Toma lá Poesia Folhetos de Promoção do Concurso Literário Prof.ª Conceição Ludovino 9 3 A 13 3 09
1. LIMITES
Há uma linha de Verlaine que não voltarei a recordar
Há uma rua próxima que está vedada aos meus passos
Há um espelho que me viu pela última vez,
Há uma porta que fechei até ao fim do mundo
Entre os livros da minha biblioteca (estou vendo-os)
Há algum que nunca mais abrirei.
Este Verão cumprirei cinquenta anos.
A morte desgasta-me, incessante.
De Inscripciones, de Julio Platero Haedo, Montevideu, 1923
Poema e poeta criados por Jorge Luís Borges (1899-1986), pertencente a um
conjunto de poemas intitulado Museu, incluídos na obra O Fazedor cuja 1.º edição
data de 1960, Buenos Aires. Julio Platero Haedo é uma criação de Borges.
SUDDEN LIGHT
I have been here before,
But when or how I cannot tell:
I know the grass beyond the door,
The sweet keen smell,
The sighing sound, the lights around the shore.
You have been mine before,—
How long ago I may not know:
But just when at that swallow’s soar
Your neck turn’d so,
Some veil did fall,—I knew it all of yore.
Has this been thus before?
And shall not thus time’s eddying flight
Still with our lives our love restore
In death’s despite,
And day and night yield one delight once more?
Dante Gabriel Rossetti (1828-1882), pintor e poeta inglês.
Juan Carlos Liberti (1930-…), Si Soy Asi
Dante Gabriel Rossetti, A
Sea Spell, 1877
Suy, Right Between the
Eyes, 19/6/1982
2. O MITO DO GRANDE AUSENTE
Tudo começou há muito, muito tempo,
num tempo em que os homens ainda não tinham memória
mas já tinham saudade.
Não caçavam animais nem pescavam peixes,
alimentavam-se do ar e da luz que envolvia as grandes montanhas azuis.
Trabalhavam ao sabor dos desejos
e desejar era uma forma de arte,
uma atitude estética para com a vida e a morte.
Na montanha mais azul havia uma cabana de madeira.
Os povos da planície entretinham-se em especulações:
vivia ou não vivia nela alguém?
Jamais subiam a montanha,
pois estavam convencidos
de que tudo o que estava a mais de uma girafa do solo
já não fazia parte do reino terreno.
Por isso, todos os pássaros eram mágicos
e os deuses, que ainda não tinham sido inventados,
contentavam-se com ser pássaros, nuvens e vento…
Os dias tinham então um número variável de momentos,
consoante a disposição anímica dos planetas.
Todavia, os investigadores vindouros descobriram
que no antepenúltimo momento
de cada um desses dias volúveis e atemporais
se repetia um fenómeno no topo daquela montanha:
um vulto humano sentava-se no alpendre
e voltava os braços abertos na direcção que os sábios
diziam ter sido outrora o Poente.
O Sol, que então se mantinha habitualmente invisível,
apesar da limpidez e intensa luminosidade do céu,
surgia de uma fresta do horizonte, descia sobre a montanha,
dissolvia-se lentamente no corpo do humano
que, com a mesma lentidão, ia assumindo os contornos
de um ibex castanho com reflexos cobreados.
O ibex descia do alpendre
e desaparecia por entre a imensidade de azuis.
Os que ficavam acordados pelas indeterminadas noites afora
diziam que o ibex não regressava nunca à cabana
para de novo se transformar em homem.
No entanto, no antepenúltimo momento do dia seguinte,
o homem voltava a aparecer no alpendre
e o ritual repetia-se.
Um dia, porém, o homem não apareceu: no milionésimo sétimo
antepenúltimo momento dos dias da sua aparição.
Em vez dele, surgiram um milhão e sete ibexes,
todos de um azul diferente.
Primeiro ocuparam o alpendre,
depois o quintal à volta, a floresta, o topo
E toda a encosta até ao último milímetro do sopé.
Lentamente, cada ibex dissolveu-se no azul gémeo
que havia na montanha: um milhão e sete azuis.
E os azuis rodopiaram e ondularam e ziguezaguearam
e fundiram-se num único azul
com a forma de um elefante colossal.
É esse elefante que ocupa hoje o lugar da montanha.
É a ele que os povos da planície chamam
— O GRANDE AUSENTE.
Desde então, escrevem belos poemas azuis na areia
que ciclicamente se apagam e regressam gravados em nácar.
Desde então, sem saberem ao certo porquê,
pelo menos uma vez na vida,
escalam o Grande Ausente, tocam as nuvens, abrem as asas
e regressam a casa mais transparentes do que o vento… Suy, 5/7/1991
Diego Rivera
(1886-1957),
A Vendedora de Flores
(pintor mexicano)