e do capital nacional parcela de poder e de
decisão sobre o futuro do combustível no país e no
mercado global.
Outra reportagem desvenda o mistério dos chamados
bens reversíveis da União, que foram entregues – por tem-
po determinado – para as empresas privadas que assumi-
ram os serviços públicos de telefonia – privatizados no
governo FHC. Como a Anatel não se empenhou em fisca-
lizar o uso e paradeiro desses bens, a União (entenda-se
o patrimônio público) corre sério risco de ter um prejuí-
zo de R$30 bilhões.
Em cima do debate atual da reforma política, Caros
Amigos ouviu vários estudiosos e lideranças partidárias
para identificar quais pontos significam avanços no sis-
tema representativo e na democracia real. Além de toda a
polêmica que cerca a reforma, paira também a dúvida so-
bre o que realmente pode e vai ser gerado pelo Congresso
Nacional. Uma coisa parece certa: sem pressão da socie-
dade não haverá grandes mudanças.
Indiferente às demandas por liberdade, democracia,
transparência e respeito aos direitos humanos, o prefei-
to Gilberto Kassab reforçou no município de São Paulo
a militarização da gestão pública e da repressão aos mo-
vimentos sociais. Reportagem da revista mostra como ele
aparelhou a administração com oficiais da Polícia Militar
e como institucionalizou o “bico” de policiais militares –
em associação com a Guarda Civil Metropolitana – nas ati-
vidades repressivas da Prefeitura.
A presente edição contempla, ainda, entrevistas com o
professor José Luiz Fiorin, da USP, sobre o polêmico con-
flito das normas culta e popular; com o químico Esteban
Volkov, neto do líder bolchevista Leon Trotsky; o per-
fil do crítico literário Antonio Candido; outras reporta-
gens e os artigos e ensaios da equipe de colaboradores da
Caros Amigos.
Enfim, muita coisa boa para ler, curtir, refletir e agir.
Vá em frente!
ETANOL EXPROPRIADO
EDITOR: Hamilton Octavio de Souza EDITORA ADJUNTA: Tatiana Merlino EDITOR ESPECIAL: José Arbex Jr ARTE: Ricardo Palamartchuk e Gilberto de Breyne EDITOR DE FOTOGRAFIA: Walter Firmo REPÓRTERES: Bárbara
Mengardo, Débora Prado, Gabriela Moncau, Lúcia Rodrigues e Otávio Nagoya SÍTIO: Débora Prado (Editora), Gabriela Moncau e Paula Salati SECRETÁRIA DA REDAÇÃO: Simone Alves REVISORA: Cecília Luedemann
DIRETOR DE MARKETING: André Herrmann COORDENADORA DE MARKETING: Júlia Phintener COMÉRCIO VIRTUAL: Pedro Nabuco de Araújo e Douglas Jerônimo RELAÇÕES INSTITUCIONAIS: Cecília Figueira de
Mello ADMINISTRATIVO E FINANCEIRO: Clarice Alvon e Priscila Nunes CONTROLE E PROCESSOS: Wanderley Alves LIVROS CASA AMARELA: Clarice Alvon PUBLICAÇÕES DE REFERÊNCIA: Renato Pompeu (Editor)
ASSESSORIA DE IMPRENSA: Kyra Piscitelli APOIO: Edcarlos Rodrigues, Joze de Cássia e Neidivaldo dos Anjos ATENDIMENTO AO LEITOR: Douglas Jerônimo e Zélia Coelho ASSESSORIA JURÍDICA: Marco Túlio Bottino, Aton
Fon Filho, Juvelino Strozake, Luis F. X. Soares de Mello, Eduardo Gutierrez e Susana Paim Figueiredo; Pillon e Pillon Advogados REPRESENTANTE DE PUBLICIDADE: BRASÍLIA: Joaquim Barroncas (61) 9115-3659.
JORNALISTA RESPONSÁVEL: HAMILTON OCTAVIO DE SOUZA (MTB 11.242)
DIRETOR GERAL: WAGNER NABUCO DE ARAÚJO
CAROS AMIGOS, ano XV, nº 172, é uma publicação mensal da Editora Casa Amarela Ltda. Registro nº 7372, no 8º Cartório de Registro de Títulos e Documentos da Comarca de São Paulo.
Distribuída com exclusividade no Brasil pela DINAP S/A - Distribuidora Nacional de Publicações, São Paulo. IMPRESSÃO: Bangraf
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REPORTAGENS
Grupos estrangeiros – de vários países – se apropriam do etanol brasileiro.
Por Lúcia Rodrigues
A reforma política do Congresso Nacional vai mesmo aprofundar a democracia?
Por Tatiana Merlino
Empresas privadas de telefonia manobram com os bens reversíveis da União.
Por Débora Prado
O prefeito Gilberto Kassab reforçou e ampliou a militarização em São Paulo.
Por Gabriela Moncau
Índios querem transformar antigo museu em Universidade Indígena.
Por Eduardo Sá
Tribunal Popular da Terra vai debater e julgar crimes contra populações pobres.
Por Roberto Oliveira
Enviada Especial relata começo da terceira Intifada palestina.
Por Soraya Misleh
ENTREVISTAS
José Luiz Fiorin: “O aluno não deve ter vergonha da língua que ele traz de casa”.
Por Cecília Luedemann
Esteban Volkov: “Para o autêntico socialismo, a democracia é como o oxigênio”.
Por Tatiana Merlino
ARTIGOS E COLUNAS
Mc Leonardo defende o funk e critica o preconceito do crítico Sérgio Cabral.
José Arbex Jr. alerta que a crise econômica cresce e se avizinha do Brasil.
Sérgio Vaz dá as dicas sobre a magia da felicidade e o perfil dos poetas.
João Pedro Stedile conclama apoio para a campanha contra os venenos agrícolas.
Frei Betto fala sobre a roda da fortuna para traficar influências.
Edmundo Vera Manzo analisa a insegurança como instrumento político da direita.
Tatiana Merlino: processo contra o coronel Ustra terá depoimento de testemunhas.
Gilberto Felisberto Vasconcellos: “Estou de saco cheio do capitalismo”.
Gershon Knispel analisa a força da memória coletiva na vida das nações.
Emir Sader comenta que a Europa vota à direita e a América Latina à esquerda.
SEÇÕES
Caros Leitores: cartas e comentários pelo Twitter e no Facebook.
Falar Brasileiro – Por Marcos Bagno: crítica à tradição gramatical normativa.
Paçoca – Por Pedro Alexandre Sanches: Itamar Assumpção revive em novo show.
Amigos de Papel – Por Joel Rufino dos Santos: a História na agenda democrática.
Perfil: Antonio Candido – Por Bárbara Mengardo: o crítico literário e o militante.
Ideias de Botequim – Por Renato Pompeu: Inéditos de Sérgio Buarque de Holanda.
Tacape – Por Rodrigo Vianna: é preciso ampliar a transparência seletiva da Folha.
CHARGES
Guto Lacaz
Claudius
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sumário
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5julho 2011 caros amigos
REDAÇÃO
COMENTÁRIOS SOBRE O CONTEÚDO EDITORIAL,
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(DE SEGUNDA A SEXTA-FEIRA,
DAS 9 ÀS 18H)
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FALE CONOSCO
CHOMSKY
Fiquei muito feliz por dois motivos ao
ler a edição da Caros Amigos 169: primei-
ro, porque traz as reportagens que gosto de
ler e, segundo, pela entrevista que Noam
Chomsky deu. Considero esta reportagem
de extrema importância (uma das mais nos
últimos tempos) e de muita utilidade, prin-
cipalmente para nós, professores, que po-
demos trabalhar com o texto de várias for-
mas, pois as palavras do mestre são claras
como água cristalina e nos dão a noção exa-
ta sobre a atual conjuntura política do mun-
do árabe. Mais uma vez fico satisfeita com
a escolha que fiz ao assinar Caros Amigos.
Sônia Ribeiro Vasconcellos.
REPRESSÃO
Excelente matéria sobre As novas táticas da
repressão política. A matéria aponta uma ex-
pressão real do que vem se alastrando no país
afora a partir de um ódio patológico de seto-
res reacionários que criam factoides contra mi-
litantes políticos e sociais. As ações desses gru-
pos contam com retoques nebulosos herdados
do período nefasto da ditadura militar e ge-
ram desgastes emocionais que abalam a rela-
ção profissional ou estudantil, como também o
aspecto familiar (atingindo em cheio o aspecto
emocional). Aqui, na Paraíba, temos o caso do
estudante Enver José que está sendo processa-
do por ter participado das ações políticas con-
tra o aumento abusivo das passagens dos trans-
portes coletivos em janeiro (acusado, pasmem,
de ter lançado um artefato, parecido com uma
granada, em um ônibus). Particularmente estou
sendo perseguido politicamente pelo Reitor da
Universidade Federal de Campina Grande por
ter repassado informações sobre um processo
que circula no TCU, e, de fato, o desgaste emo-
cional e psicológico foi tamanho que tive que
procurar um médico especialista.
Lauro Pires Xavier Neto, professor da Uni-
versidade Federal de Campina Grande (UFCG)
e diretor da ADUFCG.
PORRE DE NOÉ
Quero parabenizar a Caros Amigos – A pri-
meira à esquerda, em especial os autores Joel
Rufino e Sérgio Vaz. Quanta clareza de ideias
há no Porre de Noé, numa questão tão delicada
que é a sexualidade retratada com tanta perfor-
mance. No que diz respeito a sermos um país li-
vre, isso pode até existir na teoria ou em pseu-
dos líderes que querem mostrar lá fora que somos
isso e aquilo outro, quando na verdade nossa
prática é carregada de preconceitos e racismos.
Então, usemos o Milagre da Poesia para trans-
formar essa porca elite direitista em poetas ope-
rários, em poetas engenheiros, em poetas médi-
cos, em poetas que assassinem esses preconceitos
ultrapassados e firam o ventre podre dessa eli-
te suja com palavras vivas, como diria o sau-
doso Belchior “quero que meu canto torto fei-
to faca corte a carne de vocês”. Muitos ósculos e
amplexos aos nobres leitores da Caros Amigos.
Flávio Vieira dos Santos - Graduado pela Uni-
versidade Estadual do Sudoeste da Bahia, Campus
Jequié – Jaguaquara – Bahia.
MANGABA
A Caros Amigos nº170/2011, entre tantas
outras boas matérias, traz uma reportagem re-
latando a valorosa luta das catadoras de man-
gaba sergipanas, para fazer valer seus direitos
e cidadania. E estão conquistando vitórias. Gente
humilde e corajosa. Vale a pena ler a re-
portagem das páginas 33/35 da revista e divul-
gar seus embates.
Odon Porto de Almeida.
UNIDADE POPULAR
Acabei de ler o texto A unidade do campo
popular, de João Pedro StedIle, e fiquei extre-
mamente emocionada. Ele deveria ser um dis-
curso para 3 milhões de pessoas, sendo trans-
mitido ao vivo para os outros 197 milhões de
brasileiros. É preciso um impulso inicial para
que a inércia de permanecer parado do nosso
povo se transforme na inércia de continuar o
movimento. Mas por onde começar tudo isso? A
fome de conhecimento que temos não se com-
para com a fome de comida, casa, saneamento
básico e de um pouco de diversão que a gran-
de massa brasileira tem. E enquanto essas ne-
cessidades não forem sanadas, a população não
terá fome de saber, pra conseguir informações
suficientes e reivindicar o que lhe é de direito.
Ou talvez seja necessário que a situação chegue
ao extremo para a população sair dessa inércia,
como nos antecedentes do que o Ocidente cha-
ma de Primavera Árabe, iniciada no estôma-
go de um povo miserável que, cansado de ver a
opulência e o autoritarismo de seus governan-
tes, resolveu agir. O problema é que nossos po-
líticos são espertos o suficiente para não deixar
que a situação do Brasil chegue a extremos. Eles
dão o suficiente para que o povo não se rebe-
le, mas o mínimo para que eles não progridam.
Como solucionar esse ciclo vicioso?
Luiza Machado, 17 anos, futura estudante de
Direito, Jornalismo, História e Serviço Social.
@caros_amigos um dos melhores investimen-
tos que já fiz.
Pedro Bernardi – Via Twitter.
Pra mim, a Caros Amigos é parte da minha
vida.
Maria Noelia de Souza – Via Facebook.
A @caros_amigos vai me ajudar muito no ves-
tibular deste ano. Todos os temas que eu pego pra
estudar vem na revista. RS...
Fabio Saft – Via Twitter.
Li pela primeira vez a revista Caros Amigos e fi-
quei extremamente encantada com o comprometi-
mento, a fidelidade do que lá está apresentado! Pa-
rabéns pela revista. Vocês acabam de ganhar uma
nova leitora.
Ana Alice Freitas - Via Facebook.
@caros_amigos Enfartados, cuidado. A Caros
Amigos 171 está de tirar o fôlego. Nitroglicerina
pura!!!
Agilson Filho – Via Twitter.
CAROS LEITORES
Rolou no Twitter
e no Facebook
pag_05_caros_leitores_172.indd 5 29.06.11 18:43:33
caros amigos julho 2011
6
Durante a polêmica surrealista que a mídia
fascistoide inventou para exibir sua ignorância
em maio passado (em torno de um livro didático
adotado pelo MEC), assisti no YouTube uma en-
trevista com Ataliba de Castilho, um importan-
te linguista brasileiro, autor de uma monumen-
tal gramática publicada em 2010. De repente, o
jornalista, apontando para a gramática de Cas-
tilho, disse: “Mas o senhor é autor de uma gra-
mática, então o senhor não é linguista”. Fiquei
imaginando as respostas que eu daria se estives-
se no lugar de Castilho. Mas Castilho é um per-
feito cavalheiro e, com toda a paciência, expli-
cou que sim, ele é linguista.
A tradição gramatical normativa é tão pode-
rosa que já se impregnou em nossa cultura oci-
dental de forma mais arraigada do que o cris-
tianismo (que só nasceu 300 anos depois dela).
A separação entre “gramática” e “linguística” é
resultado de uma distorção típica das ideologias.
O estudo da gramática é um dos vários campos de
interesse da linguística científica. Na verdade, o
estudo da gramática é o “núcleo duro” da linguís-
tica. O grande problema é que as pessoas em ge-
ral têm uma concepção completamente equivoca-
da do que seja gramática.
A gramática não é um conjunto de regras que
definem o “falar bem” e o “escrever certo”. Esse
conjunto forma o que se chama de norma-padrão.
A norma-padrão é um produto sociocultural, re-
sultado de conflitos de interesse, lutas de poder
e hierarquizações políticas. No entanto, seu po-
der simbólico é tamanho que muita gente identifi-
ca essa norma com a própria língua: assim, “por-
tuguês” não é a língua falada por 250 milhões de
pessoas mundo afora, mas simplesmente aquela
pobre redução de todo esse universo linguístico a
um código penal de “certos” e “errados”.
A gramática é o estudo do funcionamento da
língua em todos os seus níveis: fonológico, mor-
fossintático, semântico, pragmático, discursivo.
Para o linguista, “nós falamos”, “nós falamo”, “nós
falemo” e “nós falou” são formas perfeitamente
explicáveis do ponto de vista científico e, por isso,
nenhuma delas é mais bonita ou mais bem forma-
da que as outras. Foi só por razões históricas, po-
líticas e socioculturais (ou seja, que escapam do
que é propriamente linguístico) que a forma “nós
falamos” se fixou como a “certa”. Não por acaso,
a forma mais conservadora, a menos usada pela
maioria da população. Afinal, os nossos “certos”
e “errados” vêm sempre de cima para baixo e não
o contrário, como em sociedades de democracia
mais antiga. Ora, em inglês, por exemplo, a antiga
forma equivalente a “falamos” desapareceu, e hoje
toda a conjugação verbal do inglês, no passado, se
faz com uma única forma: spoke, que serve para
todas as pessoas verbais. Será que isso impede os
falantes de inglês de “pensar direito”, como tan-
tas pessoas desinformadas andaram dizendo por
aí? É muita ignorância achar que a concordância
redundante leva alguém a pensar melhor. Olhaí o
Merval Pereira, eleito para a Academia Brasilei-
ra de Letras: usa muitas concordâncias, mas pen-
sar direito...
Muitos amigos leitores dessa revista, quando
se deparam com opiniões altamente preconcei-
tuosas sobre o funk me mandam email dizendo
que é preciso responder a essas opiniões em mi-
nha coluna.
Desde que passei a integrar o corpo de cola-
boradores desta revista, dificilmente abordo o
tema funk, não que eu não queira falar sobre
o funk, mas porque vivo em um país cheio de
sérios assuntos para serem abordados, onde o
funk passa a ser só mais um. Além disso, não
vou ficar o tempo todo reproduzindo opinião
preconceituosa de quem eu nem conheço, mas
uma opinião absurda sobre o funk (desses vês de
quem conheço muito bem) me chamou atenção,
e acho que vale a pena responder.
“Eu acredito que a CIA criou o funk para des-
truir o samba”.
A frase acima é de Sérgio Cabral (pai), que
GRAMÁTICA
OU LINGUÍSTICA?
falar brasileiro
Marcos Bagno
...
Não importa o que
falam, mas sim
quem fala
além de ser contra o reconhecimento do funk
como cultura desconhece que o funk tem contri-
buído para a permanência dos jovens dentro das
quadras de escolas de samba, e de ser uma das ren-
das para que escolas possam desfilar no carnaval.
Eu poderia levar em conta seus 74 anos e achar
que isso é da idade, mas nem isso cabe a esse se-
nhor.
O preconceito desse pesquisador e crítico musi-
cal está entranhado nele faz muito tempo.
Tido como um defensor da música popular bra-
sileira e fonte primária para universitários desen-
volverem suas pesquisas sobre música, ele tem em
seu currículo de negação alguns nomes da MPB
que inclui Gil, Caetano e todo movimento tropi-
calista.
Dizer que o funk está perdendo para o samba
nas favelas como ele disse, é frase de quem não en-
tende nada de favela e nem de música.
O samba continua vivo como nunca, e o funk
tem o samba como exemplo de resistência, convi-
vência com o chamado “asfalto” e independência
mercadológica.
Esse senhor que diz ser conhecedor de favelas
e culturas, não sabe reconhecer transformações e
muito menos ritmos culturais.
Ele com todo o seu preconceito vai semeando
o fascismo com um discurso antifavelado e anti-
patriota, pois em qualquer parte do mundo onde
se toca o que se cria hoje nas favelas cariocas,
quem entende de música fala: “Isso é música ele-
trônica brasileira”
Ele falou que é um absurdo quererem o funk
carioca como patrimônio cultural da cidade do
Rio de Janeiro, mas eu não sei de onde ele ti-
rou isso.
O que a gente já fez foi o estado reconhecer
por lei o funk como cultura e nada mais, para po-
dermos lutar contra uma perseguição executiva
e legislativa que existia em nosso estado e que a
gente possa seguir a luta contra uma perseguição
policial ainda em curso.
Nasci ouvindo Jacson do Pandeiro (meu pai
Chico Mota gravou com ele) e toda cultura nor-
destina, cresci ouvindo samba (sou da ala de
compositores da Acadêmicos da Rocinha, favela
na qual sou nascido e criado), mas foi o funk que
me deu a oportunidade de me comunicar com as
condições que eu tinha na minha adolescência.
Viva o funk, viva a favela, viva o não pre-
conceito!
Mc Leonardo é presidente da APAfunk,
cantor e compositor.
Marcos Bagno é linguista e escritor.
www.marcosbagno.com.br
Mc Leonardo
ilustração:deboraborba
pag_06_MARCOS_MC_LEONARDO_ED_172.indd 6 29.06.11 18:44:08
7julho 2011 caros amigos
Pedro Alexandre Sanches é jornalista.
“Entre o sim e o não existe um vão”, cantou
o medalhão da MPB Ney Matogrosso, num show
incomum de que participou em junho passado. A
banda de acompanhamento era a Isca de Polícia,
tradutora há mais de três décadas do ideário de
Itamar Assumpção (1949-2003), rebelde compo-
sitor brasileiro que já apelidamos por aqui de “o
intérprete do não”.
O verso pertence ao soul-rock-MPB de pro-
testo Chavão Abre Porta Grande, que o paulis-
ta Itamar lançou em 1986, no underground, e em
1988 o sul-matogrossense Ney fez atravessar até
o mainstream, gravando-o no disco Quem Não
Vive Tem Medo da Morte. O título, por sinal, era
extraído de outro verso da mesma canção.
Itamar foi um dos primeiros artistas brasi-
leiros a lançar discos independentes. Ao gravar
Chavão Abre Porta Grande, Ney tornou-se o pri-
meiro (e por muito tempo único) artista do dito
primeiro time da MPB a gravar Itamar. Nos sho-
ws raros e preciosos de junho de 2011, Ney reu-
niu-se à ferina Isca de Polícia e se tornou o pri-
meiro medalhão da música pop brasileira a fazer
um show inteiro devotado ao “maldito” Itamar.
A ocasião era inédita para ele também, mesmo
sendo um egresso dos Secos & Molhados (1973-
1974) e tendo cantado e gravado com a banda
carioca Pedro Luís e A Parede (2004-2006). Ali,
Ney cantava pela primeira vez secundado por
vozes femininas – as “itamarianas” vocalistas do
Isca, Suzana Salles e Vange Milliet, mais Alzi-
ra Espíndola.
 “Mulher segundo meu pai!”, grita Itamar, na
primeira frase de um disco lançado em junho de
2011. Sim, ele está morto. Mas não, ele não está
morto. O disco se chama Sou Suspeita Estou Su-
jeita Não Sou Santa, e pertence à filha do ho-
mem, Anelis Assumpção, nascida em 1980, ao
mesmo tempo que o primeiro disco da Isca de
Polícia.
As muitas mulheres com quem Itamar can-
tou ao longo da vida se reagrupam numa só, sua
filha, que canta, em Mulher Segundo Meu Pai,
versos inventados por ele: “Bem que meu pai me
avisou/ homem não sabe mulher/ falou que falou
seu pai, meu avô/ mulher é o que Deus quiser”.
Anelis é compositora, além de cantora. Pare-
ce bobagem, mas compor é profissão que pare-
cia inexistir para mulheres até poucas décadas
atrás, salvo exceções como Dolores Duran, Rita
Lee, Patti Smith, Deborah Harry, Marina Lima,
Paula Toller. “Culpa/ quem precisa?/ quem inven-
tou?/ quem mandou?/ deita, desata o nó na gar-
ganta/ tira o tênis e se encosta no muro na vida”,
compõe Anelis, em clave de sim.
 “Não adianta ir arreganhando os dentes para
mim porque sei que isso não é um sorriso”, Itamar
rugia sem tomar fôlego em 1986, em Chavão Abre
Porta Grande. “Penso, logo existo/ penso que exis-
to/ penso que penso/ canto, logo existo/ canto en-
quanto isso/ canto enquanto posso”, afirmava, pa-
recendo tentar se convencer mais que ter certeza
do que dizia.
“Não sei se gosto de mim/ não sei se gosto de
você/ mas gosto de nós”, Ney reproduziu em 1988
e reproduz em 2011. Naqueles anos 80, o não-com-
positor vindo do Mato Grosso (do Sul) chegou a
convidar o compositor-cantor-músico paulista que
morara no Paraná para um trabalho conjunto. Ita-
mar não falou nem sim nem não, mas o encontro
nunca houve.
Itamar não sabia se gostava de si, não sabia se
gostava de Ney. Mas gostava deles juntos.  Disse
inúmeras vezes nas décadas seguintes que gosta-
ria que Ney gravasse um disco só com suas músi-
cas. Ney gravou sete até hoje, mas um disco inteiro
ainda não. Os shows de junho significam um pas-
so largo naquela direção. No palco, Ney cantou 13
números, um deles uma versão 100% Isca de Polí-
cia para “Sangue Latino” (1973), dos Secos & Mo-
lhados, e os outros, 100% Itamar. Afirmação negra,
revolução (homo)sexual e libertação feminina são
protagonistas no encontro Ney (& Itamar) & Isca.
