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FERREIRA GULLAR

Uma lei errada



Campanha contra a internação de doentes mentais é
uma forma de demagogia

            Folha de São Paulo 12/04/2009




A CAMPANHA contra a internação de doentes mentais foi
inspirada por um médico italiano de Bolonha. Lá resultou
num desastre e, mesmo assim, insistiu-se em repeti-la aqui
e     o    resultado     foi   exatamente     o     mesmo.
Isso começou por causa do uso intensivo de drogas a partir
dos anos 70. Veio no bojo de uma rebelião contra a ordem
social, que era definida como sinônimo de cerceamento da
liberdade individual, repressão "burguesa" para defender os
valores do capitalismo.


A classe média, em geral, sempre aberta a idéias
"avançadas" ou "libertárias", quase nunca se detém para
examinar as questões, pesar os argumentos, confrontá-los
com a realidade. Não, adere sem refletir.


Havia, naquela época, um deputado petista que aderiu à
proposta, passou a defendê-la e apresentou um projeto de
lei no Congresso. Certa vez, declarou a um jornal que "as
famílias dos doentes mentais os internavam para se
livrarem deles". E eu, que lidava com o problema de dois
filhos nesse estado, disse a mim mesmo: "Esse sujeito é
um cretino. Não sabe o que é conviver com pessoas
esquizofrênicas, que muitas vezes ameaçam se matar ou
matar alguém. Não imagina o quanto dói a um pai ter que
internar um filho, para salvá-lo e salvar a família. Esse
idiota tem a audácia de fingir que ama mais a meus filhos
do que eu".


Esse tipo de campanha é uma forma de demagogia, como
outra qualquer: funda-se em dados falsos ou falsificados e
muitas vezes no desconhecimento do problema que dizem
tentar resolver. No caso das internações, lançavam mão da
palavra "manicômio", já então fora de uso e que por si só
carrega conotações negativas, numa época em que aquele
tipo de hospital não existia mais. Digo isso porque estive
em muitos hospitais psiquiátricos, públicos e particulares,
mas em nenhum deles havia cárceres ou "solitárias" para
segregar o "doente furioso". Mas, para o êxito da
campanha, era necessário levar a opinião pública a crer que
a internação equivalia a jogar o doente num inferno.
Até descobrirem os remédios psiquiátricos, que controlam a
ansiedade e evitam o delírio, médicos e enfermeiros, de
fato, não sabiam como lidar com um doente mental em
surto, fora de controle. Por isso o metiam em camisas de
força ou o punham numa cela com grades até que se
acalmasse. Outro procedimento era o choque elétrico, que
surtia o efeito imediato de interromper o surto
esquizofrênico, mas com consequências imprevisíveis para
sua integridade mental. Com o tempo, porém, descobriu-se
um modo de limitar a intensidade do choque elétrico e
apenas usá-lo em casos extremos. Já os remédios
neuroléticos não apresentam qualquer inconveniente e,
aplicados na dosagem certa, possibilitam ao doente
manter-se em estado normal. Graças a essa medicação, as
clínicas psiquiátricas perderam o caráter carcerário para se
tornarem semelhantes a clínicas de repouso. A maioria das
clínicas psiquiátricas particulares de hoje tem salas de
jogos, de cinema, teatro, piscina e campo de esportes. Já
os hospitais públicos, até bem pouco, se não dispunham do
mesmo conforto, também ofereciam ao internado
divertimento e lazer, além de ateliês para pintar, desenhar
ou ocupar-se com trabalhos manuais.


Com os remédios à base de amplictil, como Haldol, o
paciente não necessita de internações prolongadas. Em
geral, a internação se torna necessária porque, em casa,
por diversos motivos, o doente às vezes se nega a medicar-
se, entra em surto e se torna uma ameaça ou um tormento
para a família. Levado para a clínica e medicado, vai aos
poucos recuperando o equilíbrio até estar em condições que
lhe permitem voltar para o convívio familiar. No caso das
famílias mais pobres, isso não é tão simples, já que saem
todos para trabalhar e o doente fica sozinho em casa. Em
alguns casos, deixa de tomar o remédio e volta ao estado
delirante. Não há alternativa senão interná-lo.


Pois bem, aquela campanha, que visava salvar os doentes
de "repressão burguesa", resultou numa lei que
praticamente acabou com os hospitais psiquiátricos,
mantidos pelo governo. Em seu lugar, instituiu-se o
tratamento ambulatorial (hospital-dia), que só resulta para
os casos menos graves, enquanto os mais graves, que
necessitam de internação, não têm quem os atenda. As
famílias de posses continuam a por seus doentes em
clínicas particulares, enquanto as pobres não têm onde
interná-los. Os doentes terminam nas ruas como mendigos,
dormindo sob viadutos.

