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                                                       Corta elos desnecessários
                                                       Dilacera minha mente
                                                       Rasga, corta e dilacera aquilo que eu
                                                       pensava que era...

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                                                       Meu coração é uma caravela a todo o vento
                                                       Ruma para o Norte, para as estrelas!
                                                       Mesmo que eu não as veja.


                            Memorial nem um pouco digital

Lembro-me muito bem do primeiro dia de aula da minha vida. Chovia torrencialmente.
Trovões. Relâmpagos. Tudo muito diferente do que eu esperava. Confesso que fiquei
desapontado. Minha mãe e minha irmã haviam me enganado. A escola não era nada
interessante para um menino... Faltava liberdade. Mais tarde aprendi que aqueles tempos
não eram de liberdade... Talvez a tempestade fosse um prenúncio da minha jornada como
estudante. O horário da saída chegou e meu pai não aparecia. No auge do meu
desespero, olho para a porta e uma figura enche meu coração de alegria: meu velho e
querido pai.
Em casa o assunto do dia foi a lista de material. Cartilha: para aprender a ler e poder
segurar nas mãos uns livros do meu pai. Quem sou eu? Sou Dudu. Cartilha de leitura
Caminho Suave. Estes foram meus primeiros livros de leitura.
A escola era fantástica. Um pátio coberto bem de frente para um grande quintal de
terra batida. Os demais lados daquele quintal eram rodeados pelo prédio da escola. De
tal modo que aquele pedaço de terra batida era completamente abraçado pelo prédio da
escola. Umas paineiras enormes... Joguei muita bola de gude entre aquelas velhas
árvores. No fundo do pátio, à direita de quem entrava pelo portão principal, havia um
pequeno palco. Nele atuei em uma peça de teatro (na oitava série). Uma adaptação
horrível de uma série de TV: Agente Calombo...
Foi neste lugar: Largo Monteiro Lobato, 443, Centro, Osasco, São Paulo, Grupo Escolar
Marechal Bittencourt, que passei oito anos de minha vida. Grupo Escolar Marechal
Bittencourt. Ali formei uma parte do meu caráter, meu amor pela Matemática, em
particular, e pelas ciências de um modo geral.
Oficialmente minha primeira professora chamava-se Dona Maria José. Ficou uns três
meses conosco e licenciou-se para ter seu filho. Era severa e preconceituosa. Após as
primeiras provas, dividiu a turma em certas filas de carteiras. Da esquerda para a
direita, começando pela fileira da janela, os melhores alunos da sala (segundo àquela
ótica) e assim sucessivamente, até a ralé do segundo quadro negro, ao lado da última fila
(o quadro negro principal ficava de frente para a classe). A melhor coisa que nos ocorreu
foi o licenciamento desta... professora. Chegaram os tempos de Dona Maria Inês, minha
primeira professora, de fato e de coração: uma jovem educadora. Não havia mais fileiras
de alunos bons ou ruins. Havia crianças e uma professora. Aprendi a ler com essa mulher.
Graças à Dona Inês, meu pai deixou que eu lesse os livros de um tal Monteiro Lobato.