“Poeta, talvez seja melhor afinar o coro dos des-
contentes”, decretou o Ney de 2011, ecoando o Ney
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de 1988 e o Itamar tateante de 1986. O verso de
Chavão Abre Porta Grande remete-se em negativo
a Let’s Play That (1972), tropicália do carioca Jards
Macalé sobre versos do poeta piauiense Torquato
Neto: “E eis que o anjo me disse, apertando minha
mão entre um sorriso de dente/ ‘vá, bicho, desafi-
nar o coro dos contentes!’”.
Enquanto esteve aqui, Itamar foi tido e havido
como sujeito irascível, arredio a aproximações da
indústria fonográfica, da MPB e seus medalhões.
Dizia, segundo o parceiro de Isca Paulo Lepetit, que
era como Cartola, música para ser compreendida
após a morte do autor. Enquanto esteve aqui, fez
como avisara: andou afinando o coro dos descon-
tentes, e dando pouco mais que sorrisos de soslaio
a um Ney aqui, uma Cássia Eller e uma Zélia Dun-
can acolá, uma Rita Lee e um Tom Zé bem de vez
em quando...
De Ney a Anelis, o coro vai se arrumando, se
ajeitando, se afinando, num processo ainda incon-
cluso. Itamar está vivo na regência das vozes (des)
afinadas. E nunca para de desafiar os (des)conten-
tes, tendo por espada o verso-síntese de uma de
suas principais parceiras-mulheres, a poeta para-
naense Alice Ruiz, que ele cantou em 1993 sob o
título Vou Tirar Você do Dicionário: “Eu vou tirar
você de mim assim que descobrir com quantos nãos
se faz um sim”.
“Um homem bateu em minha porta e eu abri/
os olhos/ e vi flores brotando pelo chão/ abaixe
suas armas, deixe raiar o sol”, tateia a filha do ho-
mem, pedindo espaço, ar e delicadeza, em Amor
Sustentável, parceria sua com outra mulher, Cris
Scabello. “Vivendo e aprendendo a jogar, o melhor
é se adiantar, pois quem não blefa dança”, diz Ane-
lis, em sintonia com Aprendendo a Jogar (composta
pelo paulista Guilherme Arantes e lançada em 1980
pela gaúcha Elis Regina), em Passando a Vez, par-
ceria com Luz Marina cantada com o rapper Max
B.O. Além do pai onipresente, o rap, o afroativis-
ta nigeriano Fela Kuti (1938-1997) e a pimenta Elis
também estão transcritos dentro de Anelis.
Na décima-quinta (e última) faixa de seu pri-
meiro disco, uma outra voz feminina canta versos
de composição própria: “O amor que me fez can-
tar/ não podia falar/ comigo/ eu cantarei com você/
sem pedir/ a vontade de casar com você...” A voz
é de Rubi Assumpção, que tem 9 anos e é neta de
Itamar.
paÇOCA
Pedro Alexandre
Sanches
...
Afinando o coro dos descontentes
ilustração:MURILO
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caros amigos julho 2011
8
Por José Arbex Jr.
Difícil avaliar o que é mais impressionante: as
dimensões da crise mundial do capital ou a capa-
cidade dos meios de comunicação hegemônicos de
obscurecer a sua gravidade, e até gerar a impressão
de que “o pior já passou”. A esquerda tupiniquim
– ou melhor, aqueles parcos resíduos que sobraram
do que um dia foi a esquerda –, salvo honrosas ex-
ceções, parece anestesiada pela operação midiáti-
ca de hipnose coletiva e prefere acreditar no conto
de fadas da “marolinha”. Sem pretender qualquer
exercício de futurologia, e sem adotar a empáfia
dos “especialistas”, o mero bom senso indica um
quadro extremamente grave, cuja moldura pode ser
assim descrita:
Os Estados Unidos ainda estão muito longe de se
recuperar do tsunami financeiro iniciado há quatro
anos. Em 16 de maio, soaram novos sinais de alar-
me, quando a dívida pública estadunidense atingiu
o teto histórico de 14,3 trilhões de dólares, o limi-
te autorizado pelo Congresso, praticamente empa-
tando com o PIB do país. A dívida pública é a
soma de todos os empréstimos feitos pelo gover-
no junto a credores (privados ou não, nacionais e
internacionais) para financiar gastos não cobertos
pela arrecadação dos impostos. O PIB é a soma to-
tal de bens e serviços produzidos ao longo do ano.
Isso coloca uma dúvida sobre a capacidade de os
Estados Unidos “honrarem o pagamento” junto aos
seus credores em todo o mundo, incluindo China,
Japão, Alemanha e o Brasil – países com fortes re-
servas em dólar.
Pela primeira vez na sua história recente, os Es-
tados Unidos foram considerados um mercado de
risco para investidores, com notas negativas dadas
pela agência especializada Standard & Poor’s (iro-
nicamente, trata-se do mesmo sistema de classi-
ficação tradicionalmente usado para aterrorizar o
Brasil e outros países “emergentes” e “subdesen-
volvidos”). A agência admite que todas as medidas
usadas pelo governo Obama para salvar os bancos e
as grandes empresas falimentares deram resultados
pífios. Os déficits fiscais (diferença entre receitas e
despesas do governo ao longo do ano) saltaram de
3% do PIB em 2008 para 11% projetados até o fi-
nal de 2011. A dívida não para de crescer.
Enquanto o barco afunda, congressistas demo-
cratas e republicanos, de olho nas próximas elei-
ções, trocam acusações mútuas de responsabilidade
pelo caos, e propõem medidas antagônicas. Demo-
cratas querem aprovar a elevação do teto do en-
dividamento público, criação de novas taxas e a
eliminação de muitas isenções de taxação aprova-
das durante os governos republicanos anteriores.
Os republicanos propõem mais reduções de gastos
públicos (cortes em programas sociais, aposenta-
doria, benefícios etc) e nenhuma nova taxa. Tra-
ta-se do bom e velho debate entre “estatizantes” e
“liberais”. Uma das respostas mais óbvias para ate-
nuar a crise é: imprimir mais dólares (que ainda
cumprem o papel de moeda mundial). Só que isso
já foi feito e não adiantou coisa alguma. Hoje, há
três vezes mais massa monetária (moeda em circu-
lação) do que havia em 2008, só que isso não con-
seguiu revitalizar a economia. Além disso, a emis-
são de muito mais dólares é receita de crescimento
da inflação e significa um rebaixamento do valor
da moeda, numa situação internacional de eleva-
ção geral do preço do petróleo e dos alimentos – o
que atinge em cheio a capacidade de consumo da já
ultra endividada família média estadunidense.
O economista brasileiro Luiz Gonzaga
Beluzzo nota, em entrevista à Folha de S. Pau-
lo (19.jun.2011): “Não estamos diante de uma cri-
se só econômico-financeira. Ela apenas exprimiu
um processo longo de 30, 40 anos de deterioração
das normas e das regras que marcaram a economia
do pós-guerra. Essa economia que eles chamam de
neoliberal. O que aconteceu foi que os Estados fo-
ram progressivamente abandonando, a partir das
décadas de 1960 e 1970, seus compromissos com os
assalariados, os velhos, e foram privatizando tudo,
A tempestade se avizinha
ilustração:ricardopalamartchuk
Tempos de Crise
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9julho 2011 caros amigoswww.carosamigos.com.br
com a participação das burocracias. Não é que o
Estado tenha saído da economia. O Estado tinha
outra agenda. Isso foi acompanhado por uma per-
da de posição das classes médias de todo o mun-
do, sobretudo nos Estados Unidos. Essa crise foi
acompanhada por um tremendo aumento do con-
servadorismo. (...) Nos EUA, há o problema do de-
semprego. Os desempregados bem educados estão
aumentando. Imagina o potencial de conflito social
e de incompreensão na sociedade. Isso tem um re-
batimento político.”
Europa
Na Zona do Euro, o quadro de crise é ainda mais
agudo. O apito da panela de pressão soou em 2009,
na Grécia, o primeiro país a dar os sinais da falên-
cia do Tratado de Maastricht, que, em 1991, forne-
ceu as bases econômicas para a formação da União
Europeia e da “zona do Euro”. O tratado estabe-
lecia, como condição para participar da Zona do
Euro, que qualquer país membro poderia contrair,
no máximo, dívida e déficit orçamentário equiva-
lentes a 60% e 3% do respectivo PIB. Para atingir
tal equilíbrio, os países membros teriam que im-
por programas de austeridade fiscal, cortar gastos
públicos e aplicar o receituário neoliberal que to-
dos estão carecas de conhecer. Após uma década
de euforia, com bilhões de dólares jorrando graças
à especulação imobiliária, ao turismo e aos jogos
olímpicos (em particular, nos casos da Grécia e da
Espanha), a bomba estourou.
As dívidas e os déficits apresentados pelos PII-
GS (Portugal, Irlanda, Itália, Grécia e Espanha) ul-
trapassaram em muito as exigências de Maastri-
cht e colocaram dúvidas quanto a capacidade de
pagar suas dívidas junto aos credores (principal-
mente, bancos privados alemães e franceses). Ins-
taurou-se o temor de um quadro generalizado de
falências de grandes instituições financeiras, com
um efeito dominó capaz de, no limite, fazer explo-
dir a própria Zona do Euro. Por ter sido o país onde
primeiro estourou a crise, a Grécia também foi o
primeiro laboratório para tentar “salvar o Euro”,
com adoção das medidas clássicas do neolibera-
lismo para “sanear” a economia: congelamento de
salários e aposentadorias públicas, cortes de bene-
fícios no valor médio de três salários / ano para
o funcionalismo público, aumento generalizado de
impostos (sobre combustíveis, propriedade da ter-
ra, transações comerciais), aumento da idade míni-
ma para aposentadoria, cortes de verbas para saú-
de e educação, privatização de setores estratégicos,
redução dos direitos sindicais.
O “pacote” imposto pelo FMI e pelo Banco Cen-
tral europeu, de 156 bilhões de dólares (equivalen-
tes a 47% do PIB, uma monstruosidade em termos
econômicos), tinha como objetivo reduzir o défi-
cit fiscal grego de 13,6% do PIB (em 2009) para
8,1% (em 2010), uma dívida que seria estabiliza-
da em torno de 150% do PIB, garantindo com isso
que os bancos privados continuassem recebendo
regulamente o pagamento da dívida. É claro que
o conjunto das medidas adotadas provocou uma
situação de extrema tensão social, com greves,
manifestações e embates com a polícia e com o
exército. Entretanto, apesar da brutalidade das me-
didas adotadas (que elevou o desemprego, em al-
gumas regiões, até a 50% da população economi-
camente ativa), o máximo que o governo grego
conseguiu foi reduzir o déficit para 10,5% do PIB,
em 2010. Isto é, os resultados foram muito inferio-
res aos esperados.
Não há perspectiva no horizonte visível de que
a dívida vá ser de fato saldada. Mesmo que se abs-
traia a “questão social”, fazendo de conta que vão
cessar as manifestações, ainda assim existe uma
equação que não fecha: de um lado, a dívida cres-
ce, pois os bancos credores em nada reduzem os
juros cobrados; de outro, cai a arrecadação, com
o aumento do desemprego. O “risco grego” produz
um efeito cadeia em relação aos outros países peri-
féricos da Zona do Euro: os credores aumentam os
juros para “compensar os riscos”. Portugal e Irlan-
da já adotaram a rota grega do desastre: receberam,
respectivamente, 110 e 120 bilhões de dólares em
empréstimos do FMI e do BCE (47% e 53% do PIB),
e agora a crise envolve brutalmente a Espanha.
A crise espanhola é ainda mais alarmante, dado
o tamanho de sua economia: seu PIB soma 1,4 tri-
lhão de dólares, quase cinco vezes o da Grécia. A
recessão, persistente desde 2008 (com crescimento
marginal em 2010) e o encolhimento do mercado
imobiliário (junto com o turismo, a principal fon-
te de seu desenvolvimento) produziram a catástro-
fe atual: 25% de desemprego da população econo-
micamente ativa, chegando a 45% entre os jovens
de até 25 anos. E os temores se voltam agora para
a Itália de Sílvio Berlusconi, já mergulhada em uma
grave crise política.
Revoltas
As revoltas da juventude em Madri e Barcelo-
na, assim como em Atenas, nos subúrbios de Pa-
ris e em dezenas de cidades e regiões europeias ex-
pressam a reação à ameaça de desmantelamento
das grandes conquistas sociais arrancadas aos Es-
tados burgueses no pós-guerra. Mas há também o
outro lado da moeda: as forças de direita avançam,
tanto em termos eleitorais quanto na multiplicações
de agrupamentos neonazistas e fascistoides. Deli-
neia-se um quadro de grave polarização ideológica,
social e política que tem no presidente francês Ni-
colas “burca” Sarkozi o principal ícone da “guerra
aos imigrantes”, e em Sílvio Berlusconi a petulância
e a vulgaridade do fascismo. Nos Estados Unidos,
o mesmo quadro alimenta as organizações funda-
mentalistas evangélicas e os grupos racistas, que
conseguem aprovar leis hediondas como as do es-
tado do Arizona, que permitem à polícia deter qual-
quer pessoa de “aparência suspeita”.
A “revolução árabe”, independente de seus con-
tornos ideológicos, acrescenta um ingrediente ex-
plosivo: a dúvida quanto à normalização dos fluxos
do petróleo, que fazem com que os preços do barril
oscilem e cheguem à marca dos 150 dólares. Não há
como prever o rumo que a “revolução árabe” ado-
tará, até porque muitas “revoluções” se combinam
para produzir a situação de instabilidade geral que
engloba o Oriente Médio e o norte da África. Se,
na Europa, a juventude se mobiliza em defesa de
conquistas sociais históricas, na outra margem do
Mediterrâneo é a fome e a miséria – e não as redes
sociais, como querem os pós-modernistas - que im-
pulsionam a queda de ditaduras e monarquias. Mas
trata-se de um processo caótico, em que se confun-
dem grupos inspirados por uma ideologia não raro
confusamente “democrática”, outros de esquerda,
correntes islâmicas (não apenas fundamentalistas)
e oportunistas de toda ordem.
No Egito, caiu Hosni Mubarack, mas não o seu
regime. Na Líbia, a guarda pessoal de Muamar Ka-
dafi, regiamente paga, resiste aos ataques da Otan,
e ambos assassinam às centenas civis inocentes ex-
postos aos tiros cruzados. Na Síria, já foram mor-
tos mais de 1.300 e não há uma perspectiva real de
fim dos conflitos. E, claro, na Palestina prossegue
a luta contra os invasores israelenses, que mantêm
a política de dar continuidade à construção de as-
sentamentos ilegais em Jerusalém e na Cisjordâ-
nia. Isso para não falar no desastre produzido por
Washington no Iraque e no Afeganistão. O Irã e a
Turquia, duas potências regionais, permanecem por
enquanto como que em “compasso de espera”.
A China, motor da economia mundial, conse-
gue manter um certo nível de crescimento, graças
à combinação de três sistemas econômicos (predo-
minantemente financeiro, em Hong Kong, indus-
trial nas Zonas Econômicas Especiais e agrícola no
continente) submetidos à feroz ditadura do parti-
do único. Os salários praticados na indústria e na
agricultura estão entre os mais baixos do mundo (o
que lhe permite exportar produtos a preços imba-
tíveis). Apesar disso, a China dá sinais de desacele-
ramento da produção, dada a contração dos mer-
cados (as previsões de crescimento caíram de 10%
do PIB para menos de 8% em 2011) e os juros bá-
sicos subiram para mais de 5%. Além disso, a Chi-
na enfrenta crescentes tensões sociais e limitações
básicas ao seu crescimento produzidas pelas ame-
aças de catástrofes ambientais.
Esses números são muito mais graves do que
sugerem à primeira vista. Se a China “esfria”,
importa menos, especialmente commodities, e isso
afeta diretamente o Brasil, por exemplo, seu princi-
pal parceiro comercial. Para os tupiniquins, tempos
sombrios se avizinham. Em primeiro lugar, há um
processo de encolhimento da indústria, principal-
mente decorrente da valorização excessiva do real
(superior aos 35% nos últimos cinco anos), que tor-
na cada vez mais difícil exportar. O mercado inter-
no enfrenta os juros mais elevados do planeta, além
de um processo de crescente endividamento mé-
dio da família. A economia está de joelhos diante
do capital financeiro e do agronegócio, que fatura
bilhões com as especulações sobre os preços das
commodities (mercado que eleva brutalmente o
preço mundial dos alimentos e está na base de
um quadro que criou um bilhão de famintos).
Não se trata mais de saber se a crise vai atingir o
Brasil, mas sim de quando isso acontecerá e em
que proporções.
A crise mundial está apenas no seus primeiros
degraus.
José Arbex Jr. é jornalista.
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“O Brasil é a Arábia Saudita do etanol”. A frase
de Narendra Murkumbi, presidente da Shree Re-
nuka, companhia indiana que controla várias usi-
nas de etanol no Brasil, exprime bem a expectati-
va dos investidores estrangeiros em relação a essa
fonte de energia renovável, genuinamente brasi-
leira, e que assumirá, em um futuro mais breve
do que se previa, papel preponderante na compo-
sição da matriz energética mundial.
O novo cenário projetado pelo declínio das
reservas petrolíferas no mundo impõe às econo-
miasdesenvolvidasabuscaporfontesalternativas
de energia renovável. O etanol extraído da
cana-de-açúcar desponta nesse contexto como a
mais viável de todas as fontes de energias reno-
váveis que se conhece. E o Brasil é o grande ce-
leiro dessa fonte de energia do futuro. 
“O etanol é um produto estratégico”, avalia
o economista e professor do Instituto de Econo-
mia da Universidade Estadual de Campinas (Uni-
camp), Wilson Cano. Para ele, a entrada de capi-
tal privado internacional no setor compromete a
soberania nacional. “Significa que o país vai per-
der determinação sobre essa área.” Cano consi-
dera que isso vai agravar ainda mais a falta de
controle estatal sobre o setor, que antes era con-
trolado apenas pelo capital privado nacional. “É
um agravante, porque torna mais difícil o gover-
no negociar com um grupo estrangeiro do que
com um nacional.”
Para ele, a motivação que desencadeou essa
operação foi a “expectativa de lucro fácil”. Cano
explica que a invasão do capital internacional se
dá na esteira de um fenômeno que acontece ao
longo dos últimos 10 anos. “O Brasil se tornou o
paraíso para investimento em setores estratégi-
cos. Não é só o setor de etanol que foi invadido,
mas toda a agricultura está permeada pela pre-
sença dos grandes oligopólios internacionais. A
invasão é generalizada.”
A receita para reverter os danos provocados
pelo modelo econômico adotado pelos dirigentes
governamentais é, segundo o docente, a execu-
ção de uma política econômica de caráter nacio-
nalista. “As políticas adotadas, notadamente no
Desnacionalização do etanol
põe em risco soberania
energética
Brasil
Capital privado internacional avança de forma voraz na compra de
usinas que produzem a principal fonte da nova matriz energética
mundial deste século.
Por Lúcia Rodrigues
FOTOS:JESUSCARLOS
Venda de usinas produtoras de etanol para grupos estrangeiros desnacionaliza matriz energética.
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11julho 2011 caros amigos
governo Fernando Henrique Cardoso foram des-
nacionalizantes, atenderam aos interesses estran-
geiros. O governo Lula manteve isso, segurou um
pouco as privatizações, mas a desnacionalização
continuou a todo o vapor.”
 
Fonte estratégica
De olho na joia da coroa, o capital privado
internacional avança de maneira voraz sobre o
setor, que tradicionalmente sempre foi domina-
do por grupos familiares de latifundiários brasi-
leiros. Mas a crise financeira de 2008 provocou
profunda alteração na composição desses negó-
cios. É nessa esteira que o capital estrangeiro en-
tra em marcha e compra grande parte dos empre-
endimentos na área. “O Brasil é, provavelmente,
o único país do mundo com condições de ex-
pandir o setor”, destaca o presidente da france-
sa Louis Dreyfus, Bruno Melcher. A empresa que
Bruno dirige é dona da ex-gigante brasileira San-
telisa Vale.
“Um terço do nosso setor teve dificuldades fi-
nanceiras e, em função disso, ocorreu essa re-
estruturação (com fusões e aquisições)”, afirma
Marcos Sawaya Jank, presidente da União da In-
dústria de Cana-de-Açúcar (Unica), a maior en-
tidade representativa das usinas sucroenergética
do país, com aproximadamente 130 associados.
Hoje, o setor de etanol tem a participação de
22% do capital internacional, segundo o dirigen-
te ruralista. “Esse capital é muito bem-vindo. Se-
não teríamos tido uma quebradeira bastante for-
te. No entanto, a presença estrangeira ainda é
muito pequena, bem menor do que em qualquer
outro setor, inclusive, no da agroindústria”, fri-
sa Marcos.
Outro representante da entidade ruralista que
preferiu não se identificar, também considera a
entrada de recursos
internacionais impor-
tante para o setor. “O
capital é transnacio-
nal.” Mas ressalta que
essa entrada maciça
de dinheiro a partir de
2008 surpreendeu a todos. “Houve uma acelera-
ção na entrada do capital internacional em menos
tempo do que a cadeia esperava. A concentração
e a consolidação vieram antes do que prevíamos.
Esperávamos que isso ocorresse em uma, duas dé-
cadas, mas aconteceu em dois, três anos.”
Ele conta que essa foi a forma encontrada pelo
setor para sobreviver. “Existiam empresas nacio-
nais muito debilitadas, aí entraram Shell (ingle-
sa), BP (inglesa), Bunge (estadunidense), Louis
Dreyfus (francesa), Noble. Ao invés de constru-
írem novas usinas com o capital que dispunham,
adquiriram ou se associaram às empresas brasi-
leiras que estavam em dificuldade. Um exemplo
é a Bunge que comprou o grupo Moema. Assu-
miu o controle das usinas do grupo e não cons-
truiu mais nenhuma unidade.”
“A primeira transação foi a da Dreyfus, que
comprou a Santelisa Vale. A Santa Elisa e a Vale
do Rosário já haviam se fusionado antes. Depois
Cosan - Nova América, ETH e Brenco, A BP com-
prou os ativos da CMAA, a Noble comprou parte
dos ativos da Cerradinho, a Cargill (estaduniden-
se) comprou os ativos da Usina São João”, expli-
ca José Carlos Grubisich, presidente da ETH, usi-
na controlada pela empreiteira baiana Odebrecht,
que também controla a petroquímica Braskem.
“Tanto as traders quanto as empresas de petró-
leo, como investidores, como a Odebrecht, veem
essa oportunidade e querem entrar no setor. Es-
tamos falando em produtos do setor energético.
Escala e competitividade de custo é muito impor-
tante. No Brasil, tínhamos muitas empresas de
tamanho insuficiente e estrutura financeira rela-
tivamente enfraquecida. Esse movimento de con-
centração vai continuar, porque há um mercado
potencial, que está crescendo muito rápido”, con-
clui José Carlos.
O executivo considera que a consolidação que
ocorre no setor é importante para a criação de
empresas mais fortes. Mas levanta a objeção de
que isso impede, na prática, a criação de outras
plantas. “Sempre que ocorre uma consolidação
não há o aumento da capacidade instalada. Nor-
malmente, as empresas que passam por esse pro-
cesso precisam de 12 a 24 meses para se reorgani-
zarem, digerirem a transação que foi feita.”
Apesar de ser uma empresa de capital fechado,
a ETH também tem acionistas estrangeiros (ja-
poneses, americanos e ingleses) em sua compo-
sição. Para José Carlos, a entrada de capital es-
trangeiro na área é importante. “Mostra o vigor
e a atratividade do setor. Todo mundo olha para
o etanol brasileiro, como exemplo de sucesso. É
normal que as grandes empresas de energia do
mundo olhem para o Brasil como o país de gran-
de potencial.”