É hora de revogar essa lei idiota que provocou tamanho
desastre

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  • 1. FERREIRA GULLAR Uma lei errada Campanha contra a internação de doentes mentais é uma forma de demagogia Folha de São Paulo 12/04/2009 A CAMPANHA contra a internação de doentes mentais foi inspirada por um médico italiano de Bolonha. Lá resultou num desastre e, mesmo assim, insistiu-se em repeti-la aqui e o resultado foi exatamente o mesmo. Isso começou por causa do uso intensivo de drogas a partir dos anos 70. Veio no bojo de uma rebelião contra a ordem social, que era definida como sinônimo de cerceamento da liberdade individual, repressão "burguesa" para defender os valores do capitalismo. A classe média, em geral, sempre aberta a idéias "avançadas" ou "libertárias", quase nunca se detém para examinar as questões, pesar os argumentos, confrontá-los com a realidade. Não, adere sem refletir. Havia, naquela época, um deputado petista que aderiu à proposta, passou a defendê-la e apresentou um projeto de lei no Congresso. Certa vez, declarou a um jornal que "as famílias dos doentes mentais os internavam para se livrarem deles". E eu, que lidava com o problema de dois filhos nesse estado, disse a mim mesmo: "Esse sujeito é um cretino. Não sabe o que é conviver com pessoas esquizofrênicas, que muitas vezes ameaçam se matar ou matar alguém. Não imagina o quanto dói a um pai ter que internar um filho, para salvá-lo e salvar a família. Esse
  • 2. idiota tem a audácia de fingir que ama mais a meus filhos do que eu". Esse tipo de campanha é uma forma de demagogia, como outra qualquer: funda-se em dados falsos ou falsificados e muitas vezes no desconhecimento do problema que dizem tentar resolver. No caso das internações, lançavam mão da palavra "manicômio", já então fora de uso e que por si só carrega conotações negativas, numa época em que aquele tipo de hospital não existia mais. Digo isso porque estive em muitos hospitais psiquiátricos, públicos e particulares, mas em nenhum deles havia cárceres ou "solitárias" para segregar o "doente furioso". Mas, para o êxito da campanha, era necessário levar a opinião pública a crer que a internação equivalia a jogar o doente num inferno. Até descobrirem os remédios psiquiátricos, que controlam a ansiedade e evitam o delírio, médicos e enfermeiros, de fato, não sabiam como lidar com um doente mental em surto, fora de controle. Por isso o metiam em camisas de força ou o punham numa cela com grades até que se acalmasse. Outro procedimento era o choque elétrico, que surtia o efeito imediato de interromper o surto esquizofrênico, mas com consequências imprevisíveis para sua integridade mental. Com o tempo, porém, descobriu-se um modo de limitar a intensidade do choque elétrico e apenas usá-lo em casos extremos. Já os remédios neuroléticos não apresentam qualquer inconveniente e, aplicados na dosagem certa, possibilitam ao doente manter-se em estado normal. Graças a essa medicação, as clínicas psiquiátricas perderam o caráter carcerário para se tornarem semelhantes a clínicas de repouso. A maioria das clínicas psiquiátricas particulares de hoje tem salas de jogos, de cinema, teatro, piscina e campo de esportes. Já os hospitais públicos, até bem pouco, se não dispunham do mesmo conforto, também ofereciam ao internado divertimento e lazer, além de ateliês para pintar, desenhar ou ocupar-se com trabalhos manuais. Com os remédios à base de amplictil, como Haldol, o
  • 3. paciente não necessita de internações prolongadas. Em geral, a internação se torna necessária porque, em casa, por diversos motivos, o doente às vezes se nega a medicar- se, entra em surto e se torna uma ameaça ou um tormento para a família. Levado para a clínica e medicado, vai aos poucos recuperando o equilíbrio até estar em condições que lhe permitem voltar para o convívio familiar. No caso das famílias mais pobres, isso não é tão simples, já que saem todos para trabalhar e o doente fica sozinho em casa. Em alguns casos, deixa de tomar o remédio e volta ao estado delirante. Não há alternativa senão interná-lo. Pois bem, aquela campanha, que visava salvar os doentes de "repressão burguesa", resultou numa lei que praticamente acabou com os hospitais psiquiátricos, mantidos pelo governo. Em seu lugar, instituiu-se o tratamento ambulatorial (hospital-dia), que só resulta para os casos menos graves, enquanto os mais graves, que necessitam de internação, não têm quem os atenda. As famílias de posses continuam a por seus doentes em clínicas particulares, enquanto as pobres não têm onde interná-los. Os doentes terminam nas ruas como mendigos, dormindo sob viadutos. É hora de revogar essa lei idiota que provocou tamanho desastre