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Série Selena 2
Em Seus Sonhos
Robin Jones Gunn
Título original: In Your Dreams
Tradução de Myrian Talitha Lins
Editora Betânia, 2000
Digitalizado por deisemat
Revisado por deisemat
http://semeadoresdapalavra.top-forum.net/portal.htm
Série Selena 2
Em Seus Sonhos
Robin Jones Gunn
Para minha cunhada, Kate Gunn Medina, e seu marido e filhos: Al, Adrian,
André e Alysssa.
Que Jesus esteja sempre presente em seus sonhos
_______________________________________________________________________
Capítulo Um
- Como é que você consegue viver desse jeito? indagou Tânia, a irmã de Selena.
Ela pegou no chão uma calça jeans que estava caída no seu lado do quarto e atirou sobre
a cama da irmã, ainda desarrumada. A calça foi parar bem em cima de uma pilha de roupas
que Selena lavara na segunda-feira. Era quinta-feira, e a garota ainda não as guardara.
- Eu não estou me intrometendo com suas coisas! replicou Selena, pegando o jeans e
colocando-o junto com suas outras roupas sujas que se achavam no chão. Só porque você tem
mania de arrumação, isso não quer dizer que todo mundo tem de ter!
- Você não precisa ser igual a mim, Selena. Mas tente ao menos ser normal.
- Normal? Eu sou normal. Você é que tem neurose de arrumação, Tânia. Seu cabelo está
sempre superpenteado. Você não sai sem se maquiar. Suas unhas estão sempre impecáveis.
Você não se cansa de parecer uma “modelo” o tempo todo?
- Que grosseria, Selena!
- Ah, é? E você?
- Eu não estou sendo grosseira, não!
- Pois eu acho que jogar minha calça pra cá desse jeito foi uma tremenda grosseria, sim!
- Se você arrumasse suas coisas de vez em quando, eu não precisaria jogar nada por aí.
Nesse final de semana, po exemplo, será que daria para você deixar o meu lado arrumadinho
como está agora e, até quando eu voltar, dominga à noite, tentar ajeitar o seu?
Selena mordeu o lábio inferior para não soltar as palavras que lhe vieram à mente.
Parecia que não adiantava nada retrucar. Nas vezes em que o fizera, acabara arrependendo-se
depois. Estava convencida, porém, de que ter de ficar no mesmo quarto com uma irmã que
tinha mania de arrumação era uma das piores formas de sofrimento que podiam existir no
mundo. Devia estar na lista das torturas. Algum dia ela ainda iria descobrir essa lista e mostrar
aos pais. Aí eles compreenderiam o quanto ela já sofrerá nos seus dezesseis anos de vida por
ter de aturar a sempre perfeita Tânia Jensen.
- Estou falando sério, Selena, insistiu a irmã, fechando o zíper de sua mala. Um dia
desses você vai ter de parar de ser tão bagunceira. Sugiro que comece agora, nesse final de
semana.
Selena sentou-se no chão, perto do seu montinho de roupas sujas, e correu os olhos pelo
quarto. Os dois lados do aposento eram completamente diferentes, o oposto um do outro. A
cama de Tânia estava perfeita. Não se via nela nem uma ruguinha. As almofadas bordadas
achavam-se posicionadas no ângulo exato. Sobre a cômoda havia um forro branco, rendado,
onde tudo se encontrava perfeitamente de acordo. Parecia um pequeno palco. Bem no centro,
estava uma jarrinha com três tulipas, que ela colhera pela manhã no jardim. Ao lado dela,
havia dois porta-retratos. Num deles, estava a foto de formatura de Tânia e no outro, uma que
fora tirada quando ela era bebê. Havia quatro vidros de perfume ou “fragrâncias”, como dizia
a irmã. Estavam bem enfileirados e com o rótulo virado para a frente, para a “platéia”.
Perfume era a “paixão” de Tânia. A moça trabalhava no setor de perfumaria da Loja
Nordstrom. Fora lá que fizera amizade com as pessoas com quem iria passear nesse final de
semana. Iam esquiar no monte Bachelor.
Selena também tinha planos para o final de semana, mas nãoera fazer um passeio com
amigos. Desde que a família se mudara para Portland, algumas semanas antes, Tânia já fizera
amizade com uma porção de gente. Já havia até enchido uma página e meia da sua agenda de
endereços com o nome e telefone desses novos amigos. A agenda de Selena ainda não tinha
um nome sequer.
Fazer amizades era de fato um de seus problemas. Contudo mais difícil ainda era
arranjar dinheiro. Tinha esperanças, porém, de resolver essa questão muito breve. No sábado
de manhã, teria uma entrevista numa floricultura, para ver se arranjava um trabalho ali. A loja
ficava em Hawthorne, a sete quadras da casa em estilo vitoriano onde morava a família de
Selena. E ela gostava de flores, mas não tinha muita certeza se conseguiria aprender a fazer
arranjos. Sua visão estética e artística era um pouco diferente da maioria das pessoas. Notava-
se isso pela maneira como Selena se vestia. Gostava de roupas simples, informais. Não tinha
nada “vistoso”, tipo vitrine, como era o caso de Tânia, com suas roupas e seu lado do quarto.
E era assim que ela se via também. Uma pessoa simples, natural, descontraída. Seu
cabelo louro, bem anelado, dava nos ombros. E ela o deixava ao natural. Tinha olhos azul-
acinzentados, como a cor do céu numa manhã de inverno, que alegravam seu rosto de
expressão sincera. E não usava maquiagem nem para disfarçar as sardas que cobriam todo o
nariz.
Certo dia, alguns meses antes, Selena estava examinando suas sardas ao espelho e em
dado momento se deu conta de que o que tinha de mais bonito eram os lábios. Tanto o
superior como o inferior eram de igual tamanho, redondos e cheios, perfeitos para ser
beijados. É, mas isso ela ainda não sabia direito, pois o único garoto que a beijara nos lábios
fora seu sobrinho Tyler, de três anos.
- Selena!
Ela ouviu uma batida na porta e a voz da mãe.
Ah, essa é ótima! pensou. Tânia já foi falar com mamãe para vir implicar comigo por
causa do quarto.
- Entra! gritou. Já até sei o que a senhora vai dizer!
Sua mãe apareceu à porta. Seu rosto, normalmente tranquilo, tinha naquele instante uma
expressão preocupada Usava uma saia jeans justa e uma blusa branca, com as mangas
arregaçadas. Tinha na mão um pedaço de papel.
- O que foi? indagou Selena. A senhora não está passando bem?
- Tio Daniel acabou de telefonar. Grace está no hospital. Ela e os gêmeos tiveram um
acidente de carro. Os meninos não sofreram nada, mas Grace quebrou os dois braços. Falei
com Daniel que vou tentar pegar o primeiro vôo para lá. Tem um que sai às sete da noite.
Selena se levantou, sentindo que precisaria fazer algo.
- E tia Grace está bem?
A mãe fez um aceno de cabeça, respondendo que sim.
- Está, disse. Ela terá de permanecer internada pelo menos até amanhã. Mas vai ficar
com os braços engessados durante várias semanas. Obviamente não poderá cuidar de Ivan e
Nathan. Os dois estavam dormindo no carro na hora do acidente. Foi um outro veículo que
bateu no deles, num cruzamento. Daniel disse que eles estão bem.
Selena sabia o quanto sua mãe era ligada a Grace, sua irmã mais nova. Ela sentia quase
obrigação de ajudar Grace sempre que esta precisasse. Por isso fora para Phoenix, por ocasião
do nascimento dos gêmeos. Isso acontecera um ano e meio atrás. Parecia que ela era uma
espécie de mãe para a irmã. Assumira essa posição quando a mãe delas morrera, havia cerca
de vinte anos. Agora, então, era também uma espécie de “avó” para os filhinhos dela.
- Então a senhora vai hoje, às sete da noite? indagou Selena.
- Ainda preciso conversar com seu pai, quando ele chegar, disse a mãe, dando uma
olhada para o relógio de pulso. Ele deve estar chegando. E como Tânia foi esquiar, e seu pai
está pensando em ir acampar com os meninos, você terá de ficar sozinha com Vó May.
- Tudo bem.
- É, eu sei que você é capaz de cuidar de tudo, continuou. Só que, às vezes, quando Vó
May tem uma daquelas falhas de memória, fica difícil lidar com ela.
- Mas eu dou conta, mãe. Comigo, quase sempre ela fica com a mente lúcida.
A mãe de Selena ajeitou atrás da orelha o cabelo castanho-claro, cortado curto. Selena
notou que ela também tinha lábios redondos e cheios.
- A senhora está preocupada porque Vó May terá de ficar sozinha o dia inteiro amanhã?
Eu posso faltar de aula, se a senhora achar melhor.
- Não. Não quero que você perca aula, não. Creio que não vai haver nenhum problema.
Afinal, antes de nos mudarmos para cá, ela ficou anos sozinha.
- Mamãe, disse Selena cruzando os braços, vai dar tudo certo. Me dá uma oportunidade
de provar que sou capaz de cuidar de tudo.
- Você não precisa provar nada, filha, replicou a mamãe.
Nesse momento, elas ouviram os passos do pai de Selena subindo a escada. Instantes
depois, ele chegava ao quarto da filha. Era um homem de aparência vigorosa. Seu cabelo, já ia
escasseando na testa, era a única indicação de que entrara na faixa dos quarenta anos.
- Eu escutei, disse ele, dando um rápido beijo na esposa.
Selena pensou se o pai já percebera que a mãe dela tinha lábios bonitos, perfeitos para
ser beijados, como ele acabara de fazer. Será que os homens notavam esse tipo de detalhe?
Principalmente depois de já haverem passado vinte e cinco anos beijando os mesmos lábios?
- Posso pegar o vôo das sete horas, explicou a mãe, mostrando ao marido o pedaço de
papel. Tem um que sai 10:20h, mas faz escala em Los Angeles.
- Pode pegar o das 7:00h. Eu cancelo o passeio com os meninos.
- Não precisa não, pai, interveio Selena. Eu fico com Vó May. Não vai ter problema
algum.
Os pais de Selena se entreolharam com ar de hesitação.
- O que foi? indagou a garota, levantando-se e dando um passo sobre seu monte de
roupas, pronta para confirmar o que dissera. Vocês estão me olhando como se eu não fosse
capaz de encarar essa situação. Já se esqueceram de que um mês atrás viajei sozinha para a
Inglaterra e voltei direitinho? É claro que posso ficar uns dias aqui com minha avó.
- Não é com você que estamos preocupados, não, explicou o pai.
- Vó May tem passado bem, disse Selena. Já faz uma semana ou menos, que ela não fica
esquecida. E ela não foi ao médico outro dia mesmo?
- Foi, replicou a mãe.
Ela caminhou até a porta e cerrou-a silenciosamente. Depois continuou falando em voz
baixa, para que só o marido e Selena escutassem:
- O médico pediu alguns exames e eu a levei hoje de manhá ao laboratório.
- Sim, e daí? indagou o esposo.
- Acho que os resultados devem ficar prontos na próxima semana. Mas tudo que vai dar
nos exames, nós já sabemos. A mente dela está falhando, mas no mais ela está com ótima
saúde.
- Podem confiar em mim, afirmou Selena. Nós duas vamos ficar muito bem aqui.
Vamos, sim!
E aliás, pensou consigo, nem vou precisar cancelar meus compromissos sociais, já que
não tenho nenhum mesmo.
Sua mãe deu um suspiro.
- Os meninos estavam aguardando com tanta ansiedade o passeio para ir acampar...
- Está bem. Nós vamos, disse o pai, tomando a decisão prontamente. Selena, você vai
ficar no comando da situação, filha. Meu bem, continuou ele, virando-se para a esposa, vou
levá-la ao aeroporto daqui a uma hora e, às 4:30h da madrugada, irei acampar com os garotos,
como já havíamos programado. Se você tiver algum problema, Selena, ligue para o Cody ou
então para o Wesley, tá bom?
Selena logo pensou que não adiantaria nada ligar para um de seus irmãos mais velhos.
Cody - que era casado com Katrina e tinha um filho de nome Tyler - morava no estado de
Washington, a mais de uma hora de distância. Wesley estudava fora, num lugar chamado
Corvallis, que ficava a quase duas horas. Se ela tivesse algum problema, eles não poderiam
ajudá-la em nada. Contudo tinha certeza de que poderia resolver quaisquer dificuldades que
surgissem.
- Você é simplesmente incrível, Selena! Sabia? Disse a mãe, dando-lhe um beijo na
testa. Estou sempre muito admirada com você; e muito feliz também! Ah, e por falar nisso, se
arranjar um tempinho nesse final de semana, dá um jeito de arrumar o quarto, o.k.?
Capítulo Dois
- Selena, uma voz grave sussurrou bem perto do ouvido da jovem. Querida, eu e os
meninos já estamos saindo.
A garota fez um esforço para abrir os olhos pesados.
- Pai?
- Não precisa acordar, não, filha. Só queria lhe dizer que já estamos de saída. Você pôs
o relógio para despertar, não pôs?
- Sim.
Ele deu-lhe um beijo leve na face.
- Obrigado por se dispor a assumir as rédeas de tudo aqui. E lembre que se houver
algum problema é só ligar para sua mãe, na casa da tia Grace, ou para Wesley ou Cody.
- Vai dar tudo certo, pai, tenho certeza, resmungou ela, puxando mais as cobertas e
encolhendo-se bem. Divirtam-se bastante! E peguem muito peixe, viu?
- Vamos pegar, sim. Tchau, querida!
Selena relaxou para dormir, mas ficou um longo tempo na “zona” intermediária - não
estava completamente desperta nem dormindo. E aí os sonhos iam sempre mudando.
Uma hora via Vó May, com ar distraído, procurando uma pena num dos armários.
Depois era Kevin, seu irmãozinho de seis anos, tentando permanecer firme às margens do
regato, enquanto um peixe enorme o puxava para a água. Daí a pouco, a pena aparecia
esvoaçando e caía na página do seu livro de Biologia. Quando ela ia pegá-la via, com o canto
dal olhos, um vulto masculino com um chapéu tipo Indiana Jones e uma mochila de couro.
Imediatamente abriu os olhos. Viu apenas o quarto às escuras. Paul. Selena soltou um
suspiro e fechou os olhos, procurando voltar a dormir. Queria cair num sono profundo, onde
os fragmentos de sonhos podem ir e vir numa dança louca, mas desaparecem com a luz do
amanhecer. Era aí que Paul teria de permanecer - em seus sonhos.
Ficou mais de duas horas remexendo-se na cama, tentando adormecer, mas sem
sucesso. Afinal, às 7:00h, levantou-se mal-humorada e dirigiu-se para o banheiro meio
cambaleante. Não sabia ao certo se deveria acordar a avó ou simplesmente deixar-lhe um
bilhete, avisando que fora para a aula e que estaria de volta em torno de 4:00h da tarde.
Decidiu vestir uma calça jeans bem larga (que Tânia achava ridícula) e uma blusa
bordada (que a irmã considerava horrível). Parou em frente do espelho grande que havia no
corredor e ficou a examinar sua imagem alguns minutos. Ainda bem que hoje Tânia não iria
dar palpites sobre sua maneira de vestir. Ouviu Vó May remexendo no quarto e foi até lá,
batendo de leve na porta.
- Entre, queridinha!
Bom sinal. “Queridinha” era um apelido carinhoso que Vó May usava com a neta. E
ultimamente ele passara a ter um outro sentido também. Se a avó a chamasse por esse apelido,
podia-se saber que estava vivendo “no presente”. Se não a tratasse por “queridinha”,
provavelmente estava pensando que Selena era alguém do seu “passado”. Momentos antes,
Selena tivera receio de que a mente da avó “embarcasse” na sua perigosa “máquina do
tempo”, que a transportaria para outra fase de sua vida.
- Bom dia! exclamou Selena em tom alegre, entrando no amplo quarto.
Vovó estava arrumando a cama. Retirava o edredom grosso e quente e estendia a velha
colcha feita à mão. Era uma colcha de retalhos que ela mesma confeccionara, utilizando
pedacinhos de tecidos das roupas dos filhos, que fora guardando durante vários anos. O
cômodo era agradável e de aspecto alegre. Havia uma lareira que ela acendia com frequência
e uma janela grande, junto à qual se via um assento.
- Já estou quase pronta para ir pra aula, disse Selena. O que a senhora vai fazer o dia
todo aqui sozinha?
- Hmmm, creio que vou fazer o de sempre: patinar de manhã e jogar boliche à tarde. E
pode ser também que sobre tempo para ir tomar chá com o prefeito antes de você voltar da
escola, disse ela, com um brilho brincalhão no olhar.
Selena sentiu que ela estava alerta e com seu humor de sempre.
- Ahn! Parece que vai se divertir muito! disse a jovem, brincando também. Não se
esqueça de colocar as cotoveleiras, hein?
Nesse momento o telefone tocou, e Selena atendeu na mesinha de cabeceira da avó,
antes que esta pudesse fazer a volta e pegá-lo. Bateu os olhos no relógio eletrônico, que
marcava 7:58h. Tinha de sair dentro de dois minutos.