 Desde 2008, o eta-
nol é o combustível
utilizado por mais ou
menos 50% da frota
de veículos leves do
país. Além disso, o
derivado da cana-de-
açúcar também substituirá a nafta, insumo bá-
sico da indústria petroquímica utilizada na pro-
dução de toda a cadeia de plásticos e resinas. A
descoberta da viabilidade do novo insumo permi-
te que se produza um plástico verde, como está
sendo chamado o produto que irá substituir o ob-
tido pelo processamento do derivado de petróleo.
“A experiência do plástico verde já começou. A
Braskem é a primeira indústria a usar biomassa,
matéria-prima limpa e renovável, para fazer po-
límeros para uso no mercado internacional”, re-
vela o presidente da ETH.
O etanol adquire relevo estratégico na compo-
sição da nova matriz energética mundial. O setor
sucroenergético representa 18% da matriz brasi-
leira, atualmente. Na safra de 2010/2011 foram
produzidos 27,5 bilhões de litros de álcool. O se-
tor sucroenergético movimentou R$ 60 bilhões.
Mais de três quartos dessa movimentação acon-
teceu depois de a cana deixar a fazenda. Hoje,
existem 435 usinas e destilarias distribuídas pelo
país, sendo que a maior parte delas estão concen-
tradas no Estado de São Paulo, que responde por
63% da moagem. O Produto Interno Bruto do se-
tor sucroenergético, em 2008, foi equivalente ao
PIB uruguaio.
Os números expressivos despertam grande in-
teresse do capital internacional, que avança com
volúpia sobre o setor. “Países da Europa, Ásia
e os Estados Unidos vão ficar em uma situação
de insegurança energética muito grande e estão
correndo atrás de alternativas”, ressalta Fernan-
do Siqueira, presidente da Associação dos Enge-
nheiros da Petrobras (Aepet), ao se referir ao de-
clínio das reservas mundiais de petróleo.
“Estamos no limiar do terceiro e definitivo
choque mundial do petróleo. A tendência daqui
para frente é a produção petrolífera declinar. E
essa queda vai ocorrer de forma muito acentua-
da.” De acordo com ele, hoje são produzidos no
planeta 86 milhões de barris de petróleo diaria-
mente. Em 2020, a previsão é de que essa produ-
ção caia para 60 milhões de barris dia.
O engenheiro da Petrobras explica, no entan-
to, que o pré-sal brasileiro continua sendo o alvo
preferencial desses países e destaca a importância
que as reservas petrolíferas nacionais têm nes-
se contexto. No entanto, apesar de gigante, uma
exploração predatória do hidrocarboneto pode
comprometer seriamente essas reservas. Segun-
do Fernando, uma prospecção frenética encurta-
ria o tempo de vida dessas reservas, para algo em
torno de 13 anos.
www.carosamigos.com.br
“O Brasil é a Arábia Saudita do etanol”,
Narendra Murkumbi, presidente da Shree
Renuka, companhia indiana que controla
várias usinas no Brasil.
Trabalhador rural no corte da cana.
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12
Ao contrário do setor privado internacional,
que identificou a importância estratégica que o
etanol terá na conformação da nova matriz ener-
gética mundial no próximo período e age para
controlar sua produção, o governo brasileiro ain-
da tateia no setor. O presidente da Petrobras Bio-
combustível, Miguel Rossetto, não considera que
a fonte da matriz energética vá se alterar em um
futuro próximo. “Temos outro cenário. Não en-
xergamos outras fontes primárias nas próximas
décadas, que não sejam o petróleo, o gás e o car-
vão”, frisa.
A opinião de Rossetto vai  na contramão da
de executivos da área privada de biocombustí-
veis. “O mundo vai mudar nos próximos 10, 20,
30 anos. A biomassa certamente é a aposta”, afir-
ma José Carlos Grubisich, presidente da ETH, usi-
na controlada pela empreiteira baiana Odebre-
cht, que também é controladora da petroquímica
Braskem.
“A Shell tem uma visão muito clara de que o
biocombustível vai ter um papel fundamental no
futuro”, destaca Vasco Dias, presidente da Raízen,
a caçula do setor, que surgiu da fusão da Cosan,
a maior sucroalcooleira do mundo, com a petro-
leira inglesa Shell, uma das integrantes do car-
tel das Sete Irmãs. Ele pondera, no entanto, que o
petróleo ainda terá papel preponderante nos pró-
ximos 20, 30 anos.
Sobre o processo de concentração que está
ocorrendo entre as empresas sucroenergéticas,
o presidente da Petrobras Biocombustível deixa
clara a linha definida pela estatal para o setor. “O
cenário com que trabalhamos é o de grandes gru-
pos articulando um pólo de produção de etanol e
biomassa, em escala nacional.”
O plano de negócios da Companhia para a área
prevê investimentos de U$ 1,9 bilhão até 2014.
A estatal opera 10 usinas de etanol em parceria
com a iniciativa privada. Uma dessas parcerias é
com a São Martinho, a maior usina do país e cujo
acionista principal é o segundo vice-presidente
da Federação das In-
dústrias de São Paulo
(Fiesp), João Guilher-
me Sabino Ometto.
“Fizemos essa op-
ção, porque temos
muito a aprender. É
uma escolha de pre-
sença flexível por meio de associação com grupos
que dispõem de experiência no setor. Temos 50%
de participação nessas empresas e participamos
ativamente das suas gestões, além disso, temos
produção própria de cana em áreas arrendadas
em várias de nossas usinas”, enfatiza Rossetto.
A Petrobras Biocombustíveis ocupa a terceira
colocação no ranking do setor. Em primeiro lu-
gar, aparece a Raízen. Na segunda colocação está
a Louis Dreyfus. A capacidade de moagem lide-
rada pela estatal nas plantas em que atua é de
24,5 milhões de toneladas de cana, além da pro-
dução de 942 mil metros cúbicos de etanol e 517
GWh de energia elétrica (geração a partir do ba-
gaço da cana).
 
Risco à soberania
A fusão da Cosan com a petroleira inglesa
Shell deixa claro os riscos a que o país está sub-
metido pela falta de visão estratégica do Esta-
do brasileiro. Parecer da Secretaria de Acompa-
nhamento Econômico do Ministério da Fazenda,
de 25 de novembro de 2010, aprovou a transa-
ção sem restrições. A operação é tratada no tex-
to como um ato de concentração entre a Cosan
S/A Indústria e Comércio e a Shell International
Petroleum Company Limited. Na prática, a medi-
da permite a transferência da produção dos deri-
vados da cana-de-açúcar para as mãos do capital
privado internacional.
O salvo-conduto para a desnacionalização
do setor chancelou a criação de joint ventures. A
Raízen é a primeira a ser efetivada após o sinal
verde dado pelo governo federal. A reportagem
da Caros Amigos entrou em contato com a nova
empresa pelo número telefônico disponibilizado
em sua página na internet, mas foi informada de
que a assessoria da petroleira inglesa é a respon-
sável pelo atendimento aos jornalistas. Nenhum
dado solicitado pela revista foi repassado pela as-
sessoria de imprensa da Shell.
Informações divulgadas pela Raízen em sua
página na internet afirmam que a empresa é res-
ponsável por 23 usinas. Esse é o mesmo núme-
ro de usinas antes dominadas pela Cosan.  Juntas
têm a capacidade para a moagem de aproximada-
mente 62 milhões de toneladas de cana-de-açú-
car por ano. Segundo o texto, a nova empresa
produzirá em torno de 2,2 bilhões de litros de eta-
nol e quatro milhões de toneladas de açúcar por
ano. A capacidade instalada para a produção de
energia elétrica extraí-
da do bagaço da cana é
de 900 megawatts. Sua
participação na logís-
tica (álcoolduto) para o
escoamento do etanol
também é um dos itens
em relevo no portfólio
da empresa. O aporte em caixa é de aproximada-
mente US$ 1,6 bilhão.
A Raízen faz questão de ressaltar que é uma
indústria nacional. “É uma empresa brasileira,
com base no Brasil, que quer crescer no Brasil e
levar o etanol para o mundo”, afirma seu presi-
dente e funcionário da Shell, Vasco Dias.
“A opção pelo nome em português reforça
tratar-se de uma organização brasileira”, infor-
ma o texto da empresa na internet. Assim como a
joint venture recém criada, a Shell, em sua página
online, também chama à atenção para o fato de
tratar-se de uma companhia nacional.
A petroleira inglesa afirma, ainda, que “ao
mesmo tempo em que é uma organização nova,
a Raízen acumula a experiência dos acionistas”.
“A nova organização formada pela Royal Dutch
Shell e a Cosan S/A será uma das cinco maiores
empresas do país em faturamento, com valor de
mercado estimado em US$ 12 bilhões e cerca de
40 mil funcionários”.
A Shell está presente em mais de 100 países.
No Brasil, o grupo detém participação em 14 em-
presas. Nos últimos três anos, a empresa se en-
volveu em sete operações, submetidas ao Sistema
Brasileiro de Defesa da Concorrência. Já a Co-
san tem participação em 25 empresas do país. No
mesmo período, se envolveu em nove operações
relativas a atos de concentração.
O reinado do hidrocarboneto está cada vez
mais próximo do fim e, por isso, a Shell busca
alternativas viáveis para evitar a derrocada dos
lucros. Controlar o setor de energia renovável é
imperioso para continuar garantindo ganhos es-
tratosféricos. “O etanol da cana é reconhecido
no mundo inteiro como uma importante fonte
de energia limpa e renovável”, destaca texto da
Raízen na internet. “Enquanto o mundo busca
alternativas ao petróleo, o Brasil já usa etanol
em larga escala há mais de 30 anos. Neste perí-
odo, adquirimos experiência na produção e uso
do etanol da cana-de-açúcar. E, hoje podemos
dizer, com orgulho, que dominamos essa tecno-
logia com elevados índices de excelência e com-
petitividade”, completa.
 
De mãos dadas
A concentração foi o mecanismo encontra-
do para ganhar escala e aumentar os lucros. Em
2008, a Cosan comprou ativos na área de distri-
buição de combustíveis e lubrificantes da Exxon-
Mobil “tornando-se o único player de ener-
gia renovável totalmente integrado no mundo”. 
Motivo de menos orgulho deve ser o fato de a
empresa ter integrado a lista suja do Ministério
do Trabalho pela prática de trabalho em condi-
ções análogas a de  escravos em suas unidades,
conforme apontou reportagem da Caros Amigos
na edição de julho de 2010.
O presidente da Associação de Engenheiros da
Petrobras (Aepet), Fernando Siqueira, vê a con-
centração da Cosan e da Shell com muita pre-
ocupação. Segundo ele, o Estado brasileiro terá
muito mais dificuldade para controlar o setor de
etanol, que agora se internacionaliza.
É certo que a produção desse combustível
sempre esteve nas mãos do setor privado, domi-
nado pelo agronegócio nacional, e que a mar-
“Não é só o setor do etanol que foi
invadido, mas toda a agricultura está
permeada pela presença dos grandes
oligopólios internacionais”, Wilson Cano,
professor da Unicamp.
Governo aposta em fortalecimento
de grupos privados
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13julho 2011 caros amigos
gem de intervenção estatal sempre foi muitíssimo
reduzida. O caso mais recente, que culminou com
a explosão do preço do álcool na bomba dos pos-
tos de combustíveis, revela o poder de fogo dos
usineiros brasileiros. Motivados pela alta no pre-
ço do açúcar no mercado internacional, não tive-
ram dúvida em desviar a cana, que seria destina-
da à produção do etanol, para a industrialização
do açúcar. 
Os ruralistas sempre deram as cartas nes-
se jogo. Mas, agora, o problema se avoluma em
escala exponencial e pode trazer consequên-
cias desastrosas para a sociedade, que além de
estar refém de atores privados, também ficará nas
mãos de agentes privados internacionais. 
O engenheiro da Petrobras considera que a
cana-de-açúcar é um dos principais substitutos
do petróleo, porque além de ser utilizada como
combustível também poderá ser processada pela
indústria petroquímica. Por isso, a fusão de uma
empresa nacional com uma multinacional em um
setor tão estratégico representa um risco enorme
para o país. “É a desnacionalização do futuro, da
energia renovável. O etanol é um dos componen-
tes da matriz energética brasileira. É um segmen-
to cada vez mais estratégico para o país.”
 
Lesa-pátria
O parecer da Secretaria de Acompanhamento
Econômico do Ministério da Fazenda, que apro-
vou o ato de concentração entre a Shell e a Co-
san, sem nenhuma ressalva, não revela o valor
da transação do contrato. O assunto é transcri-
to como confidencial, assim como a data em que
foi firmado o acordo. “Cabe salientar que no con-
trato, celebrado entre as partes, consta a cláusula
confidencial que versa sobre um acordo não con-
correncial confidencial”, afirma o texto.
Despacho da Secretaria de Direito Econômi-
co do Ministério da Justiça, de 2 de dezembro de
2010, também chancela a operação. “Pelos prin-
cípios da economia processual e da eficiência da
administração pública, nos ternos do §1 do artigo
50 da Lei 9.784/99, e da Portaria Conjunta SEAE/
MF e SDE/MJ 33/2006, concordo com o teor do
parecer da Secretaria de Acompanhamento Eco-
nômico, do Ministério da fazenda, cujos termos
passam a integrar esta decisão, como sua moti-
vação. Opino, consequentemente, pela aprovação
do ato sem restrições, devendo este processo ser
encaminhado ao Conselho Administrativo de De-
fesa Econômica (Cade).”
A Advocacia Geral da União e a Procurado-
ria Federal do Cade  também aprovaram a ope-
ração sem restrições. “Parecer da Seae (Secreta-
ria de Acompanhamento Econômico) no sentido
de que a operação deva ser aprovada sem restri-
ções. Com efeito, nos únicos mercados em que foi
necessário o prosseguimento da análise para ve-
rificação de probabilidade de poder de mercado
foi constatada efetiva rivalidade e, consequente-
mente, a ausência de preocupações concorren-
ciais decorrentes da operação”, revela. “Opina-
se pelo conhecimento da operação, bem como a
aprovação sem restrição”, ressalta o parecer de 28
de janeiro de 2011.
“A Shell é uma das empresas mais poderosas, o
cartel do petróleo atua no mundo inteiro sem le-
var em conta escrúpulos. Essas empresas têm por
hábito tomar as reservas dos países detentores.
E quando compra uma empresa nacional de pro-
dução de biomassa isso torna a situação preocu-
pante do ponto de vista da soberania nacional. A
produção de energia renovável é um segmento
cada vez mais estratégico”, enfatiza Fernando.
O etanol é uma fonte de energia renovável que
poucos países têm a chance de ter. É um dos com-
ponentes da matriz energética brasileira. A ten-
dência é essa matriz aumentar sua participação
no cenário atual, apesar de o petróleo ainda re-
presentar a principal e
mais eficiente fonte de
energia e de se apre-
sentar como a maté-
ria-prima da indús-
tria petroquímica. No
entanto, o etanol des-
ponta nesse cenário como um dos principais pro-
tagonistas de energia renovável. “Hoje 90% do
que se consome é fruto do petróleo, mas o álcool
junto com o óleo vegetal são as fontes capazes de
substituir essas funções. Por isso, tem uma impor-
tância estratégica para o país. A entrada da Shell
significa a desnacionalização dessa fonte estraté-
gica de energia”, argumenta.
O engenheiro alerta que o governo federal não
está dando a devida importância para a ques-
tão. “O governo não está entendendo a gravida-
de dos fatos. Não freia a ganância dessas empre-
sas no pré-sal e não impede o domínio de uma
energia alternativa por uma empresa estrangei-
ra. Acho isso muito grave para o país. Daqui há
10 anos o petróleo vai estar em uma curva des-
cendente de produção e a biomassa será a sal-
vação. Se não tivermos o controle, vamos abrir
mão de um segmento estratégico. É uma perda
enorme para o país uma empresa estrangeira no
controle disso.”
O Brasil é fornecedor de energia alternativa ao
petróleo. O pré-sal, segundo o engenheiro da Pe-
trobras, representa 10% das reservas mundiais.
Com o choque do petróleo que se aproxima, a
situação tende a se agravar sobremaneira. “Por
isso, há esse desespero por fontes de energia al-
ternativas.” A Shell está fazendo o papel que o
Estado brasileiro deveria fazer. O Estado deveria
ter essa visão estratégica de futuro e resguardar
o país contra esse tipo invasão.
“Se abrir a produção sem controle, o pré-sal
acaba em 13 anos. Aí o Brasil fica em uma situa-
ção desesperadora, como os países desenvolvidos
estão hoje. O governo
tem de ter essa visão.
Além do pré-sal, tem
esse trunfo importan-
tíssimo que é a pro-
dução de energia al-
ternativa e que não
pode ser desnacionalizada”, enfatiza Fernando.
“Essa é a energia do futuro, o pré-sal é tem-
porário, embora seja uma reserva do tamanho do
Iraque. O desenvolvimento permanente é a ener-
gia renovável, entre as quais está o etanol. O Bra-
sil tem de ter um plano estratégico nacional de
soberania. O incentivo à agricultura familiar tem
de ter um papel importante nesse cenário”, afirma
Fernando Siqueira em forma de conselho à presi-
dente Dilma Rousseff.
Agricultura familiar
O apoio à agricultura familiar para a produ-
ção de etanol é justamente o que reivindica o se-
cretário geral da Federação dos Trabalhadores na
Agricultura Familiar (Fetraf), Marcos Rochinski.
“Nós defendemos um modelo descentralizado de
produção envolvendo os agricultores familiares
www.carosamigos.com.br
“Essa é a energia do futuro, o pré-sal
é temporário, embora seja uma
reserva do tamanho do Iraque”,
Fernando Siqueira, presidente da Aepet.
Canaviais brasileiros também estão sendo adquiridos por grupos internacionais.
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caros amigos julho 2011
14
e pequenas empresas no beneficiamento sob o
guarda chuva da Petrobras, que é estatal e que de-
veria conduzir esse processo de desenvolvimento
estratégico.”
De acordo com ele, a Petrobras não tem neces-
sidade de recorrer ao capital estrangeiro para se
tornar o grande celeiro de energia renovável. Ele
acrescenta que a integração com os agricultores
familiares está aquém do esperado. “Existe uma
pequena escala de compra e integração, mas mui-
to menor do que a que gente imaginava quando
foi lançado o programa de biocombustíveis.”
Ele também revela as transformações que
estão ocorrendo no campo brasileiro. E desta-
ca o procedimento adotado pela Cosan, basea-
do no modelo de integração padrão fixado pela
sucroalcooleira. Não
há margem de mano-
bra para os agricul-
tores familiares. “Vi-
vemos de um modo
geral uma relação de
integração com es-
sas empresas. São elas
que definem todos parâmetros, o trabalha-
dor rural acaba entrando com a força de
trabalho.”
Marcos conta que no Estado de São Pau-
lo, além da venda da produção, os agricultores
familiares também estão sendo induzidos a ar-
rendar suas terras para o plantio da cana-de-açú-
car por essas empresas. “Cada vez que se fortale-
cem as grandes empresas multinacionais, diminui
a capacidade do Estado brasileiro de definir parâ-
metros, seja de produção, comercialização, preços,
relação de trabalho.”
A entrada da Shell no setor deixa Marcos ainda
mais apreensivo. “Nós sempre nos preocupamos
com a atuação das transnacionais. O governo pre-
cisa ter controle sobre o capital estrangeiro. Preci-
sa resgatar seu papel estratégico.” Segundo ele, a
participação da agricultura familiar no total geral
da produção brasileira gira entre 20% e 25%.
Para o dirigente camponês, a fusão entre as
duas gigantes ocorreu para disputar melhor o mer-
cado. “A Shell vislumbrou o potencial dos agro-
combustíveis para o futuro. Sabe que os derivados
de petróleo estão com os dias contados. E, para
continuar sendo uma das principais empresas do
mundo, precisa ter uma atuação na área de ener-
gia renovável. O álcool aparece como essa grande
fonte de energia.”
Ele considera que o governo tem consciência
da importância de tomar para si o controle des-
sa fonte alternativa energia, no entanto, é depen-
dente da entrada de
capital internacional
e, por isso, acaba ce-
dendo. “O Estado até
tem essa visão, mas,
em função da neces-
sidade de entrada de
capital estrangeiro
para se tornar uma grande potência, acaba abrin-
do demais para essas empresas transnacionais.
“A gente discorda. Tem de explorar a cadeia
dos biocombustíveis prioritariamente por empre-
sas nacionais. Isso pode ser uma alternativa de
renda para os agricultores familiares, estimulando
pequenas e médias empresas. Descentraliza renda
e gera emprego”, afirma o agricultor.
Esse modelo baseado na centralização das de-
finições dos rumos pelas transnacionais traz uma
série de problemas para o país. Uma delas e tal-
vez a mais visível é a perda da soberania nacio-
nal. O Estado perde a capacidade de intervir em
um setor estratégico para o conjunto da sociedade,
que passa a ser desempenhado pelo oligopólio pri-
vado. “A presença dessas megaempresas sempre
trazem problemas e insegurança em relação à so-
berania do país. A gente fica à mercê. Com a en-
trada da Shell, a tendência é piorar a situação.”
Para o coordenador da Federação Única dos
Petroleiros, a FUP, João Antonio de Moraes, os
interesses nacionais não podem estar submetidos
ao lucro das transnacionais. “Nós já não conside-
rávamos o cenário anterior o ideal (em que o con-
trole era privado, porém nacional). Há algum tem-
po defendemos que o governo tome uma posição
com muito mais energia. Somos críticos dessa si-
tuação. É preciso que o Estado tenha o controle,
o que efetivamente nunca ocorreu no setor do
álcool. Sempre ficamos à mercê dos interesses dos
usineiros. Recentemente, vimos o que aconteceu
com o aumento do preço do álcool, porque o açú-
car estava dando mais dinheiro. A vinda da Shell
agrava essa situação, além de ficarmos submeti-
dos aos interesses do lucro, como já estávamos,
passamos a ficar submetidos, também, aos inte-
resses de uma empresa cuja sede não é o Bra-
sil. Vamos supor que tenhamos uma situação de
emergência no mundo. A quem a Shell terá in-
teresse de abastecer? O Brasil ou sua matriz?”,
questiona.
O petroleiro considera que a Petrobras deve
ter uma participação mais efetiva na produção do
etanol. Ele destaca ainda características que de-
põem contra a companhia inglesa que agora fin-
ca bandeira no setor de etanol “É muito complica-
do ter esse setor estratégico sob controle de uma
empresa de capital internacional. É preciso ações
efetivas para mudar essa realidade. A Shell ainda
tem um agravante a mais. Oferece péssimas con-
dições de trabalho, além de não respeitar os sin-
dicatos.”
A petroleira inglesa é a segunda produtora de
petróleo no Brasil, sua produção gira em torno de
100 mil barris em plataformas totalmente tercei-
rizadas. “Fora toda agressão à soberania nacio-
nal, à segurança energética, ainda tem a agressão
às condições de trabalho e aos direitos sindicais”,
critica o dirigente da FUP.
“Nós, petroleiros, nos recusamos a chamar a lei
de petróleo de marco regulatório, porque o Estado
tem de ser, na verdade, o indutor e o controlador
do desenvolvimento dessa área, tanto do etanol
como do petróleo. O Estado tem de parar de olhar
como mero regulador dessa questão. Tem de dei-
xar de tratar como se fosse uma commodity. Por-
que não é uma commodity, é um bem estratégi-
co. Ninguém pode viver sem combustível, não dá
para tratar apenas como uma mercadoria, que se
compra no mercado. Não dá para se sujeitar aos
interesses de outras nações. O Estado deve atuar
para que a Petrobras tenha papel mais pró-ativo,
que invista pesadamente, para evitar que fique-
mos reféns de transnacionais. O Estado brasilei-
ro tem de agir para não ficar em uma posição de
mero agente regulador”, adverte.
Lúcia Rodrigues é jornalista.
luciarodrigues@carosamigos.com.br
“Cada vez que se fortalecem as
grandes empresas multinacionais,
diminui a capacidade do Estado
brasileiro”, Marcos Rochinski,
presidente da Fetraf.
