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ABERTURA PLAGIADA, DETURPOSA, FALSIFICADA
E REVERSA
ALEGRO SOLAR
ANTERO EÇA DE QUEIROZ SAVEDRA
“A este Livro, serve de Introdução o Romance d’A Pedra do Reino, de meu
irmão Auro Schabino.
“Agora que está pronto e em vésperas de ser impresso, começa a pesar sobre
mim a desconfiança de que, para ele ser aceitável, muito lhe falta, como estilo e como
história.
“Quanto à história, realmente não pretendi meter nele tudo o que tenho a dizer
sobre o Povo brasileiro – seus costumes, sua Língua (tão parecida com o Português, o
Galego e o Espanhol), sua Poesia, seu Romance, seu Teatro, sua Música, sua Pintura
etc. Que interessante estudo não se faria, entretanto, sobre o Povo que construiu em
pedra as 5 Ilumiaras que aqui aparecem – a d’A Acauhan, a d’A Coroada, a de
Zumbi, a do Jaúna e a da Pedra do Reino!
“No entanto, para dizer o que quero, 3.000 páginas seriam insuficientes, e hoje
ninguém mais lê um livro grande, como Memórias de um Médico, de Alexandre
Dumas; e então, a mim, como a Dom Pancrácio Cavalcanti e Dom Porfírio de
Albuquerque, nos pareceu melhor ir contando cada caso em tomo separado, de modo a
que, de volume em volume, a história pudesse ficar mais palatável, mesmo sendo
narrada com minudência e largueza.
“É verdade que Críticos ilustres, e mesmo alguns Escritores, às vezes me
aconselham a tomar cuidado com a prolixidade, lembrando que Stendhal, Machado de
Assis, Graciliano Ramos, João Cabral de Melo Neto e outros eram concisos, sóbrios,
secos e despojados. É verdade. Mas Dante, Shakespeare, Euclydes da Cunha e Augusto
dos Anjos eram retóricos e excessivos; escreviam num estilo pesado, cheio de imagens,
de adjetivos, e, ainda por cima, turvado pela paixão, às vezes até pelo mau-gosto.
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“Luxurioso, turvo e vingativo como sou, é à linhagem destes últimos que
pertenço; e escrevo num estilo carregado e tortuoso, com adjetivação excessiva,
epígrafes, citações, arrodeios, digressões e ornamentos da mais variada natureza – o
que faço para disfarçar o que ele tem de mal-engendrado e tosco.
“Ora, existe um provérbio que afirma: ‘Punhal afiado não precisa de brilho’.
Pode ser. Quanto a mim, não quero receber punhaladas de ninguém. Mas se for
necessário enfrentá-las, além de fazê-lo com coragem, quero que me venham elas por
um Punhal de cabo de prata, trabalhado pelos mais artísticos lavores que se possam
imaginar.
“Movido por tal convicção, arrisco-me a apresentar minha história não
secamente nua, sóbria, concisa e despojada, mas sim pendurando-lhe por todos os
lados, para torná-la mais vistosa, aquilo que ‘os descarnados’ acham de mau-gosto –
os dourados galões da Eloquência, da Retórica e da Paixão”.
ADÁGIO DOLOROSO
ANTERO MARIANO SAVEDRA JAÚNA
Mas agora vejo-me obrigado a mudar de tom para acrescentar aqui, noutro
andamento, o que me aconteceu no dia de minha volta ao Sertão.
Foi no ano de 1970 que, depois de uma longa ausência no Recife, voltei a
Taperoá. E ali, num impulso, antes mesmo de chegar à Rua, corri para a Ponte e para
o Rio onde nadara pela primeira vez, experimentando uma das maiores e mais puras
alegrias da minha vida.
Mas o choque que me desenganou foi brutal: não tanto por estar seco e sujo o
leito do Rio; mas porque, embaixo da Ponte, como se fossem Bichos, estava arranchada
uma família de Retirantes, ferida pela fome, pela miséria, pela sujeira, pela maior
degradação que se possa imaginar. E, por cima da Ponte, desfilavam meus semelhantes
– pessoas para as quais “os Miseráveis” era como se não existissem. Nem sequer os
viam. E eu, envergonhado por mim e por eles, cuidei de reassegurar-me pelo
reencontro com a Casa onde, cicatrizado o ferimento de 1930, fora tão feliz ao lado de
meus irmãos e de minha Mãe, Maria Carlota.
De longe, vendo a Casa e a Torre que tanto significavam para mim, minha
alma, cantando, correu para elas. Mas, ao aproximar-me e entrar no Jardim, também
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ali a esperança começou a se transformar numa dor insuportável: no lugar que,
outrora, minha Mãe cobria de Flores, e por onde eu errava, encantado, entre mil
corolas e Borboletas, só havia agora ruína, feiura e devastação. E, dentro da Casa que
eu conhecera tranquila e acolhedora, tinham derrubado paredes, destruindo as antigas
divisões e criando outras, entre as quais até o quarto de minha Mãe desaparecera. Não
era mais a minha Casa: era outra, feia e fria, sem o Piano, sem os móveis que eu
conhecera e amara.
No primeiro instante, desesperado, pensei em comprá-la, repovoando-a com um
Piano e uma mobília pelo menos parecida com a nossa. Mas depois, amargurado,
concluí que seria inútil. Tal recuperação somente seria eficaz se, com o Piano, voltasse
um certo fim de tarde em que eu, deitado no chão, embaixo do sofá da sala da frente,
olhava minha Mãe: ela, de olhos fechados e com a cabeça recostada ao espaldar da
cadeira, ouvia meu irmão mais velho, Mauro, ao Piano, tocando uma Música triste e
bela, na qual o tema mais pungente era entremeado aqui e ali por uma escala que,
começando grave, ia quase até as notas mais agudas do teclado.
Quem a compusera? Quem juntara aquelas notas que me comoviam tanto?
Agora, que Mauro se matou, jamais o saberei. O que sei, e posso garantir, é
que, ali deitado, eu experimentava uma sensação indizível de felicidade, uma plenitude
tal que, neste instante, somente por recordá-la, as lágrimas me chegam aos olhos.
Vendo, então, que era impossível recuperar a Casa, foi ali que se implantou em
mim o sonho de reconstruí-la por meio destas Cartas e do Simpósio Quaterna – com
seus Vitrais, sua Música, o claro-escuro do Palco – enfim, com aquele ambiente-de-
encantação através do qual eu tentaria recuperar “meus dias para sempre
destroçados”. E, ao lado disso, arranjaria um jeito de, no Espetáculo, protestar contra
a sorte de todos aqueles que eram relegados (pela injustiça, pela maldade, pela
indiferença) para debaixo de todas as pontes do Mundo.
Dom Pantero do Espírito Santo, Imperador.