- É a Sra. Jensen? indagou uma voz masculina.
- Aqui é Selena Jensen, filha da Sharon, explicou.
- Eu queria falar com May Jensen.
- Um momento. Ela está bem aqui.
Selena tapou o bocal com a mão e disse para a avó:
- É um dos seus namorados. Provavelmente vai sugerir que a senhora vá fazer um
bungee jumping *
hoje também.
Vó May pegou o fone e Selena tratou de terminar de arrumar a cama dela. Ouviu-a
responder ao seu interlocutor.
- Ah, é? Oh! Não, não! O.k.! É... Bom, não! Está bem! Tchau!
A senhora recolocou o fone no gancho no instante e que a neta saía porta afora.
- E aí? indagou Selena, olhando por sobre o ombro. O que mais vai fazer hoje? Bungee
jumping ou pára-quedismo?
- Vou operar da vesícula, replicou Vó May.
Selena riu, vendo a avó continuar a brincar.
- Então, divirta-se! falou.
*
Bungee jumping: um esporte moderno em que o praticante salta de um ponto elevado, amarrado a uma corda
elástica. (N. da T.)
Desceu a escada correndo e parou junto à porta da frente para pegar sua mochila, que
estava no cabide.
- Tenha um ótimo dia, vó!
- Selena! gritou a avó com voz aguda, ainda no alto da escada. Você pode me dar uma
carona?
A garota parou, sentindo uma leve irritação ao pensar que talvez chegasse atrasada à
escola. Volta e meia, ia levar a avó à farmácia ou à mercearia, mas será que hoje ela não
poderia deixar isso para depois das aulas?
- Vó, eu levo a senhora aonde quiser, mas depois que chegar da escola.
Já ia saindo e fechando a porta quando ouviu Vó May outra vez.
- Mas eu tenho de estar lá antes das nove.
- Nove da manhã ou nove da noite?
- Da manhã, explicou ela, com sua vozinha tremida.
Selena entrou de volta na sala e, procurando controlar a irritação, indagou:
- Aonde é que a senhora tem de ir?
- Para o hospital.
Selena ficou certa de que a cabeça de Vó May começava mesmoa vacilar de novo.
- Não é hoje não, vó.
- É hoje, sim. O Dr. Utley ligou agorinha mesmo e disse que não posso beber, nem
comer nada e tenho de estar lá às nove. Mas então pego um táxi.
Dizendo isso, ela se virou e foi caminhando para o quarto.
- Está bem, disse Selena. Tchau! Até de tarde!
- Eu não vou estar aqui não, replicou Vó May. Vou para o Hospital St. Mary. Você pode
ir direto pra lá.
Selena ficou sem saber o que fazer. Como era possível que a mente da avó mudasse
assim de uma hora para outra? Não poderia deixá-la ali sozinha, com esse problema. Ela era
bem capaz de chamar um táxi e sair para algum lugar. O que faria se chegasse em casa e a avó
não estivesse? Soltou um resmungo de impaciência, largou a mochila no chão e subiu a
escada de dois em dois degraus. Vó May estava no quarto, dobrando algumas peças de roupa
e guardando-as numa bolsa de viagem.
- Ele disse que não posso comer nem beber nada, nem mesmo água. E agora, só porque
não posso, estou morrendo de fome. Foi uma bênção o Dr. Utley ter resolvido ler os
resultados dos exames hoje cedo. Ele vai viajar às três da tarde e ficará fora uma semana. Não
posso esperar esse tempo lodo.
Vó May pegou um vidro de loção hidratante e continuou falando e arrumando a mala.
- É por isso que não me incomodo de ele ter avisado e cima da hora. É claro que quero
que ele mesmo faça a cirurgia. Foi ele que operou Paul, quando ele teve apendicite.
Paul era um dos filhos dela. Ele morrera na guerra do Vietnã, o que a deixara bastante
traumatizada. Sempre que ela começava a falar desse filho, tinha uma crise de esclerose.
Selena sentou-se na beirada da cama e colocou a mão sobre o braço dela, para tentar
fazer com que parasse de arrumar a maleta.
- Vamos fazer uma coisa, disse. A senhora fica em casa hoje e me espera aqui, no seu
quarto. A senhora vai ficar muito bem. Pode assistir à televisão ou ler um livro. Quando eu
voltar, nós duas vamos procurar o Dr. Utley. Que tal? Ta bom assim?
Vó May dirigiu-lhe um olhar irritado e retirou a mão lentamente.
- Não sei por que você está falando comigo desse jeito Selena. Mas quero lhe dizer que
não estou brincando. Quem me telefonou há pouco foi o Dr. Utley. Pelo resultado dos exames
que fiz, ele disse que tenho de extrair a vesícula o mais rápido possível. E como quero ser
operada por ele, tenho de ir agora de manhã. Mas não se preocupe com nada. Pode ir pra
escola. Eu pego um táxi.
Selena não sabia mais o que pensar e ficou em dúvida sobre o que fazer.
- É... posso me atrasar um pouco, disse afinal.
Resolveu que iria esperar que essa crise matinal da avó passasse. Iria para a escola
assim que percebesse que a mente dela voltara ao normal.
- Oh, meu pai! exclamou Vó May, olhando para o relógio. Já são 8:25h. Estou
atrasando-a para a aula, não é, queridinha?
Selena ficou paralisada. Ela me chamou de “queridinha”. E ela só me trata assim
quando está em seu juízo normal. E se realmente estiver dizendo a verdade?
Com a cabeça a mil, Selena levantou-se e disse:
- Está bem. Enquanto a senhora termina aqui, vou dar uma chegadinha lá embaixo.
Em seguida, saiu do quarto, fechou a porta, desceu a escada correndo e entrou na saleta
do andar de baixo. Foi até uma velha escrivaninha de carvalho e pegou a agenda telefônica.
Abriu-a nervosamente, procurando o nome do Dr. Utley. Discou o número e assim que a
telefonista atendeu disse:
- Alô! Preciso falar com o Dr. Utley imediatamente. É urgente! Meu nome é Selena
Jensen.
- Um minuto, por favor!
Para Selena, que estava aguardando, aquele minuto pareceu uma hora. Escutava os
passos da avó no andar de cima.
- Vamos, vamos! Depressa! murmurou ao telefone.
- Alô! Dr. Utley falando!
- Alô, Dr. Utley. Aqui é Selena Jensen. Sou neta da Sra. May Jansen. Sinto muito ter de
incomodá-lo, mas minha avó disse que o senhor ligou para ela agora de manhã, e que ela vai
ter que fazer uma cirurgia. E não estou sabendo direito o que fazer, porque às vezes ela fica
meio esquecida e confunde as coisas e...
- Entendi, disse o médico, interrompendo-a. Sua mãe está em casa?
- Não, replicou a moça. Será que o senhor poderia conversar com minha avó e explicar
tudo direitinho para ela?
- Na verdade, tenho de explicar é para você. Sua avó fez uns exames ontem, e o clínico
enviou os resultados para mim. Ela está com vários cálculos na vesícula. Um deles deslocou-
se e está entupindo um dos canais biliares. Já marquei a cirurgia dela para hoje às 11:00h. Ela
precisa estar no hospital até às 9:00h.
Selena teve a sensação de que o ar da saleta havia acabado.
- Está bem, conseguiu dizer afinal. Vou levá-la para lá imediatamente.
Recolocou o fone no gancho e deu um suspiro profundo. Sentiu o coração bater com
força.
- Queridinha, disse vovó com sua vozinha frágil, estou pronta.
Capítulo Três
O Hospital St. Mary ficava a poucos quilômetros da casa de Vó May. Selena encontrou
uma vaga bem perto da porta de entrada. Às dez para nove, elas estavam se apresentando na
recepção. Vó May assinou uns documentos, e em seguida ela pegaram um elevador e foram
para um quarto. Lá vovó iria trocar de roupa e vestir a camisola do hospital. A seguir, deveria
deitar-se na cama e esperar.
- Volto já! disse Selena afastando-se, pensando em ligar para a mãe.
- Espere aí, queridinha! Fica vigiando a porta aí pra mim enquanto troco de roupa. Não
deixa nenhum enfermeiro entrar não.
Selena abriu a cortina que havia em torno do leito e postou-se à porta. Daí a pouco
chegava um funcionário do laboratóro. Selena barrou-o.
- Ela está trocando de roupa, disse. Espere só um minuto.
- É o Ted? indagou Vó May.
Selena mordeu o lábio inferior. Ted era o nome do seu avô. E ele morrera quando ela
ainda era bem pequenina. Agora, Vó May devia estar mesmo confusa.
- Meu nome é Larry, senhora. Preciso retirar amostra do seu sangue. Quando estiver
pronta, me avise.
- Estou pronta, replicou ela em voz calma.
Selena abriu a cortina. A avó estava deitada na cama, coberta até no queixo com o
lençol branco. Tinha uma expressão passiva, tranqüila. A animação que demonstrara cedo
desaparecera.
- Feche a mão com força, disse o rapaz, pegando no braço muito branco. É só uma
espetadinha aqui... Fique firme, já está quase acabando... Pronto. Dobre o braço e segure isso
bem aqui.
Vó May nem pestanejou. Olhou para Selena e deu um sorriso.
Oh, minha querida vovó! pensou Selena. Quem será que a senhora acha que sou
quando olha pra mim? Uma das suas filhas? A enfermeira? Será que pelo menos sabe que
estou aqui? Que será que devo fazer?
Selena continuou ao lado da cama durante uma hora. As duas não conversaram muito.
Pelo menos Selena não falou muito. Vó May pediu uma xícara de café e um lenço de cabeça,
azul, que deixara no carro. Perguntou a que horas iria embora dali. Nada daquilo fazia sentido.
Selena não a contrariou, mas também não arredou pé.
Vó May parecia não estar se dando conta do que se passava. Sem fazer indagações,
assinou um documento no qual estavam relacionados todos os objetos com que chegara ao
hospital. A enfermeira lhe disse que fosse ao banheiro, e ela foi sem objetar. Estendeu o braço
para que lhe fosse aplicada uma injeção intravenosa e apenas piscou de leve com a picada da
agulha. Selena estava até aliviada de ver que ela se achava mais ou menos desligada
mentalmente dos preparativos para a cirurgia.
Quando vieram buscá-la, Selena indagou se poderia conversar ligeiramente com o
médico.
- Pode vir conosco, disse a enfermeira.
A moça seguiu-a, andando ao lado da maca. Num impulso, inclinou-se, pegou a mão da
avó e ficou a segurá-la com firmeza enquanto iam descendo o corredor. Sua avó tinha mãos
graciosas, a pele fina e sedosa e levemente enrugada.
- Agora espere aqui, falou a enfermeira.
Eles continuaram empurrando a maca, e Selena, não sem certa relutância, teve de soltar
a mão de Vó May.
- Tchau! murmurou baixinho.
Instantes depois, viu chegar um homem idoso, vestido com a roupa verde do hospital.
Ele se aproximou dela.
- Você é a filha de May? indagou ele.
- Neta, corrigiu Selena. É, eu sou a Selena. Queria só lhe dizer que ela está um pouco
confusa. De manhã, depois que o senhor ligou, ela estava ótima. Mas agora parece que está
com a crise de esquecimento de novo. Não sei se isso vai fazer alguma diferença no que diz
respeito à operação, mas eu queria lhe avisar.
- Obrigado, disse o médico, batendo-lhe de leve na mão. Não se preocupe. Ela vai ficar
boa. Você poderá ficar com ela na sala de observação? Acho que será bom que ela veja uma
pessoa conhecida na hora em que voltar da anestesia.
- Posso. Eu fico com ela.
Selena sentiu um forte aperto na boca do estômago. Sabia que tinha de telefonar para a
mãe e contar o que estava acontecendo, mas havia diversos problemas. Primeiro, não tinha de
cor o número do telefone de tia Grace. E estava na dúvida se deveria ir em casa olhá-lo ou
ficar junto da avó. Vó May estava sendo operada. Achou que era melhor permanecer no
hospital.
Talvez o melhor a fazer fosse ligar para o irmão e a cunhada. Eles deveriam saber o
número e ligariam para a mãe.
Selena vasculhou o fundo da mochila à procura de dinheiro e acabou descobrindo que o
que tinha não daria para pagar um interurbano. Teria de ligar a cobrar. Katrina iria
compreender.
O problema era que Katrina não estava em casa e a telefonista não permitiu que ela
deixasse recado na secretária eletrônica. Agora então o dinheiro acabara e ela não havia
resolvido nada. A única alternativa seria ir em casa.
Assim que entrou no casarão vazio, Selena foi logo dar telefonemas. Em primeiro lugar,
ligou para a tia e deixou um recado na secretária. Como não queria assustar a mãe dizendo-lhe
que Vó May estava no hospital, deixou um recado simples.
“Oi, mãe. Aqui é Selena. Assim que a senhora puder, liga para mim ainda hoje... o mais
depressa possível. Preciso conversar com a senhora.”
Desligou e depois ficou pensando se não deveria ter deixado um recado mais claro. Em
seguida, anotou o número num pedaço de papel e guardou-o na mochila. Mais tarde iria ligar
de novo, lá do hospital. Em seguida, discou novamente o número de Cody e deixou uma
mensagem, pedindo que entrasse em contato com ela em casa. Para eles também não disse
nada sobre Vó May nem sobre a cirurgia.
Pegou uma caixinha de suco de laranja, alguns biscoitos e umas moedas que a mãe
“escondia” na gaveta da mesa da cozinha. Eram moedas que ficavam esquecidas nos bolsos
da roupa e que sua mãe encontrava depois na secadora. Ela dizia que eram a sua “gorjeta”.
Em seguida, saiu apressadamente para retornar ao hospital. Ali esperou quase duas
horas. Tentou ligar para a tia duas vezes, e nas duas desligou um pouquinho antes de a
secretária se ligar automaticamente, para poder pegar as moedas de volta. Não havia mais o
que fazer, a não ser sentar e ficar aguardando que Vó May saísse do bloco cirúrgico. Forasm
as duas horas mais longas de sua vida.
Por volta de 13:30h, uma enfermeira veio até a sala de espera e disse que Selena já
podia ir para a sala de observação e ficar com a avó. Então a garota sentou-se numa cadeira e
pôs-se a esperar mais algumas horas. Ficou folheando algumas revistas que havia por ali e, de
vez em quando, cochilava. Pensou em fazer outra tentativa de ligar para a mãe, mas achou
melhor deixar para depois. E se Vó May voltasse a si enquanto ela estivesse telefonando?
Pegou o último biscoito e deu uma mordida. Nesse momenton, ouviu um gemido.
- Estou aqui! disse Selena, dando um salto e aproximando-se da cama.
Sentiu uma forte comoção interior e teve vontade de chorar. Sua avó querida parecia tão
fraquinha ali com aqueles tubos ligados a ela! Estendeu o braço e tocou de leve na mão dela.
- Está tudo bem! disse, tentando confortar a avó e a si mesma. A senhora vai ficar boa.
Uma enfermeira entrou no quarto e se pôs a olhar a paciente com os cuidados de praxe.
Selena deu um passo para trás.
- Volto já! disse a moça. Se ela disser qualquer coisa, explique que Selena volta já.
Caminhou apressadamente corredor abaixo em direção do telefone público e discou o
número da tia. Estava ocupado. Aguardou alguns minutos e ligou de novo. Ainda ocupado.
Ficou nervosa, como se fossem repreendê-la por haver levado Vó May para ser operada sem
ter pedido a permissão deles.
Discou de novo. Dessa vez, chamou. Aparentemente havia alguém em casa, então
Selena deixou o telefone tocar quatro vezes. Na quarta, a “secretária” ligou automaticamente.
“Oi!” disse. “É Selena de novo. Mãe, eu preciso muito falar com a senhora. Ahn...”
parou sem saber o que mais dizer. “Eu... ah...” gaguejou.
Receando que o dinheiro acabasse antes que terminasse o recado, soltou tudo de uma
vez.
“Estou no hospital e Vó May...”
Não pôde terminar a sentença. O tempo acabou e o fone ficou dando sinal de ocupado,
cortando o que ela dizia. “Ah, essa é ótima!” resmungou, procurando mais dinheiro.
Só tinha trinta e cinco centavos. Não era suficiente para ligar para Phoenix. Irritada,
Selena voltou correndo para quarto para ver a avó. Entretanto, quando chegou lá, Vó May não
se encontrava mais ali.
Capítulo Quatro
- Com licença, disse Selena para uma enfermeira de uniforme branco que passava.
Estou procurando a Sra. May Jensen. Sabe pra onde a levaram?
Ela consultou sua prancheta de mão onde havia uma lista de pacientes.
- Quarto 417, replicou. O elevador fica no fim do corredor.
Selena soltou um suspiro de alívio. Por uns instantes, pensou que houvera alguma
complicação e que tivessem levado sua avó de volta para a sala de cirurgia.