Mecanização vai reduzir emprego de trabalhadores rurais.
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15julho 2011 caros amigos
“A África não tem História”. Essa sentença
proferida por um filósofo, há duzentos anos,
ainda tem adeptos. Equivale a outra em que
muitos brasileiros acreditam: “Não é possível
fazer a história dos negros brasileiros porque
Rui Barbosa queimou os documentos da es-
cravidão”. A primeira é um clichê do século
19, hoje superado. A segunda, uma pegadinha
em que até os movimentos negros caíram. O
que Ruy, ministro da Fazenda, mandou quei-
mar foram os documentos fazendários de en-
tradas de escravos, e nem se fez completa-
mente – a ineficácia do serviço público, nesse
caso, foi benéfica. Sem falar que a História
não depende do documento escrito. Ela colhe
dados na arqueologia, na literatura, no fol-
clore, na linguística, na arquitetura etc.
O direito à História faz parte da agenda
democrática. Os povos e as pessoas se cons-
troem narrando suas vidas. É através do re-
conto interminável do que lhe aconteceu no
tempo que povos e pessoas ganham existên-
cia. Se não narram não existem. Se poderia
dizer, como outro filósofo bicentenário, que
o mundo é feito de histórias e outras coisas –
como as epifanias e as partículas de matéria
que desaparecem antes de aparecer.
Entender, pois, a narrativa como exclusi-
va de alguns é uma prática ideológica de do-
minação. Entre os “povos primitivos”, o poder
começa com a interdição de o outro discur-
sar sobre si próprio. E o supremacismo – pa-
lavra hoje um pouco esquecida – dos sécu-
los 19 e 20, foi a deletação pelos europeus
das outras narrações. Americanos e asiáticos,
em menor medida, teriam alguma História, a
África nenhuma.
Tive essas ideias fitando um livro e minha
coleção de cordéis. O livro é Domingos Sodré,
um sacerdote africano (Companhia das Letras,
2008). João José Reis dá existência a um adi-
vinho-curandeiro na Bahia do século 19. Ga-
nha direito à História a rede social de gente
comum que o cercava. Não fosse a narração
do historiador, baseada em testamentos, in-
ventários, boletins de ocorrência de polícia,
jornais etc., não existiriam. O direito à Histó-
ria é o direito à existência.
A narração tem infinitas modalidades. A
historiografia é, talvez, a mais prestigiosa. Se
funda na crença de que há uma verdade histó-
rica, que cabe separar da ficção. No livro de Reis
se vê que isso é impossível, o que não diminui
o seu valor. Pelo contrário, a indefinição lhe
agrega valor (como se diz hoje). Aliás, a histo-
riografia atual é um gênero literário, o que pôs
em moda as biografias. Nelas, a argumentação
vai embutida na narração.
Presenteio o leitor com duas estrofes do cor-
del A vida de Pedro Cem, de J.M. de Athay-
de (Juazeiro, 1974). Em cada país do mundo/
possuía cem sobrados/em cada banco ele tinha/
cem contos depositados/ocupava mensalmente/
dezessete mil empregados. Quando Pedro Cem
morre, escreve o narrador: A Justiça exami-
nando/os bolsos de Pedro Cem/encontrou uma
mochila/e dentro dela um vintem/e um letreiro
que dizia/ “ontem teve, hoje não tem”.
Sérgio Vaz é poeta e fundador da Cooperifa.
poetavaz@ig.com.br.Joel Rufino é historiador e escritor.
Ilustração:koblitz
Pedro Cem
amigos de papel
Joel Rufino dos
Santos
...
Sérgio Vaz
FELICIDADE
As coisas não nasceram para dar certo, somos nós
é que fazemos as coisas acontecerem, ou não.
Acredito que a gente tem que ter um foco a
seguir, traçar metas, viver por elas. Ou morrer
tentando. Jamais queimar etapas e saber reconhecer
quando é a sua hora.
O Acaso é uma grande armadilha e destrói os
sonhos fracos de pessoas que se acham fortes.
Não passar do tempo e nem chegar antes. Prepa-
rar o corpo, o espírito, estudar o tempo, o espaço. Não
ser escravo de nenhum dos dois.
Observar as coisas que interferem no seu dia e na
sua noite. E saber entender que há aqueles sem sol e
sem estrelas e que a vida não deve parar só por isso.
Ser gentil com as pessoas e consigo mesmo. E
gentileza não tem nada a ver com fraqueza, pois,
assim como um bom espadachim, é preciso ter
elegância para ferir seus adversários.
O que adianta uma boca grande e um coração
pequeno? Nunca diga que faz, se não o faz.
Ame o teu ofício como uma religião, respeite suas
convicções e as pratique de verdade, mesmo quan-
do não tiver ninguém olhando. Milagres acontecem
quando a gente vai à luta.
Pratique esportes como arremesso de olhar, bei-
jo na boca, poema no ouvido dos outros, andar de
mãos dadas com a pessoa amada, respirar o espaço
alheio, abraçar sonhos impossíveis e elogios à distân-
cia. E, em hipótese alguma, tente chegar em primeiro.
Chegar junto é melhor, até porque, o universo não
distribuiu medalhas nem troféus.
Respeite as crianças, todas, inclusive aquela
esquecida na sua memória. Sem crianças não há ra-
zão nenhuma para se acreditar num mundo melhor.
As crianças não são o futuro, elas são o presente,
e se ainda não aprendemos com isso, somos nós, os
adultos, é que tiramos zero na escola.
Ser feliz não quer dizer que não devemos estar
revoltados com as coisas injustas que estão ao nosso
redor, muito pelo contrário, ter uma causa verdadei-
ra é uma alegria que poucos podem ter.
Por isso, sorrir enquanto luta, é uma forma
de confundir os inimigos. Principalmente os que
habitam nossos corações. E jamais se sujeite a ser
carcereiro do sorriso alheio. Não deixe que outras
pessoas digam o que você deve ter, ou usar. Ter
coisas é tão importante como não tê-las, mas é você
quem deve decidir. Ter cartão de crédito é bom,
porém, ter crédito nele tem um preço.
Esteja sempre disposto ao aprendizado, e não
se esqueça que, quem já sabe tudo é porque não
aprendeu nada. As ruas são excelentes professoras
de filosofia, pratique andar sobre elas.
Tenha amigos. Se não tem, seja. Eles virão.
E não acreditem em poetas. São pessoas tristes que
vendem alegria.
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caros amigos julho 2011
16
O que distingue a modernidade das épocas ante-
riores é a nossa capacidade de criar e destruir, des-
truir e criar, sempre em busca de algo novo e melhor.
Já não há durabilidade. Objetos que, numa mes-
ma família, acompanhavam gerações, passavam de
avós a filhos, netos e bisnetos, já não existem. A era
dos museus de antiguidades terminou. Já não have-
ria suficiente espaço para abrigar tantos modelos de
carro que se sucedem em meses ou gerações de com-
putadores que surgem de um semestre ao outro.
Agora o mundo mudou, e eu com ele. Meu ide-
alismo também se tornou obsoleto. Já não bafeja a
minha vaidade, nem me traz vantagens. Findou o
mundo em que havia heróis, protótipos, modelos a
serem seguidos – Gandhi, Mandela, Che. Hoje os pa-
radigmas são pessoas de sucesso no mercado, cele-
bridades, essa gente bonita e rica que ostenta luxo,
esbanja saúde e ocupa sorridente as páginas das re-
vistas de variedades.
Vivemos agora no novo mundo em que tudo
é continuamente deletável e descartável. Do meu
mês a mês e me permite desfrutar de prazeres jamais
sonhados anos atrás. Hoje sou amigo, e até par-
ceiro, de muitos que ontem eram meus inimigos e
alvos de minhas contundentes críticas.
Se perco a minha posição social, se retorno
ao mundo obsoleto, como haverei de manter meu
confortável padrão de vida, o sítio, a casa de praia,
as férias no exterior, a troca anual de carro? Como
haverei de propiciar a filhos e netos o conforto que
jamais tive na infância e na adolescência?
Não devo mais olhar para o passado, onde
jazem esquecidos meus ex-heróis, nem para o fu-
turo, como se ali houvesse um ideal histórico. Bas-
ta-me olhar para dentro de mim mesmo e saber ex-
plorar ao máximo o que tenho de melhor: a astúcia
de minha inteligência, a força de minha vontade e
o poder de traficar influências.
Frei Betto é escritor, autor do romance policial
“Hotel Brasil - o mistério das cabeças degoladas”
(Rocco).
computador ao carro, do estilo de vida à arte, tudo
que é in hoje será out amanhã. Resta-me manter
atento nesse esforço permanente de atualização. E
não me cobrem coerência! Se minha própria aparên-
cia física sofre frequentes modificações por força de
malhações e tratamentos estéticos, por que minha
identidade deve permanecer imutável?
Sim, ontem eu me alinhava ideologicamente à
esquerda, assumia a causa dos oprimidos, engajava-
me em manifestações de protesto, expressava a mi-
nha indignação frente a esse mundo injusto.
Ora, ninguém é de ferro! Se ouso mudar minha
aparência para manter-me eternamente jovem e se-
dutor, por que não haveria de mudar minha postura
ideológica, meus princípios e ideais de vida, de modo
a não perder o bonde da contemporaneidade?
Comigo, felizmente, a vida foi generosa. Graças
àqueles princípios obsoletos, alcei funções de poder,
destaquei-me do vulgo, adquiri prestígio e visibili-
dade. Troquei de moradia, guarda-roupa e mulher.
Passei a dispor de uma conta bancária que engorda
Frei Betto
A RODA DA FORTUNA
João Pedro Stedile é membro da coordenação
nacional do MST e da Via Campesina Brasil
O Brasil virou o paraíso das empresas transnacio-
nais fabricantes de venenos. Somos o maior mer-
cado mundial de venenos agrícolas. Dos 48 bilhões
de dólares vendidos em venenos, 7 bilhões são aqui.
São despejados todos os anos quase 1 bilhão de li-
tros de venenos em apenas 50 milhões de hectares,
consumindo 20% de todos os venenos do mundo.
Isso representa a grosso modo, uma média de 20 li-
tros de venenos por ha de área cultivada, e uma mé-
dia equivalente a 5 litros por pessoa ano! Treze em-
presas se especializaram em ter lucro com veneno!
Entre elas apenas quatro brasileiras, mas as estran-
geiras controlam mais de 80% de todo esse merca-
do (entre elas, anote: Syngenta. Bayer, Basf, Dupont,
Monsanto, Shell química, etc).
Essa sanha insaciável se deveu ao advento da fase
globalizada do capitalismo que exigia liberdade total
para sua ganância. E a internacionalização do domí-
nio das empresas sobre a agricultura.
Acoplado a isso, realizou-se no Brasil uma trípli-
ce aliança entre o capital financeiro, que financia,
as empresas transnacionais que controlam tudo, e
os grandes proprietários de terra subservientes, que
dividem o bolo. Essa aliança se chama agronegó-
cio. Os fazendeiros brasileiros, “modernos”, trocaram
a mão de obra por veneno.
Aos brasileiros sobra: a agressão ao meio
ambiente, pois esses venenos são em sua maioria
de origem química, não biodegradáveis e
contaminam o ar, as plantas, o lençol freático.
E sobra as enfermidades, pois permanecem nos
alimentos que você leva à mesa todos os dias.
Essa pequena cota diária algum dia vai aparecer na
forma de algum tipo de intoxicação, até câncer.
Segundo especialistas, a cada ano surgem 40 mil
novos casos de câncer no Brasil, em sua maioria
originários de alimentos contaminados, entre eles
o tabaco e o álcool, que nesse caso possuem duplo
poder de envenenamento.
O estado brasileiro é conivente com essa situação,
por sua natureza e dado o grande poder econômico
das empresas, muitas delas sempre úteis no finan-
ciamento de campanhas eleitorais.
Temos, no entanto, uma equipe de verdadeiros
heróis nacionais, de um punhado de técnicos na
ANVISA (agência de vigilância sanitária) do Minis-
tério da Saúde, se desdobrando. No ano passado,
tiveram que apreender e destruir mais de 500 mil
litros de venenos adulterados. Ou seja, além de ven-
der veneno, as poderosas empresas transnacionais
adulteravam a fórmula, para ficar mais “potente” e
enganar os agricultores.
Em fevereiro de 2008, a ANVISA colocou em
reavaliação toxicológica 14 ingredientes ativos,
muitos deles proibidos em outros países por seus
efeitos inaceitáveis à saúde humana. Passados
mais de três anos, foram concluídas as reavaliações
de apenas seis deles.
Destes, a Cihexatina e o Triclorfom já foram
banidos do mercado. Graças a Deus e a ANVISA!
O Endossulfam está com o banimento programado
até junho de 2014; – quando já deveria ter saído.
O Acefato está em fase de fechamento da reavalia-
ção com as informações disponíveis até o momento;
o Metamidofós está proposto a suspensão de junho
de 2011, decisão sobre a qual existe um mandado
de segurança em fase de julgamento e pedidos de
diversos parlamentares (porque será?) para que
tenha o prazo de fabricação ampliado em mais
seis meses. E quem seria o responsável por suas
consequências, depois?
Para difundir todas essas informações na socie-
dade e lutar contra o uso de agrotóxicos, que cus-
tam muitas vidas, mais de 50 entidades lançaram
a campanha nacional contra o uso dos agrotóxi-
cos e pela vida. E o cineasta Silvio Tendler, com
sua equipe, preparou um belo documentário de de-
núncia. Participe também você dessa campanha, sen-
sibilize seu sindicato, entidade, escola, comunidade.
Entre em contacto com a campanha pelo correio ele-
trônico contraosagrotoxicos@gmail.com.
O veneno-nosso de cada dia!
João Pedro Stedile
pag_16_JOAO_PEDRO_FREI_BETTO_ED_172.indd 16 29.06.11 18:56:20
17julho 2011 caros amigos
“Não tenho a intenção de aparecer”.
EstafoiarespostadeAntonioCandidoquan-
do informado sobre este perfil. Da forma mais
gentil que uma recusa poderia se dar, ele ainda
exclamouantesdedesligarotelefone:“Tedese-
jo um bom trabalho, mas não posso te ajudar”.
A declaração levantou uma grande dúvida.
Como deixar de escrever sobre o maior críti-
co literário brasileiro de todos os tempos, que
se destaca não só por suas obras, mas por ter
inovado a maneira de se fazer e pensar a crí-
tica literária no Brasil?
Os questionamentos perduraram por um
tempo, mas por fim, decidimos escrever o per-
fil, temerosos de desagradar um dos grandes
nomes da esquerda brasileira, mas também
com a certeza de que este texto não tem como
objetivo expor Antonio Candido, mas sim tra-
tar da riqueza de sua obra e militância.
Antonio Candido de Mello e Souza nasceu
no Rio de Janeiro em 24 de julho de 1918.
Seu pai, médico, lhe cobrou o ingresso em
um curso universitário mais tradicional, e por
este motivo, o futuro crítico literário entra, em
1939, no curso de Ciências Sociais da Facul-
dade de Filosofia, Ciências e Letras da USP e
também no Curso de Direito da mesma univer-
sidade. O último abandona antes do término.
Em 1941, Antonio Candido e um grupo de
amigos da Faculdade de Filosofia, Ciências e
LetrasfundamarevistaClima,publicaçãomen-
salqueduraaté1944,ereúneartigossobrelite-
ratura, artes plásticas, cinema, teatro, etc. “Era
um grupo de amigos anti Estado Novo, anti
fascismo criado na Europa e que resolveram
fazer uma revista de cultura”, afirma o filóso-
fo Paulo Arantes, amigo de Antonio Candido.
A revista inova por trazer pela primeira vez
conteúdos culturais produzidos por universi-
tários. “O escritor no Brasil, em geral, era uma
pessoa que tinha uma formação individual,
que comprava livros, lia, fichava. O pessoal da
revista Clima foi a primeira geração brasilei-
ra de críticos com formação universitária”, co-
menta o crítico literário Roberto Schwarz, alu-
no de Antonio Candido entre 1958 e 1960.
Ainda no período em que era aluno da USP,
Antonio Candido inicia sua militância políti-
ca. Ele participa de um grupo clandestino da
Faculdade de Direito intitulado Frente de Re-
sistência, que reunia militantes de diversas
correntes com orientação anti Estado Novo e
contra a ditadura de Getúlio Vargas.
O grupo dura pouco tempo, e parte dele, que
incluía Antonio Candido, cria, em 1945, o núcleo
paulista da Esquerda Democrática, que futura-
mente viria a se chamar Partido Socialista Brasi-
leiro. Antonio Candido permanece pouco tempo
na Esquerda Democrática, se afastando da mili-
tância de caráter mais partidário até a fundação
do Partido dos Trabalhadores (PT), em 1980.
Em 1943, o então já formado crítico literá-
rio publica pela primeira vez textos de sua auto-
ria, no jornal Folha da Manhã, e, posteriormen-
te, no Diário de São Paulo. Nos periódicos, ele
produziu críticas de rodapé sobre diversos auto-
res, como Clarice Lispector e João Cabral de Melo
Neto. “O rodapé literário era uma coluna que fi-
cava no pé da página, todos os jornais tinham
críticas de rodapé sobre música, cinema etc. Era
uma tradição brasileira fortíssima, e passaram
por ela autores como Mário de Andrade e Sér-
gio Buarque de Holanda”, explica Vinicius Dan-
tas, que escreveu os livros Textos de Intervenção
e Bibliografia de Antonio Candido.
O primeiro livro de Antonio Candido, Introdu-
ção ao Método Crítico de Sílvio Romero, é publi-
cado em 1945, e traz sua tese de livre-docência.
Candido ocupava o cargo de professor assistente
na cadeira de sociologia II da Faculdade de Filo-
sofia, Ciências e Letras desde 1942, e, em 1944,
volta-se definitivamente às letras ao concorrer à
cadeira de Literatura Brasileira.
Ele não consegue a vaga, mas recebe o título
de livre-docente, que trazia embutido o grau de
doutor em letras.
Em 1959, o crítico literário publica o que é
considerado seu mais importante livro, “Forma-
ção da Literatura Brasileira: Momentos Decisi-
vos”, que acompanha uma tendência que se es-
tendia, no Brasil, desde os anos 1930.
Não por acaso, entre a década de 1930 e 1950,
são lançados livros que apresentam a palavra
formação no título, como Formação Econômica
do Brasil, de Celso Furtado e Formação do Bra-
sil Contemporâneo, de Caio Prado Júnior. Esses e
outros, como Casa Grande e Senzala, de Gilberto
Freyre e Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de
Holanda, utilizam diversos pontos de vista para
analisar de forma inédita o Brasil desde a colô-
nia. A obra de Antonio Candido também cumpre
esse papel, mas sob o prisma da literatura.
“Formação da literatura brasileira acom-
panha um regime completamente rarefeito de
vida cultural na colônia, aponta como isso vai
se adensando e se autorreferindo” comenta
Roberto Schwarz.
Parceiros do Rio Bonito, outra importante
obra de Antonio Candido, foi lançada em 1964, e
retrata a realidade dos caipiras da cidade de Bo-
fete, interior de São Paulo. A ideia de estudar co-
munidades tradicionais brasileiras estava sendo
explorada pela primeira vez, como conta Pau-
lo Arantes: “Essa redescoberta do Brasil popu-
lar, que havia sido preservado longe do mundo
das mercadorias, era um achado dos modernistas
brasileiros, e a Faculdade de Filosofia herda isso”.
Uma das principais características de Antonio
Candido como escritor e professor (função que
exerceu até 1978) é a clareza. Grande parte de
seus livros são muito fáceis de ler, e seus ex-alu-
nos o definem como um professor extremamen-
te claro e organizado. Roberto Schwarz cita o
caráter político dessas características: “Para ele,
transmitir coisas complexas de maneira que o
público possa compreender é uma ideia políti-
ca. O professor capaz de apresentar os problemas
contemporâneos de maneira clara faz um esfor-
ço de democratização da cultura”.
Em meio à ditadura militar, Antonio Candido
escreve artigos críticos ao regime. Exemplo é o
texto A verdade da repressão, divulgado no jor-
nal Opinião e, posteriormente, republicado no
livro Teresina, de 1980. Nele, Antonio Candido
cita passagens de autores como Balzac, Dostoie-
vski e Kafka que tratam da psicologia represso-
ra da polícia, traçando um paralelo claro com o
momento pelo qual passava o país e escancaran-
do a perversão da repressão policial.
A maneira que Antonio Candido traça a críti-
ca à ditadura está diretamente relacionada com
o modo inovador que ele faz crítica literária, uti-
lizando obras já publicadas como subsídio para
uma análise da sociedade. Paulo Arantes con-
ta como Candido estendeu esse conceito à lite-
ratura brasileira: “Ele faz crítica literária de uma
maneira onde através dela faz-se uma espécie de
sondagem da literatura brasileira para reapre-
sentar o funcionamento da sociedade brasileira
de um ponto de vista crítico”.
Com o fim da ditadura, Antonio Candido par-
ticipa da fundação do PT, do qual é filiado até
hoje, tendo nos últimos anos lançado manifes-
tos em apoio a Lula e Dilma.
perfil
Bárbara Mengardo
...
A crítica através
da crítica literária
foto:FabioCarvalho
Bárbara Mengardo é jornalista
ANTONIO
CANDIDO
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pag_17_perfil_Barbara_ED_172.indd 17 29.06.11 18:56:54
caros amigos julho 2011
18
Por Tatiana Merlino
A cada dois anos, quando acontecem eleições no
Brasil inteiro, a grande mídia costuma qualificar o
evento como “grande festa da democracia”. Afinal,
são mais de 100 milhões de pessoas aptas a esco-
lher seus novos representantes para os mais varia-
dos cargos políticos. Bastam alguns apertões de bo-
tão. Para um país que viveu por duas décadas uma
ditadura civil-militar amplamente denunciada por
violações dos direitos humanos e políticos, isso não
é pouco. Mas será suficiente?
Para muitos, não. Especialmente para pessoas
identificadas com os ideais de esquerda, o Brasil
precisaria avançar de uma grande democracia re-
presentativa para uma efetivamente participativa.
Além disso, mesmo o sistema político atual oferece-
ria enormes margens de manobra aos grandes gru-
pos econômicos, cujos interesses quase sempre se
sobressaem ao da maioria da população.
Daí a necessidade de uma reforma política ra-
dical. Tal discussão vem desde a promulgação da
Constituição de 1988. Muitos mecanismos de apro-
fundamento da democracia previstos por ela sequer
foram regulamentados e transformados em leis.
O tema voltou novamente ao debate após as de-
núncias de enriquecimento do ex-ministro da Casa
Civil, Antonio Palocci, claramente favorecido por
um sistema caracterizado pela promiscuidade entre
o público e o privado. No Congresso Nacional, a re-
forma política passou a ser discutida em fevereiro,
por meio de duas comissões especiais criadas recen-
temente: uma no Senado, outra na Câmara dos De-
putados. Em abril, a Comissão Especial da Reforma
Política do Senado finalizou uma proposta com 13
itens e as encaminhou à Comissão de Constituição
e Justiça (CCJ) da casa. Até o fechamento desta edi-
ção, a CCJ analisava os pontos um a um. Em segui-
da, as propostas devem ser votadas em plenário. Na
Câmara, as discussões ainda estão em andamento.
Sistema defasado
Para alguns, especialmente os identificados com
ideais de direita, apenas uma reforma eleitoral é ne-
cessária. Para outros, a reforma política, embora es-
sencial, não dá conta de todos os vícios do sistema
político do país.
ilustração:ricardopalamartchuk
Reforma Política
O Congresso Nacional
quer mesmo aprofundar
a democracia?