                                                                                                   i
Graças a ela podia ler Tio Patinhas, Mickey, Recruta Zero, Pernalonga, Turma da Mônica
e tudo quanto era cartaz que surgia na minha frente.
No segundo ano tive aula com uma mulher negra fantástica, uma guerreira: Dona
Sebastiana Deise. Os alunos a respeitavam de uma forma natural. Aprendi a resolver os
primeiros problemas de Matemática com ela. Passava horas recitando as tabuadas...
Também tínhamos aulas aos sábados! Foi numa dessas aulas que ela solicitou que
comprássemos o jornal a Folha de S. Paulo aos domingos. Naquela época já existia a
Folhinha de S. Paulo, que era muito diferente do que é hoje. Líamos esse jornalzinho em
sala de aula e fazíamos as brincadeiras também. Foi assim que aprendi a ler jornal aos
domingos. Foi assim que aprendi sobre os horrores da guerra... Vietnã. Laos. Camboja.
No terceiro ano conheci Dona Zilda, minha primeira professora de Matemática.
Amadureci muito naquele ano. Numa brincadeira de rua fraturei a perna direita e fiquei
praticamente dois meses sem comparecer às aulas. Minha mãe ia todos os dias à escola
conversar com a Dona Zilda para obter “os pontos” e as tarefas. Aprendi a aprender...
Quando voltei para a escola, logo no primeiro dia: prova! Minha mãe achou melhor não me
avisar. Fui muito bem e o restante do ano passou muito, muito, muito rápido.
No quarto ano havia uma dupla de professoras (um tipo de ambientação para o ginásio). A
Dona Marlene era professora de Ciências e de Matemática. Fazia muitas experiências em
sala de aula. A segunda era a Dona Maria: carinhosa e competente, tinha o dom de
incentivar a leitura.
No final do ano o exame de admissão ao ginásio seria abolido. O ensino primário passaria
a durar oito anos. Então, em 1973, não iria mais cursar o primeiro ano ginasial, mas sim
a quinta série do curso primário. A época exige um registro importante. Nasci aos dois
de julho de 1961. No segundo semestre de 1961... Por esse motivo tão simples cursei a
primeira série com oito anos de idade, no ano de 1969. Nesse mesmo ano, exatamente no
dia vinte de julho, acompanhei a descida do homem na Lua e decidi que quando fosse
adulto teria um computador somente meu. Hoje, aqui estou, no meio da noite, escrevendo
este texto no meu computador pessoal.
A partir da quinta série tive uma constelação de bons professores. Seu Manoel, professor
de Ciências. Dona Lurdinha, professora de Língua Portuguesa; Dona Cinira Arruda,
professora de Geografia e Dona Dalca, professora de Língua Inglesa. Pedro, professor de
Educação Física; Dona Odair, professora de Ciências; Dona Heloísa, professora de Língua
Portuguesa (8ª série); Chicão, professor de Matemática; Yoneko Susuki, professora de
Desenho Geométrico; Cidinha, professora de História; Ademar, professor Educação
Física; Kimie, professora de Matemática. Seu Chico, professor de Língua Francesa, que
substituído foi pela Dona Luíza (a grande paixão da metade dos alunos do ginásio porque a
outra metade não confessava).
Foi nessa época que comecei a perceber que algumas coisas estavam fora de lugar...
Meus amigos que moravam na Vila Militar de Barueri chegavam à escola em uma Kombi do
exército. Três militares armados de fuzis faziam sua escolta. Achava aquilo esquisito,
mas não a ponto de questionar o motivo de tanta segurança. Meu pai era militar do
exército. Ouvia muitas coisas em casa. Não aceite carona e nem converse com estranhos.
Lamarca, Marighela e etc. Repentinamente meu pai ficava vários dias sem aparecer em
casa. Estava no quartel... De prontidão...
Um dos nossos divertimentos nos fins de semana era o cinema: Cine Estoril. Matinê. Dio
Come Ti Amo, Mazzaropi, Bangue-bangues italianos, Canal 100, os documentários do