Entrou no elevador calmamente e concluiu que talvez estivesse assistindo à televisão
demais, principalmente aos programas com temas de “hospital”. O quarto 417 ficava no meio
do corredor, próximo ao posto de enfermagem. Selena entrou e viu que Vó May parecia
dormir tranqüilamente. Ela linha uma respiração bem peculiar quando adormecia. Era suave,
mas constante, como que “encrespando” o ar. A jovem parou ao lado da cama e falou em voz
baixa:
- Sou eu. Selena. A senhora está bem? Orei pela senhora. Tenho certeza de que correu
tudo bem.
Nesse momento, o Dr. Utley entrou no quarto.
- Ela já acordou? indagou ele.
- Não. Ou pelo menos não acordou de todo.
- É provável que fique dormindo mais algumas horas, explicou o médico. A essa altura,
o efeito da anestesia já passou, mas aplicamos uns analgésicos muito fortes que causam
sonolência.
Ele olhou atentamente para o rosto de Vó May e em seguida examinou o soro e as
sondas.
- Parece que ela está bem, disse. Acredito que vai ficar boa. Tivemos muita sorte de
descobrir o problema bem cedo. Havia apenas dois cálculos, mas ambos eram grandes. Tive
de fazer uma incisão de cerca de quinze centímetros aqui, explicou ele, correndo o dedo em
um ponto do lado direito do próprio abdômen, logo abaixo das costelas.
Selena teve vontade de levar as mãos à barriga, mas conseguiu conter-se. Sentira uma
estranha sensação no estômago só de ouvi-lo falar no corte, e achou que era melhor não
procurar ver nada.
- Ela terá de ficar internada pelo menos uma semana. Nos primeiros dias, estará meio
grogue, mas sabendo que você está aqui se sentirá melhor, continuou o Dr. Utley, sorrindo
para Selena. Você sabe que sua avó é uma mulher notável, não sabe?
Selena sorriu.
- É, eu sempre achei isso também, replicou.
- Eu não me espantaria nada se ela se recuperasse na metade do tempo que os outros
pacientes da idade dela levam para sarar.
- E no entanto, comentou Selena, abaixando a voz para o caso de Vó May estar
escutando, é muito doloroso saber que seu organismo está forte, mas a mente... concluiu ela,
deixando a voz sumir, sem saber como terminar a frase.
- É, eu sei, disse o Dr. Utley, acenando afirmativamente. É preciso um pouco de
paciência e muito amor. Isso ajuda bastante.
Ele deu uma espiada rápida no relógio.
- Bom, tenho de pegar o avião, disse num tom mais animado. Vou sair de férias. Estava
precisando de uma folga há um bom tempo. Meu assistente, o Dr. Adams, vai continuar
cuidando dela por mim. É possível que ele passe aqui mais tarde, hoje ainda.
- Obrigada, falou Selena. E tenha ótimas férias!
- Espero que sim, respondeu ele, caminhando para a porta.
Selen chegou perto da cama e tentou de novo conversar com Vó May.
- Ouviu isso, vó? O Dr. Adams virá aqui para ver a senhora. Vou ficar enquanto a
senhora quiser que eu fique, tá bom? Se precisar de alguma coisa, é só dizer.
A resposta de Vó May foi um suspiro ligeiramente mais profundo. Selena foi para uma
poltrona que havia num canto. Dobrou as pernas na cadeira, sentou-se sobre elas e se pôs a
olhar pela janela. O quarto dava para outra fachada do prédio do hospital. Lá embaixo, no
centro dos blocos do complexo hospitalar, havia um jardim muito bonito e bem cuidado.
Estava chovendo. Olhou para o céu. Algumas nuvens escuras pareciam estar mais baixas,
enquanto outras se mostravam fixas mais no alto. Não dava para ver o céu azulado acima
delas. Era uma típica tarde de primavera em Portland.
Selena se pôs a recordar tudo que lhe havia acontecido nos últimos meses. Em janeiro,
fora para a Inglaterra, numa viagem missionária. Ali fizera amizade com as três jovens que
haviam ficado no mesmo quarto que ela: Cris, Katie e Trícia. Embora essas moças fossem um
pouco mais velhas, Selena se dera muito bem com todas, em tudo e por tudo. Entendera-se até
melhor com elas do que com garotas da sua própria idade. Quando ela estava na Europa, sua
família que morava em Pineville, uma cidadezinha da Califórnia, mudara-se para Portland.
Em Pineville, ela conhecia todo mundo e todos a conheciam. Era uma das alunas mais
populares de sua escola. Em Portland, porém, era apenas uma ilustre desconhecida.
Aqui ela estudava numa escola particular, um colégio evangélico. A princípio gostara da
idéia, pois, como o colégio era menor do que as escolas públicas de Portland, achou que se
sentiria mais ou menos como em sua escola de Pineville. Contudo, depois que regressara da
Inglaterra, tivera certa dificuldade de ajustar-se ali. O início havia sido horrível para ela. Mais
tarde, tudo acabara se acertando, mas ela ainda não se integrara bem na turma. É claro que,
em parte, ela própria era a culpada. Não se esforçara nem um pouco para fazer amizade com
os colegas. Ainda assim, sendo ali uma escola evagélica, ela achara que os alunos seriam mais
amigáveis do que os da escola pública, que eram mais numerosos. Entretanto não era o que
estava acontecendo.
Vó May remexeu-se na cama. Selena olhou para ela, mas a avó acomodou-se,
retomando o ritmo constante de sua respiraçao. A jovem voltou a olhar pela janela e a
concentrar-se nas suas recordações.
Selena pensou que, embora não quisesse deixar Vó May ali sozinha, amanhã teria de ir
à entrevista na floricultura, onde havia a possibilidade de arranjar um emprego. Sem o
trabalho, não teria dinheiro, e assim seria mais difícil participar dos círculos sociais do
Colégio Royal.
Duas semanas atrás, Amy, uma colega, convidara-a para irem a uma pizzaria numa
sexta-feira à noite. Ela aceitara, mas quando a moça viera pegá-la, os pais de Selena não
estavam em casa para lhe darem dinheiro, e ela não tinha nada na bolsa.
Desculpou-se com Amy, dizendo que seus pais não estavam em casa e que não se sentia
com liberdade de sair sem a permissão deles. A amiga pareceu entender a situação, mas
depois disso nunca mais a convidara para nada. Então Selena estava convencida de que o
emprego seria a solução para sua falta de relacionamento social.
Selena permaneceu várias horas ao lado da cama, ouvindo a respiração compassada de
Vó May e cumprimentando cada enfermeira que entrava para dar uma espiada na paciente.
Sentiu o estômago “roncar” e pensou que deveria ir comer algo e tentar telefonar de novo para
a mãe. Contudo não queria sair antes que Vó May acordasse; para que ela soubesse que a neta
se achava ali. Afinal, quando começou a escurecer, achou que teria mesmo de sair. Foi ao
posto das enfermeiras e explicou que iria sair e que demoraria uma hora ou menos. Elas se
limitaram a sorrir compreensivamente, mas pareciam presas ao seu trabalho. Obviamente, não
tinham para com Vó May o mesmo interesse que a neta.
Selena teve uma sensação meio estranha quando subiu a escadinha da entrada da velha
casa, em meio à escuridão da noite e abriu a porta. Nunca estivera ali sozinha. Como em sua
família havia seis filhos, raramente ficava a sós. Sentiu-se meio tensa ao entrar na sala e
caminhar para acender a luz. Entretanto os cheiros peculiares da casa lhe transmitiram a
sensação de conforto. Havia um odor de canela misturado ao de naftalina. Eles estavam
associados a recordações de infância, ao lugar em que ela gostava de se esconder quando
brincavam de “pegador”: o armário largo e alto, forrado com um papel vermelho e amarelo, já
meio desbotado. Ela le enfiava bem no fundo dele, atrás dos pesados casacos de inverno,
sentindo aquele cheiro de naftalina e de canela. Ainda se lembrava de que numa de suas férias
seu pai havia lido um livro para eles. Era a história de quatro crianças que entravam num
armário cheio de casacos velhos e por ali chegavam a uma terra mágica chamada “Narnia”. E
Selena acreditara que aquilo poderia acontecer realmente. Aliás, estava convencida de que
aquele armário da casa de Vó May também era encantado. Se entrasse nele num momento
mágico, também seria levada para “Narnia”. E tentou isso várias vezes, até que completou
onze anos. No entanto, embora tivesse parado de fazer tentativas, lá no fundo ainda cria que
seria possível. Era um devaneio maravilhoso ao qual ela até gostaria de poder entregar-se.
Seria muito gostoso entrar no armário e ficar ali bem encolhidinha. Mas não. Agora já tinha
dezesseis anos e no momento sua responsabilidade era cuidar da avó. Então tentou novamente
ligar para a mãe. Dessa vez, o tio atendeu.
- Alô! É Selena! disse.
Antes que ela pudesse dizer outra palavra, o tio se pôs a berrar no telefone.
- Onde é que você está? O que é que está acontecendo? Que recado foi aquele que você
deixou na secretária? Sharon, vem cá! É sua filha!
Selena nunca gostara muito do tio Daniel. Sua mãe veio ao telefone. Falou com uma
voz calma, meio forçada, e a moça percebeu que ela estava cansada. Se ela estivesse em casa
agora, iria vestir uma roupa esportiva e sair para fazer seu cooper e voltar toda suada.
- Como é que você está, Selena?
- Estou bem, respondeu. O problema é com Vó May. Hoje de manhã o Dr. Utley ligou e
disse que, pelos resultados dos exames, ela deveria ser operada da vesícula imediatamente, E
a cirurgia foi às onze horas.
Selena deu os detalhes e mamãe ficou escutando calmamente. A garota ouvia a
respiração pesada do tio, que estava escutando na extensão. Aquilo a deixou irritada. Assim
que ela terminou de explicar tudo, ele disse:
- Nós passamos a tarde toda tentando entrar em contato com você. Deixou sua mãe
muito aflita, sabia?
- Está tudo bem, interveio a mãe. E como é que ela está?
- Quando saí de lá, ainda estava dormindo sob efeito dos remédios. Vou só fazer um
lanche e voltar para lá em seguida. Mãe, onde é que tem dinheiro nesta casa? Tive de pegar as
suas “gorjetas” da secadora pra poder ligar para a senhora.
Sua mãe explicou-lhe que dentro de uma das gavetas da escrivaninha do escritório havia
um envelope com dinheiro. Disse que ela podia pegar o quanto precisasse. Selena tirou $20,00
dólares.
- Vou ver se volto para casa amanhã, disse a mãe.
- Ah, que maravilha! resmungou tio Daniel na extensão, colocando o fone no gancho.
A mãe ficou em silêncio alguns instantes, e depois disse:
- A situação aqui está um pouco difícil. Acha que dá para passar a noite sozinha aí?
- Vou voltar para o hospital, replicou Selena. Quero passar a noite lá, com Vó May.
Houve outra pausa, e em seguida a mãe disse:
- Você é o sonho de toda mãe, filha. Sabia? Se houver algum problema, ligue para mim,
o.k.? Pode ligar, mesmo que seja no meio da noite. E se você não telefonar, então amanhã
cedo ligo para o hospital para saber notícias.
- 'Tá bom, disse Selena. Assim está ótimo. Tenho certeza de que ela vai passar muito
bem.
- Vou ficar orando por isso, concluiu a mãe.
Capítulo Cinco
Selena passou a noite encolhida na poltrona que havia no quarto de Vó May. Por volta
de 3:30 avó acordou. Gemeu alto e parecia estar chorando. Selena saltou da poltrona e correu
para perto da cama. Imediatamente apertou o botão par chamar a enfermeira.
- Calma, vó! disse. A enfermeira já está vindo. A senhora quer um pouco de água?
Pegou um copinho com água que estava na mesinha de cabeceira e deu para ela,
juntamente com um canudinho. Entretanto Vó May não quis beber. Nem ao menos abriu os
olhos. Ficou só gemendo e tentando se mover.
- Cadê essa enfermeira? resmungou Selena. A senhora está incomodada, vó? Quer que a
ajude a mudar de posição ou algo assim?
A enfermeira entrou no quarto.
- Oi! disse.
- Ela está gemendo, explicou Selena, procurando falar com calma, embora estivesse
nervosa. Não sei o que faço.
- Como é que você está, hein? disse a mulher para Vó May, pegando de leve a mão dela
para lhe sentir o pulso. Está sentindo dor?
Vó May gemeu mais forte.
- Ah, nós podemos dar um jeito nisso.
Ela examinou o frasco de soro e continuou falando mais para si mesma do que para
Selena ou a paciente.
- Vamos colocar outro frasco aqui para você.
- Serái que ela sabe que estou aqui? indagou Selena.
A enfermeira fez que sim.
- Ela está apenas grogue. É muito bom que você esteja aqui. Continue conversando com
ela. Volto já.
Selena pegou a mão de Vó May e segurou-a de leve. Estava fria e suada.
- Como é que está minha avozinha querida? perguntou com voz alegre.
Selena não levava muito jeito para animar uma pessoa doente. Contudo gostava muito
da avó e, por ela, seria capaz até mesmo de exibir uma fachada de coragem quando na
verdade se sentia meio insegura.
A enfermeira retornou e fez seu serviço. Em seguida, Vó May se acalmou e dormiu de
novo. Selena voltou para a poltrona e se ajeitou nela, cobrindo-se com um cobertor. Não
conseguiu dormir. Passou as horas frias da madrugada orando e pensando. Orou e pensou
bastante.
Passava um pouco de 7:00h quando a campainha do telefone a despertou de uma leve
sonolência. Deu um salto para atender.
- Alô!
- Alô! É mamãe. Como você está?
- Estou bem. Vó May passou a noite muito bem. Ainda está dormindo, replicou Selena,
sussurrando.
- Não. Não estou, não, queridinha. Quem é?
Selena olhou para a avó. Tinha os olhos um pouco inchados, mas não havia dúvida de
que estava acordada.
- É mamãe. Quer falar com ela?
- Acho que sim. Não tenho muito o que dizer, respondeu ela, com a voz meio rouca.
Selena aproximou o fone do ouvido da avó.
- Não, disse Vó May, respondendo a uma pergunta da mãe de Selena. Estou bem. Só
não estou conseguindo me mexer. Estou cheia de tubos por todo lado.
Selena fitava a avó e viu a expressão do rosto dela se anuviar, lembrando-lhe as nuvens
que vira no céu no dia anterior. O olhar dela era de quem estava confusa, sem lucidez. Ela
fitou Selena e depois o aparelho.
- Diga pra eles que não quero mais, falou com rispidez, afastando o rosto do telefone e
procurando virar o ombro.
Selena pegou o fone rapidamente.
- Mãe, disse ela, acho que ela está com uma de suas crises de esquecimento.
- Não quero nenhum, resmungava Vó May. Se eu quisesse mais panos de prato teria
dito para eles.
- Mãe! disse Selena.
- Calma, Selena. Fique calma e tranqüila. Vai dar tudo certo. Olhe, eu est...
Selena largou o fone e correu para segurar a mão da avó. Ela estava tentando arrancar o
fio do soro.
- Tem de deixar isso aí, falou com firmeza. Não pode tirar ainda não.
Com uma das mãos segurou o pulso da avó, para que ela não arrancasse o tubinho, e
com a outra apertou o botão para chamar a enfermeira. Do fone dependurado, vinha a voz de
sua mãe que a estava chamando.
- Fique assim, disse Selena, batendo de leve na mão da avó e afastando-a do fio do soro.
A senhora está boa!
- Mas eu não quero, insistia Vó May. Eles deviam ter me perguntado.
Em seguida, ela se pôs a chorar como uma criança que sente que perdeu a luta. Nesse
instante a enfermeira entrou no quarto. Era uma nova, que Selena ainda não vira.
- Oi! disse, cumprimentando-a nervosamente. Minha avó está tentando arrancar a
agulha do soro.
- Pode não! disse a enfermeira meio na brincadeira, como se estivesse repreendendo
uma criancinha.
Isso irritou Selena.
- Olhe aqui, falou em tom de defensiva, ela não está entendendo as coisas direito não,
viu?
A mulher olhou para a jovem com expressão de espanto e pegou a mão de Vó May para
examinar-lhe o pulso. Selena largou o braço que estava com o soro e pegou o fone.
- Mamãe?
- Pronto, querida, Está tudo bem aí?
- Não sei. Creio que sim. Ela está com uma de suas crises de esclerose e...
- Você agiu certo. Escute, eu ia lhe dizer que estou aqui no aeroporto.
- Em Phoenix?
- Não. Em Portland. Peguei o primeiro vôo hoje cedinho. Acha melhor eu tomar um táxi
para ir ao hospital?
Selena pensou um pouco. Sabia que levaria apenas meia hora para ir ao aeroporto e
voltar.
- Não, disse ela, com os olhos fixos na avó e na enfermeira. Vou aí buscá-la. Acho que
Vó May ficará bem aqui. Eu a encontro perto da esteira de bagagem.
Desligou e se pôs a observar a enfermeira, que fazia algumas anotações no computador
onde se achavam registrados todos os dados e medicamentos da paciente. Parecia que Vó May
voltara a dormir, embora estivesse meio inquieta.
- Dê uma olhada nela pra mim, disse para a mulher. Volto já.