O caso do enriquecimento de Antonio Palocci reacendeu
o debate sobre a necessidade de uma reforma política ampla,
que defina nova regulamentação das eleições, dos partidos,
da representação e do financiamento das campanhas.
pag_18_20_TATIANA_MERLINO_ED_172.indd 18 29.06.11 18:57:19
172 caros amigos
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172 caros amigos

  • 1. ano XV nº172 / 2011 R$ 9,90 PALESTINA Terceira Intifada contra a repressão RIO DE JANEIRO Índios querem Universidade Grupos estrangeiros expropriam o etanol brasileiro BÁRBARA MENGARDO CECÍLIA LUEDEMANN CLAUDIUS DÉBORA PRADO EDMUNDO VERA MANZO EDUARDO SÁ EMIR SADER FREI BETTO GABRIELA MONCAU GERSHON KNISPEL GILBERTO FELISBERTO VASCONCELLOS GUTO LACAZ JESUS CARLOS JOÃO PEDRO STEDILE JOEL RUFINO DOS SANTOS JOSÉ ARBEX JR. LÚCIA RODRIGUES MARCOS BAGNO MC LEONARDO PEDRO ALEXANDRE SANCHES RENATO POMPEU ROBERTO OLIVEIRA RODRIGO VIANNA SÉRGIO VAZ SORAYA MISLEH TATIANA MERLINO ENTREVISTA Esteban Volkov NETO DE TROTSKY DEFENDE O AUTÊNTICO SOCIALISMO FARRA DAS TELES COM BENS PÚBLICOS UNIÃO PODE PERDER ATÉ R$ 30 BILHÕES REFORMA POLÍTICA SERÁ MESMO PRA VALER? A PRIMEIRA À ESQUERDA ANTONIO CANDIDO Perfil do crítico e militante KASSAB MILITARIZA A PREFEITURA DE SÃO PAULO pag_01_capa_172.indd 1 29.06.11 18:36:39
  • 2. CAROS AMIGOS ANO XV 172 JULHO 2011 EDITORA CASA AMARELA REVISTAS • LIVROS • SERVIÇOS EDITORIAIS FUNDADOR: SÉRGIO DE SOUZA (1934-2008) EDITOR E DIRETOR: WAGNER NABUCO DE ARAÚJO Capa: Montagem de Ricardo Palamartchuk em foto de Jesus Carlos. Reportagem da Caros Amigos conta que a expansão do etanol da cana – um combustível incluído na pau- ta mundial como alternativa imediata ao petróleo – no Brasil está sob a ameaça dos grandes grupos internacio- nais – os mesmos que durante décadas controlaram outros combustíveis – e do capitalismo ascendente nos países asi- áticos. A voracidade dos estrangeiros tende a retirar do Es- tado brasileiro e do capital nacional parcela de poder e de decisão sobre o futuro do combustível no país e no mercado global. Outra reportagem desvenda o mistério dos chamados bens reversíveis da União, que foram entregues – por tem- po determinado – para as empresas privadas que assumi- ram os serviços públicos de telefonia – privatizados no governo FHC. Como a Anatel não se empenhou em fisca- lizar o uso e paradeiro desses bens, a União (entenda-se o patrimônio público) corre sério risco de ter um prejuí- zo de R$30 bilhões. Em cima do debate atual da reforma política, Caros Amigos ouviu vários estudiosos e lideranças partidárias para identificar quais pontos significam avanços no sis- tema representativo e na democracia real. Além de toda a polêmica que cerca a reforma, paira também a dúvida so- bre o que realmente pode e vai ser gerado pelo Congresso Nacional. Uma coisa parece certa: sem pressão da socie- dade não haverá grandes mudanças. Indiferente às demandas por liberdade, democracia, transparência e respeito aos direitos humanos, o prefei- to Gilberto Kassab reforçou no município de São Paulo a militarização da gestão pública e da repressão aos mo- vimentos sociais. Reportagem da revista mostra como ele aparelhou a administração com oficiais da Polícia Militar e como institucionalizou o “bico” de policiais militares – em associação com a Guarda Civil Metropolitana – nas ati- vidades repressivas da Prefeitura. A presente edição contempla, ainda, entrevistas com o professor José Luiz Fiorin, da USP, sobre o polêmico con- flito das normas culta e popular; com o químico Esteban Volkov, neto do líder bolchevista Leon Trotsky; o per- fil do crítico literário Antonio Candido; outras reporta- gens e os artigos e ensaios da equipe de colaboradores da Caros Amigos. Enfim, muita coisa boa para ler, curtir, refletir e agir. Vá em frente! ETANOL EXPROPRIADO EDITOR: Hamilton Octavio de Souza EDITORA ADJUNTA: Tatiana Merlino EDITOR ESPECIAL: José Arbex Jr ARTE: Ricardo Palamartchuk e Gilberto de Breyne EDITOR DE FOTOGRAFIA: Walter Firmo REPÓRTERES: Bárbara Mengardo, Débora Prado, Gabriela Moncau, Lúcia Rodrigues e Otávio Nagoya SÍTIO: Débora Prado (Editora), Gabriela Moncau e Paula Salati SECRETÁRIA DA REDAÇÃO: Simone Alves REVISORA: Cecília Luedemann DIRETOR DE MARKETING: André Herrmann COORDENADORA DE MARKETING: Júlia Phintener COMÉRCIO VIRTUAL: Pedro Nabuco de Araújo e Douglas Jerônimo RELAÇÕES INSTITUCIONAIS: Cecília Figueira de Mello ADMINISTRATIVO E FINANCEIRO: Clarice Alvon e Priscila Nunes CONTROLE E PROCESSOS: Wanderley Alves LIVROS CASA AMARELA: Clarice Alvon PUBLICAÇÕES DE REFERÊNCIA: Renato Pompeu (Editor) ASSESSORIA DE IMPRENSA: Kyra Piscitelli APOIO: Edcarlos Rodrigues, Joze de Cássia e Neidivaldo dos Anjos ATENDIMENTO AO LEITOR: Douglas Jerônimo e Zélia Coelho ASSESSORIA JURÍDICA: Marco Túlio Bottino, Aton Fon Filho, Juvelino Strozake, Luis F. X. Soares de Mello, Eduardo Gutierrez e Susana Paim Figueiredo; Pillon e Pillon Advogados REPRESENTANTE DE PUBLICIDADE: BRASÍLIA: Joaquim Barroncas (61) 9115-3659. JORNALISTA RESPONSÁVEL: HAMILTON OCTAVIO DE SOUZA (MTB 11.242) DIRETOR GERAL: WAGNER NABUCO DE ARAÚJO CAROS AMIGOS, ano XV, nº 172, é uma publicação mensal da Editora Casa Amarela Ltda. Registro nº 7372, no 8º Cartório de Registro de Títulos e Documentos da Comarca de São Paulo. Distribuída com exclusividade no Brasil pela DINAP S/A - Distribuidora Nacional de Publicações, São Paulo. IMPRESSÃO: Bangraf REDAÇÃO E ADMINISTRAÇÃO: rua Paris, 856, CEP 01257-040, São Paulo, SP ALTERCOM Associação Brasileira de Empresas e Empreendedores da Comunicação www.carosamigos.com.br Novo telefone: (11) 3123-6600 REPORTAGENS Grupos estrangeiros – de vários países – se apropriam do etanol brasileiro. Por Lúcia Rodrigues A reforma política do Congresso Nacional vai mesmo aprofundar a democracia? Por Tatiana Merlino Empresas privadas de telefonia manobram com os bens reversíveis da União. Por Débora Prado O prefeito Gilberto Kassab reforçou e ampliou a militarização em São Paulo. Por Gabriela Moncau Índios querem transformar antigo museu em Universidade Indígena. Por Eduardo Sá Tribunal Popular da Terra vai debater e julgar crimes contra populações pobres. Por Roberto Oliveira Enviada Especial relata começo da terceira Intifada palestina. Por Soraya Misleh ENTREVISTAS José Luiz Fiorin: “O aluno não deve ter vergonha da língua que ele traz de casa”. Por Cecília Luedemann Esteban Volkov: “Para o autêntico socialismo, a democracia é como o oxigênio”. Por Tatiana Merlino ARTIGOS E COLUNAS Mc Leonardo defende o funk e critica o preconceito do crítico Sérgio Cabral. José Arbex Jr. alerta que a crise econômica cresce e se avizinha do Brasil. Sérgio Vaz dá as dicas sobre a magia da felicidade e o perfil dos poetas. João Pedro Stedile conclama apoio para a campanha contra os venenos agrícolas. Frei Betto fala sobre a roda da fortuna para traficar influências. Edmundo Vera Manzo analisa a insegurança como instrumento político da direita. Tatiana Merlino: processo contra o coronel Ustra terá depoimento de testemunhas. Gilberto Felisberto Vasconcellos: “Estou de saco cheio do capitalismo”. Gershon Knispel analisa a força da memória coletiva na vida das nações. Emir Sader comenta que a Europa vota à direita e a América Latina à esquerda. SEÇÕES Caros Leitores: cartas e comentários pelo Twitter e no Facebook. Falar Brasileiro – Por Marcos Bagno: crítica à tradição gramatical normativa. Paçoca – Por Pedro Alexandre Sanches: Itamar Assumpção revive em novo show. Amigos de Papel – Por Joel Rufino dos Santos: a História na agenda democrática. Perfil: Antonio Candido – Por Bárbara Mengardo: o crítico literário e o militante. Ideias de Botequim – Por Renato Pompeu: Inéditos de Sérgio Buarque de Holanda. Tacape – Por Rodrigo Vianna: é preciso ampliar a transparência seletiva da Folha. CHARGES Guto Lacaz Claudius 10 18 26 29 36 38 40 22 32 06 08 15 16 16 21 24 35 42 44 05 06 07 15 17 43 44 04 45 sumário pag_03_sumario_ED_172.indd 3 30.06.11 13:58:49
  • 4. 5julho 2011 caros amigos REDAÇÃO COMENTÁRIOS SOBRE O CONTEÚDO EDITORIAL, SUGESTÕES E CRÍTICAS A MATÉRIAS. EMEIO: REDACAO@CAROSAMIGOS.COM.BR CARTAS: RUA PARIS, 856, CEP. 01257-040, SÃO PAULO, SP. TEL.: (11) 3123-6600 - FAX: (11) 3123-6609 SERVIÇO DE ATENDIMENTO AO ASSINANTE PARA REGISTRAR MUDANÇA DE ENDEREÇO; ESCLARECER DÚVIDAS SOBRE OS PRAZOS DE RECEBIMENTO DA REVISTA; RECLAMAÇÕES; VENCIMENTO E RENOVAÇÕES DA ASSINATURA. EMEIO: ATENDIMENTO@CAROSAMIGOS.COM.BR NOVO TEL.: (11) 3123-6606 ASSINE A REVISTA www.lojacarosamigos.com.br TEL.: 0800 777 666 01 (DE SEGUNDA A SEXTA-FEIRA, DAS 9 ÀS 18H) SÍTIO: www.carosamigos.com.br FALE CONOSCO CHOMSKY Fiquei muito feliz por dois motivos ao ler a edição da Caros Amigos 169: primei- ro, porque traz as reportagens que gosto de ler e, segundo, pela entrevista que Noam Chomsky deu. Considero esta reportagem de extrema importância (uma das mais nos últimos tempos) e de muita utilidade, prin- cipalmente para nós, professores, que po- demos trabalhar com o texto de várias for- mas, pois as palavras do mestre são claras como água cristalina e nos dão a noção exa- ta sobre a atual conjuntura política do mun- do árabe. Mais uma vez fico satisfeita com a escolha que fiz ao assinar Caros Amigos. Sônia Ribeiro Vasconcellos. REPRESSÃO Excelente matéria sobre As novas táticas da repressão política. A matéria aponta uma ex- pressão real do que vem se alastrando no país afora a partir de um ódio patológico de seto- res reacionários que criam factoides contra mi- litantes políticos e sociais. As ações desses gru- pos contam com retoques nebulosos herdados do período nefasto da ditadura militar e ge- ram desgastes emocionais que abalam a rela- ção profissional ou estudantil, como também o aspecto familiar (atingindo em cheio o aspecto emocional). Aqui, na Paraíba, temos o caso do estudante Enver José que está sendo processa- do por ter participado das ações políticas con- tra o aumento abusivo das passagens dos trans- portes coletivos em janeiro (acusado, pasmem, de ter lançado um artefato, parecido com uma granada, em um ônibus). Particularmente estou sendo perseguido politicamente pelo Reitor da Universidade Federal de Campina Grande por ter repassado informações sobre um processo que circula no TCU, e, de fato, o desgaste emo- cional e psicológico foi tamanho que tive que procurar um médico especialista. Lauro Pires Xavier Neto, professor da Uni- versidade Federal de Campina Grande (UFCG) e diretor da ADUFCG. PORRE DE NOÉ Quero parabenizar a Caros Amigos – A pri- meira à esquerda, em especial os autores Joel Rufino e Sérgio Vaz. Quanta clareza de ideias há no Porre de Noé, numa questão tão delicada que é a sexualidade retratada com tanta perfor- mance. No que diz respeito a sermos um país li- vre, isso pode até existir na teoria ou em pseu- dos líderes que querem mostrar lá fora que somos isso e aquilo outro, quando na verdade nossa prática é carregada de preconceitos e racismos. Então, usemos o Milagre da Poesia para trans- formar essa porca elite direitista em poetas ope- rários, em poetas engenheiros, em poetas médi- cos, em poetas que assassinem esses preconceitos ultrapassados e firam o ventre podre dessa eli- te suja com palavras vivas, como diria o sau- doso Belchior “quero que meu canto torto fei- to faca corte a carne de vocês”. Muitos ósculos e amplexos aos nobres leitores da Caros Amigos. Flávio Vieira dos Santos - Graduado pela Uni- versidade Estadual do Sudoeste da Bahia, Campus Jequié – Jaguaquara – Bahia. MANGABA A Caros Amigos nº170/2011, entre tantas outras boas matérias, traz uma reportagem re- latando a valorosa luta das catadoras de man- gaba sergipanas, para fazer valer seus direitos e cidadania. E estão conquistando vitórias. Gente humilde e corajosa. Vale a pena ler a re- portagem das páginas 33/35 da revista e divul- gar seus embates. Odon Porto de Almeida. UNIDADE POPULAR Acabei de ler o texto A unidade do campo popular, de João Pedro StedIle, e fiquei extre- mamente emocionada. Ele deveria ser um dis- curso para 3 milhões de pessoas, sendo trans- mitido ao vivo para os outros 197 milhões de brasileiros. É preciso um impulso inicial para que a inércia de permanecer parado do nosso povo se transforme na inércia de continuar o movimento. Mas por onde começar tudo isso? A fome de conhecimento que temos não se com- para com a fome de comida, casa, saneamento básico e de um pouco de diversão que a gran- de massa brasileira tem. E enquanto essas ne- cessidades não forem sanadas, a população não terá fome de saber, pra conseguir informações suficientes e reivindicar o que lhe é de direito. Ou talvez seja necessário que a situação chegue ao extremo para a população sair dessa inércia, como nos antecedentes do que o Ocidente cha- ma de Primavera Árabe, iniciada no estôma- go de um povo miserável que, cansado de ver a opulência e o autoritarismo de seus governan- tes, resolveu agir. O problema é que nossos po- líticos são espertos o suficiente para não deixar que a situação do Brasil chegue a extremos. Eles dão o suficiente para que o povo não se rebe- le, mas o mínimo para que eles não progridam. Como solucionar esse ciclo vicioso? Luiza Machado, 17 anos, futura estudante de Direito, Jornalismo, História e Serviço Social. @caros_amigos um dos melhores investimen- tos que já fiz. Pedro Bernardi – Via Twitter. Pra mim, a Caros Amigos é parte da minha vida. Maria Noelia de Souza – Via Facebook. A @caros_amigos vai me ajudar muito no ves- tibular deste ano. Todos os temas que eu pego pra estudar vem na revista. RS... Fabio Saft – Via Twitter. Li pela primeira vez a revista Caros Amigos e fi- quei extremamente encantada com o comprometi- mento, a fidelidade do que lá está apresentado! Pa- rabéns pela revista. Vocês acabam de ganhar uma nova leitora. Ana Alice Freitas - Via Facebook. @caros_amigos Enfartados, cuidado. A Caros Amigos 171 está de tirar o fôlego. Nitroglicerina pura!!! Agilson Filho – Via Twitter. CAROS LEITORES Rolou no Twitter e no Facebook pag_05_caros_leitores_172.indd 5 29.06.11 18:43:33
  • 5. caros amigos julho 2011 6 Durante a polêmica surrealista que a mídia fascistoide inventou para exibir sua ignorância em maio passado (em torno de um livro didático adotado pelo MEC), assisti no YouTube uma en- trevista com Ataliba de Castilho, um importan- te linguista brasileiro, autor de uma monumen- tal gramática publicada em 2010. De repente, o jornalista, apontando para a gramática de Cas- tilho, disse: “Mas o senhor é autor de uma gra- mática, então o senhor não é linguista”. Fiquei imaginando as respostas que eu daria se estives- se no lugar de Castilho. Mas Castilho é um per- feito cavalheiro e, com toda a paciência, expli- cou que sim, ele é linguista. A tradição gramatical normativa é tão pode- rosa que já se impregnou em nossa cultura oci- dental de forma mais arraigada do que o cris- tianismo (que só nasceu 300 anos depois dela). A separação entre “gramática” e “linguística” é resultado de uma distorção típica das ideologias. O estudo da gramática é um dos vários campos de interesse da linguística científica. Na verdade, o estudo da gramática é o “núcleo duro” da linguís- tica. O grande problema é que as pessoas em ge- ral têm uma concepção completamente equivoca- da do que seja gramática. A gramática não é um conjunto de regras que definem o “falar bem” e o “escrever certo”. Esse conjunto forma o que se chama de norma-padrão. A norma-padrão é um produto sociocultural, re- sultado de conflitos de interesse, lutas de poder e hierarquizações políticas. No entanto, seu po- der simbólico é tamanho que muita gente identifi- ca essa norma com a própria língua: assim, “por- tuguês” não é a língua falada por 250 milhões de pessoas mundo afora, mas simplesmente aquela pobre redução de todo esse universo linguístico a um código penal de “certos” e “errados”. A gramática é o estudo do funcionamento da língua em todos os seus níveis: fonológico, mor- fossintático, semântico, pragmático, discursivo. Para o linguista, “nós falamos”, “nós falamo”, “nós falemo” e “nós falou” são formas perfeitamente explicáveis do ponto de vista científico e, por isso, nenhuma delas é mais bonita ou mais bem forma- da que as outras. Foi só por razões históricas, po- líticas e socioculturais (ou seja, que escapam do que é propriamente linguístico) que a forma “nós falamos” se fixou como a “certa”. Não por acaso, a forma mais conservadora, a menos usada pela maioria da população. Afinal, os nossos “certos” e “errados” vêm sempre de cima para baixo e não o contrário, como em sociedades de democracia mais antiga. Ora, em inglês, por exemplo, a antiga forma equivalente a “falamos” desapareceu, e hoje toda a conjugação verbal do inglês, no passado, se faz com uma única forma: spoke, que serve para todas as pessoas verbais. Será que isso impede os falantes de inglês de “pensar direito”, como tan- tas pessoas desinformadas andaram dizendo por aí? É muita ignorância achar que a concordância redundante leva alguém a pensar melhor. Olhaí o Merval Pereira, eleito para a Academia Brasilei- ra de Letras: usa muitas concordâncias, mas pen- sar direito... Muitos amigos leitores dessa revista, quando se deparam com opiniões altamente preconcei- tuosas sobre o funk me mandam email dizendo que é preciso responder a essas opiniões em mi- nha coluna. Desde que passei a integrar o corpo de cola- boradores desta revista, dificilmente abordo o tema funk, não que eu não queira falar sobre o funk, mas porque vivo em um país cheio de sérios assuntos para serem abordados, onde o funk passa a ser só mais um. Além disso, não vou ficar o tempo todo reproduzindo opinião preconceituosa de quem eu nem conheço, mas uma opinião absurda sobre o funk (desses vês de quem conheço muito bem) me chamou atenção, e acho que vale a pena responder. “Eu acredito que a CIA criou o funk para des- truir o samba”. A frase acima é de Sérgio Cabral (pai), que GRAMÁTICA OU LINGUÍSTICA? falar brasileiro Marcos Bagno ... Não importa o que falam, mas sim quem fala além de ser contra o reconhecimento do funk como cultura desconhece que o funk tem contri- buído para a permanência dos jovens dentro das quadras de escolas de samba, e de ser uma das ren- das para que escolas possam desfilar no carnaval. Eu poderia levar em conta seus 74 anos e achar que isso é da idade, mas nem isso cabe a esse se- nhor. O preconceito desse pesquisador e crítico musi- cal está entranhado nele faz muito tempo. Tido como um defensor da música popular bra- sileira e fonte primária para universitários desen- volverem suas pesquisas sobre música, ele tem em seu currículo de negação alguns nomes da MPB que inclui Gil, Caetano e todo movimento tropi- calista. Dizer que o funk está perdendo para o samba nas favelas como ele disse, é frase de quem não en- tende nada de favela e nem de música. O samba continua vivo como nunca, e o funk tem o samba como exemplo de resistência, convi- vência com o chamado “asfalto” e independência mercadológica. Esse senhor que diz ser conhecedor de favelas e culturas, não sabe reconhecer transformações e muito menos ritmos culturais. Ele com todo o seu preconceito vai semeando o fascismo com um discurso antifavelado e anti- patriota, pois em qualquer parte do mundo onde se toca o que se cria hoje nas favelas cariocas, quem entende de música fala: “Isso é música ele- trônica brasileira” Ele falou que é um absurdo quererem o funk carioca como patrimônio cultural da cidade do Rio de Janeiro, mas eu não sei de onde ele ti- rou isso. O que a gente já fez foi o estado reconhecer por lei o funk como cultura e nada mais, para po- dermos lutar contra uma perseguição executiva e legislativa que existia em nosso estado e que a gente possa seguir a luta contra uma perseguição policial ainda em curso. Nasci ouvindo Jacson do Pandeiro (meu pai Chico Mota gravou com ele) e toda cultura nor- destina, cresci ouvindo samba (sou da ala de compositores da Acadêmicos da Rocinha, favela na qual sou nascido e criado), mas foi o funk que me deu a oportunidade de me comunicar com as condições que eu tinha na minha adolescência. Viva o funk, viva a favela, viva o não pre- conceito! Mc Leonardo é presidente da APAfunk, cantor e compositor. Marcos Bagno é linguista e escritor. www.marcosbagno.com.br Mc Leonardo ilustração:deboraborba pag_06_MARCOS_MC_LEONARDO_ED_172.indd 6 29.06.11 18:44:08