                                                                                       ii
Amaral Neto... Voltávamos sempre à pé. No caminho havia certa padaria... Na parede
próxima à geladeira de sorvetes, um cartaz com várias fotos. Homens e mulheres. A
grande maioria, muito jovens. Notava-se que as fotos iam sendo marcadas com uma letra
xis. Para cada marca, uma morte. Muito tempo depois soube que o último deles ganhou
muito mais do que um risco. Lamarca, da VPR, era morto no sertão da Bahia: 17 de
setembro de 1971, por uma estranha coincidência, aniversário do meu pai. Nem imaginava
que existia luta armada no Brasil.
Uma grande alegria: o tricampeonato mundial de futebol em 1970. Já era fanático pelo
São Paulo Futebol Clube. Pelé, Pedro Rocha e Ademir da Guia. Gerson, Dirceu Lopes e
Tostão. Jair, Ney e Edu. Toninho Guerreiro, César e Leivinha. Rivelino, Dudu e
Clodoaldo... Isso é que era futebol!
Foi nesse clima que vivi todo o ginásio. O fato mais marcante, porém, ocorreu na sexta
série. Durante uma aula de História do Brasil, Dona Eiko falava sobre o primeiro reinado,
quando um amigo perguntou por que aqui no Brasil só existiam dois partidos, ARENA e
MDB. Se isso teria alguma ligação com os partidos políticos do primeiro reinado. Ela
respondeu que não poderia abordar aquele assunto. Estava proibida de falar sobre política
em sala de aula. Coincidentemente, naquele mesmo ano houve uma eleição para escolher
os representantes do Centro Cívico da escola. Duas chapas... Somente duas... A chapa
verde, encabeçada pela diretora da escola, e a chapa amarela, encabeçada pelo
professor Manoel, além de Dona Sebastiana Deise, Lurdinha, Dona Maria, Dona Zilda,
Dona Eiko, etc. A chapa amarela perdeu! Eu mesmo votei na chapa verde (como a maioria
dos os alunos da escola). Era o que esperavam de nós. De certa forma saímos
ganhando... Todos os bons professores da escola estavam na chapa amarela!
Mesmo depois da adolescência, carreguei por muito tempo essa angústia de ter votado na
chapa verde. Eu tinha uma chapa verde estampada no coração, na mente...
Em 1977 o colegial clássico e o científico foram abolidos. Meu sonho de continuar meus
estudos no Bittencourt estava acabado, assim como muitas das ilusões que trazia dentro
de mim. Neste mesmo ano, como muitos jovens daquela época, fiz matrícula num curso
técnico. Para afastar certa sensação de vazio, comecei a preencher todas as lacunas que
os oito anos de ensino primário haviam deixado. Este processo continua até hoje!
Nunca me adaptei a esse estilo de educação. Sou um humanista e, sinceramente, fico
muito entristecido quando vejo essa mesma barbárie reproduzida dentro das universidades
brasileiras. Fico pensando nos alunos da UAB-UFSCar que iremos atender, nas suas
histórias de vida. Nas suas trajetórias. Será que um dia serei lembrado? Se for, espero
que eu seja como um dos professores que citei aqui: boas lembranças de bons
profissionais.
Estudei em três das melhores universidades do país. Minha herança? Nunca me “formei”.
Ninguém vai me “formar”. Não pretendo “formar” ninguém. Nunca mais serei chapa
verde...

                                                 Professor Robinson Antão da Cruz Filho
                                  Curso Extensivo Maquifísica – Araraquara e São Carlos
                                     Curso e Colégio Objetivo – Moji Guaçu e Moji Mirim
 Instituto Federal de Educação em Ciência e Tecnologia de São Paulo –Campus Araraquara




                                                                                       iii

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Memórias de infância na escola primária