- É pra isso que eu ganho os milhões que recebo todo mês, minha filha, replicou a
enfermeira num tom ríspido.
Selena saiu apressadamente, já desejando ter dito à mãe que pegasse um táxi. Não teve
dificuldade para sair do estacionamento do hospital e descer a via expressa em direção ao
aeroporto. O difícil seria acertar a pista certa ao chegar lá. Ela já se perdera mais de uma vez
nas vias expressas de Portland, mas hoje não tinha muito tempo de sobra. Senta-se
responsável por Vó May.
Afinal avistou a placa que indicava a via de acesso para o aeroporto e conseguiu entrar
sem maiores problemas. Avistou a mãe no setor de recolhimento das bagagens e saltou do
carro para dar-lhe um abraço. Assim que sentiu os braços da mãe em torno dela, teve vontade
de chorar, mas resistiu ao impulso. Fora forte até aquele momento e poderia continuar firme
para não assustar a mãe.
Sua mãe jogou a mala no assento de trás do fusca, e Selena passou para o banco do
passageiro. Tão logo saíram da movimentada área do terminal, ela soltou um suspiro de
alívio. Agora a mãe estava na direção; e não era apenas do carro.
- Como é que você está? indagou ela, dando um olhar rápido para a filha.
Antes, porém, que a moça respondesse, ela continuou:
- Seria bom se a gente pudesse entrar em contato com seu pai. O médico falou quanto
tempo ela terá de ficar internada? Ela já comeu alguma coisa?
- Estou bem, creio que não e não, replicou Selena. Utilizara o método que seu irmão
Wesley adotara para responder à mãe, que sempre fazia as perguntas uma atrás da outra. Sua
mãe sorriu.
- Nem lembro mais as perguntas que fiz, disse ela. Estou tão preocupada com as duas!
Vamos começar de novo. Você está bem?
- Claro. Estou ótima.
- Você foi maravilhosa, Selena!
- Eu não fiz nada, mãe. Na verdade, quase estraguei tudo.
Contou-lhe que não acreditara em Vó May quando esta dissera que o médico havia
telefonado.
- Ainda bem que você teve o bom senso de não ir à aula, disse a mãe, abanando a
cabeça. Não sei se eu teria tido. Quer que a leve pra casa para você dormir um pouco?
- Não, quero ir para o hospital com a senhora.
Selena olhou pela janela do carro quando entravam na via expressa. Nesse momento se
lembrou de que tinha uma entrevista marcada na floricultura Zuzu's Petals, dali a pouco, às
9:00h.
- Na verdade, talvez seja melhor eu ir para casa mesmo. Quero tomar um banho antes da
entrevista. Acho que estou meio desarrumada.
- E você terá de ir a pé à floricultura, disse a mãe.
- Tudo bem, replicou a jovem. São apenas alguns quarteirões.
Momentos depois, às cinco para as nove, Selena achou que aqueles quarteirões haviam
se transformado em quilômetros. Apressou o passo. Com uma das mãos, pegou o cabelo, bem
cheio e encaracolado, e agitou-o de leve para cima e para baixo. Na nuca, ainda estava um
pouco molhado. Vestira uma camiseta clara, de mangas compridas, com um coletezinho
bordado. Pusera uma saia de algodão, bem leve que ia até um pouco abaixo dos joelhos. E
enfiara nos pés seu calçado predileto - a velha bota de cowboy que tinha sido de seu pai.
Selena se apegara muito a ela, embora estivesse velha e meio fora de moda. Aliás, esse
calçado era sua “marca registrada”.
Quando faltava apenas uma quadra para chegar à floricultura, começou a cair uma garoa
leve. Passou em frente de uma confeitaria, onde viu uma fila de clientes aguardando a “saída”
dos pãezinhos doces, quentes, temperados com canela. Naquele momento a porta se abriu e o
cheiro forte chegou até ela, dando-lhe vontade de entrar na fila também, entretanto, se
quisesse chegar à hora ao seu compromisso, não poderia parar agora. A Zuzu's Petals ficava
duas lojas abaixo.
E com mais alguns passos chegou à loja. Selena fez uma rápida oração e girou a
maçaneta da porta. Estava tranca
Capítulo Seis
Selena foi até a portinha lateral da loja e espiou pela fresta. Em seguida bateu de leve na
vidraça. A luz estava apagada; não se via movimento algum no cômodo dos fundos.
Estranho! pensou. Tenho certeza de que a entrevista seria hoje. E já passa de nove
horas. Por que será que não tem ninguém aqui?
Olhou para um lado e outro. Talvez a dona da loja tivesse ido tomar um café e comer
um daqueles pãezinhos quentes, com sabor de canela. Repassou mentalmente a conversa que
tivera com a mulher, uma semana atrás. Tinha certeza de que ela marcara para hoje, às 9:00h
da manhã.
Fora Vó May quem arranjara essa entrevista para Selena. A avó adorava flores e havia
muitos anos que era cliente da Zuzu's Petals. A moça já ouvira a avó dizer várias vezes:
- Se eu tivesse só dois dólares, com um compraria pão e o outro gastaria em flores. O
pão é alimento para o corpo, mas as flores satisfazem o coração.
Na semana anterior, Vó May ligara para a floricultura encomendando flores para uma
tia de Selena que tivera bebê. E antes de encerrar a conversa, ela estendera-o para a neta,
dizendo:
- Ela vai lhe dar um emprego, queridinha.
Selena conversara rapidamente com a mulher e combinara de ir lá. Agora encontrava-se
à porta da loja fechada, sando se aquilo não fora um sonho.
Um casal idoso passou perto dela, sob a chuva fina, cada um com um copo de café na
mão e um saquinho de papel branco, que parecia conter os pãezinhos de canela.
- Bom dia! disseram os dois juntos.
Ela deu um sorriso e respondeu ao cumprimento. Em seguida passaram duas mulheres
conversando animadamente. Logo depois delas, veio um senhor baixo, levando amarrado a
uma coleira um enorme cachorro preto. Postada ali debaixo do toldo verde da loja, Selena se
sentia quase como um porteiro de hotel. Seu estômago estava pedindo:
- Quero um pãozinho de canela!
O bom senso, porém, expondo uma porção de motivos, mandava que ela permanecesse
ali até aparecer alguém. Sentia-se um pouco apreensiva, pensando que talvez devesse ter ido
com a mãe para o hospital e, depois, ter ligado para a loja, marcando uma outra data para a
entrevista. Todavia permaneceu ali durante uns bons vinte minutos.
Afinal uma pequena van chegou e parou em frente loja. Na porta estavam gravadas em
letra cor-de-rosa as palavras Zuzu's Petals.
- Você é Selena? indagou a mulher que viera ao volante, saltando do veículo e correndo
para debaixo do toldo. Eu sou a Charlotte. Desculpe a demora.
Ela destrancou a porta e virou a placa onde se lia “Fechado”. *
- Tive pedidos de arranjos para dois casamentos agora de manhã e me atrasei, continuou
ela explicando. Vamos entrar. Quer café?
- Não, obrigada.
- Então você é a neta de Vó May, hein? Gosto muito dela. Como é que ela está?
A dona da loja era uma mulher de muita energia. Tinha cabelo preto, bem curto, e olhos
castanho-escuros, muito brilhantes, que combinavam com o cabelo. Na orelha direita tinha
uns seis brincos de prata. Selena ainda não conseguira perceber se simpatizaria com ela ou
não.
- Bom, pra falar a verdade, ela está internada. Fez uma operação de vesícula ontem.
Charlotte parou meio abruptamente e olhou para ela com expressão de preocupação.
- Ah, eu não sabia. Ela está passando bem? Está no St. Mary?
- Está. Parece que passa razoavelmente bem, replicou Selena.
- Você irá vê-la hoje? Vou mandar umas flores pra ela. Ontem recebi uns lírios amarelos
maravilhosos. Oh, mas que pena que ela está internada!
*
Nos Estados Unidos, devido ao inverno rigoroso, as lojas ficam com as, portas fechadas. Para indicar que
estão funcionando, colocam uma placa a com a palavra Open (Aberto). No outro lado da placa, há o aviso
Closed (Fechado), que deixam à vista ao fim do expediente. (N. da T.)
Enquanto Charlotte expressava seus sentimentos de pesar, foi para trás do balcão e se
serviu de café. Perto havia uma pequena geladeira, que ela abriu com o pé. Retirou dela uma
caixa de leite com sabor de baunilha. Derramou um pouco no café e em seguida fechou a
porta da geladeira ainda com o pé. Fez tudo isso num só movimento.
- Tem certeza de que não quer café? insistiu.
- Não, obrigada, replicou Selena.
- Sou movida a café, disse Charlotte, virando-se e acendendo as luzes da loja, que de
fato era um encanto.
Selena pensou que muito da energia dessa mulher devia ser proveniente da cafeína, e
não um elemento natural de sua personalidade.
- Então vejamos, continuou Charlotte, sentando-se num tamborete atrás do caixa e
tomando um gole de seu café. Posso lhe pagar salário mínimo, e o horário de trabalho é das
8:00h às 17:00h, aos sábados e domingos. Você precisará ter carro próprio, mas lhe daremos
um acréscimo para o combustível. Quer a vaga?
Selena ficou parada, meio sem saber o que pensar. A entrevista é só isso?
- Posso trabalhar sábado o dia todo, replicou, mas nada aos domingos. E nem sempre
vou poder ter o carro à minha disposição. Achei que vocês queriam alguém para trabalhasse
aqui na loja, e não para fazer entregas.
- Não. Precisamos mesmo é de um entregador. Foi por isso que tive de sair cedo de
manhã. Aliás, minhas sócias ainda estão na rua. O caso é que temos de ficar as três na loja e
queremos arranjar um funcionário para ficar por conta das entregas. E essa pessoa vai ter que
trabalhar aos domingos também. Se você não puder trabalhar nos dois dias, não posso lhe dar
o emprego, explicou ela, sem rodeios.
- Então acho que não vai dar pra mim, respondeu Selena, também de forma direta. De
qualquer jeito, muito obrigada. Espero que consiga arranjar alguém.
Assim dizendo, virou-se para sair, mas Charlotte exclamou:
- Espere aí!
Desceu do tamborete e caminhou rapidamente para os fundos da loja. Instantes depois
retornava com um buquê de lírios amarelos, envolto em papel celofane e amarrado com uma
imensa fita cor-de-rosa.
- É para Vó May, explicou. Diga-lhe que todas nós lhe enviamos nossos votos de pronta
recuperação.
Selena pegou as flores e pensou que a melhor maneira de carregar aquilo era como se
fosse uma Miss Universo desfilando na passarela.
- Obrigada, disse. Acho que ela vai adorar.
- É, vai sim, disse Charlotte, retomando seu café. Até mais, Selena!
Chegando à calçada, Selena começou a desejar que tivesse trazido uma sombrinha. A
chuva fina havia aumentado um pouco. Não se importava de se molhar, mas queria proteger
as flores. Elas eram muito bonitas, mas o pacote todo era meio volumoso. Sentiu-se um pouco
sem jeito de ir caminhando com aquilo. Desistiu inclusive de comprar os pãezinhos de canela.
Não conseguiria carregar mais nada além das flores. Se pegasse mais um embrulho, teria
problemas, principalmente com toda aquela chuva. Passou direto pela padaria, prometendo ao
seu estômago que breve voltaria ali.
A chuva apertou. Selena pensou que deveria ter trazido um agasalho. A manga da
camiseta estava grudando em sua pele. Sentia a barra da saia também pegando na batata da
perna. O cabelo lhe caía nas costas e colava no rosto. Teve mu arrepio e se pôs a andar mais
depressa, procurando cobrir e proteger um pouco as flores. Sentiu-se deprimida.
Parecia que todas as suas emoções haviam se ajuntado numa enorme bola. Tinha a
sensação de estar carregando um peso de vinte quilos, debaixo daquela chuva. Não conseuira
o emprego. Não tinha dinheiro, nem amigos, nem previsão de que a situação fosse melhorar
num futuro próximo. Além disso, sua amada avó estava internada e ia pouco a pouco
perdendo a lucidez. Não havia dúvida de que a vidinha calma e pacata de Pineville acabara
mesmo. Antes eram os passeios a cavalo, os piqueniques com os vizinhos, as campinas
cobertas de flores silvestres. Agora eram ruas movimentadas, cachorros latindo, ônibus
soltando uma fumaça negra e floriculturas gerenciadas por pessoas frias, movidas a cafeína.
Selena sentiu uma enorme solidão.
Então se pôs a chorar, achando que talvez isso lhe trouxesse um pouco de alívio. E
lágrimas grandes e quentes lhe rolaram pela face, contrastando com a chuva fria. Ergueu o
rosto para o céu e deixou que a água a molhasse por completo. Soluços lhe subiam do peito.
Não se importou nem um pouco de que as pessoas a vissem chorar nem ligou para o que
pudessem pensar. Deixou escapar alguns soluços, sem tentar reprimi-los. Nada do que lhe
dizia respeito estava saindo do jeito como queria.
E a chuva continuava caindo. Tinha a impressão de que alguém derramara um balde de
água em cima dela. Faltavam apenas cinco quarteirões para chegar em casa. Assim que
entrasse, iria direto para a cama. Ou talvez fosse melhor tomar um banho bem quente, na
banheira.
Chegou a uma esquina onde havia um semáforo. Parou esperando o sinal abrir para ela.
Com o canto do olho, percebeu que um jipe negro também parará ali. Estava bem ao lado
dela, a poucos metros. Embora a janela do veículo estivesse fechada, dava para ouvir uma
música alta, que vinha lá de dentro. E ouviu também muitas risadas de homens. Será que
estavam rindo dela? Se estivessem, ela não poderia nem reclamar. Se ela estivesse dentro
daquele carro, provavelmente também iria rir da figura dela. Sabia que estava ridícula, mais
parecendo uma segunda colocada no concurso de beleza das “frangas molhadas”.
As gargalhadas daqueles homens só serviram para aumentar ainda mais sua ágoa. Sentiu
uma raiva enorme dominá-la. Piscou para remover as lágrimas dos olhos e virou a cabeça com
um movimento brusco. O rapaz que estava no banco do passageiro olhava diretamente para
ela. Seus olhares se encontraram. Selena suspendeu o fôlego. A expressão de seu rosto
mudou. E o cara que a fitava parou de rir.
Era Paul.
O sinal abriu. O carro arrancou e partiu. Paul virou para trás, continuando a olhar para
ela. Daí a pouco sumiram de vista.
Selena deu um passo para atravessar a rua e pisou numa poça de água. Sentia-se
entorpecida por dentro e por fora.
Era o Paul. Ele me viu e estava rindo de mim.
Selena nem viu como caminhou aquelas últimas quadras até em casa. Sua mente estava
longe. Estava no Aeroporto de Heathrow, em Londres, onde conhecera o rapaz. Ela fora a um
telefone público e o vira ali. Ele lhe pedira algumas moedas emprestadas para completar seu
telefonema. Naquele momento, parecera que houvera um “clique” entre eles. Depois, quando
estavam no avião, haviam conversado um pouco e acabaram descobrindo que tinham amigos
comuns. Tudo parecia estar correndo muito bem. Aí, em dado momento, ele ficou sabendo a
idade dela. Ele já estava na faculdade e tinha mais de vinte anos. Selena tinha apenas
dezesseis e ainda estava no segundo ano do curso médio. O interesse de Paul por ela
desapareceu no mesmo instante. Apesar disso, mais tarde ele lhe escrevera uma carta, que ela,
por sua vez, respondera. Isso acontecera várias semanas atrás. E ele ainda não dera resposta à
cartinha dela. Agora, depois daquele breve instante em que se viram na esquina, ela teve
certeza de que ele nunca mais iria escrever. Era outro motivo para chorar. E ela chorou a
valer.
Capítulo Sete
Selena se esticou bem na banheira antiga, sentindo a água quentinha. Fazia muito tempo
que não tomava um banho daqueles. A última vez fora na época em que era menina e todos
vinham passar as férias com a avó. Depois que tinham vindo morar na velha casa vitoriana de
Vó May, ela só tomara no chuveiro do banheiro do andar de cima, que fora remodelado.
Então gora procurou relaxar bastante na água morna e reconfortante.
Assim que chegara em casa, ligara para o hospital. A mãe dissera que Vó May estava
passando bem. Naquele momento estava descansando. Em seguida, a mãe lhe sugerira que
dormisse um pouco para se refazer da noite passada no hospital, sentada na poltrona. Após o
almoço, as duas voltariam para junto da avó.
Era o que Selena precisava - um tempo para relaxar. Depois do belo banho quente,
vestiu um blusão e uma calça de moletom. Com isso, e uma xícara de chá de jasmim, iria er-
guer o espírito, que se achava envolto em emoções pesadas havia cerca de uma hora.
Quando ela estava se servindo de mais um pouco de chá, o telefone tocou.
- Alô! disse atendendo e sentindo um desejo profundo de que fosse Paul.
- Oi, Selena! O que está fazendo? indagou uma voz feminina.
- Nada, replicou ela. Quem é?