  • 6. 7julho 2011 caros amigos Pedro Alexandre Sanches é jornalista. “Entre o sim e o não existe um vão”, cantou o medalhão da MPB Ney Matogrosso, num show incomum de que participou em junho passado. A banda de acompanhamento era a Isca de Polícia, tradutora há mais de três décadas do ideário de Itamar Assumpção (1949-2003), rebelde compo- sitor brasileiro que já apelidamos por aqui de “o intérprete do não”. O verso pertence ao soul-rock-MPB de pro- testo Chavão Abre Porta Grande, que o paulis- ta Itamar lançou em 1986, no underground, e em 1988 o sul-matogrossense Ney fez atravessar até o mainstream, gravando-o no disco Quem Não Vive Tem Medo da Morte. O título, por sinal, era extraído de outro verso da mesma canção. Itamar foi um dos primeiros artistas brasi- leiros a lançar discos independentes. Ao gravar Chavão Abre Porta Grande, Ney tornou-se o pri- meiro (e por muito tempo único) artista do dito primeiro time da MPB a gravar Itamar. Nos sho- ws raros e preciosos de junho de 2011, Ney reu- niu-se à ferina Isca de Polícia e se tornou o pri- meiro medalhão da música pop brasileira a fazer um show inteiro devotado ao “maldito” Itamar. A ocasião era inédita para ele também, mesmo sendo um egresso dos Secos & Molhados (1973- 1974) e tendo cantado e gravado com a banda carioca Pedro Luís e A Parede (2004-2006). Ali, Ney cantava pela primeira vez secundado por vozes femininas – as “itamarianas” vocalistas do Isca, Suzana Salles e Vange Milliet, mais Alzi- ra Espíndola.  “Mulher segundo meu pai!”, grita Itamar, na primeira frase de um disco lançado em junho de 2011. Sim, ele está morto. Mas não, ele não está morto. O disco se chama Sou Suspeita Estou Su- jeita Não Sou Santa, e pertence à filha do ho- mem, Anelis Assumpção, nascida em 1980, ao mesmo tempo que o primeiro disco da Isca de Polícia. As muitas mulheres com quem Itamar can- tou ao longo da vida se reagrupam numa só, sua filha, que canta, em Mulher Segundo Meu Pai, versos inventados por ele: “Bem que meu pai me avisou/ homem não sabe mulher/ falou que falou seu pai, meu avô/ mulher é o que Deus quiser”. Anelis é compositora, além de cantora. Pare- ce bobagem, mas compor é profissão que pare- cia inexistir para mulheres até poucas décadas atrás, salvo exceções como Dolores Duran, Rita Lee, Patti Smith, Deborah Harry, Marina Lima, Paula Toller. “Culpa/ quem precisa?/ quem inven- tou?/ quem mandou?/ deita, desata o nó na gar- ganta/ tira o tênis e se encosta no muro na vida”, compõe Anelis, em clave de sim.  “Não adianta ir arreganhando os dentes para mim porque sei que isso não é um sorriso”, Itamar rugia sem tomar fôlego em 1986, em Chavão Abre Porta Grande. “Penso, logo existo/ penso que exis- to/ penso que penso/ canto, logo existo/ canto en- quanto isso/ canto enquanto posso”, afirmava, pa- recendo tentar se convencer mais que ter certeza do que dizia. “Não sei se gosto de mim/ não sei se gosto de você/ mas gosto de nós”, Ney reproduziu em 1988 e reproduz em 2011. Naqueles anos 80, o não-com- positor vindo do Mato Grosso (do Sul) chegou a convidar o compositor-cantor-músico paulista que morara no Paraná para um trabalho conjunto. Ita- mar não falou nem sim nem não, mas o encontro nunca houve. Itamar não sabia se gostava de si, não sabia se gostava de Ney. Mas gostava deles juntos.  Disse inúmeras vezes nas décadas seguintes que gosta- ria que Ney gravasse um disco só com suas músi- cas. Ney gravou sete até hoje, mas um disco inteiro ainda não. Os shows de junho significam um pas- so largo naquela direção. No palco, Ney cantou 13 números, um deles uma versão 100% Isca de Polí- cia para “Sangue Latino” (1973), dos Secos & Mo- lhados, e os outros, 100% Itamar. Afirmação negra, revolução (homo)sexual e libertação feminina são protagonistas no encontro Ney (& Itamar) & Isca. “Poeta, talvez seja melhor afinar o coro dos des- contentes”, decretou o Ney de 2011, ecoando o Ney www.carosamigos.com.br de 1988 e o Itamar tateante de 1986. O verso de Chavão Abre Porta Grande remete-se em negativo a Let’s Play That (1972), tropicália do carioca Jards Macalé sobre versos do poeta piauiense Torquato Neto: “E eis que o anjo me disse, apertando minha mão entre um sorriso de dente/ ‘vá, bicho, desafi- nar o coro dos contentes!’”. Enquanto esteve aqui, Itamar foi tido e havido como sujeito irascível, arredio a aproximações da indústria fonográfica, da MPB e seus medalhões. Dizia, segundo o parceiro de Isca Paulo Lepetit, que era como Cartola, música para ser compreendida após a morte do autor. Enquanto esteve aqui, fez como avisara: andou afinando o coro dos descon- tentes, e dando pouco mais que sorrisos de soslaio a um Ney aqui, uma Cássia Eller e uma Zélia Dun- can acolá, uma Rita Lee e um Tom Zé bem de vez em quando... De Ney a Anelis, o coro vai se arrumando, se ajeitando, se afinando, num processo ainda incon- cluso. Itamar está vivo na regência das vozes (des) afinadas. E nunca para de desafiar os (des)conten- tes, tendo por espada o verso-síntese de uma de suas principais parceiras-mulheres, a poeta para- naense Alice Ruiz, que ele cantou em 1993 sob o título Vou Tirar Você do Dicionário: “Eu vou tirar você de mim assim que descobrir com quantos nãos se faz um sim”. “Um homem bateu em minha porta e eu abri/ os olhos/ e vi flores brotando pelo chão/ abaixe suas armas, deixe raiar o sol”, tateia a filha do ho- mem, pedindo espaço, ar e delicadeza, em Amor Sustentável, parceria sua com outra mulher, Cris Scabello. “Vivendo e aprendendo a jogar, o melhor é se adiantar, pois quem não blefa dança”, diz Ane- lis, em sintonia com Aprendendo a Jogar (composta pelo paulista Guilherme Arantes e lançada em 1980 pela gaúcha Elis Regina), em Passando a Vez, par- ceria com Luz Marina cantada com o rapper Max B.O. Além do pai onipresente, o rap, o afroativis- ta nigeriano Fela Kuti (1938-1997) e a pimenta Elis também estão transcritos dentro de Anelis. Na décima-quinta (e última) faixa de seu pri- meiro disco, uma outra voz feminina canta versos de composição própria: “O amor que me fez can- tar/ não podia falar/ comigo/ eu cantarei com você/ sem pedir/ a vontade de casar com você...” A voz é de Rubi Assumpção, que tem 9 anos e é neta de Itamar. paÇOCA Pedro Alexandre Sanches ... Afinando o coro dos descontentes ilustração:MURILO pag_07_PEDRO_ALEXANDRE_ED_172.indd 7 29.06.11 18:44:41
  • 7. caros amigos julho 2011 8 Por José Arbex Jr. Difícil avaliar o que é mais impressionante: as dimensões da crise mundial do capital ou a capa- cidade dos meios de comunicação hegemônicos de obscurecer a sua gravidade, e até gerar a impressão de que “o pior já passou”. A esquerda tupiniquim – ou melhor, aqueles parcos resíduos que sobraram do que um dia foi a esquerda –, salvo honrosas ex- ceções, parece anestesiada pela operação midiáti- ca de hipnose coletiva e prefere acreditar no conto de fadas da “marolinha”. Sem pretender qualquer exercício de futurologia, e sem adotar a empáfia dos “especialistas”, o mero bom senso indica um quadro extremamente grave, cuja moldura pode ser assim descrita: Os Estados Unidos ainda estão muito longe de se recuperar do tsunami financeiro iniciado há quatro anos. Em 16 de maio, soaram novos sinais de alar- me, quando a dívida pública estadunidense atingiu o teto histórico de 14,3 trilhões de dólares, o limi- te autorizado pelo Congresso, praticamente empa- tando com o PIB do país. A dívida pública é a soma de todos os empréstimos feitos pelo gover- no junto a credores (privados ou não, nacionais e internacionais) para financiar gastos não cobertos pela arrecadação dos impostos. O PIB é a soma to- tal de bens e serviços produzidos ao longo do ano. Isso coloca uma dúvida sobre a capacidade de os Estados Unidos “honrarem o pagamento” junto aos seus credores em todo o mundo, incluindo China, Japão, Alemanha e o Brasil – países com fortes re- servas em dólar. Pela primeira vez na sua história recente, os Es- tados Unidos foram considerados um mercado de risco para investidores, com notas negativas dadas pela agência especializada Standard & Poor’s (iro- nicamente, trata-se do mesmo sistema de classi- ficação tradicionalmente usado para aterrorizar o Brasil e outros países “emergentes” e “subdesen- volvidos”). A agência admite que todas as medidas usadas pelo governo Obama para salvar os bancos e as grandes empresas falimentares deram resultados pífios. Os déficits fiscais (diferença entre receitas e despesas do governo ao longo do ano) saltaram de 3% do PIB em 2008 para 11% projetados até o fi- nal de 2011. A dívida não para de crescer. Enquanto o barco afunda, congressistas demo- cratas e republicanos, de olho nas próximas elei- ções, trocam acusações mútuas de responsabilidade pelo caos, e propõem medidas antagônicas. Demo- cratas querem aprovar a elevação do teto do en- dividamento público, criação de novas taxas e a eliminação de muitas isenções de taxação aprova- das durante os governos republicanos anteriores. Os republicanos propõem mais reduções de gastos públicos (cortes em programas sociais, aposenta- doria, benefícios etc) e nenhuma nova taxa. Tra- ta-se do bom e velho debate entre “estatizantes” e “liberais”. Uma das respostas mais óbvias para ate- nuar a crise é: imprimir mais dólares (que ainda cumprem o papel de moeda mundial). Só que isso já foi feito e não adiantou coisa alguma. Hoje, há três vezes mais massa monetária (moeda em circu- lação) do que havia em 2008, só que isso não con- seguiu revitalizar a economia. Além disso, a emis- são de muito mais dólares é receita de crescimento da inflação e significa um rebaixamento do valor da moeda, numa situação internacional de eleva- ção geral do preço do petróleo e dos alimentos – o que atinge em cheio a capacidade de consumo da já ultra endividada família média estadunidense. O economista brasileiro Luiz Gonzaga Beluzzo nota, em entrevista à Folha de S. Pau- lo (19.jun.2011): “Não estamos diante de uma cri- se só econômico-financeira. Ela apenas exprimiu um processo longo de 30, 40 anos de deterioração das normas e das regras que marcaram a economia do pós-guerra. Essa economia que eles chamam de neoliberal. O que aconteceu foi que os Estados fo- ram progressivamente abandonando, a partir das décadas de 1960 e 1970, seus compromissos com os assalariados, os velhos, e foram privatizando tudo, A tempestade se avizinha ilustração:ricardopalamartchuk Tempos de Crise pag_08_JOSE_ARBEX_ED_172.indd 8 29.06.11 18:45:24
  • 8. 9julho 2011 caros amigoswww.carosamigos.com.br com a participação das burocracias. Não é que o Estado tenha saído da economia. O Estado tinha outra agenda. Isso foi acompanhado por uma per- da de posição das classes médias de todo o mun- do, sobretudo nos Estados Unidos. Essa crise foi acompanhada por um tremendo aumento do con- servadorismo. (...) Nos EUA, há o problema do de- semprego. Os desempregados bem educados estão aumentando. Imagina o potencial de conflito social e de incompreensão na sociedade. Isso tem um re- batimento político.” Europa Na Zona do Euro, o quadro de crise é ainda mais agudo. O apito da panela de pressão soou em 2009, na Grécia, o primeiro país a dar os sinais da falên- cia do Tratado de Maastricht, que, em 1991, forne- ceu as bases econômicas para a formação da União Europeia e da “zona do Euro”. O tratado estabe- lecia, como condição para participar da Zona do Euro, que qualquer país membro poderia contrair, no máximo, dívida e déficit orçamentário equiva- lentes a 60% e 3% do respectivo PIB. Para atingir tal equilíbrio, os países membros teriam que im- por programas de austeridade fiscal, cortar gastos públicos e aplicar o receituário neoliberal que to- dos estão carecas de conhecer. Após uma década de euforia, com bilhões de dólares jorrando graças à especulação imobiliária, ao turismo e aos jogos olímpicos (em particular, nos casos da Grécia e da Espanha), a bomba estourou. As dívidas e os déficits apresentados pelos PII- GS (Portugal, Irlanda, Itália, Grécia e Espanha) ul- trapassaram em muito as exigências de Maastri- cht e colocaram dúvidas quanto a capacidade de pagar suas dívidas junto aos credores (principal- mente, bancos privados alemães e franceses). Ins- taurou-se o temor de um quadro generalizado de falências de grandes instituições financeiras, com um efeito dominó capaz de, no limite, fazer explo- dir a própria Zona do Euro. Por ter sido o país onde primeiro estourou a crise, a Grécia também foi o primeiro laboratório para tentar “salvar o Euro”, com adoção das medidas clássicas do neolibera- lismo para “sanear” a economia: congelamento de salários e aposentadorias públicas, cortes de bene- fícios no valor médio de três salários / ano para o funcionalismo público, aumento generalizado de impostos (sobre combustíveis, propriedade da ter- ra, transações comerciais), aumento da idade míni- ma para aposentadoria, cortes de verbas para saú- de e educação, privatização de setores estratégicos, redução dos direitos sindicais. O “pacote” imposto pelo FMI e pelo Banco Cen- tral europeu, de 156 bilhões de dólares (equivalen- tes a 47% do PIB, uma monstruosidade em termos econômicos), tinha como objetivo reduzir o défi- cit fiscal grego de 13,6% do PIB (em 2009) para 8,1% (em 2010), uma dívida que seria estabiliza- da em torno de 150% do PIB, garantindo com isso que os bancos privados continuassem recebendo regulamente o pagamento da dívida. É claro que o conjunto das medidas adotadas provocou uma situação de extrema tensão social, com greves, manifestações e embates com a polícia e com o exército. Entretanto, apesar da brutalidade das me- didas adotadas (que elevou o desemprego, em al- gumas regiões, até a 50% da população economi- camente ativa), o máximo que o governo grego conseguiu foi reduzir o déficit para 10,5% do PIB, em 2010. Isto é, os resultados foram muito inferio- res aos esperados. Não há perspectiva no horizonte visível de que a dívida vá ser de fato saldada. Mesmo que se abs- traia a “questão social”, fazendo de conta que vão cessar as manifestações, ainda assim existe uma equação que não fecha: de um lado, a dívida cres- ce, pois os bancos credores em nada reduzem os juros cobrados; de outro, cai a arrecadação, com o aumento do desemprego. O “risco grego” produz um efeito cadeia em relação aos outros países peri- féricos da Zona do Euro: os credores aumentam os juros para “compensar os riscos”. Portugal e Irlan- da já adotaram a rota grega do desastre: receberam, respectivamente, 110 e 120 bilhões de dólares em empréstimos do FMI e do BCE (47% e 53% do PIB), e agora a crise envolve brutalmente a Espanha. A crise espanhola é ainda mais alarmante, dado o tamanho de sua economia: seu PIB soma 1,4 tri- lhão de dólares, quase cinco vezes o da Grécia. A recessão, persistente desde 2008 (com crescimento marginal em 2010) e o encolhimento do mercado imobiliário (junto com o turismo, a principal fon- te de seu desenvolvimento) produziram a catástro- fe atual: 25% de desemprego da população econo- micamente ativa, chegando a 45% entre os jovens de até 25 anos. E os temores se voltam agora para a Itália de Sílvio Berlusconi, já mergulhada em uma grave crise política. Revoltas As revoltas da juventude em Madri e Barcelo- na, assim como em Atenas, nos subúrbios de Pa- ris e em dezenas de cidades e regiões europeias ex- pressam a reação à ameaça de desmantelamento das grandes conquistas sociais arrancadas aos Es- tados burgueses no pós-guerra. Mas há também o outro lado da moeda: as forças de direita avançam, tanto em termos eleitorais quanto na multiplicações de agrupamentos neonazistas e fascistoides. Deli- neia-se um quadro de grave polarização ideológica, social e política que tem no presidente francês Ni- colas “burca” Sarkozi o principal ícone da “guerra aos imigrantes”, e em Sílvio Berlusconi a petulância e a vulgaridade do fascismo. Nos Estados Unidos, o mesmo quadro alimenta as organizações funda- mentalistas evangélicas e os grupos racistas, que conseguem aprovar leis hediondas como as do es- tado do Arizona, que permitem à polícia deter qual- quer pessoa de “aparência suspeita”. A “revolução árabe”, independente de seus con- tornos ideológicos, acrescenta um ingrediente ex- plosivo: a dúvida quanto à normalização dos fluxos do petróleo, que fazem com que os preços do barril oscilem e cheguem à marca dos 150 dólares. Não há como prever o rumo que a “revolução árabe” ado- tará, até porque muitas “revoluções” se combinam para produzir a situação de instabilidade geral que engloba o Oriente Médio e o norte da África. Se, na Europa, a juventude se mobiliza em defesa de conquistas sociais históricas, na outra margem do Mediterrâneo é a fome e a miséria – e não as redes sociais, como querem os pós-modernistas - que im- pulsionam a queda de ditaduras e monarquias. Mas trata-se de um processo caótico, em que se confun- dem grupos inspirados por uma ideologia não raro confusamente “democrática”, outros de esquerda, correntes islâmicas (não apenas fundamentalistas) e oportunistas de toda ordem. No Egito, caiu Hosni Mubarack, mas não o seu regime. Na Líbia, a guarda pessoal de Muamar Ka- dafi, regiamente paga, resiste aos ataques da Otan, e ambos assassinam às centenas civis inocentes ex- postos aos tiros cruzados. Na Síria, já foram mor- tos mais de 1.300 e não há uma perspectiva real de fim dos conflitos. E, claro, na Palestina prossegue a luta contra os invasores israelenses, que mantêm a política de dar continuidade à construção de as- sentamentos ilegais em Jerusalém e na Cisjordâ- nia. Isso para não falar no desastre produzido por Washington no Iraque e no Afeganistão. O Irã e a Turquia, duas potências regionais, permanecem por enquanto como que em “compasso de espera”. A China, motor da economia mundial, conse- gue manter um certo nível de crescimento, graças à combinação de três sistemas econômicos (predo- minantemente financeiro, em Hong Kong, indus- trial nas Zonas Econômicas Especiais e agrícola no continente) submetidos à feroz ditadura do parti- do único. Os salários praticados na indústria e na agricultura estão entre os mais baixos do mundo (o que lhe permite exportar produtos a preços imba- tíveis). Apesar disso, a China dá sinais de desacele- ramento da produção, dada a contração dos mer- cados (as previsões de crescimento caíram de 10% do PIB para menos de 8% em 2011) e os juros bá- sicos subiram para mais de 5%. Além disso, a Chi- na enfrenta crescentes tensões sociais e limitações básicas ao seu crescimento produzidas pelas ame- aças de catástrofes ambientais. Esses números são muito mais graves do que sugerem à primeira vista. Se a China “esfria”, importa menos, especialmente commodities, e isso afeta diretamente o Brasil, por exemplo, seu princi- pal parceiro comercial. Para os tupiniquins, tempos sombrios se avizinham. Em primeiro lugar, há um processo de encolhimento da indústria, principal- mente decorrente da valorização excessiva do real (superior aos 35% nos últimos cinco anos), que tor- na cada vez mais difícil exportar. O mercado inter- no enfrenta os juros mais elevados do planeta, além de um processo de crescente endividamento mé- dio da família. A economia está de joelhos diante do capital financeiro e do agronegócio, que fatura bilhões com as especulações sobre os preços das commodities (mercado que eleva brutalmente o preço mundial dos alimentos e está na base de um quadro que criou um bilhão de famintos). Não se trata mais de saber se a crise vai atingir o Brasil, mas sim de quando isso acontecerá e em que proporções. A crise mundial está apenas no seus primeiros degraus. José Arbex Jr. é jornalista. pag_08_JOSE_ARBEX_ED_172.indd 9 29.06.11 18:45:24
  • 9. caros amigos julho 2011 10 “O Brasil é a Arábia Saudita do etanol”. A frase de Narendra Murkumbi, presidente da Shree Re- nuka, companhia indiana que controla várias usi- nas de etanol no Brasil, exprime bem a expectati- va dos investidores estrangeiros em relação a essa fonte de energia renovável, genuinamente brasi- leira, e que assumirá, em um futuro mais breve do que se previa, papel preponderante na compo- sição da matriz energética mundial. O novo cenário projetado pelo declínio das reservas petrolíferas no mundo impõe às econo- miasdesenvolvidasabuscaporfontesalternativas de energia renovável. O etanol extraído da cana-de-açúcar desponta nesse contexto como a mais viável de todas as fontes de energias reno- váveis que se conhece. E o Brasil é o grande ce- leiro dessa fonte de energia do futuro.  “O etanol é um produto estratégico”, avalia o economista e professor do Instituto de Econo- mia da Universidade Estadual de Campinas (Uni- camp), Wilson Cano. Para ele, a entrada de capi- tal privado internacional no setor compromete a soberania nacional. “Significa que o país vai per- der determinação sobre essa área.” Cano consi- dera que isso vai agravar ainda mais a falta de controle estatal sobre o setor, que antes era con- trolado apenas pelo capital privado nacional. “É um agravante, porque torna mais difícil o gover- no negociar com um grupo estrangeiro do que com um nacional.” Para ele, a motivação que desencadeou essa operação foi a “expectativa de lucro fácil”. Cano explica que a invasão do capital internacional se dá na esteira de um fenômeno que acontece ao longo dos últimos 10 anos. “O Brasil se tornou o paraíso para investimento em setores estratégi- cos. Não é só o setor de etanol que foi invadido, mas toda a agricultura está permeada pela pre- sença dos grandes oligopólios internacionais. A invasão é generalizada.” A receita para reverter os danos provocados pelo modelo econômico adotado pelos dirigentes governamentais é, segundo o docente, a execu- ção de uma política econômica de caráter nacio- nalista. “As políticas adotadas, notadamente no Desnacionalização do etanol põe em risco soberania energética Brasil Capital privado internacional avança de forma voraz na compra de usinas que produzem a principal fonte da nova matriz energética mundial deste século. Por Lúcia Rodrigues FOTOS:JESUSCARLOS Venda de usinas produtoras de etanol para grupos estrangeiros desnacionaliza matriz energética. pag_10_13_LUCIA_RODRIGUES_ED_172.indd 10 30.06.11 17:04:34
  • 10. 11julho 2011 caros amigos governo Fernando Henrique Cardoso foram des- nacionalizantes, atenderam aos interesses estran- geiros. O governo Lula manteve isso, segurou um pouco as privatizações, mas a desnacionalização continuou a todo o vapor.”   Fonte estratégica De olho na joia da coroa, o capital privado internacional avança de maneira voraz sobre o setor, que tradicionalmente sempre foi domina- do por grupos familiares de latifundiários brasi- leiros. Mas a crise financeira de 2008 provocou profunda alteração na composição desses negó- cios. É nessa esteira que o capital estrangeiro en- tra em marcha e compra grande parte dos empre- endimentos na área. “O Brasil é, provavelmente, o único país do mundo com condições de ex- pandir o setor”, destaca o presidente da france- sa Louis Dreyfus, Bruno Melcher. A empresa que Bruno dirige é dona da ex-gigante brasileira San- telisa Vale. “Um terço do nosso setor teve dificuldades fi- nanceiras e, em função disso, ocorreu essa re- estruturação (com fusões e aquisições)”, afirma Marcos Sawaya Jank, presidente da União da In- dústria de Cana-de-Açúcar (Unica), a maior en- tidade representativa das usinas sucroenergética do país, com aproximadamente 130 associados. Hoje, o setor de etanol tem a participação de 22% do capital internacional, segundo o dirigen- te ruralista. “Esse capital é muito bem-vindo. Se- não teríamos tido uma quebradeira bastante for- te. No entanto, a presença estrangeira ainda é muito pequena, bem menor do que em qualquer outro setor, inclusive, no da agroindústria”, fri- sa Marcos. Outro representante da entidade ruralista que preferiu não se identificar, também considera a entrada de recursos internacionais impor- tante para o setor. “O capital é transnacio- nal.” Mas ressalta que essa entrada maciça de dinheiro a partir de 2008 surpreendeu a todos. “Houve uma acelera- ção na entrada do capital internacional em menos tempo do que a cadeia esperava. A concentração e a consolidação vieram antes do que prevíamos. Esperávamos que isso ocorresse em uma, duas dé- cadas, mas aconteceu em dois, três anos.” Ele conta que essa foi a forma encontrada pelo setor para sobreviver. “Existiam empresas nacio- nais muito debilitadas, aí entraram Shell (ingle- sa), BP (inglesa), Bunge (estadunidense), Louis Dreyfus (francesa), Noble. Ao invés de constru- írem novas usinas com o capital que dispunham, adquiriram ou se associaram às empresas brasi- leiras que estavam em dificuldade. Um exemplo é a Bunge que comprou o grupo Moema. Assu- miu o controle das usinas do grupo e não cons- truiu mais nenhuma unidade.” “A primeira transação foi a da Dreyfus, que comprou a Santelisa Vale. A Santa Elisa e a Vale do Rosário já haviam se fusionado antes. Depois Cosan - Nova América, ETH e Brenco, A BP com- prou os ativos da CMAA, a Noble comprou parte dos ativos da Cerradinho, a Cargill (estaduniden- se) comprou os ativos da Usina São João”, expli- ca José Carlos Grubisich, presidente da ETH, usi- na controlada pela empreiteira baiana Odebrecht, que também controla a petroquímica Braskem. “Tanto as traders quanto as empresas de petró- leo, como investidores, como a Odebrecht, veem essa oportunidade e querem entrar no setor. Es- tamos falando em produtos do setor energético. Escala e competitividade de custo é muito impor- tante. No Brasil, tínhamos muitas empresas de tamanho insuficiente e estrutura financeira rela- tivamente enfraquecida. Esse movimento de con- centração vai continuar, porque há um mercado potencial, que está crescendo muito rápido”, con- clui José Carlos. O executivo considera que a consolidação que ocorre no setor é importante para a criação de empresas mais fortes. Mas levanta a objeção de que isso impede, na prática, a criação de outras plantas. “Sempre que ocorre uma consolidação não há o aumento da capacidade instalada. Nor- malmente, as empresas que passam por esse pro- cesso precisam de 12 a 24 meses para se reorgani- zarem, digerirem a transação que foi feita.” Apesar de ser uma empresa de capital fechado, a ETH também tem acionistas estrangeiros (ja- poneses, americanos e ingleses) em sua compo- sição. Para José Carlos, a entrada de capital es- trangeiro na área é importante. “Mostra o vigor e a atratividade do setor. Todo mundo olha para o etanol brasileiro, como exemplo de sucesso. É normal que as grandes empresas de energia do mundo olhem para o Brasil como o país de gran- de potencial.”  Desde 2008, o eta- nol é o combustível utilizado por mais ou menos 50% da frota de veículos leves do país. Além disso, o derivado da cana-de- açúcar também substituirá a nafta, insumo bá- sico da indústria petroquímica utilizada na pro- dução de toda a cadeia de plásticos e resinas. A descoberta da viabilidade do novo insumo permi- te que se produza um plástico verde, como está sendo chamado o produto que irá substituir o ob- tido pelo processamento do derivado de petróleo. “A experiência do plástico verde já começou. A Braskem é a primeira indústria a usar biomassa, matéria-prima limpa e renovável, para fazer po- límeros para uso no mercado internacional”, re- vela o presidente da ETH. O etanol adquire relevo estratégico na compo- sição da nova matriz energética mundial. O setor sucroenergético representa 18% da matriz brasi- leira, atualmente. Na safra de 2010/2011 foram produzidos 27,5 bilhões de litros de álcool. O se- tor sucroenergético movimentou R$ 60 bilhões. Mais de três quartos dessa movimentação acon- teceu depois de a cana deixar a fazenda. Hoje, existem 435 usinas e destilarias distribuídas pelo país, sendo que a maior parte delas estão concen- tradas no Estado de São Paulo, que responde por 63% da moagem. O Produto Interno Bruto do se- tor sucroenergético, em 2008, foi equivalente ao PIB uruguaio. Os números expressivos despertam grande in- teresse do capital internacional, que avança com volúpia sobre o setor. “Países da Europa, Ásia e os Estados Unidos vão ficar em uma situação de insegurança energética muito grande e estão correndo atrás de alternativas”, ressalta Fernan- do Siqueira, presidente da Associação dos Enge- nheiros da Petrobras (Aepet), ao se referir ao de- clínio das reservas mundiais de petróleo. “Estamos no limiar do terceiro e definitivo choque mundial do petróleo. A tendência daqui para frente é a produção petrolífera declinar. E essa queda vai ocorrer de forma muito acentua- da.” De acordo com ele, hoje são produzidos no planeta 86 milhões de barris de petróleo diaria- mente. Em 2020, a previsão é de que essa produ- ção caia para 60 milhões de barris dia. O engenheiro da Petrobras explica, no entan- to, que o pré-sal brasileiro continua sendo o alvo preferencial desses países e destaca a importância que as reservas petrolíferas nacionais têm nes- se contexto. No entanto, apesar de gigante, uma exploração predatória do hidrocarboneto pode comprometer seriamente essas reservas. Segun- do Fernando, uma prospecção frenética encurta- ria o tempo de vida dessas reservas, para algo em torno de 13 anos. www.carosamigos.com.br “O Brasil é a Arábia Saudita do etanol”, Narendra Murkumbi, presidente da Shree Renuka, companhia indiana que controla várias usinas no Brasil. Trabalhador rural no corte da cana. pag_10_13_LUCIA_RODRIGUES_ED_172.indd 11 30.06.11 17:04:37