  • 1. Lá vem a tormenta... Um raio ilumina e corta o céu Rasga meu silêncio Corta elos desnecessários Dilacera minha mente Rasga, corta e dilacera aquilo que eu pensava que era... Apesar do barulho, a chuva é mansa... Quantas tormentas eu vivi? Enfrentei a todas de peito aberto Como os românticos e sonhadores Meu coração é uma caravela a todo o vento Ruma para o Norte, para as estrelas! Mesmo que eu não as veja. Memorial nem um pouco digital Lembro-me muito bem do primeiro dia de aula da minha vida. Chovia torrencialmente. Trovões. Relâmpagos. Tudo muito diferente do que eu esperava. Confesso que fiquei desapontado. Minha mãe e minha irmã haviam me enganado. A escola não era nada interessante para um menino... Faltava liberdade. Mais tarde aprendi que aqueles tempos não eram de liberdade... Talvez a tempestade fosse um prenúncio da minha jornada como estudante. O horário da saída chegou e meu pai não aparecia. No auge do meu desespero, olho para a porta e uma figura enche meu coração de alegria: meu velho e querido pai. Em casa o assunto do dia foi a lista de material. Cartilha: para aprender a ler e poder segurar nas mãos uns livros do meu pai. Quem sou eu? Sou Dudu. Cartilha de leitura Caminho Suave. Estes foram meus primeiros livros de leitura. A escola era fantástica. Um pátio coberto bem de frente para um grande quintal de terra batida. Os demais lados daquele quintal eram rodeados pelo prédio da escola. De tal modo que aquele pedaço de terra batida era completamente abraçado pelo prédio da escola. Umas paineiras enormes... Joguei muita bola de gude entre aquelas velhas árvores. No fundo do pátio, à direita de quem entrava pelo portão principal, havia um pequeno palco. Nele atuei em uma peça de teatro (na oitava série). Uma adaptação horrível de uma série de TV: Agente Calombo... Foi neste lugar: Largo Monteiro Lobato, 443, Centro, Osasco, São Paulo, Grupo Escolar Marechal Bittencourt, que passei oito anos de minha vida. Grupo Escolar Marechal Bittencourt. Ali formei uma parte do meu caráter, meu amor pela Matemática, em particular, e pelas ciências de um modo geral. Oficialmente minha primeira professora chamava-se Dona Maria José. Ficou uns três meses conosco e licenciou-se para ter seu filho. Era severa e preconceituosa. Após as primeiras provas, dividiu a turma em certas filas de carteiras. Da esquerda para a direita, começando pela fileira da janela, os melhores alunos da sala (segundo àquela ótica) e assim sucessivamente, até a ralé do segundo quadro negro, ao lado da última fila (o quadro negro principal ficava de frente para a classe). A melhor coisa que nos ocorreu foi o licenciamento desta... professora. Chegaram os tempos de Dona Maria Inês, minha primeira professora, de fato e de coração: uma jovem educadora. Não havia mais fileiras de alunos bons ou ruins. Havia crianças e uma professora. Aprendi a ler com essa mulher. Graças à Dona Inês, meu pai deixou que eu lesse os livros de um tal Monteiro Lobato. i
  • 2. Graças a ela podia ler Tio Patinhas, Mickey, Recruta Zero, Pernalonga, Turma da Mônica e tudo quanto era cartaz que surgia na minha frente. No segundo ano tive aula com uma mulher negra fantástica, uma guerreira: Dona Sebastiana Deise. Os alunos a respeitavam de uma forma natural. Aprendi a resolver os primeiros problemas de Matemática com ela. Passava horas recitando as tabuadas... Também tínhamos aulas aos sábados! Foi numa dessas aulas que ela solicitou que comprássemos o jornal a Folha de S. Paulo aos domingos. Naquela época já existia a Folhinha de S. Paulo, que era muito diferente do que é hoje. Líamos esse jornalzinho em sala de aula e fazíamos as brincadeiras também. Foi assim que aprendi a ler jornal aos domingos. Foi assim que aprendi sobre os horrores da guerra... Vietnã. Laos. Camboja. No terceiro ano conheci Dona Zilda, minha primeira professora de Matemática. Amadureci muito naquele ano. Numa brincadeira de rua fraturei a perna direita e fiquei praticamente dois meses sem comparecer às aulas. Minha mãe ia todos os dias à escola conversar com a Dona Zilda para obter “os pontos” e as tarefas. Aprendi a aprender... Quando voltei para a escola, logo no primeiro dia: prova! Minha mãe achou melhor não me avisar. Fui muito bem e o restante do ano passou muito, muito, muito rápido. No quarto ano havia uma dupla de professoras (um tipo de ambientação para o ginásio). A Dona Marlene era professora de Ciências e de Matemática. Fazia muitas experiências em sala de aula. A segunda era a Dona Maria: carinhosa e competente, tinha o dom de incentivar a leitura. No final do ano o exame de admissão ao ginásio seria abolido. O ensino primário passaria a durar oito anos. Então, em 1973, não iria mais cursar o primeiro ano ginasial, mas sim a quinta série do curso primário. A época exige um registro importante. Nasci aos dois de julho de 1961. No segundo semestre de 1961... Por esse motivo tão simples cursei a primeira série com oito anos de