Ela ficava furiosa quando as pessoas ligavam e iam conversando sem dizer quem eram.
- Puxa! Quer dizer que já se esqueceu da gente? continuou a outra brincando.
- Oi, Selena! falou outra voz de mulher. É Cris! Agora você já sabe de quem é a outra
voz.
- Katie! Cris! Oi, gente! Como é que vocês estão?
- Estamos bárbaras! replicou Katie. E você?
- Essa é a palavra que ela mais está usando agora, Selena, explicou Cris, entrando na
conversa. Você vai cansar de ouvir isso.
Selena tirou o saquinho de chá de dentro da xícara e foi para a saleta, equilibrando o
telefone sem fio entre o queixo e o ombro. Sentou-se numa poltrona de que gostava muito e
colocou a xícara num descanso de copos, na beirada de uma mesa próxima.
- Que legal que vocês ligaram! Parece que nossa viagem à Inglaterra foi há séculos!
- É mesmo! concordou Katie.
- Mas foi só algumas semanas atrás, disse Cris. Como é que você está?
- Nem pergunte, replicou Selena, bebericando um pouco do chá. As semanas que
passaram foram péssimas, e esses dois últimos dias foram um verdadeiro desastre. E vocês?
Me contem como estão. Quem sabe isso me deixará mais animada.
- Estamos aqui fazendo brownies, respondeu Cris. Quer dizer, estamos tentando fazer,
se a Katie não comer todas as “gotas de chocolate”.
- Comi só um pouquinho, defendeu-se a outra. Além disso, a gente pode pôr algumas
passas e ninguém vai notar a diferença.
- O Ted vai, replicou Cris.
- Ele está aí também? indagou Selena.
- Não; ele está na casa do pai, em Newport. Nós vamos para lá hoje à tarde, porque à
noite vai haver uma festa na casa da Trícia. Queríamos que você viesse também, Selena.
- Oh, gente, não me torturem assim. Vocês sabem que eu adoraria ir. Daria tudo para vê-
las de novo.
- Então, venha! exclamou Katie, dando mais ênfase à última palavra.
- Ah, ótimo! falou Selena. Vocês se esqueceram de um bom detalhe - estou a mais de
mil e quinhentos quilômetros de distância!
- Já ouviu falar em avião? perguntou Katie. É uma das maravilhas do mundo moderno.
Você pode chegar aqui em poucas horas.
- Já ouviu falar em dinheiro? retrucou Selena. Já escutou aquela frase: “Não tenho
dinheiro”?
- Então arranje, disse Katie.
- Já tentei, replicou Selena, levantando os pés e sentando-se em cima deles para aquecê-
los. Tive uma entrevista para um emprego hoje cedo. Foi a mais curta deste mundo. Mas não
consegui o trabalho. Era numa floricultura. Queriam que eu trabalhasse no domingo, o dia
todo, e que tivesse carro próprio, para fazer entregas.
- Você explicou que não trabalharia domingo porque vai à igreja? indagou Cris.
- Não. A mulher nem perguntou por quê. Eu só disse que não poderia trabalhar no
domingo.
- Olha, disse Cris, eu trabalhei numa loja de animais. Avisei para o meu patrão que não
poderia trabalhar no domingo porque tinha de ir à igreja, e ele foi muito compreesivo. Você
também poderia tentar explicar tudo para a mulher lá.
- É, exclamou Selena, mas não adiantaria. De qualquer jeito, não tenho carro próprio.
Temos um fusca aqui que eu minha mãe usamos, mas ele já é meio velho. Não dá pra confiar
nele. Mesmo que me aceitassem para trabalhar no sábado, nem sempre eu poderia ficar com o
carro o dia todo. É, não ia dar certo, não.
- Que pena! falou Cris. Vai tentar arranjar outro emprego?
- Vou, replicou Selena. Aqui por perto tem muita loja e lanchonete. Creio que dá para
encontrar um trabalho aqui sim.
- E assim que arranjar serviço, interveio Katie, vá logo avisando que vai folgar no
recesso da Páscoa, ouviu? Você tem de vir para cá, passar a semana toda conosco.
- Se eu tiver dinheiro.
- Tem de vir! disse Katie. É uma ordem!
Selena escutou um ruído de alguém mastigando.
- Katie, você está comendo o chocolate de novo? indagou Selena.
- Só um pouquinho.
- Assim vamos ter de comprar mais chocolate, Katie, falou Cris. Puxa, nunca pensei que
fosse dizer uma coisa dessas, mas talvez aquela sua crise de alimentação natural não tenha
sido tão ruim assim. Pelo menos os chocolates não acabavam tão depressa.
Selena riu.
- Ah, gente, estou com tanta inveja de vocês! disse ela.
- Inveja é pecado! exclamou Katie.
- Ah, você entendeu o que quero dizer. Vocês já são amigas há tanto tempo! Mas eu,
desde que me mudei para cá, não fiz amizade com ninguém. Não conheço uma pessoa sequer
que pudesse convidar para vir à minha casa para fazermos brownies.
- Já, já, você arranjará alguém, comentou Cris.
- Ah, é? Como?
- Ponha um anúncio, ensinou Katie, dando outra mastigada.
- Como assim?
- Ponha um anúncio no jornalzinho da escola.
Selena riu.
- E como seria esse anúncio? “Precisa-se de uma alma gêmea”?
- É, isso mesmo, replicou Katie, ainda mastigando. Que há de errado nisso?!
- Onde é que você arranja essas idéias, Katie? perguntou Cris. E pára de comer esses
chocolates!
- Você não sabe que o chocolate é a melhor coisa do mundo para o cérebro? observou
Katie. Aguça a percepção daquilo que é óbvio. E está claro que Selena está precisando de
amigos. Continuo achando que o melhor a fazer é pôr o anúncio no jornal.
- Pois eu, disse Cris, vou orar para que Deus lhe mande um tesouro peculiar, e que ele
venha à sua porta.
- Ei, espera aí. Ela não está querendo pedir uma pizza, não, interveio Katie. Ouça meu
conselho, Selena, ponha o anúncio no jornal. É o melhor jeito de arranjar amigos. É bárbaro!
Mas, falando de tesouro peculiar, e de tesouro bárbaro, o que aconteceu com Paul?
- Ah, que coincidência você falar dele! exclamou Selena.
- Quem é Paul? quis saber Cris.
- Lembra daquele cara que te falei que Selena conheceu no aeroporto de Londres,
quando ela estava voltando, que veio no mesmo avião, que eu disse que ele era crente, que
tinha um irmão chamado Jeremy, que era colega do Douglas e quando fui na casa do Douglas
no mês passado, Jeremy estava na reunião do grupo “Amigos de Deus”, e deu ao Douglas
uma carta que o irmão dele escreveu para Selena, e o Douglas entregou a carta pra mim e eu
mandei para Selena? explicou Katie num só fôlego.
- Você não me contou nada disso, falou Cris.
- Claro que contei!
- Contou não, insistiu Cris, senão eu lembraria.
- Tenho certeza de que contei, Cris. Parece que ultimamente sua memória anda muito
seletiva.
- O que você quer dizer com isso?
Selena tomou outro gole de chá e ficou a ouvir as duas amigas discutindo, cada uma na
sua extensão do telefone.
- Quando é algum assunto que diz respeito ao Ted, você guarda direitinho na memória.
O que não for relacionado com ele, fica perdido.
- Ah, obrigada, Katie! exclamou Cris em tom irônico. Essa foi ótima! A verdade é que
você não me contou mesmo que Selena tinha conhecido esse cara... como é o nome dele?
- Paul, replicaram Selena e Katie juntas.
- Ah, e eu o vi hoje, interveio Selena rapidamente, antes que as duas recomeçassem a
“batalha” amistosa.
- Que bárbaro! exclamou Katie. Como foi?
Selena descreveu a cena em que estivera toda molhada, carregando o enorme embrulho
do buquê de lírios. Do outro lado da linha, as duas a ouviam em completo silêncio,
interrompido apenas pelo ruído característico de um saquinho de gotas de chocolate.
- Alô! Será que estou deixando as duas chateadas com essa minha longa história?
- Claro que não! replicou Cris imediatamente. Só foi muito estranho você tê-lo visto
desse jeito. O que vai fazer agora?
- Nada. O que posso fazer?
- Talvez ele lhe telefone para perguntar se você está bem, comentou Katie. Pelo menos é
isso que acontece nos filmes.
- Não, interveio Cris. No filme, ele teria mandado o amigo dele parar o carro, teria
corrido em sua direção com um guarda-chuva aberto e a teria levado até em casa. Chegando
lá, você faria um chá para os dois.
Selena riu.
- E agora estou até tomando chá, explicou. Talvez, no meu caso, seja um filme classe B,
daqueles bem baratos, e acaba comigo tomando chá sozinha. Não tem o mocinho nem o
guarda-chuva.
- Então o meu, interveio Katie, seria classe Z. Não teria o mocinho, nem o guarda-
chuva, nem a história...
- O seu parece mais um filme de suspense, interrompeu Cris. O final dele é um que
ninguém espera.
- E a sua história, disse Katie para Cris, está se tornando um daqueles romances de final
previsível. A garota conhece o rapaz. Durante quatro anos, o rapaz se mostra um verdadeiro
bobo. A garota se transforma numa linda mulher. Afinal o rapaz “acorda” e a garota vira uma
perfeita abobalhada.
Selena riu.
- É, disse ela, pelo visto, tudo está indo muito bem entre você o e o Ted.
- Mais ou menos, replicou Katie, respondendo pela amiga. Você precisa vir aqui logo,
Selena. Vou convocar uma reunião de emergência do nosso clube “Apenas Amigos”. Como
eu e você somos as únicas que ainda são sócias, você é obrigada a vir. Ainda lembra do nosso
clube, não lembra?
- Claro! replicou Selena. Como eu iria esquecer? E ainda tenho plenas credenciais para
fazer parte dele. Não há nenhum rapaz na minha vida, nem mesmo como amigo.
E como a garota estivesse se sentindo com um espírito de gozação, continuou:
- A não ser que, hoje de manhã, Paul tenha ficado tão impressionado com minha
estonteante beleza, que já tenha vindo para cá para me tomar em seus braços.
- Só em sonhos, Selena! comentou Katie. Na minha opinião, você pode riscar esse
gaiato de sua lista. Talvez deva especificar no anúncio que está procurando novos sócios para
o nosso clube “Apenas Amigos”. Podemos aceitar rapazes também em nosso grupinho.
- Não mexe com esse negócio de anúncio, não, aconselhou Cris. Comece a orar. Eu
também vou orar para que você conheça umas pessoas bem legais aí.
- Então ore também para eu arranjar um emprego, disse Selena. Falta menos de um mês
para o recesso da pascoa.
- Está bem, replicou a amiga.
Nesse momento, a porta da sala se abriu e Selena se ergueu de um salto. Sabia que sua
mãe só iria chegar à tarde. Olhou para o velho relógio que se achava sobre a mesa de
carvalho. Marcava 10:57h. A garota escutou passadas no assoalho de madeira de entrada.
Arrependeu-se de não ter trancado a porta. Cobrindo a boca e o fone com uma das mãos,
disse:
- Gente, entrou alguém aqui em casa.
- Você está sozinha? indagou Cris.
- Estou, replicou Selena em voz baixa.
A moça seguiu os passos se dirigindo para a cozinha e sentiu o coração bater com força.
Eram passadas pesadas, como de um homem.
- Não desliguem, não, falou para as amigas. Fiquem na linha. Se eu gritar aqui, liguem
para a polícia de Portland imediatamente!
Capítulo Oito
Selena prendeu a respiração. Pelo telefone escutou Katie, fazendo o ruído de quem
lambe os lábios. Logo Cris cochichou:
- Pssssiu, Katie!
Ao mesmo tempo, Selena ouvia as passadas ressoando pesadamente na cozinha e, em
seguida, vindo na direção da saleta.
- Está vindo para cá! sussurrou.
- O que está acontecendo? indagou Katie. Quem é?
De repente uma figura apareceu à porta.
- Ué! exclamou Selena. O que você está fazendo aqui?
Era Tânia. A jovem entrou na saleta, batendo as grandes botas de esquiar no assoalho de
madeira.
- E você? O que você está fazendo aqui? indagou ela. Cadê o carro? Achei que não
havia ninguém em casa, por isso fiquei espantada quando vi que a porta da frente estava
destrancada.
- Quem é? gritou Katie no telefone.
- É minha irmã, replicou Selena.
Em seguida, virou-se para Tânia e disse:
- Mamãe saiu com o carro. Ela está no Hospital St. Mary com Vó May. Ela fez uma
operação de vesícula ontem.
- Quem? perguntou Tânia com voz estridente. Quem operou a vesícula? Mamãe ou Vó
May?
- Ei, interrompeu Katie, você não nos contou isso.
- Vó May. Mamãe voltou hoje de manhã para ficar com ela. Ela está passando bem.
- Quem? quis saber Katie. Sua mãe ou sua avó?
- As duas, explicou Selena. Ó gente, posso ligar para vocês mais tarde?
- Claro, respondeu Cris. À noite vamos estar na casa da Tríci. Se você quiser, pode ligar
para lá. Senão, daqui a uma semana vamos entrar em contato com você de novo, para ver
como tudo está indo e se você virá aqui no recesso da Páscoa.
- Está bem. Tchau, gente. Digam ao Douglas, à Trícia e ao Ted que mandei um abraço.
- Pode deixar. Tchau, Selena!
Ela desligou e se virou para Tânia, que estava de pé, com as mãos nos quadris.
- Que é que está acontecendo? indagou ela em tom firme.
Selena narrou-lhe tudo que havia acontecido.
- Vou lá para o hospital, falou Tânia.
- Vou com você, disse Selena, erguendo-se de um salto. Espere só eu calçar o sapato.
- Primeiro vou trocar de roupa, explicou a irmã, que ainda estava com os trajes de
esquiar.
Em seguida foi saindo em direção à escada.
- O que foi que aconteceu que você voltou mais cedo? indagou Selena. Eu tinha
entendido que você iria ficar lá até domingo.
Tânia abriu a porta do quarto e logo soltou um berro:
- Selena!
- Que foi? Estou aqui.
- Parece que você não fez nada neste quarto depois que saí na quinta-feira.
- Não fiz não, Tânia. Não tive tempo. O que aconteceu no seu passeio?
- Nada! replicou a outra meio ríspida. Resolvi voltar mais cedo, foi só. E parece que foi
muito bom eu ter vindo. Como Vó May foi para o hospital?
- Eu a levei de carro.
- Você matou aula?
- Perdi aula, replicou Selena, calçando uma meia e em seguida o tênis. Era uma situação
de emergência.
Tânia não tinha um temperamento muito amistoso. Volta e meia brigava com Selena.
Nesse dia, porém, parecia ainda mais irritadiça. Selena resolveu não insistir em perguntar por
que ela regressara mais cedo do que deveria.
Tânia se aprontou em silêncio e guardou sua roupa caprichosamente no armário. Em
seguida, colocou as botas de esquiar dentro do closet. Por fim as duas rumaram escada abaixo,
Tânia na frente. Selena pegou sua mochila, ainda molhada por causa da chuva da manhã. As
duas saíram, e Selena já ia fechar a porta quando se lembrou das flores que deixara na
cozinha.
- Espere! disse. Tenho de pegar as flores.
Correu à cozinha e abriu o armário para procurar uma sacola de plástico para carregar o
buquê de lírios amarelos. Nisso, deu com os olhos num objeto muito importante, guardou-o,
enrolou-o num pano de prato e guardou-o na mochila. Em seguida, apanhou uma sacola de
plástico e colocou nela os lírios.
Quando chegou lá fora, Tânia já estava com o carro ligado e verificava a maquiagem no
espelhinho que havia na parte de trás do tapa-sol. Selena sentou-se no banco ao lado dela, mas
antes teve de pegar um saquinho de papel branco que a irmã deixara sobre ele. Sentiu um leve
cheiro de canela no ar. Ajustou o cinto de segurança, acomodou as flores no colo e em
seguida olhou o saquinho de papel. Estava vazio.
- O que é que linha aqui? indagou.
- Onde?
- Nesse saquinho de papel. Era um pão doce da confeitaria Mother Bear?
- Era. E daí? perguntou Tânia, com a voz ainda um pouco irritada.
- Nada. Só que eu estava com muita vontade de comer um pãozinho desses, só isso.
Selena sentiu a boca cheia d'água e engoliu a saliva. Se estivesse com outra pessoa
qualquer, iria abrir o saquinho e comer as migalhas.
‘Guenta firme aí, barriga! pensou. Prometo que muito breva vai chegar aí um pãozinho
da MotherBear!
Chegando ao hospital, Selena foi mostrando a Tânia o caminho para o quarto onde Vó
May se encontrava. A avó estava dormindo e a mãe cochilava sentada na poltrona.
- Vou colocar o vaso na mesinha, cochichou Selena, apontando para os lírios.