  • 11. caros amigos julho 2011 12 Ao contrário do setor privado internacional, que identificou a importância estratégica que o etanol terá na conformação da nova matriz ener- gética mundial no próximo período e age para controlar sua produção, o governo brasileiro ain- da tateia no setor. O presidente da Petrobras Bio- combustível, Miguel Rossetto, não considera que a fonte da matriz energética vá se alterar em um futuro próximo. “Temos outro cenário. Não en- xergamos outras fontes primárias nas próximas décadas, que não sejam o petróleo, o gás e o car- vão”, frisa. A opinião de Rossetto vai  na contramão da de executivos da área privada de biocombustí- veis. “O mundo vai mudar nos próximos 10, 20, 30 anos. A biomassa certamente é a aposta”, afir- ma José Carlos Grubisich, presidente da ETH, usi- na controlada pela empreiteira baiana Odebre- cht, que também é controladora da petroquímica Braskem. “A Shell tem uma visão muito clara de que o biocombustível vai ter um papel fundamental no futuro”, destaca Vasco Dias, presidente da Raízen, a caçula do setor, que surgiu da fusão da Cosan, a maior sucroalcooleira do mundo, com a petro- leira inglesa Shell, uma das integrantes do car- tel das Sete Irmãs. Ele pondera, no entanto, que o petróleo ainda terá papel preponderante nos pró- ximos 20, 30 anos. Sobre o processo de concentração que está ocorrendo entre as empresas sucroenergéticas, o presidente da Petrobras Biocombustível deixa clara a linha definida pela estatal para o setor. “O cenário com que trabalhamos é o de grandes gru- pos articulando um pólo de produção de etanol e biomassa, em escala nacional.” O plano de negócios da Companhia para a área prevê investimentos de U$ 1,9 bilhão até 2014. A estatal opera 10 usinas de etanol em parceria com a iniciativa privada. Uma dessas parcerias é com a São Martinho, a maior usina do país e cujo acionista principal é o segundo vice-presidente da Federação das In- dústrias de São Paulo (Fiesp), João Guilher- me Sabino Ometto. “Fizemos essa op- ção, porque temos muito a aprender. É uma escolha de pre- sença flexível por meio de associação com grupos que dispõem de experiência no setor. Temos 50% de participação nessas empresas e participamos ativamente das suas gestões, além disso, temos produção própria de cana em áreas arrendadas em várias de nossas usinas”, enfatiza Rossetto. A Petrobras Biocombustíveis ocupa a terceira colocação no ranking do setor. Em primeiro lu- gar, aparece a Raízen. Na segunda colocação está a Louis Dreyfus. A capacidade de moagem lide- rada pela estatal nas plantas em que atua é de 24,5 milhões de toneladas de cana, além da pro- dução de 942 mil metros cúbicos de etanol e 517 GWh de energia elétrica (geração a partir do ba- gaço da cana).   Risco à soberania A fusão da Cosan com a petroleira inglesa Shell deixa claro os riscos a que o país está sub- metido pela falta de visão estratégica do Esta- do brasileiro. Parecer da Secretaria de Acompa- nhamento Econômico do Ministério da Fazenda, de 25 de novembro de 2010, aprovou a transa- ção sem restrições. A operação é tratada no tex- to como um ato de concentração entre a Cosan S/A Indústria e Comércio e a Shell International Petroleum Company Limited. Na prática, a medi- da permite a transferência da produção dos deri- vados da cana-de-açúcar para as mãos do capital privado internacional. O salvo-conduto para a desnacionalização do setor chancelou a criação de joint ventures. A Raízen é a primeira a ser efetivada após o sinal verde dado pelo governo federal. A reportagem da Caros Amigos entrou em contato com a nova empresa pelo número telefônico disponibilizado em sua página na internet, mas foi informada de que a assessoria da petroleira inglesa é a respon- sável pelo atendimento aos jornalistas. Nenhum dado solicitado pela revista foi repassado pela as- sessoria de imprensa da Shell. Informações divulgadas pela Raízen em sua página na internet afirmam que a empresa é res- ponsável por 23 usinas. Esse é o mesmo núme- ro de usinas antes dominadas pela Cosan.  Juntas têm a capacidade para a moagem de aproximada- mente 62 milhões de toneladas de cana-de-açú- car por ano. Segundo o texto, a nova empresa produzirá em torno de 2,2 bilhões de litros de eta- nol e quatro milhões de toneladas de açúcar por ano. A capacidade instalada para a produção de energia elétrica extraí- da do bagaço da cana é de 900 megawatts. Sua participação na logís- tica (álcoolduto) para o escoamento do etanol também é um dos itens em relevo no portfólio da empresa. O aporte em caixa é de aproximada- mente US$ 1,6 bilhão. A Raízen faz questão de ressaltar que é uma indústria nacional. “É uma empresa brasileira, com base no Brasil, que quer crescer no Brasil e levar o etanol para o mundo”, afirma seu presi- dente e funcionário da Shell, Vasco Dias. “A opção pelo nome em português reforça tratar-se de uma organização brasileira”, infor- ma o texto da empresa na internet. Assim como a joint venture recém criada, a Shell, em sua página online, também chama à atenção para o fato de tratar-se de uma companhia nacional. A petroleira inglesa afirma, ainda, que “ao mesmo tempo em que é uma organização nova, a Raízen acumula a experiência dos acionistas”. “A nova organização formada pela Royal Dutch Shell e a Cosan S/A será uma das cinco maiores empresas do país em faturamento, com valor de mercado estimado em US$ 12 bilhões e cerca de 40 mil funcionários”. A Shell está presente em mais de 100 países. No Brasil, o grupo detém participação em 14 em- presas. Nos últimos três anos, a empresa se en- volveu em sete operações, submetidas ao Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência. Já a Co- san tem participação em 25 empresas do país. No mesmo período, se envolveu em nove operações relativas a atos de concentração. O reinado do hidrocarboneto está cada vez mais próximo do fim e, por isso, a Shell busca alternativas viáveis para evitar a derrocada dos lucros. Controlar o setor de energia renovável é imperioso para continuar garantindo ganhos es- tratosféricos. “O etanol da cana é reconhecido no mundo inteiro como uma importante fonte de energia limpa e renovável”, destaca texto da Raízen na internet. “Enquanto o mundo busca alternativas ao petróleo, o Brasil já usa etanol em larga escala há mais de 30 anos. Neste perí- odo, adquirimos experiência na produção e uso do etanol da cana-de-açúcar. E, hoje podemos dizer, com orgulho, que dominamos essa tecno- logia com elevados índices de excelência e com- petitividade”, completa.   De mãos dadas A concentração foi o mecanismo encontra- do para ganhar escala e aumentar os lucros. Em 2008, a Cosan comprou ativos na área de distri- buição de combustíveis e lubrificantes da Exxon- Mobil “tornando-se o único player de ener- gia renovável totalmente integrado no mundo”.  Motivo de menos orgulho deve ser o fato de a empresa ter integrado a lista suja do Ministério do Trabalho pela prática de trabalho em condi- ções análogas a de  escravos em suas unidades, conforme apontou reportagem da Caros Amigos na edição de julho de 2010. O presidente da Associação de Engenheiros da Petrobras (Aepet), Fernando Siqueira, vê a con- centração da Cosan e da Shell com muita pre- ocupação. Segundo ele, o Estado brasileiro terá muito mais dificuldade para controlar o setor de etanol, que agora se internacionaliza. É certo que a produção desse combustível sempre esteve nas mãos do setor privado, domi- nado pelo agronegócio nacional, e que a mar- “Não é só o setor do etanol que foi invadido, mas toda a agricultura está permeada pela presença dos grandes oligopólios internacionais”, Wilson Cano, professor da Unicamp. Governo aposta em fortalecimento de grupos privados pag_10_13_LUCIA_RODRIGUES_ED_172.indd 12 30.06.11 17:04:38
  • 12. 13julho 2011 caros amigos gem de intervenção estatal sempre foi muitíssimo reduzida. O caso mais recente, que culminou com a explosão do preço do álcool na bomba dos pos- tos de combustíveis, revela o poder de fogo dos usineiros brasileiros. Motivados pela alta no pre- ço do açúcar no mercado internacional, não tive- ram dúvida em desviar a cana, que seria destina- da à produção do etanol, para a industrialização do açúcar.  Os ruralistas sempre deram as cartas nes- se jogo. Mas, agora, o problema se avoluma em escala exponencial e pode trazer consequên- cias desastrosas para a sociedade, que além de estar refém de atores privados, também ficará nas mãos de agentes privados internacionais.  O engenheiro da Petrobras considera que a cana-de-açúcar é um dos principais substitutos do petróleo, porque além de ser utilizada como combustível também poderá ser processada pela indústria petroquímica. Por isso, a fusão de uma empresa nacional com uma multinacional em um setor tão estratégico representa um risco enorme para o país. “É a desnacionalização do futuro, da energia renovável. O etanol é um dos componen- tes da matriz energética brasileira. É um segmen- to cada vez mais estratégico para o país.”   Lesa-pátria O parecer da Secretaria de Acompanhamento Econômico do Ministério da Fazenda, que apro- vou o ato de concentração entre a Shell e a Co- san, sem nenhuma ressalva, não revela o valor da transação do contrato. O assunto é transcri- to como confidencial, assim como a data em que foi firmado o acordo. “Cabe salientar que no con- trato, celebrado entre as partes, consta a cláusula confidencial que versa sobre um acordo não con- correncial confidencial”, afirma o texto. Despacho da Secretaria de Direito Econômi- co do Ministério da Justiça, de 2 de dezembro de 2010, também chancela a operação. “Pelos prin- cípios da economia processual e da eficiência da administração pública, nos ternos do §1 do artigo 50 da Lei 9.784/99, e da Portaria Conjunta SEAE/ MF e SDE/MJ 33/2006, concordo com o teor do parecer da Secretaria de Acompanhamento Eco- nômico, do Ministério da fazenda, cujos termos passam a integrar esta decisão, como sua moti- vação. Opino, consequentemente, pela aprovação do ato sem restrições, devendo este processo ser encaminhado ao Conselho Administrativo de De- fesa Econômica (Cade).” A Advocacia Geral da União e a Procurado- ria Federal do Cade  também aprovaram a ope- ração sem restrições. “Parecer da Seae (Secreta- ria de Acompanhamento Econômico) no sentido de que a operação deva ser aprovada sem restri- ções. Com efeito, nos únicos mercados em que foi necessário o prosseguimento da análise para ve- rificação de probabilidade de poder de mercado foi constatada efetiva rivalidade e, consequente- mente, a ausência de preocupações concorren- ciais decorrentes da operação”, revela. “Opina- se pelo conhecimento da operação, bem como a aprovação sem restrição”, ressalta o parecer de 28 de janeiro de 2011. “A Shell é uma das empresas mais poderosas, o cartel do petróleo atua no mundo inteiro sem le- var em conta escrúpulos. Essas empresas têm por hábito tomar as reservas dos países detentores. E quando compra uma empresa nacional de pro- dução de biomassa isso torna a situação preocu- pante do ponto de vista da soberania nacional. A produção de energia renovável é um segmento cada vez mais estratégico”, enfatiza Fernando. O etanol é uma fonte de energia renovável que poucos países têm a chance de ter. É um dos com- ponentes da matriz energética brasileira. A ten- dência é essa matriz aumentar sua participação no cenário atual, apesar de o petróleo ainda re- presentar a principal e mais eficiente fonte de energia e de se apre- sentar como a maté- ria-prima da indús- tria petroquímica. No entanto, o etanol des- ponta nesse cenário como um dos principais pro- tagonistas de energia renovável. “Hoje 90% do que se consome é fruto do petróleo, mas o álcool junto com o óleo vegetal são as fontes capazes de substituir essas funções. Por isso, tem uma impor- tância estratégica para o país. A entrada da Shell significa a desnacionalização dessa fonte estraté- gica de energia”, argumenta. O engenheiro alerta que o governo federal não está dando a devida importância para a ques- tão. “O governo não está entendendo a gravida- de dos fatos. Não freia a ganância dessas empre- sas no pré-sal e não impede o domínio de uma energia alternativa por uma empresa estrangei- ra. Acho isso muito grave para o país. Daqui há 10 anos o petróleo vai estar em uma curva des- cendente de produção e a biomassa será a sal- vação. Se não tivermos o controle, vamos abrir mão de um segmento estratégico. É uma perda enorme para o país uma empresa estrangeira no controle disso.” O Brasil é fornecedor de energia alternativa ao petróleo. O pré-sal, segundo o engenheiro da Pe- trobras, representa 10% das reservas mundiais. Com o choque do petróleo que se aproxima, a situação tende a se agravar sobremaneira. “Por isso, há esse desespero por fontes de energia al- ternativas.” A Shell está fazendo o papel que o Estado brasileiro deveria fazer. O Estado deveria ter essa visão estratégica de futuro e resguardar o país contra esse tipo invasão. “Se abrir a produção sem controle, o pré-sal acaba em 13 anos. Aí o Brasil fica em uma situa- ção desesperadora, como os países desenvolvidos estão hoje. O governo tem de ter essa visão. Além do pré-sal, tem esse trunfo importan- tíssimo que é a pro- dução de energia al- ternativa e que não pode ser desnacionalizada”, enfatiza Fernando. “Essa é a energia do futuro, o pré-sal é tem- porário, embora seja uma reserva do tamanho do Iraque. O desenvolvimento permanente é a ener- gia renovável, entre as quais está o etanol. O Bra- sil tem de ter um plano estratégico nacional de soberania. O incentivo à agricultura familiar tem de ter um papel importante nesse cenário”, afirma Fernando Siqueira em forma de conselho à presi- dente Dilma Rousseff. Agricultura familiar O apoio à agricultura familiar para a produ- ção de etanol é justamente o que reivindica o se- cretário geral da Federação dos Trabalhadores na Agricultura Familiar (Fetraf), Marcos Rochinski. “Nós defendemos um modelo descentralizado de produção envolvendo os agricultores familiares www.carosamigos.com.br “Essa é a energia do futuro, o pré-sal é temporário, embora seja uma reserva do tamanho do Iraque”, Fernando Siqueira, presidente da Aepet. Canaviais brasileiros também estão sendo adquiridos por grupos internacionais. pag_10_13_LUCIA_RODRIGUES_ED_172.indd 13 30.06.11 17:04:39
  • 13. caros amigos julho 2011 14 e pequenas empresas no beneficiamento sob o guarda chuva da Petrobras, que é estatal e que de- veria conduzir esse processo de desenvolvimento estratégico.” De acordo com ele, a Petrobras não tem neces- sidade de recorrer ao capital estrangeiro para se tornar o grande celeiro de energia renovável. Ele acrescenta que a integração com os agricultores familiares está aquém do esperado. “Existe uma pequena escala de compra e integração, mas mui- to menor do que a que gente imaginava quando foi lançado o programa de biocombustíveis.” Ele também revela as transformações que estão ocorrendo no campo brasileiro. E desta- ca o procedimento adotado pela Cosan, basea- do no modelo de integração padrão fixado pela sucroalcooleira. Não há margem de mano- bra para os agricul- tores familiares. “Vi- vemos de um modo geral uma relação de integração com es- sas empresas. São elas que definem todos parâmetros, o trabalha- dor rural acaba entrando com a força de trabalho.” Marcos conta que no Estado de São Pau- lo, além da venda da produção, os agricultores familiares também estão sendo induzidos a ar- rendar suas terras para o plantio da cana-de-açú- car por essas empresas. “Cada vez que se fortale- cem as grandes empresas multinacionais, diminui a capacidade do Estado brasileiro de definir parâ- metros, seja de produção, comercialização, preços, relação de trabalho.” A entrada da Shell no setor deixa Marcos ainda mais apreensivo. “Nós sempre nos preocupamos com a atuação das transnacionais. O governo pre- cisa ter controle sobre o capital estrangeiro. Preci- sa resgatar seu papel estratégico.” Segundo ele, a participação da agricultura familiar no total geral da produção brasileira gira entre 20% e 25%. Para o dirigente camponês, a fusão entre as duas gigantes ocorreu para disputar melhor o mer- cado. “A Shell vislumbrou o potencial dos agro- combustíveis para o futuro. Sabe que os derivados de petróleo estão com os dias contados. E, para continuar sendo uma das principais empresas do mundo, precisa ter uma atuação na área de ener- gia renovável. O álcool aparece como essa grande fonte de energia.” Ele considera que o governo tem consciência da importância de tomar para si o controle des- sa fonte alternativa energia, no entanto, é depen- dente da entrada de capital internacional e, por isso, acaba ce- dendo. “O Estado até tem essa visão, mas, em função da neces- sidade de entrada de capital estrangeiro para se tornar uma grande potência, acaba abrin- do demais para essas empresas transnacionais. “A gente discorda. Tem de explorar a cadeia dos biocombustíveis prioritariamente por empre- sas nacionais. Isso pode ser uma alternativa de renda para os agricultores familiares, estimulando pequenas e médias empresas. Descentraliza renda e gera emprego”, afirma o agricultor. Esse modelo baseado na centralização das de- finições dos rumos pelas transnacionais traz uma série de problemas para o país. Uma delas e tal- vez a mais visível é a perda da soberania nacio- nal. O Estado perde a capacidade de intervir em um setor estratégico para o conjunto da sociedade, que passa a ser desempenhado pelo oligopólio pri- vado. “A presença dessas megaempresas sempre trazem problemas e insegurança em relação à so- berania do país. A gente fica à mercê. Com a en- trada da Shell, a tendência é piorar a situação.” Para o coordenador da Federação Única dos Petroleiros, a FUP, João Antonio de Moraes, os interesses nacionais não podem estar submetidos ao lucro das transnacionais. “Nós já não conside- rávamos o cenário anterior o ideal (em que o con- trole era privado, porém nacional). Há algum tem- po defendemos que o governo tome uma posição com muito mais energia. Somos críticos dessa si- tuação. É preciso que o Estado tenha o controle, o que efetivamente nunca ocorreu no setor do álcool. Sempre ficamos à mercê dos interesses dos usineiros. Recentemente, vimos o que aconteceu com o aumento do preço do álcool, porque o açú- car estava dando mais dinheiro. A vinda da Shell agrava essa situação, além de ficarmos submeti- dos aos interesses do lucro, como já estávamos, passamos a ficar submetidos, também, aos inte- resses de uma empresa cuja sede não é o Bra- sil. Vamos supor que tenhamos uma situação de emergência no mundo. A quem a Shell terá in- teresse de abastecer? O Brasil ou sua matriz?”, questiona. O petroleiro considera que a Petrobras deve ter uma participação mais efetiva na produção do etanol. Ele destaca ainda características que de- põem contra a companhia inglesa que agora fin- ca bandeira no setor de etanol “É muito complica- do ter esse setor estratégico sob controle de uma empresa de capital internacional. É preciso ações efetivas para mudar essa realidade. A Shell ainda tem um agravante a mais. Oferece péssimas con- dições de trabalho, além de não respeitar os sin- dicatos.” A petroleira inglesa é a segunda produtora de petróleo no Brasil, sua produção gira em torno de 100 mil barris em plataformas totalmente tercei- rizadas. “Fora toda agressão à soberania nacio- nal, à segurança energética, ainda tem a agressão às condições de trabalho e aos direitos sindicais”, critica o dirigente da FUP. “Nós, petroleiros, nos recusamos a chamar a lei de petróleo de marco regulatório, porque o Estado tem de ser, na verdade, o indutor e o controlador do desenvolvimento dessa área, tanto do etanol como do petróleo. O Estado tem de parar de olhar como mero regulador dessa questão. Tem de dei- xar de tratar como se fosse uma commodity. Por- que não é uma commodity, é um bem estratégi- co. Ninguém pode viver sem combustível, não dá para tratar apenas como uma mercadoria, que se compra no mercado. Não dá para se sujeitar aos interesses de outras nações. O Estado deve atuar para que a Petrobras tenha papel mais pró-ativo, que invista pesadamente, para evitar que fique- mos reféns de transnacionais. O Estado brasilei- ro tem de agir para não ficar em uma posição de mero agente regulador”, adverte. Lúcia Rodrigues é jornalista. luciarodrigues@carosamigos.com.br “Cada vez que se fortalecem as grandes empresas multinacionais, diminui a capacidade do Estado brasileiro”, Marcos Rochinski, presidente da Fetraf. Mecanização vai reduzir emprego de trabalhadores rurais. pag_10_13_LUCIA_RODRIGUES_ED_172.indd 14 30.06.11 17:04:40
