1. Hannah Arendt distingue poder, violência e outros conceitos chave para compreender fenômenos políticos. Enquanto poder reside no consenso, violência é um meio instrumental.
2. Arendt critica a visão moderna de que poder é dominação via violência. Ela defende que poder existe quando um grupo age em conjunto, não dependendo de um indivíduo ou meios.
3. A burocracia é a forma mais tirânica de governo, pois ninguém é responsabilizado, levando ao questionamento de sua legitimidade e uso de violência
1. Sobre a violência – Hannah Arendt
Considerações preliminares:
Infelizmente o melhor entendimento do texto da Hannah Arendt se faz com a leitura de outra obra
sua: “A condição humana”. Neste livro, ela faz uma genealogia do conceito de poder ao recuperar no
grego arcaico a noção de vita activa como fundamental para o entendimento da condição humana
(resposta à interrogação filosófica: o que distingue homens de animais?).
Vita activa denota um conjunto atividades bem distintas: labor, trabalho e ação. Atividades
caracterizadas por serem “pró”, “contra” e “com”, respectivamente. Atividades que por isso
caracterizam as condições do que vem a ser especificamente os elementos do natural, do
artificial e do humano na vida vivida em atividade.
O labor é um conjunto de atividades aos quais todos os seres vivos naturalmente necessitam
empreender para simplesmente sobreviver.
O trabalho é um conjunto de atividades aos quais os homens empreendem para criar seus
implementos (meios, instrumentos) ou ambientes artificiais para multiplicar ou facilitar a
realização dos esforços de labor para a sobrevivência.
A especificidade da condição humana reside em sua distinção às condições natural e
artificial. O especificamente humano transcende a sobrevivência e objetiva a convivência,
algo que os antigos identificavam fundamentalmente com as atividades da ação, com as
atividades políticas da vida.
Em Sobre a violência, Hannah Arendt reafirma que a ação é a atividade fundamental da política.
A ação, ao contrário da atividade do trabalho e seus implementos, não se presta para ser
avaliada segundo categorias utilitárias.
As relações de poder também não se prestam para ser avaliadas como derivadas de uma
condição natural (da força das circunstâncias ou do vigor individual).
A política diz respeito à relação estabelecida entre as vontades de liderança e de liderados,
ao “com” + vivência, à convivência como condição efetivada.
Portanto, a política está remetida às crenças que surgem da condição de convivência, ao
exercício do discurso e da persuasão.
Interessa à Hannah Arendt explorar o tema do uso da violência em política:
Ao contrário da ação, tudo que diz respeito ao “contra” se presta à dominação, tal como a
violência, e opera no plano instrumental das atividades do trabalho e dos seus implementos.
Do ponto de vista helênico, a própria administração pública (todas as suas instituições) não é
propriamente a política. É tão somente meio (recurso, instrumento) da política. Daí, a
política não está especificamente remetida à disponibilidade e uso dos implementos
administrativos, ao exercício da coerção na relação instrumental entre dominantes e
dominados.
2. Poder é completamente diferente de violência, porém eles são amalgamados em casos
especiais de poder: o poder de governo.
A burocracia é uma importante forma de poder de governo. Em sendo poder de governo ela
é constantemente desafiada a combinar os implementos (os recursos coercitivos da
administração pública) e as crenças.
Para Hannah Arendt, boa parte do uso crescente da violência na política no século XX está
estabelecida nas questões do poder de governo configurado na burocracia. O governo da
burocracia é causa da rebelde inquietude espraiada pelo mundo hoje [1968], sua natureza
caótica, bem como sua perigosa tendência de escapar ao controle e agir desesperadamente.
O primeiro porque, do ponto de vista da dominação, a burocracia se torna o mais tirânico
dos governos dada uma característica que lhe é intrínseca: a falta a clareza sobre quem
responsabilizar no governo pelo o que está sendo feito.
Depois porque, a violência política surge quando as crenças que lastreiam o poder estão
sendo perdidas. Quando a tirania da burocracia é questionada, na ausência de legitimidade
(ausência de poder) surgem situações de flagrante uso de violência na política (de uso de
implementos), geralmente de natureza caótica como a perigosa tendência de escapar ao
controle e agir desesperadamente. É quando se instala um fato especial, uma situação
política toda particular no comportamento entre governo, minorias de ativistas e maioria.
Pelo lado do governo, a perda de poder leva à incapacidade política para conter os recursos
da violência disponíveis à administração.
Pelo lado das minorias políticas, o apelo a recursos da violência política são intensificados
porque nestas situações as minorias podem ter um potencial muito maior do que se
esperaria contando votos em pesquisa de opinião.
Pelo lado da maioria, estas se tornam um aliado latente da minoria quando se coloca como
observadora, entretida com o espetáculo da minoria e se recusam claramente a usar o poder
para subjugar os desordeiros e ninguém está disposto a levantar mais do que um dedo e
votar pelo status quo.
3. Questões centrais no texto de Hannah Arendt em Sobre a Violência:
1. Ela critica a tradição moderna da ciência política, que dá pouca importância à distinção das
noções-chave para a compreensão dos fenômenos de poder.
a. Nesta há a convicção que o tema político mais central é, e sempre foi, a questão
sobre “quem domina quem”;
b. Que poder é comando e sua forma básica de manifestação é a violência.
c. Para ela, poder, vigor, força, autoridade e violência seriam simples palavras para
indicar os meios em função dos quais o homem domina o homem.
d. Essas noções são tomadas por sinônimos porque, nesta tradição elas têm a mesma
função.