A mãe de Selena remexeu-se, acordou e olhou para Tânia surpresa. As duas puseram-se
a conversar em voz baixa, enquanto Selena procurava ajeitar os lírios na mesinha de
cabeceira. Teve vontade de ouvir o que as duas estavam conversando. Tinha certeza de que a
irmã contaria à mãe qual fora o problema que houvera na estação de esqui, bem antes de
revelá-lo a Selena.
- Queridinha! disse Vó May com a voz meio fraca.
- Estou aqui, vó, replicou a moça, indo para perto da cama, ainda com o vaso na mão.
Olhe aqui. A Charlotte lá da floricultura mandou esses lírios para a senhora. São lindos, não
são?
- Lírios! exclamou Vó May com expressão de satisfação. São minhas flores prediletas.
- Vou colocá-los bem aqui, disse Selena. Mamãe e Tânia também vieram.
As duas se aproximaram da cama e a avó ergueu o braço pegando a mão de Tânia.
- Nini! disse Vó May para Tânia, que se inclinou e deu-lhe um beijo na testa.
Vó May criara apelidos para todos os netos. Apenas Selena fora presenteada com o que
parecia mais “norma”". Na verdade, o “Nini” de Tânia fora obra de Selena. Quando ela era
pequenina, não conseguia pronunciar “Tânia” direito. Diziaapenas “Ni”. E Vó May o adotara.
Os irmãos mais novos de Selena também a chamaram de “Sissi”. Contudo o apelido não
pegara. Vó May sempre a chamara de “Queridinha” desde o dia em que ela nascera.
- A senhora está se sentindo bem, vó? indagou Tânia.
- Estou bem, mas ainda meio indisposta, respondeu Vó May, tentando sentar-se.
Tânia arrumou os travesseiros para ela.
- A senhora passou por uma cirurgia séria, vó, disse Tânia, sorrindo e alisando o cabelo
branco e macio da avó. Precisará pelo menos de mais uns dois dias para se sentir disposta. Eu
trouxe uma loção hidratante para a senhora. Quer que faça uma massagem nos seus pés com
ela?
- Oh, quero, sim, Nini. Meus pés estão frios. E será pode arranjar uma toalhinha úmida e
quente para eu passar no rosto?
- Vou pegar, disse Selena, levantando-se e indo para banheiro.
- Quer comer um pouco mais do seu almoço? perguntou a mãe.
E as três se puseram em ação, cuidando da querida paciente. E Vó May comeu todo o
almoço. Selena sentiu alívio que pelo menos naquele momento ela se achava lúcida. Quanto
tempo será que duraria essa fase de lucidez?
- Que dia é hoje? quis saber Vó May.
- Sábado, informou a mãe.
- Ué, Nini, não era pra você estar esquiando?
- Resolvi vir embora mais cedo, explicou Tânia. As coisas lá não eram do jeito que eu
pensava.
- Você chegou a esquiar? indagou a mãe.
- Esquiei ontem o dia todo. A neve estava com um pouco de gelo e lá no alto do monte
tinha neblina demais para o meu gosto. Mas o dia foi bom.
- Então à noite é que houve o problema, deduziu Vó May, com olhos brilhantes e a
mente bem alerta, evidentemente.
Tânia deu uma olhada para a mãe e em seguida virou-se para a avó. Ainda estava com o
vidro de loção hidratante na mão.
- É, acho que posso dizer isso, replicou, colocando em seguida um pouco de loção numa
das mãos. Creio que preciso arranjar amigos que tenham o mesmo conceito que tenho sobre
diversão.
Selena ficou a pensar se a irmã não iria aproveitar para falar sobre a questão da igreja
que freqüentavam. As duas já haviam conversado com os pais sobre o assunto, mas eles
tinham demonstrado certa relutância em abordá-lo com Vó May. A família estava
freqüentando a igreja da avó. Era uma igreja legal, pequena, tradicional. A maioria dos que
iam lá eram pessoas idosas, todas muito agradáveis. E havia também alguns casais jnvens.
Entretanto não havia união de adolescentes nem de mocidade. Portanto, não existia nenhum
tipo de reunião para eles, nem sequer classes de escola dominical.
Nas vezes em que a família havia conversado sobre o assunto, tinham chegado sempre à
mesma conclusão.
“Nós vamos à igreja é para adorar a Deus em grupo, a família toda, e não em busca de
sociabilidade.”
Agora estavam as duas ali, Tânia e Selena, com o mesmo problema: sem amizades
adequadas. Elas haviam tentado mostrar aos pais que, para jovens de 16 e 18 anos, a vida
espiritual se acha muito relacionada com a necessidade de sociabilidade.
- Precisamos arranjar uma igreja que tenha uma boa união de mocidade, falou Selena,
passando a toalha úmida na testa da avó.
Assim que ela disse isso, viu sua mãe estampar no rosto uma expressão tensa,
demonstrando que achava que Selena não deveria ter dito aquilo.
- Não se prendam por minha causa, comentou Vó May, fechando os olhos e esperando
outro toque da toalha.
Selena passou a toalha sobre os olhos da avó e parou ali um pouquinho mais do que
precisava, para poder fitar a mãe. Tânia também olhava para a mãe com expressão de
expectativa. A mãe parecia surpresa. Em seguida, deu de ombros e fez que sim com a cabeça.
- De vez em quando, iremos à igreja da senhora, Vó May, disse Selena corajosamente,
levando o assunto em frente. Mas a senhora não vai se importar se procurarmos uma igreja
que tenha mais programação para os jovens, não é, vó? E pode ser até que algumas vezes a
senhora queira ir à nossa greja também.
- Para mim está bem, queridinha!
Selena voltou a passar a toalha nos olhos da avó e deu um sorriso maroto, já esperando
ver uma expressão de admiração no rosto da mãe e da irmã. Ela conseguira algo que seu pai
nem tentara fazer: que Vó May concordasse em que procurassem outra igreja.
A mãe e Tânia sorriam agradecidas. Selena se pôs a secar o rosto da avó com uma
toalha enxuta e disse:
- eu trouxe outra coisa para a senhora, vó.
Tirou da mochila o pano de prato todo enrolado e abriu-o lentamente, mostrando para
ela o objeto: era a xícara de porcelana da avó com o pires. Em casa, Vó May sempre utilizava
uma xícara de porcelana para tomar café, água, suco, etc. Qualquer líquido que tomasse, era
sempre numa xícara. E o de que ela mais gostava era café.
- Vamos chamar a enfermeira e pedir um bule de café bem quente?
Capítulo Nove
- Acho que devíamos tentar ir à igreja de Vacouver, disse Tânia.
A jovem se achava recostada em sua cama, enquanto Selena conscienciosamente
procurava guardar suas roupas espalhadas pelo quarto. A mãe se sentara na ponta da cama de
Selena, que ainda estava desarrumada.
- É muito longe, observou a mãe. Essa é a vantagem da igreja de Vó May. Fica só a três
quadras daqui. Além disso, parece muito estranho ir a uma igreja que fica em outro estado.
- Ah, que é isso? E só atravessar o rio para chegar ao estado de Washington. A gente
não levaria mais que uns quinze minutos de carro. Ouvi dizer que o grupo de jovens da igreja
de Vancouver é muito bom, explicou Tânia.
- É, interveio Selena, lá na escola ouvi alguém falar que tem uma igreja em Gresham
que é muito boa também.
- Gresham fica na direção oposta, disse a mãe, e a gente levaria uns vinte minutos de
carro.
- Está vendo? continuou Tânia, pegando os óculos para ler um livro. É melhor irmos na
de Vancouver. Já liguei pra lá e me informram que o culto é às 10:00h.
- Queri que seu pai estivesse em casa para conversarmos sobre isso todos juntos. Talvez
seja melhor irmos à igreja de Vó May amanhã, pela última vez. Depois, no domingo que vem,
começamos a visitar outras igrejas.
- Por quê? quis saber Selena.
- Para quê isso? interveio Tânia. De qualquer jeito, Vó May não vai estar aqui. Essa é a
melhor ocasião para mudar-mos de igreja.
A mãe deu um suspiro e ergueu as mãos como que entregando os pontos.
- Estou com muito sono. Não consigo discutir mais. Vocês duas decidam aí. Vou aonde
quiserem. Nesse momento quero mais é ir para a cama. Alguém já verificou a secretária
eletrônica?
- Não.
- Estou preocupada com a Grace. Quando saí, ela não estava passando muito bem, e
ainda por cima Daniel não ajuda nada.
- Por que ele é sempre tão irritadinho? indagou Selena. Ontem, quando telefonei,
parecia que ele iria me morder.
A mãe deu outro suspiro. Pensou um pouco e depois disse:
- No momento, eles estão passando por alguns problemas. Ele foi despedido no mês
passado e o dinheiro do seguro saúde talvez não seja suficiente para pagar todas as despesas
hospitalares da Grace. E depois você sabe como os gêmeos são levados. A família está
passando por uma fase muito difícil.
- A senhora queria ter ficado com eles? indagou Selena. Nós poderíamos ter tomado
conta de Vó May.
A mãe abanou a cabeça.
- Já estava combinado que a irmã de Daniel iria para lá hoje à noite. Ela vai se sair
melhor do que eu, cuidando do Daniel e dos meninos. Se vocês ainda não agradeceram a Deus
pelo pai que têm...
- Quer dizer, em vez de ter um pai como Daniel? observou Selena.
- Eu só estou dizendo que devem agradecer a Deus pelo pai que têm. Eu às vezes
esqueço de como Harold é um bom marido e um bom pai.
A mãe se levantou para sair, mas parou no meio do caminho.
- Sabe de uma coisa? Vamos orar nós três aqui, juntas, como eu fazia quando as duas
eram pequenas.
A mãe dirigiu-se para a cama de Tânia, e Selena a seguiu. Sentaram-se de frente umas
para as outras, com as pernas cruzadas à moda oriental, e deram as mãos. Oraram por Vó
May, pelo pai e os irmãos, pela tia Grace e pelo tio Daniel. A mãe engasgou um pouco
quando orou por Grace e Daniel. Selena também sentiu um aperto na boca do estômago
quando ela pediu a Deus que salvasse o casamento deles e protegesse os gêmeos.
Em seguida a mãe fez uma petição cheia de ternura. Orou pelo futuro marido de Tânia e
de Selena. Pediu a Deus que ambos entregassem a vida a Deus, se é que ainda não haviam
entregado, que se tornassem homens de Deus e amassem muito a Tânia e Selena, bem como
aos filhos que viessem a ter. E ao dizer tais palavras, chorou.
Selena também sentiu os olhos se encherem de lágrimas, no momento em que disse
“Amém”. Sabia que a mãe fazia essa oração havia já muitos anos, assim como Vó May
também orara pelas pessoas com quem seus sete filhos iriam se casar. A mãe de Selena
mesmo fora a resposta da oração que Vó May fizera por seu filho Harold. Desde pequena,
Selena tinha conhecimento de que seus pais e sua avó oravam por seu futuro marido. Já até se
acostumara com isso.
Nessa noite, porém, fora diferente. Nesse momento, a oração de sua mãe parecera
revestida de um novo vigor. Interiomente, a jovem reconheceu que aquela mulher que ali
estava, de mãos dadas com ela, era uma poderosa intercessora. Sentiu que Deus iria enviar
gloriosas bênçãos para ela por causa da oração de sua mãe.
- Em nome de Jesus, que assim seja! disse a mãe, encerrando.
- Que assim seja! repetiu Selena, abrindo os olhos ainda molhados de lágrimas.
- Amém! disse Tânia.
- Eu amo muito as duas! disse a mãe, abraçando-as e dando-lhes um beijo no rosto.
- Eu também te amo, mãe! falou Selena, beijando-a também. E amo você também, disse
para Tânia, sorrindo e abrindo um pouco o semblante.
A irmã recebeu o beijinho de Selena, mas não disse nada.
- Durmam bem! falou a mãe, bocejando. Se até as 9:00h eu não acordar, podem me
chamar.
- Então podemos ir à igreja de Vancouver? indagou Tânia.
- Pra mim está bem, replicou Selena.
- Pode ser, concordou a mãe, bocejando de novo e caminhando para a porta.
Selena retirou seus pertences de cima da cama e entrou debaixo das cobertas. Sentiu que
Tânia lhe dirigiu um olhar de crítica.
- Que foi? indagou, sem olhar para a irmã.
- Não vai guardar seus objetos não?
- Amanhã! respondeu, imitando “Scarlett O'Hara”, a heroína de “E o Vento Levou...”
Vou resolver isso amanhã
E o amanhã acabou se prolongando por mais alguns dias. Afinal, na terça-feira, ela
resolveu encarar a pilha de roupas. Dessa vez veio decidida a arrumar tudo. Tânia estava
insistindo com ela para melhorar a aparência do quarto.
Nos últimos dias, as duas estavam se dando muito bem. Ambas haviam gostado bastante
da igreja de Vancouver. E na segunda-feira, Tânia tinha até permitido que Selena pegasse o
“querido” carro dela para ir visitar a avó no hospital enquanto ela própria se aprontava para ir
trabalhar.
Vó May estava melhorando sensivelmente. O médico havia dito que, se tudo corresse
bem durante o resto da semana, ela poderia voltar para casa no sábado. A velha senhora
passava a maior parte do tempo dormindo. Contudo, sempre que estava acordada, sua
memória estava boa.
Selena separou as roupas limpas das sujas. Em seguida, pegou as sujas e dirigiu-se para
o porão da casa, onde ficava a máquina de lavar. Assim que acabou de colocar nela a primeira
trouxa, escutou a voz do pai dentro de casa. Desde que voltara do passeio, ele passara boa
parte do tempo no hospital, com a mãe dele. Os dois irmãos menores, Kevin e Dilton, como
sempre, faziam muito barulho. Parecia que tudo voltara ao normal.
Nem tanto. Embora a crise relacionada com Vó May estivesse solucionada, os
problemas de Selena ainda não estavam. Ainda não conseguira emprego nem arranjara
amigos. Ademais, queria muito ir à Califórnia no recesso da Páscoa. Para isso, porém,
precisava da permissão do pai, que agora já retomara a rotina de sempre. Então era o
momento de lhe pedir.
Selena subiu a escada do porão de dois em dois degraus. O pai estava na cozinha
lavando uma maçã, na qual, em seguida, deu uma dentada.
- Oi, meu paizinho querido e maravilhoso! principiou Selena, abraçando-o pelos
ombros.
- Eh...quanto é que você está querendo? indagou o pai sem pestanejar.
Selena afastou-se dele.
- Por que o senhor acha que vou pedir dinheiro?
- Você vai, não vai?
- Bom, não exatamente!
- Seja o que for que vai pedir, vou ter que desembolsar algum dinheiro, não vou?
Selena passou os braços novamente em torno do pai e encostou a cabeça no ombro dele.
- Como é que o senhor consegue ser tão esperto e maravilhoso assim, meu paizinho
querido e maravilhoso?
Ele fitou a filha, que piscou várias vezes com ar de gozação. Harold Jensen caiu na
risada e quase se engasgou com um pedaço de maçã.
- É, parece que teremos uma conversa séria, disse ele ainda rindo. É melhor irmos para
o escritório.
- Pai! gritou Kevin lá do quintal, com sua vozinha aguda. O senhor pode vir aqui nos
ajudar?
- Que é que você quer?
- A roldana da corda da casa na árvore quebrou.
- Ah, eu vou aí daqui a uns... replicou ele e parou, olhando para Selena. Quanto tempo?
perguntou para a filha. Vinte minutos? Meia hora? Três horas?
- Vinte minutos, respondeu a jovem. Meu pedido é muito simples.
- Vou aí daqui a uns vinte minutos, respondeu ele para o menino. Esperem eu chegar.
Não tentem consertar sozinhos não, ouviu?
- Nós esperamos, falou Dilton, o irmão de oito anos, sempre eficiente.
- Está bom, concluiu o pai em voz baixa. Deu outra mordida na maçã.
- Vamos lá, disse ele para a filha, conduzindo-a para a saleta que chamava de seu
escritório.
Era o cômodo de que o pai mais gostava. Uma das paredes tinha uma estante que ia do
chão ao teto e estava repleta de livros. Muitos deles eram velhos volumes da coleção de Vó
May, que ela fora adquirindo desde jovem. Alguns eram escritos em dinamarquês, a língua
nativa da avó. O aposento tinha um cheiro peculiar de mofo, que lhe dava um ar de
importância e ao mesmo tempo “caseiro”. Aqueles livros eram como amigos silenciosos,
sempre dispostos a “dar” algo para os outros, sem exigir nada em troca, a não ser, vez por
outra, uma limpezinha.
Selena se instalou na sua poltrona predileta, que se achava encostada em um canto,
perto da porta de folha dupla que dava para o jardinzinho dos fundos. Quando a luz do sol
entrava ali, batia direto na cadeira. Um gato ali iria adorar deitar-se nela para tomar seu banho
de sol. Naquele momento, o sol não estava batendo lá, mas mesmo assim Selena se acomodou
nela e estendeu as pernas, colocando os pés no descanso que combinava com a poltrona.
Seu pai sentou-se na sua poltrona giratória que se achava junto à escrivaninha, e virou-
se para a filha.
- Muito bem, disse, continuando a comer sua maçã. Pode “atirar”!