  • 14. 15julho 2011 caros amigos “A África não tem História”. Essa sentença proferida por um filósofo, há duzentos anos, ainda tem adeptos. Equivale a outra em que muitos brasileiros acreditam: “Não é possível fazer a história dos negros brasileiros porque Rui Barbosa queimou os documentos da es- cravidão”. A primeira é um clichê do século 19, hoje superado. A segunda, uma pegadinha em que até os movimentos negros caíram. O que Ruy, ministro da Fazenda, mandou quei- mar foram os documentos fazendários de en- tradas de escravos, e nem se fez completa- mente – a ineficácia do serviço público, nesse caso, foi benéfica. Sem falar que a História não depende do documento escrito. Ela colhe dados na arqueologia, na literatura, no fol- clore, na linguística, na arquitetura etc. O direito à História faz parte da agenda democrática. Os povos e as pessoas se cons- troem narrando suas vidas. É através do re- conto interminável do que lhe aconteceu no tempo que povos e pessoas ganham existên- cia. Se não narram não existem. Se poderia dizer, como outro filósofo bicentenário, que o mundo é feito de histórias e outras coisas – como as epifanias e as partículas de matéria que desaparecem antes de aparecer. Entender, pois, a narrativa como exclusi- va de alguns é uma prática ideológica de do- minação. Entre os “povos primitivos”, o poder começa com a interdição de o outro discur- sar sobre si próprio. E o supremacismo – pa- lavra hoje um pouco esquecida – dos sécu- los 19 e 20, foi a deletação pelos europeus das outras narrações. Americanos e asiáticos, em menor medida, teriam alguma História, a África nenhuma. Tive essas ideias fitando um livro e minha coleção de cordéis. O livro é Domingos Sodré, um sacerdote africano (Companhia das Letras, 2008). João José Reis dá existência a um adi- vinho-curandeiro na Bahia do século 19. Ga- nha direito à História a rede social de gente comum que o cercava. Não fosse a narração do historiador, baseada em testamentos, in- ventários, boletins de ocorrência de polícia, jornais etc., não existiriam. O direito à Histó- ria é o direito à existência. A narração tem infinitas modalidades. A historiografia é, talvez, a mais prestigiosa. Se funda na crença de que há uma verdade histó- rica, que cabe separar da ficção. No livro de Reis se vê que isso é impossível, o que não diminui o seu valor. Pelo contrário, a indefinição lhe agrega valor (como se diz hoje). Aliás, a histo- riografia atual é um gênero literário, o que pôs em moda as biografias. Nelas, a argumentação vai embutida na narração. Presenteio o leitor com duas estrofes do cor- del A vida de Pedro Cem, de J.M. de Athay- de (Juazeiro, 1974). Em cada país do mundo/ possuía cem sobrados/em cada banco ele tinha/ cem contos depositados/ocupava mensalmente/ dezessete mil empregados. Quando Pedro Cem morre, escreve o narrador: A Justiça exami- nando/os bolsos de Pedro Cem/encontrou uma mochila/e dentro dela um vintem/e um letreiro que dizia/ “ontem teve, hoje não tem”. Sérgio Vaz é poeta e fundador da Cooperifa. poetavaz@ig.com.br.Joel Rufino é historiador e escritor. Ilustração:koblitz Pedro Cem amigos de papel Joel Rufino dos Santos ... Sérgio Vaz FELICIDADE As coisas não nasceram para dar certo, somos nós é que fazemos as coisas acontecerem, ou não. Acredito que a gente tem que ter um foco a seguir, traçar metas, viver por elas. Ou morrer tentando. Jamais queimar etapas e saber reconhecer quando é a sua hora. O Acaso é uma grande armadilha e destrói os sonhos fracos de pessoas que se acham fortes. Não passar do tempo e nem chegar antes. Prepa- rar o corpo, o espírito, estudar o tempo, o espaço. Não ser escravo de nenhum dos dois. Observar as coisas que interferem no seu dia e na sua noite. E saber entender que há aqueles sem sol e sem estrelas e que a vida não deve parar só por isso. Ser gentil com as pessoas e consigo mesmo. E gentileza não tem nada a ver com fraqueza, pois, assim como um bom espadachim, é preciso ter elegância para ferir seus adversários. O que adianta uma boca grande e um coração pequeno? Nunca diga que faz, se não o faz. Ame o teu ofício como uma religião, respeite suas convicções e as pratique de verdade, mesmo quan- do não tiver ninguém olhando. Milagres acontecem quando a gente vai à luta. Pratique esportes como arremesso de olhar, bei- jo na boca, poema no ouvido dos outros, andar de mãos dadas com a pessoa amada, respirar o espaço alheio, abraçar sonhos impossíveis e elogios à distân- cia. E, em hipótese alguma, tente chegar em primeiro. Chegar junto é melhor, até porque, o universo não distribuiu medalhas nem troféus. Respeite as crianças, todas, inclusive aquela esquecida na sua memória. Sem crianças não há ra- zão nenhuma para se acreditar num mundo melhor. As crianças não são o futuro, elas são o presente, e se ainda não aprendemos com isso, somos nós, os adultos, é que tiramos zero na escola. Ser feliz não quer dizer que não devemos estar revoltados com as coisas injustas que estão ao nosso redor, muito pelo contrário, ter uma causa verdadei- ra é uma alegria que poucos podem ter. Por isso, sorrir enquanto luta, é uma forma de confundir os inimigos. Principalmente os que habitam nossos corações. E jamais se sujeite a ser carcereiro do sorriso alheio. Não deixe que outras pessoas digam o que você deve ter, ou usar. Ter coisas é tão importante como não tê-las, mas é você quem deve decidir. Ter cartão de crédito é bom, porém, ter crédito nele tem um preço. Esteja sempre disposto ao aprendizado, e não se esqueça que, quem já sabe tudo é porque não aprendeu nada. As ruas são excelentes professoras de filosofia, pratique andar sobre elas. Tenha amigos. Se não tem, seja. Eles virão. E não acreditem em poetas. São pessoas tristes que vendem alegria. www.carosamigos.com.br pag_15_JOEL_E_SERGIO_ED_172.indd 15 29.06.11 18:52:57
  • 15. caros amigos julho 2011 16 O que distingue a modernidade das épocas ante- riores é a nossa capacidade de criar e destruir, des- truir e criar, sempre em busca de algo novo e melhor. Já não há durabilidade. Objetos que, numa mes- ma família, acompanhavam gerações, passavam de avós a filhos, netos e bisnetos, já não existem. A era dos museus de antiguidades terminou. Já não have- ria suficiente espaço para abrigar tantos modelos de carro que se sucedem em meses ou gerações de com- putadores que surgem de um semestre ao outro. Agora o mundo mudou, e eu com ele. Meu ide- alismo também se tornou obsoleto. Já não bafeja a minha vaidade, nem me traz vantagens. Findou o mundo em que havia heróis, protótipos, modelos a serem seguidos – Gandhi, Mandela, Che. Hoje os pa- radigmas são pessoas de sucesso no mercado, cele- bridades, essa gente bonita e rica que ostenta luxo, esbanja saúde e ocupa sorridente as páginas das re- vistas de variedades. Vivemos agora no novo mundo em que tudo é continuamente deletável e descartável. Do meu mês a mês e me permite desfrutar de prazeres jamais sonhados anos atrás. Hoje sou amigo, e até par- ceiro, de muitos que ontem eram meus inimigos e alvos de minhas contundentes críticas. Se perco a minha posição social, se retorno ao mundo obsoleto, como haverei de manter meu confortável padrão de vida, o sítio, a casa de praia, as férias no exterior, a troca anual de carro? Como haverei de propiciar a filhos e netos o conforto que jamais tive na infância e na adolescência? Não devo mais olhar para o passado, onde jazem esquecidos meus ex-heróis, nem para o fu- turo, como se ali houvesse um ideal histórico. Bas- ta-me olhar para dentro de mim mesmo e saber ex- plorar ao máximo o que tenho de melhor: a astúcia de minha inteligência, a força de minha vontade e o poder de traficar influências. Frei Betto é escritor, autor do romance policial “Hotel Brasil - o mistério das cabeças degoladas” (Rocco). computador ao carro, do estilo de vida à arte, tudo que é in hoje será out amanhã. Resta-me manter atento nesse esforço permanente de atualização. E não me cobrem coerência! Se minha própria aparên- cia física sofre frequentes modificações por força de malhações e tratamentos estéticos, por que minha identidade deve permanecer imutável? Sim, ontem eu me alinhava ideologicamente à esquerda, assumia a causa dos oprimidos, engajava- me em manifestações de protesto, expressava a mi- nha indignação frente a esse mundo injusto. Ora, ninguém é de ferro! Se ouso mudar minha aparência para manter-me eternamente jovem e se- dutor, por que não haveria de mudar minha postura ideológica, meus princípios e ideais de vida, de modo a não perder o bonde da contemporaneidade? Comigo, felizmente, a vida foi generosa. Graças àqueles princípios obsoletos, alcei funções de poder, destaquei-me do vulgo, adquiri prestígio e visibili- dade. Troquei de moradia, guarda-roupa e mulher. Passei a dispor de uma conta bancária que engorda Frei Betto A RODA DA FORTUNA João Pedro Stedile é membro da coordenação nacional do MST e da Via Campesina Brasil O Brasil virou o paraíso das empresas transnacio- nais fabricantes de venenos. Somos o maior mer- cado mundial de venenos agrícolas. Dos 48 bilhões de dólares vendidos em venenos, 7 bilhões são aqui. São despejados todos os anos quase 1 bilhão de li- tros de venenos em apenas 50 milhões de hectares, consumindo 20% de todos os venenos do mundo. Isso representa a grosso modo, uma média de 20 li- tros de venenos por ha de área cultivada, e uma mé- dia equivalente a 5 litros por pessoa ano! Treze em- presas se especializaram em ter lucro com veneno! Entre elas apenas quatro brasileiras, mas as estran- geiras controlam mais de 80% de todo esse merca- do (entre elas, anote: Syngenta. Bayer, Basf, Dupont, Monsanto, Shell química, etc). Essa sanha insaciável se deveu ao advento da fase globalizada do capitalismo que exigia liberdade total para sua ganância. E a internacionalização do domí- nio das empresas sobre a agricultura. Acoplado a isso, realizou-se no Brasil uma trípli- ce aliança entre o capital financeiro, que financia, as empresas transnacionais que controlam tudo, e os grandes proprietários de terra subservientes, que dividem o bolo. Essa aliança se chama agronegó- cio. Os fazendeiros brasileiros, “modernos”, trocaram a mão de obra por veneno. Aos brasileiros sobra: a agressão ao meio ambiente, pois esses venenos são em sua maioria de origem química, não biodegradáveis e contaminam o ar, as plantas, o lençol freático. E sobra as enfermidades, pois permanecem nos alimentos que você leva à mesa todos os dias. Essa pequena cota diária algum dia vai aparecer na forma de algum tipo de intoxicação, até câncer. Segundo especialistas, a cada ano surgem 40 mil novos casos de câncer no Brasil, em sua maioria originários de alimentos contaminados, entre eles o tabaco e o álcool, que nesse caso possuem duplo poder de envenenamento. O estado brasileiro é conivente com essa situação, por sua natureza e dado o grande poder econômico das empresas, muitas delas sempre úteis no finan- ciamento de campanhas eleitorais. Temos, no entanto, uma equipe de verdadeiros heróis nacionais, de um punhado de técnicos na ANVISA (agência de vigilância sanitária) do Minis- tério da Saúde, se desdobrando. No ano passado, tiveram que apreender e destruir mais de 500 mil litros de venenos adulterados. Ou seja, além de ven- der veneno, as poderosas empresas transnacionais adulteravam a fórmula, para ficar mais “potente” e enganar os agricultores. Em fevereiro de 2008, a ANVISA colocou em reavaliação toxicológica 14 ingredientes ativos, muitos deles proibidos em outros países por seus efeitos inaceitáveis à saúde humana. Passados mais de três anos, foram concluídas as reavaliações de apenas seis deles. Destes, a Cihexatina e o Triclorfom já foram banidos do mercado. Graças a Deus e a ANVISA! O Endossulfam está com o banimento programado até junho de 2014; – quando já deveria ter saído. O Acefato está em fase de fechamento da reavalia- ção com as informações disponíveis até o momento; o Metamidofós está proposto a suspensão de junho de 2011, decisão sobre a qual existe um mandado de segurança em fase de julgamento e pedidos de diversos parlamentares (porque será?) para que tenha o prazo de fabricação ampliado em mais seis meses. E quem seria o responsável por suas consequências, depois? Para difundir todas essas informações na socie- dade e lutar contra o uso de agrotóxicos, que cus- tam muitas vidas, mais de 50 entidades lançaram a campanha nacional contra o uso dos agrotóxi- cos e pela vida. E o cineasta Silvio Tendler, com sua equipe, preparou um belo documentário de de- núncia. Participe também você dessa campanha, sen- sibilize seu sindicato, entidade, escola, comunidade. Entre em contacto com a campanha pelo correio ele- trônico contraosagrotoxicos@gmail.com. O veneno-nosso de cada dia! João Pedro Stedile pag_16_JOAO_PEDRO_FREI_BETTO_ED_172.indd 16 29.06.11 18:56:20
  • 16. 17julho 2011 caros amigos “Não tenho a intenção de aparecer”. EstafoiarespostadeAntonioCandidoquan- do informado sobre este perfil. Da forma mais gentil que uma recusa poderia se dar, ele ainda exclamouantesdedesligarotelefone:“Tedese- jo um bom trabalho, mas não posso te ajudar”. A declaração levantou uma grande dúvida. Como deixar de escrever sobre o maior críti- co literário brasileiro de todos os tempos, que se destaca não só por suas obras, mas por ter inovado a maneira de se fazer e pensar a crí- tica literária no Brasil? Os questionamentos perduraram por um tempo, mas por fim, decidimos escrever o per- fil, temerosos de desagradar um dos grandes nomes da esquerda brasileira, mas também com a certeza de que este texto não tem como objetivo expor Antonio Candido, mas sim tra- tar da riqueza de sua obra e militância. Antonio Candido de Mello e Souza nasceu no Rio de Janeiro em 24 de julho de 1918. Seu pai, médico, lhe cobrou o ingresso em um curso universitário mais tradicional, e por este motivo, o futuro crítico literário entra, em 1939, no curso de Ciências Sociais da Facul- dade de Filosofia, Ciências e Letras da USP e também no Curso de Direito da mesma univer- sidade. O último abandona antes do término. Em 1941, Antonio Candido e um grupo de amigos da Faculdade de Filosofia, Ciências e LetrasfundamarevistaClima,publicaçãomen- salqueduraaté1944,ereúneartigossobrelite- ratura, artes plásticas, cinema, teatro, etc. “Era um grupo de amigos anti Estado Novo, anti fascismo criado na Europa e que resolveram fazer uma revista de cultura”, afirma o filóso- fo Paulo Arantes, amigo de Antonio Candido. A revista inova por trazer pela primeira vez conteúdos culturais produzidos por universi- tários. “O escritor no Brasil, em geral, era uma pessoa que tinha uma formação individual, que comprava livros, lia, fichava. O pessoal da revista Clima foi a primeira geração brasilei- ra de críticos com formação universitária”, co- menta o crítico literário Roberto Schwarz, alu- no de Antonio Candido entre 1958 e 1960. Ainda no período em que era aluno da USP, Antonio Candido inicia sua militância políti- ca. Ele participa de um grupo clandestino da Faculdade de Direito intitulado Frente de Re- sistência, que reunia militantes de diversas correntes com orientação anti Estado Novo e contra a ditadura de Getúlio Vargas. O grupo dura pouco tempo, e parte dele, que incluía Antonio Candido, cria, em 1945, o núcleo paulista da Esquerda Democrática, que futura- mente viria a se chamar Partido Socialista Brasi- leiro. Antonio Candido permanece pouco tempo na Esquerda Democrática, se afastando da mili- tância de caráter mais partidário até a fundação do Partido dos Trabalhadores (PT), em 1980. Em 1943, o então já formado crítico literá- rio publica pela primeira vez textos de sua auto- ria, no jornal Folha da Manhã, e, posteriormen- te, no Diário de São Paulo. Nos periódicos, ele produziu críticas de rodapé sobre diversos auto- res, como Clarice Lispector e João Cabral de Melo Neto. “O rodapé literário era uma coluna que fi- cava no pé da página, todos os jornais tinham críticas de rodapé sobre música, cinema etc. Era uma tradição brasileira fortíssima, e passaram por ela autores como Mário de Andrade e Sér- gio Buarque de Holanda”, explica Vinicius Dan- tas, que escreveu os livros Textos de Intervenção e Bibliografia de Antonio Candido. O primeiro livro de Antonio Candido, Introdu- ção ao Método Crítico de Sílvio Romero, é publi- cado em 1945, e traz sua tese de livre-docência. Candido ocupava o cargo de professor assistente na cadeira de sociologia II da Faculdade de Filo- sofia, Ciências e Letras desde 1942, e, em 1944, volta-se definitivamente às letras ao concorrer à cadeira de Literatura Brasileira. Ele não consegue a vaga, mas recebe o título de livre-docente, que trazia embutido o grau de doutor em letras. Em 1959, o crítico literário publica o que é considerado seu mais importante livro, “Forma- ção da Literatura Brasileira: Momentos Decisi- vos”, que acompanha uma tendência que se es- tendia, no Brasil, desde os anos 1930. Não por acaso, entre a década de 1930 e 1950, são lançados livros que apresentam a palavra formação no título, como Formação Econômica do Brasil, de Celso Furtado e Formação do Bra- sil Contemporâneo, de Caio Prado Júnior. Esses e outros, como Casa Grande e Senzala, de Gilberto Freyre e Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda, utilizam diversos pontos de vista para analisar de forma inédita o Brasil desde a colô- nia. A obra de Antonio Candido também cumpre esse papel, mas sob o prisma da literatura. “Formação da literatura brasileira acom- panha um regime completamente rarefeito de vida cultural na colônia, aponta como isso vai se adensando e se autorreferindo” comenta Roberto Schwarz. Parceiros do Rio Bonito, outra importante obra de Antonio Candido, foi lançada em 1964, e retrata a realidade dos caipiras da cidade de Bo- fete, interior de São Paulo. A ideia de estudar co- munidades tradicionais brasileiras estava sendo explorada pela primeira vez, como conta Pau- lo Arantes: “Essa redescoberta do Brasil popu- lar, que havia sido preservado longe do mundo das mercadorias, era um achado dos modernistas brasileiros, e a Faculdade de Filosofia herda isso”. Uma das principais características de Antonio Candido como escritor e professor (função que exerceu até 1978) é a clareza. Grande parte de seus livros são muito fáceis de ler, e seus ex-alu- nos o definem como um professor extremamen- te claro e organizado. Roberto Schwarz cita o caráter político dessas características: “Para ele, transmitir coisas complexas de maneira que o público possa compreender é uma ideia políti- ca. O professor capaz de apresentar os problemas contemporâneos de maneira clara faz um esfor- ço de democratização da cultura”. Em meio à ditadura militar, Antonio Candido escreve artigos críticos ao regime. Exemplo é o texto A verdade da repressão, divulgado no jor- nal Opinião e, posteriormente, republicado no livro Teresina, de 1980. Nele, Antonio Candido cita passagens de autores como Balzac, Dostoie- vski e Kafka que tratam da psicologia represso- ra da polícia, traçando um paralelo claro com o momento pelo qual passava o país e escancaran- do a perversão da repressão policial. A maneira que Antonio Candido traça a críti- ca à ditadura está diretamente relacionada com o modo inovador que ele faz crítica literária, uti- lizando obras já publicadas como subsídio para uma análise da sociedade. Paulo Arantes con- ta como Candido estendeu esse conceito à lite- ratura brasileira: “Ele faz crítica literária de uma maneira onde através dela faz-se uma espécie de sondagem da literatura brasileira para reapre- sentar o funcionamento da sociedade brasileira de um ponto de vista crítico”. Com o fim da ditadura, Antonio Candido par- ticipa da fundação do PT, do qual é filiado até hoje, tendo nos últimos anos lançado manifes- tos em apoio a Lula e Dilma. perfil Bárbara Mengardo ... A crítica através da crítica literária foto:FabioCarvalho Bárbara Mengardo é jornalista ANTONIO CANDIDO www.carosamigos.com.br pag_17_perfil_Barbara_ED_172.indd 17 29.06.11 18:56:54
  • 17. caros amigos julho 2011 18 Por Tatiana Merlino A cada dois anos, quando acontecem eleições no Brasil inteiro, a grande mídia costuma qualificar o evento como “grande festa da democracia”. Afinal, são mais de 100 milhões de pessoas aptas a esco- lher seus novos representantes para os mais varia- dos cargos políticos. Bastam alguns apertões de bo- tão. Para um país que viveu por duas décadas uma ditadura civil-militar amplamente denunciada por violações dos direitos humanos e políticos, isso não é pouco. Mas será suficiente? Para muitos, não. Especialmente para pessoas identificadas com os ideais de esquerda, o Brasil precisaria avançar de uma grande democracia re- presentativa para uma efetivamente participativa. Além disso, mesmo o sistema político atual oferece- ria enormes margens de manobra aos grandes gru- pos econômicos, cujos interesses quase sempre se sobressaem ao da maioria da população. Daí a necessidade de uma reforma política ra- dical. Tal discussão vem desde a promulgação da Constituição de 1988. Muitos mecanismos de apro- fundamento da democracia previstos por ela sequer foram regulamentados e transformados em leis. O tema voltou novamente ao debate após as de- núncias de enriquecimento do ex-ministro da Casa Civil, Antonio Palocci, claramente favorecido por um sistema caracterizado pela promiscuidade entre o público e o privado. No Congresso Nacional, a re- forma política passou a ser discutida em fevereiro, por meio de duas comissões especiais criadas recen- temente: uma no Senado, outra na Câmara dos De- putados. Em abril, a Comissão Especial da Reforma Política do Senado finalizou uma proposta com 13 itens e as encaminhou à Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da casa. Até o fechamento desta edi- ção, a CCJ analisava os pontos um a um. Em segui- da, as propostas devem ser votadas em plenário. Na Câmara, as discussões ainda estão em andamento. Sistema defasado Para alguns, especialmente os identificados com ideais de direita, apenas uma reforma eleitoral é ne- cessária. Para outros, a reforma política, embora es- sencial, não dá conta de todos os vícios do sistema político do país. ilustração:ricardopalamartchuk Reforma Política O Congresso Nacional quer mesmo aprofundar a democracia? O caso do enriquecimento de Antonio Palocci reacendeu o debate sobre a necessidade de uma reforma política ampla, que defina nova regulamentação das eleições, dos partidos, da representação e do financiamento das campanhas. pag_18_20_TATIANA_MERLINO_ED_172.indd 18 29.06.11 18:57:19