2. Para Arendt, as bases fundamentais do poder, ao contrário do que afirma a tradição
moderna, residem no consenso da maioria.
a. Que poder por ser um absoluto, “um fim em si mesmo”;
b. Não se justifica em termos das categorias de meios e fins já que ele não é
instrumental (tal como a violência é).
c. Que independentemente dos meios, poder corresponde à habilidade humana não
apenas para agir, mas para agir em concerto.
d. O poder, portanto não é definido como um meio, mas sim como uma condição, uma
propriedade coletiva de um grupo e nunca de um indivíduo, existindo apenas
enquanto o grupo conserva-se unido.
e. Daí, poder não precisa de justificação e orientação (para ser usado referido a um
fim); ele tão somente se legitima caso exista (caso tenha se efetivado).
3. Distintamente de poder:
a. Vigor designa algo no singular, uma entidade individual; é a propriedade inerente a
um objeto ou pessoa e pertence ao seu caráter. O vigor tem uma independência
peculiar.
b. Força deveria indicar a energia liberada por movimentos físicos ou sociais, deveria
ser reservada às forças da natureza ou às forças das circunstâncias.
c. Autoridade pode ser investida em pessoas ou em postos hierárquicos. Sua insígnia é
o reconhecimento inquestionável por aqueles a quem se pede que obedeçam; nem
a coerção nem a persuasão são necessárias.
d. Violência distingue-se por seu caráter instrumental. Os implementos da violência,
como todas as outras ferramentas, são planejados e usados com o propósito de
multiplicar o vigor natural.
4. A questão dos meios, entre eles os instrumentos de violência tão caros à tradição do
pensamento moderno sobre governo, podem ser utilizados com o propósito de multiplicar o
vigor individual já que não dependem de números ou opiniões (do coletivo), mas de
implementos.
a. Portanto, do ponto de vista psicológico, para pessoas que possuam vigor natural, a
impotência pode gerar violência.
b. E, do ponto de vista político, quando a violência não é mais escorada e restringida
pelo poder, ela sempre pode destruir o poder. A perda do poder torna-se uma
tentação substituí-lo pela violência; já que do cano de uma arma emerge o comando
4. mais efetivo, resultando na mais perfeita e instantânea obediência, mas nunca
emergirá poder; pois a violência é absolutamente incapaz de criá-lo.
c. O domínio pela pura violência advém de onde o poder está sendo perdido.
d. A forma extrema de violência é um contra todos.
5. Que a forma extrema de poder é todos contra um, pois é da natureza de um grupo e de seu
poder voltar-se contra a independência, a propriedade do vigor individual.
a. Portanto, não é a violência, mas o poder a essência de todo governo.
b. Ainda que apareçam combinados, o poder é o fator primário e preponderante.
c. Para Arendt é errada a perspectiva de que a violência é um pré-requisito do poder, e
o poder, nada mais do que uma fachada, a luva de pelica que ou esconde a mão de
ferro, ou mostrará ser um tigre de papel.
d. Mesmo na dominação mais despótica, o poder tem uma ascendência fundamental
sobre a violência, pois homens sozinhos, sem outros para apoiá-los, nunca tiveram
poder suficiente para usar da violência com sucesso.
e. Ao contrário, é só na dominação totalitária que o poder deixa de ser fator primário. É
quando se usa o terror para manter a dominação que, diferente da violência; ele é,
antes, o governo que advém quando a violência destruiu todo o poder e, ao invés de
abdicar, permanece com o controle total como estado policial plenamente
desenvolvido.
f. Portanto, diferente da concepção dialética hegelo-marxista de que os opostos não se
destroem, mas se superam, a oposição entre violência e poder não tende a uma
superação, à revelação de um bem oculto, mas à degeneração, pois, a favor da
violência, ela pode resultar na destruição do poder e na revelação de um mal ainda
maior que a violência: a instalação o terror.
6. Que a burocracia é:
a. A última e mais formidável forma de dominação.
b. Que a noção moderna de lei representa uma leitura judaico-cristã e sua concepção
imperativa de lei, a qual as convicções científicas e filosóficas mais modernas
fortaleceram. Algo bem diferente da tradição antiga onde “obediência” às leis
significava apoio às leis para as quais os cidadãos haviam dado seu consentimento,
algo nunca inquestionável e algo nunca traduzido em obediência inquestionável tal
como um ato de violência pode impor.
c. É o domínio de Ninguém; nem um único (monarquia) nem os melhores
(aristocracia), nem a minoria (oligarquia) nem a maioria (democracia).
d. É o mais tirânico dos governos, pois não presta contas a respeito de si mesmo já que
nela não há ninguém a quem se possa questionar para que responda pelo que está
sendo feito.
e. A burocracia é poder de governo, portanto, é convocada a equacionar a combinação
poder (condição efetivada, existente ou não) e violência (meios disponíveis à
administração).
f. Quando essa tirania é questionada, a ausência de quem responsabilizar é a causa da
rebelde inquietude espraiada pelo mundo hoje [1968], da sua natureza caótica, bem
como da sua perigosa tendência de escapar ao controle e agir desesperadamente.
5. g. Se tal questionamento ocorre em situações de ausência de legitimidade (ausência de
poder), a maioria claramente se recusa a usar o poder para subjugar os desordeiros
e ninguém está disposto a levantar mais do que um dedo e votar pelo status quo.
h. Nestes contextos, uma minoria pode ter um potencial muito maior do que se
esperaria contando votos em pesquisa de opinião. A maioria meramente
observadora, entretida com o espetáculo da minoria, já é de fato um aliado latente
da minoria.