- Eu queria ir visitar as amigas que conheci na Inglaterra. Elas me convidaram para
passar o recesso da Páscoa com elas. Posso ir de avião até San Diego ou então para Orange
County. Vou pagar todas as minhas despesas, só que ainda não arranjei trabalho. Estou a zero!
- Ah, replicou o pai calmamente. É só isso?
- Tentei arranjar um emprego na floricultura, mas a mulher disse que era para trabalhar
aos domingos e que eu precisava ter carro próprio. Ainda não procurei em nenhum outro
lugar, mas quero ver se arranjo um serviço aqui por perto, para não depender de carro.
- Muito sensato, comentou o pai.
- E aí? Posso ir?
- Primeiro vou conversar com sua mãe sobre isso, mas acredito que não haverá
problema, não. Mas numa coisa você tem razão: terá mesmo de arranjar o dinheiro para pagar
a passagem. Essa viagem que sua mãe teve de fazer outro dia a Phoenix estava fora do nosso
orçamento. Vamos fazer um trato: você se esforça para conseguir um trabalho e eu vou tentar
encontrar um vôo que fique bem barato. Você tem preferência por algum aeroporto? Suas
amigas vão lá pegá-la, não vão?
- Claro! E o aeroporto não faz muita diferença. A cidade delas fica mais ou menos no
meio dos dois.
- O.k.! disse o pai. Então vou começar a ver preço de passagens.
Selena deu um sorriso alegre.
- Muito obrigada, meu paizinho querido e maravilhoso!
- E, não fique muito confiante não. Isso ainda está na dependência de você poder pagar
a passagem.
- Eu sei, mas muito obrigada por ser meu pai.
- De nada! replicou ele, abrindo a porta e dirigindo-se para a casa na árvore. Ah, e a
propósito, continuou ele, virando-se ligeiramente, você já deu uma olhada na correspondência
que está na escrivaninha? Tem uma carta lá para você.
Capítulo Dez
Selena saltou da poltrona e pegou a pilha de correspondência que estava sobre a mesa.
Conta de água, boletos para pagar, propagandas, etc. Afinal deu com um envelope onde havia
o nome Selena Jensen escrito em letras maiúsculas bem graúdas. Imediatamente reconheceu a
caligrafia. Ela recebera apenas uma carta com aquela letra, mas já a lera umas cinqüenta vezes
ou mais. Aliás, essa carta estava guardadinha debaixo do seu travesseiro. Agora chegava a
“irmã gêmea” dela.
Segurando o envelope com firmeza, voltou à sua poltrona e se pôs a virá-lo e revirá-lo
nas mãos, antes de abri-lo. Quando será que Paul escreveu? Antes daquela hora que me viu,
no sábado, ou depois? Será que escreveu para debochar de mim?
Não conseguindo mais conter a curiosidade, abriu a carta com gestos cuidadosos.
Dentro havia apenas uma folha, com uma cartinha curta, de poucas linhas. A escrita era
mesmo característica de Paul, meio manuscrita meio em letra de forma, em caracteres bem
grandes. Dizia o seguinte:
Minha cara princesa dos lírios,
Estou querendo saber uma coisa - e obviamente não é da minha conta - mas você
pegou pneumonia? Se tiver pegado, devo lhe mandar umas flores? Ou será que aqueles
lindos lírios irão durar todo o seu período de convalescença?
Sinceramente,
Um Mero Observador.
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  • 1. Série Selena 2 Em Seus Sonhos Robin Jones Gunn Título original: In Your Dreams Tradução de Myrian Talitha Lins Editora Betânia, 2000 Digitalizado por deisemat Revisado por deisemat http://semeadoresdapalavra.top-forum.net/portal.htm
  • 2. Série Selena 2 Em Seus Sonhos Robin Jones Gunn Para minha cunhada, Kate Gunn Medina, e seu marido e filhos: Al, Adrian, André e Alysssa. Que Jesus esteja sempre presente em seus sonhos
  • 3. _______________________________________________________________________ Capítulo Um - Como é que você consegue viver desse jeito? indagou Tânia, a irmã de Selena. Ela pegou no chão uma calça jeans que estava caída no seu lado do quarto e atirou sobre a cama da irmã, ainda desarrumada. A calça foi parar bem em cima de uma pilha de roupas que Selena lavara na segunda-feira. Era quinta-feira, e a garota ainda não as guardara. - Eu não estou me intrometendo com suas coisas! replicou Selena, pegando o jeans e colocando-o junto com suas outras roupas sujas que se achavam no chão. Só porque você tem mania de arrumação, isso não quer dizer que todo mundo tem de ter! - Você não precisa ser igual a mim, Selena. Mas tente ao menos ser normal. - Normal? Eu sou normal. Você é que tem neurose de arrumação, Tânia. Seu cabelo está sempre superpenteado. Você não sai sem se maquiar. Suas unhas estão sempre impecáveis. Você não se cansa de parecer uma “modelo” o tempo todo? - Que grosseria, Selena! - Ah, é? E você? - Eu não estou sendo grosseira, não! - Pois eu acho que jogar minha calça pra cá desse jeito foi uma tremenda grosseria, sim! - Se você arrumasse suas coisas de vez em quando, eu não precisaria jogar nada por aí. Nesse final de semana, po exemplo, será que daria para você deixar o meu lado arrumadinho como está agora e, até quando eu voltar, dominga à noite, tentar ajeitar o seu?
  • 4. Selena mordeu o lábio inferior para não soltar as palavras que lhe vieram à mente. Parecia que não adiantava nada retrucar. Nas vezes em que o fizera, acabara arrependendo-se depois. Estava convencida, porém, de que ter de ficar no mesmo quarto com uma irmã que tinha mania de arrumação era uma das piores formas de sofrimento que podiam existir no mundo. Devia estar na lista das torturas. Algum dia ela ainda iria descobrir essa lista e mostrar aos pais. Aí eles compreenderiam o quanto ela já sofrerá nos seus dezesseis anos de vida por ter de aturar a sempre perfeita Tânia Jensen. - Estou falando sério, Selena, insistiu a irmã, fechando o zíper de sua mala. Um dia desses você vai ter de parar de ser tão bagunceira. Sugiro que comece agora, nesse final de semana. Selena sentou-se no chão, perto do seu montinho de roupas sujas, e correu os olhos pelo quarto. Os dois lados do aposento eram completamente diferentes, o oposto um do outro. A cama de Tânia estava perfeita. Não se via nela nem uma ruguinha. As almofadas bordadas achavam-se posicionadas no ângulo exato. Sobre a cômoda havia um forro branco, rendado, onde tudo se encontrava perfeitamente de acordo. Parecia um pequeno palco. Bem no centro, estava uma jarrinha com três tulipas, que ela colhera pela manhã no jardim. Ao lado dela, havia dois porta-retratos. Num deles, estava a foto de formatura de Tânia e no outro, uma que fora tirada quando ela era bebê. Havia quatro vidros de perfume ou “fragrâncias”, como dizia a irmã. Estavam bem enfileirados e com o rótulo virado para a frente, para a “platéia”. Perfume era a “paixão” de Tânia. A moça trabalhava no setor de perfumaria da Loja Nordstrom. Fora lá que fizera amizade com as pessoas com quem iria passear nesse final de semana. Iam esquiar no monte Bachelor. Selena também tinha planos para o final de semana, mas nãoera fazer um passeio com amigos. Desde que a família se mudara para Portland, algumas semanas antes, Tânia já fizera amizade com uma porção de gente. Já havia até enchido uma página e meia da sua agenda de
  • 5. endereços com o nome e telefone desses novos amigos. A agenda de Selena ainda não tinha um nome sequer. Fazer amizades era de fato um de seus problemas. Contudo mais difícil ainda era arranjar dinheiro. Tinha esperanças, porém, de resolver essa questão muito breve. No sábado de manhã, teria uma entrevista numa floricultura, para ver se arranjava um trabalho ali. A loja ficava em Hawthorne, a sete quadras da casa em estilo vitoriano onde morava a família de Selena. E ela gostava de flores, mas não tinha muita certeza se conseguiria aprender a fazer arranjos. Sua visão estética e artística era um pouco diferente da maioria das pessoas. Notava- se isso pela maneira como Selena se vestia. Gostava de roupas simples, informais. Não tinha nada “vistoso”, tipo vitrine, como era o caso de Tânia, com suas roupas e seu lado do quarto. E era assim que ela se via também. Uma pessoa simples, natural, descontraída. Seu cabelo louro, bem anelado, dava nos ombros. E ela o deixava ao natural. Tinha olhos azul- acinzentados, como a cor do céu numa manhã de inverno, que alegravam seu rosto de expressão sincera. E não usava maquiagem nem para disfarçar as sardas que cobriam todo o nariz. Certo dia, alguns meses antes, Selena estava examinando suas sardas ao espelho e em dado momento se deu conta de que o que tinha de mais bonito eram os lábios. Tanto o superior como o inferior eram de igual tamanho, redondos e cheios, perfeitos para ser beijados. É, mas isso ela ainda não sabia direito, pois o único garoto que a beijara nos lábios fora seu sobrinho Tyler, de três anos. - Selena! Ela ouviu uma batida na porta e a voz da mãe. Ah, essa é ótima! pensou. Tânia já foi falar com mamãe para vir implicar comigo por causa do quarto. - Entra! gritou. Já até sei o que a senhora vai dizer!
  • 6. Sua mãe apareceu à porta. Seu rosto, normalmente tranquilo, tinha naquele instante uma expressão preocupada Usava uma saia jeans justa e uma blusa branca, com as mangas arregaçadas. Tinha na mão um pedaço de papel. - O que foi? indagou Selena. A senhora não está passando bem? - Tio Daniel acabou de telefonar. Grace está no hospital. Ela e os gêmeos tiveram um acidente de carro. Os meninos não sofreram nada, mas Grace quebrou os dois braços. Falei com Daniel que vou tentar pegar o primeiro vôo para lá. Tem um que sai às sete da noite. Selena se levantou, sentindo que precisaria fazer algo. - E tia Grace está bem? A mãe fez um aceno de cabeça, respondendo que sim. - Está, disse. Ela terá de permanecer internada pelo menos até amanhã. Mas vai ficar com os braços engessados durante várias semanas. Obviamente não poderá cuidar de Ivan e Nathan. Os dois estavam dormindo no carro na hora do acidente. Foi um outro veículo que bateu no deles, num cruzamento. Daniel disse que eles estão bem. Selena sabia o quanto sua mãe era ligada a Grace, sua irmã mais nova. Ela sentia quase obrigação de ajudar Grace sempre que esta precisasse. Por isso fora para Phoenix, por ocasião do nascimento dos gêmeos. Isso acontecera um ano e meio atrás. Parecia que ela era uma espécie de mãe para a irmã. Assumira essa posição quando a mãe delas morrera, havia cerca de vinte anos. Agora, então, era também uma espécie de “avó” para os filhinhos dela. - Então a senhora vai hoje, às sete da noite? indagou Selena. - Ainda preciso conversar com seu pai, quando ele chegar, disse a mãe, dando uma olhada para o relógio de pulso. Ele deve estar chegando. E como Tânia foi esquiar, e seu pai está pensando em ir acampar com os meninos, você terá de ficar sozinha com Vó May. - Tudo bem. - É, eu sei que você é capaz de cuidar de tudo, continuou. Só que, às vezes, quando Vó May tem uma daquelas falhas de memória, fica difícil lidar com ela.
  • 7. - Mas eu dou conta, mãe. Comigo, quase sempre ela fica com a mente lúcida. A mãe de Selena ajeitou atrás da orelha o cabelo castanho-claro, cortado curto. Selena notou que ela também tinha lábios redondos e cheios. - A senhora está preocupada porque Vó May terá de ficar sozinha o dia inteiro amanhã? Eu posso faltar de aula, se a senhora achar melhor. - Não. Não quero que você perca aula, não. Creio que não vai haver nenhum problema. Afinal, antes de nos mudarmos para cá, ela ficou anos sozinha. - Mamãe, disse Selena cruzando os braços, vai dar tudo certo. Me dá uma oportunidade de provar que sou capaz de cuidar de tudo. - Você não precisa provar nada, filha, replicou a mamãe. Nesse momento, elas ouviram os passos do pai de Selena subindo a escada. Instantes depois, ele chegava ao quarto da filha. Era um homem de aparência vigorosa. Seu cabelo, já ia escasseando na testa, era a única indicação de que entrara na faixa dos quarenta anos. - Eu escutei, disse ele, dando um rápido beijo na esposa. Selena pensou se o pai já percebera que a mãe dela tinha lábios bonitos, perfeitos para ser beijados, como ele acabara de fazer. Será que os homens notavam esse tipo de detalhe? Principalmente depois de já haverem passado vinte e cinco anos beijando os mesmos lábios? - Posso pegar o vôo das sete horas, explicou a mãe, mostrando ao marido o pedaço de papel. Tem um que sai 10:20h, mas faz escala em Los Angeles. - Pode pegar o das 7:00h. Eu cancelo o passeio com os meninos. - Não precisa não, pai, interveio Selena. Eu fico com Vó May. Não vai ter problema algum. Os pais de Selena se entreolharam com ar de hesitação. - O que foi? indagou a garota, levantando-se e dando um passo sobre seu monte de roupas, pronta para confirmar o que dissera. Vocês estão me olhando como se eu não fosse
  • 8. capaz de encarar essa situação. Já se esqueceram de que um mês atrás viajei sozinha para a Inglaterra e voltei direitinho? É claro que posso ficar uns dias aqui com minha avó. - Não é com você que estamos preocupados, não, explicou o pai. - Vó May tem passado bem, disse Selena. Já faz uma semana ou menos, que ela não fica esquecida. E ela não foi ao médico outro dia mesmo? - Foi, replicou a mãe. Ela caminhou até a porta e cerrou-a silenciosamente. Depois continuou falando em voz baixa, para que só o marido e Selena escutassem: - O médico pediu alguns exames e eu a levei hoje de manhá ao laboratório. - Sim, e daí? indagou o esposo. - Acho que os resultados devem ficar prontos na próxima semana. Mas tudo que vai dar nos exames, nós já sabemos. A mente dela está falhando, mas no mais ela está com ótima saúde. - Podem confiar em mim, afirmou Selena. Nós duas vamos ficar muito bem aqui. Vamos, sim! E aliás, pensou consigo, nem vou precisar cancelar meus compromissos sociais, já que não tenho nenhum mesmo. Sua mãe deu um suspiro. - Os meninos estavam aguardando com tanta ansiedade o passeio para ir acampar... - Está bem. Nós vamos, disse o pai, tomando a decisão prontamente. Selena, você vai ficar no comando da situação, filha. Meu bem, continuou ele, virando-se para a esposa, vou levá-la ao aeroporto daqui a uma hora e, às 4:30h da madrugada, irei acampar com os garotos, como já havíamos programado. Se você tiver algum problema, Selena, ligue para o Cody ou então para o Wesley, tá bom? Selena logo pensou que não adiantaria nada ligar para um de seus irmãos mais velhos. Cody - que era casado com Katrina e tinha um filho de nome Tyler - morava no estado de
  • 9. Washington, a mais de uma hora de distância. Wesley estudava fora, num lugar chamado Corvallis, que ficava a quase duas horas. Se ela tivesse algum problema, eles não poderiam ajudá-la em nada. Contudo tinha certeza de que poderia resolver quaisquer dificuldades que surgissem. - Você é simplesmente incrível, Selena! Sabia? Disse a mãe, dando-lhe um beijo na testa. Estou sempre muito admirada com você; e muito feliz também! Ah, e por falar nisso, se arranjar um tempinho nesse final de semana, dá um jeito de arrumar o quarto, o.k.?
  • 10. Capítulo Dois - Selena, uma voz grave sussurrou bem perto do ouvido da jovem. Querida, eu e os meninos já estamos saindo. A garota fez um esforço para abrir os olhos pesados. - Pai? - Não precisa acordar, não, filha. Só queria lhe dizer que já estamos de saída. Você pôs o relógio para despertar, não pôs? - Sim. Ele deu-lhe um beijo leve na face. - Obrigado por se dispor a assumir as rédeas de tudo aqui. E lembre que se houver algum problema é só ligar para sua mãe, na casa da tia Grace, ou para Wesley ou Cody. - Vai dar tudo certo, pai, tenho certeza, resmungou ela, puxando mais as cobertas e encolhendo-se bem. Divirtam-se bastante! E peguem muito peixe, viu? - Vamos pegar, sim. Tchau, querida! Selena relaxou para dormir, mas ficou um longo tempo na “zona” intermediária - não estava completamente desperta nem dormindo. E aí os sonhos iam sempre mudando. Uma hora via Vó May, com ar distraído, procurando uma pena num dos armários. Depois era Kevin, seu irmãozinho de seis anos, tentando permanecer firme às margens do regato, enquanto um peixe enorme o puxava para a água. Daí a pouco, a pena aparecia esvoaçando e caía na página do seu livro de Biologia. Quando ela ia pegá-la via, com o canto dal olhos, um vulto masculino com um chapéu tipo Indiana Jones e uma mochila de couro. Imediatamente abriu os olhos. Viu apenas o quarto às escuras. Paul. Selena soltou um suspiro e fechou os olhos, procurando voltar a dormir. Queria cair num sono profundo, onde os fragmentos de sonhos podem ir e vir numa dança louca, mas desaparecem com a luz do amanhecer. Era aí que Paul teria de permanecer - em seus sonhos.