idade, no ano de 1969. Nesse mesmo ano, exatamente no dia vinte de julho, acompanhei a descida do homem na Lua e decidi que quando fosse adulto teria um computador somente meu. Hoje, aqui estou, no meio da noite, escrevendo este texto no meu computador pessoal. A partir da quinta série tive uma constelação de bons professores. Seu Manoel, professor de Ciências. Dona Lurdinha, professora de Língua Portuguesa; Dona Cinira Arruda, professora de Geografia e Dona Dalca, professora de Língua Inglesa. Pedro, professor de Educação Física; Dona Odair, professora de Ciências; Dona Heloísa, professora de Língua Portuguesa (8ª série); Chicão, professor de Matemática; Yoneko Susuki, professora de Desenho Geométrico; Cidinha, professora de História; Ademar, professor Educação Física; Kimie, professora de Matemática. Seu Chico, professor de Língua Francesa, que substituído foi pela Dona Luíza (a grande paixão da metade dos alunos do ginásio porque a outra metade não confessava). Foi nessa época que comecei a perceber que algumas coisas estavam fora de lugar... Meus amigos que moravam na Vila Militar de Barueri chegavam à escola em uma Kombi do exército. Três militares armados de fuzis faziam sua escolta. Achava aquilo esquisito, mas não a ponto de questionar o motivo de tanta segurança. Meu pai era militar do exército. Ouvia muitas coisas em casa. Não aceite carona e nem converse com estranhos. Lamarca, Marighela e etc. Repentinamente meu pai ficava vários dias sem aparecer em casa. Estava no quartel... De prontidão... Um dos nossos divertimentos nos fins de semana era o cinema: Cine Estoril. Matinê. Dio Come Ti Amo, Mazzaropi, Bangue-bangues italianos, Canal 100, os documentários do ii
  • 3. Amaral Neto... Voltávamos sempre à pé. No caminho havia certa padaria... Na parede próxima à geladeira de sorvetes, um cartaz com várias fotos. Homens e mulheres. A grande maioria, muito jovens. Notava-se que as fotos iam sendo marcadas com uma letra xis. Para cada marca, uma morte. Muito tempo depois soube que o último deles ganhou muito mais do que um risco. Lamarca, da VPR, era morto no sertão da Bahia: 17 de setembro de 1971, por uma estranha coincidência, aniversário do meu pai. Nem imaginava que existia luta armada no Brasil. Uma grande alegria: o tricampeonato mundial de futebol em 1970. Já era fanático pelo São Paulo Futebol Clube. Pelé, Pedro Rocha e Ademir da Guia. Gerson, Dirceu Lopes e Tostão. Jair, Ney e Edu. Toninho Guerreiro, César e Leivinha. Rivelino, Dudu e Clodoaldo... Isso é que era futebol! Foi nesse clima que vivi todo o ginásio. O fato mais marcante, porém, ocorreu na sexta série. Durante uma aula de História do Brasil, Dona Eiko falava sobre o primeiro reinado, quando um amigo perguntou por que aqui no Brasil só existiam dois partidos, ARENA e MDB. Se isso teria alguma ligação com os partidos políticos do primeiro reinado. Ela respondeu que não poderia abordar aquele assunto. Estava proibida de falar sobre política em sala de aula. Coincidentemente, naquele mesmo ano houve uma eleição para escolher os representantes do Centro Cívico da escola. Duas chapas... Somente duas... A chapa verde, encabeçada pela diretora da escola, e a chapa amarela, encabeçada pelo professor Manoel, além de Dona Sebastiana Deise, Lurdinha, Dona Maria, Dona Zilda, Dona Eiko, etc. A chapa amarela perdeu! Eu mesmo votei na chapa verde (como a maioria dos os alunos da escola). Era o que esperavam de nós. De certa forma saímos ganhando... Todos os bons professores da escola estavam na chapa amarela! Mesmo depois da adolescência, carreguei por muito tempo essa angústia de ter votado na chapa verde. Eu tinha uma chapa verde estampada no coração, na mente... Em 1977 o colegial clássico e o científico foram abolidos. Meu sonho de continuar meus estudos no Bittencourt estava acabado, assim como muitas das ilusões que trazia dentro de mim. Neste mesmo ano, como muitos jovens daquela época, fiz matrícula num curso técnico. Para afastar certa sensação de vazio, comecei a preencher todas as lacunas que os oito anos de ensino primário haviam deixado. Este processo continua até hoje! Nunca me adaptei a esse estilo de educação. Sou um humanista e, sinceramente, fico muito entristecido quando vejo essa mesma barbárie reproduzida dentro das universidades brasileiras. Fico pensando nos alunos da UAB-UFSCar que iremos atender, nas suas histórias de vida. Nas suas trajetórias. Será que um dia serei lembrado? Se for, espero que eu seja como um dos professores que citei aqui: boas lembranças de bons profissionais. Estudei em três das melhores universidades do país. Minha herança? Nunca me “formei”. Ninguém vai me “formar”. Não pretendo “formar” ninguém. Nunca mais serei chapa verde... Professor Robinson Antão da Cruz Filho Curso Extensivo Maquifísica – Araraquara e São Carlos Curso e Colégio Objetivo – Moji Guaçu e Moji Mirim Instituto Federal de Educação em Ciência e Tecnologia de São Paulo –Campus Araraquara iii