  • 11. Ficou mais de duas horas remexendo-se na cama, tentando adormecer, mas sem sucesso. Afinal, às 7:00h, levantou-se mal-humorada e dirigiu-se para o banheiro meio cambaleante. Não sabia ao certo se deveria acordar a avó ou simplesmente deixar-lhe um bilhete, avisando que fora para a aula e que estaria de volta em torno de 4:00h da tarde. Decidiu vestir uma calça jeans bem larga (que Tânia achava ridícula) e uma blusa bordada (que a irmã considerava horrível). Parou em frente do espelho grande que havia no corredor e ficou a examinar sua imagem alguns minutos. Ainda bem que hoje Tânia não iria dar palpites sobre sua maneira de vestir. Ouviu Vó May remexendo no quarto e foi até lá, batendo de leve na porta. - Entre, queridinha! Bom sinal. “Queridinha” era um apelido carinhoso que Vó May usava com a neta. E ultimamente ele passara a ter um outro sentido também. Se a avó a chamasse por esse apelido, podia-se saber que estava vivendo “no presente”. Se não a tratasse por “queridinha”, provavelmente estava pensando que Selena era alguém do seu “passado”. Momentos antes, Selena tivera receio de que a mente da avó “embarcasse” na sua perigosa “máquina do tempo”, que a transportaria para outra fase de sua vida. - Bom dia! exclamou Selena em tom alegre, entrando no amplo quarto. Vovó estava arrumando a cama. Retirava o edredom grosso e quente e estendia a velha colcha feita à mão. Era uma colcha de retalhos que ela mesma confeccionara, utilizando pedacinhos de tecidos das roupas dos filhos, que fora guardando durante vários anos. O cômodo era agradável e de aspecto alegre. Havia uma lareira que ela acendia com frequência e uma janela grande, junto à qual se via um assento. - Já estou quase pronta para ir pra aula, disse Selena. O que a senhora vai fazer o dia todo aqui sozinha?
  • 12. - Hmmm, creio que vou fazer o de sempre: patinar de manhã e jogar boliche à tarde. E pode ser também que sobre tempo para ir tomar chá com o prefeito antes de você voltar da escola, disse ela, com um brilho brincalhão no olhar. Selena sentiu que ela estava alerta e com seu humor de sempre. - Ahn! Parece que vai se divertir muito! disse a jovem, brincando também. Não se esqueça de colocar as cotoveleiras, hein? Nesse momento o telefone tocou, e Selena atendeu na mesinha de cabeceira da avó, antes que esta pudesse fazer a volta e pegá-lo. Bateu os olhos no relógio eletrônico, que marcava 7:58h. Tinha de sair dentro de dois minutos. - É a Sra. Jensen? indagou uma voz masculina. - Aqui é Selena Jensen, filha da Sharon, explicou. - Eu queria falar com May Jensen. - Um momento. Ela está bem aqui. Selena tapou o bocal com a mão e disse para a avó: - É um dos seus namorados. Provavelmente vai sugerir que a senhora vá fazer um bungee jumping * hoje também. Vó May pegou o fone e Selena tratou de terminar de arrumar a cama dela. Ouviu-a responder ao seu interlocutor. - Ah, é? Oh! Não, não! O.k.! É... Bom, não! Está bem! Tchau! A senhora recolocou o fone no gancho no instante e que a neta saía porta afora. - E aí? indagou Selena, olhando por sobre o ombro. O que mais vai fazer hoje? Bungee jumping ou pára-quedismo? - Vou operar da vesícula, replicou Vó May. Selena riu, vendo a avó continuar a brincar. - Então, divirta-se! falou. * Bungee jumping: um esporte moderno em que o praticante salta de um ponto elevado, amarrado a uma corda elástica. (N. da T.)
  • 13. Desceu a escada correndo e parou junto à porta da frente para pegar sua mochila, que estava no cabide. - Tenha um ótimo dia, vó! - Selena! gritou a avó com voz aguda, ainda no alto da escada. Você pode me dar uma carona? A garota parou, sentindo uma leve irritação ao pensar que talvez chegasse atrasada à escola. Volta e meia, ia levar a avó à farmácia ou à mercearia, mas será que hoje ela não poderia deixar isso para depois das aulas? - Vó, eu levo a senhora aonde quiser, mas depois que chegar da escola. Já ia saindo e fechando a porta quando ouviu Vó May outra vez. - Mas eu tenho de estar lá antes das nove. - Nove da manhã ou nove da noite? - Da manhã, explicou ela, com sua vozinha tremida. Selena entrou de volta na sala e, procurando controlar a irritação, indagou: - Aonde é que a senhora tem de ir? - Para o hospital. Selena ficou certa de que a cabeça de Vó May começava mesmoa vacilar de novo. - Não é hoje não, vó. - É hoje, sim. O Dr. Utley ligou agorinha mesmo e disse que não posso beber, nem comer nada e tenho de estar lá às nove. Mas então pego um táxi. Dizendo isso, ela se virou e foi caminhando para o quarto. - Está bem, disse Selena. Tchau! Até de tarde! - Eu não vou estar aqui não, replicou Vó May. Vou para o Hospital St. Mary. Você pode ir direto pra lá. Selena ficou sem saber o que fazer. Como era possível que a mente da avó mudasse assim de uma hora para outra? Não poderia deixá-la ali sozinha, com esse problema. Ela era
  • 14. bem capaz de chamar um táxi e sair para algum lugar. O que faria se chegasse em casa e a avó não estivesse? Soltou um resmungo de impaciência, largou a mochila no chão e subiu a escada de dois em dois degraus. Vó May estava no quarto, dobrando algumas peças de roupa e guardando-as numa bolsa de viagem. - Ele disse que não posso comer nem beber nada, nem mesmo água. E agora, só porque não posso, estou morrendo de fome. Foi uma bênção o Dr. Utley ter resolvido ler os resultados dos exames hoje cedo. Ele vai viajar às três da tarde e ficará fora uma semana. Não posso esperar esse tempo lodo. Vó May pegou um vidro de loção hidratante e continuou falando e arrumando a mala. - É por isso que não me incomodo de ele ter avisado e cima da hora. É claro que quero que ele mesmo faça a cirurgia. Foi ele que operou Paul, quando ele teve apendicite. Paul era um dos filhos dela. Ele morrera na guerra do Vietnã, o que a deixara bastante traumatizada. Sempre que ela começava a falar desse filho, tinha uma crise de esclerose. Selena sentou-se na beirada da cama e colocou a mão sobre o braço dela, para tentar fazer com que parasse de arrumar a maleta. - Vamos fazer uma coisa, disse. A senhora fica em casa hoje e me espera aqui, no seu quarto. A senhora vai ficar muito bem. Pode assistir à televisão ou ler um livro. Quando eu voltar, nós duas vamos procurar o Dr. Utley. Que tal? Ta bom assim? Vó May dirigiu-lhe um olhar irritado e retirou a mão lentamente. - Não sei por que você está falando comigo desse jeito Selena. Mas quero lhe dizer que não estou brincando. Quem me telefonou há pouco foi o Dr. Utley. Pelo resultado dos exames que fiz, ele disse que tenho de extrair a vesícula o mais rápido possível. E como quero ser operada por ele, tenho de ir agora de manhã. Mas não se preocupe com nada. Pode ir pra escola. Eu pego um táxi. Selena não sabia mais o que pensar e ficou em dúvida sobre o que fazer. - É... posso me atrasar um pouco, disse afinal.
  • 15. Resolveu que iria esperar que essa crise matinal da avó passasse. Iria para a escola assim que percebesse que a mente dela voltara ao normal. - Oh, meu pai! exclamou Vó May, olhando para o relógio. Já são 8:25h. Estou atrasando-a para a aula, não é, queridinha? Selena ficou paralisada. Ela me chamou de “queridinha”. E ela só me trata assim quando está em seu juízo normal. E se realmente estiver dizendo a verdade? Com a cabeça a mil, Selena levantou-se e disse: - Está bem. Enquanto a senhora termina aqui, vou dar uma chegadinha lá embaixo. Em seguida, saiu do quarto, fechou a porta, desceu a escada correndo e entrou na saleta do andar de baixo. Foi até uma velha escrivaninha de carvalho e pegou a agenda telefônica. Abriu-a nervosamente, procurando o nome do Dr. Utley. Discou o número e assim que a telefonista atendeu disse: - Alô! Preciso falar com o Dr. Utley imediatamente. É urgente! Meu nome é Selena Jensen. - Um minuto, por favor! Para Selena, que estava aguardando, aquele minuto pareceu uma hora. Escutava os passos da avó no andar de cima. - Vamos, vamos! Depressa! murmurou ao telefone. - Alô! Dr. Utley falando! - Alô, Dr. Utley. Aqui é Selena Jensen. Sou neta da Sra. May Jansen. Sinto muito ter de incomodá-lo, mas minha avó disse que o senhor ligou para ela agora de manhã, e que ela vai ter que fazer uma cirurgia. E não estou sabendo direito o que fazer, porque às vezes ela fica meio esquecida e confunde as coisas e... - Entendi, disse o médico, interrompendo-a. Sua mãe está em casa? - Não, replicou a moça. Será que o senhor poderia conversar com minha avó e explicar tudo direitinho para ela?
  • 16. - Na verdade, tenho de explicar é para você. Sua avó fez uns exames ontem, e o clínico enviou os resultados para mim. Ela está com vários cálculos na vesícula. Um deles deslocou- se e está entupindo um dos canais biliares. Já marquei a cirurgia dela para hoje às 11:00h. Ela precisa estar no hospital até às 9:00h. Selena teve a sensação de que o ar da saleta havia acabado. - Está bem, conseguiu dizer afinal. Vou levá-la para lá imediatamente. Recolocou o fone no gancho e deu um suspiro profundo. Sentiu o coração bater com força. - Queridinha, disse vovó com sua vozinha frágil, estou pronta.
  • 17. Capítulo Três O Hospital St. Mary ficava a poucos quilômetros da casa de Vó May. Selena encontrou uma vaga bem perto da porta de entrada. Às dez para nove, elas estavam se apresentando na recepção. Vó May assinou uns documentos, e em seguida ela pegaram um elevador e foram para um quarto. Lá vovó iria trocar de roupa e vestir a camisola do hospital. A seguir, deveria deitar-se na cama e esperar. - Volto já! disse Selena afastando-se, pensando em ligar para a mãe. - Espere aí, queridinha! Fica vigiando a porta aí pra mim enquanto troco de roupa. Não deixa nenhum enfermeiro entrar não. Selena abriu a cortina que havia em torno do leito e postou-se à porta. Daí a pouco chegava um funcionário do laboratóro. Selena barrou-o. - Ela está trocando de roupa, disse. Espere só um minuto. - É o Ted? indagou Vó May. Selena mordeu o lábio inferior. Ted era o nome do seu avô. E ele morrera quando ela ainda era bem pequenina. Agora, Vó May devia estar mesmo confusa. - Meu nome é Larry, senhora. Preciso retirar amostra do seu sangue. Quando estiver pronta, me avise. - Estou pronta, replicou ela em voz calma. Selena abriu a cortina. A avó estava deitada na cama, coberta até no queixo com o lençol branco. Tinha uma expressão passiva, tranqüila. A animação que demonstrara cedo desaparecera. - Feche a mão com força, disse o rapaz, pegando no braço muito branco. É só uma espetadinha aqui... Fique firme, já está quase acabando... Pronto. Dobre o braço e segure isso bem aqui. Vó May nem pestanejou. Olhou para Selena e deu um sorriso.
  • 18. Oh, minha querida vovó! pensou Selena. Quem será que a senhora acha que sou quando olha pra mim? Uma das suas filhas? A enfermeira? Será que pelo menos sabe que estou aqui? Que será que devo fazer? Selena continuou ao lado da cama durante uma hora. As duas não conversaram muito. Pelo menos Selena não falou muito. Vó May pediu uma xícara de café e um lenço de cabeça, azul, que deixara no carro. Perguntou a que horas iria embora dali. Nada daquilo fazia sentido. Selena não a contrariou, mas também não arredou pé. Vó May parecia não estar se dando conta do que se passava. Sem fazer indagações, assinou um documento no qual estavam relacionados todos os objetos com que chegara ao hospital. A enfermeira lhe disse que fosse ao banheiro, e ela foi sem objetar. Estendeu o braço para que lhe fosse aplicada uma injeção intravenosa e apenas piscou de leve com a picada da agulha. Selena estava até aliviada de ver que ela se achava mais ou menos desligada mentalmente dos preparativos para a cirurgia. Quando vieram buscá-la, Selena indagou se poderia conversar ligeiramente com o médico. - Pode vir conosco, disse a enfermeira. A moça seguiu-a, andando ao lado da maca. Num impulso, inclinou-se, pegou a mão da avó e ficou a segurá-la com firmeza enquanto iam descendo o corredor. Sua avó tinha mãos graciosas, a pele fina e sedosa e levemente enrugada. - Agora espere aqui, falou a enfermeira. Eles continuaram empurrando a maca, e Selena, não sem certa relutância, teve de soltar a mão de Vó May. - Tchau! murmurou baixinho. Instantes depois, viu chegar um homem idoso, vestido com a roupa verde do hospital. Ele se aproximou dela. - Você é a filha de May? indagou ele.
  • 19. - Neta, corrigiu Selena. É, eu sou a Selena. Queria só lhe dizer que ela está um pouco confusa. De manhã, depois que o senhor ligou, ela estava ótima. Mas agora parece que está com a crise de esquecimento de novo. Não sei se isso vai fazer alguma diferença no que diz respeito à operação, mas eu queria lhe avisar. - Obrigado, disse o médico, batendo-lhe de leve na mão. Não se preocupe. Ela vai ficar boa. Você poderá ficar com ela na sala de observação? Acho que será bom que ela veja uma pessoa conhecida na hora em que voltar da anestesia. - Posso. Eu fico com ela. Selena sentiu um forte aperto na boca do estômago. Sabia que tinha de telefonar para a mãe e contar o que estava acontecendo, mas havia diversos problemas. Primeiro, não tinha de cor o número do telefone de tia Grace. E estava na dúvida se deveria ir em casa olhá-lo ou ficar junto da avó. Vó May estava sendo operada. Achou que era melhor permanecer no hospital. Talvez o melhor a fazer fosse ligar para o irmão e a cunhada. Eles deveriam saber o número e ligariam para a mãe. Selena vasculhou o fundo da mochila à procura de dinheiro e acabou descobrindo que o que tinha não daria para pagar um interurbano. Teria de ligar a cobrar. Katrina iria compreender. O problema era que Katrina não estava em casa e a telefonista não permitiu que ela deixasse recado na secretária eletrônica. Agora então o dinheiro acabara e ela não havia resolvido nada. A única alternativa seria ir em casa. Assim que entrou no casarão vazio, Selena foi logo dar telefonemas. Em primeiro lugar, ligou para a tia e deixou um recado na secretária. Como não queria assustar a mãe dizendo-lhe que Vó May estava no hospital, deixou um recado simples. “Oi, mãe. Aqui é Selena. Assim que a senhora puder, liga para mim ainda hoje... o mais depressa possível. Preciso conversar com a senhora.”
  • 20. Desligou e depois ficou pensando se não deveria ter deixado um recado mais claro. Em seguida, anotou o número num pedaço de papel e guardou-o na mochila. Mais tarde iria ligar de novo, lá do hospital. Em seguida, discou novamente o número de Cody e deixou uma mensagem, pedindo que entrasse em contato com ela em casa. Para eles também não disse nada sobre Vó May nem sobre a cirurgia. Pegou uma caixinha de suco de laranja, alguns biscoitos e umas moedas que a mãe “escondia” na gaveta da mesa da cozinha. Eram moedas que ficavam esquecidas nos bolsos da roupa e que sua mãe encontrava depois na secadora. Ela dizia que eram a sua “gorjeta”. Em seguida, saiu apressadamente para retornar ao hospital. Ali esperou quase duas horas. Tentou ligar para a tia duas vezes, e nas duas desligou um pouquinho antes de a secretária se ligar automaticamente, para poder pegar as moedas de volta. Não havia mais o que fazer, a não ser sentar e ficar aguardando que Vó May saísse do bloco cirúrgico. Forasm as duas horas mais longas de sua vida. Por volta de 13:30h, uma enfermeira veio até a sala de espera e disse que Selena já podia ir para a sala de observação e ficar com a avó. Então a garota sentou-se numa cadeira e pôs-se a esperar mais algumas horas. Ficou folheando algumas revistas que havia por ali e, de vez em quando, cochilava. Pensou em fazer outra tentativa de ligar para a mãe, mas achou melhor deixar para depois. E se Vó May voltasse a si enquanto ela estivesse telefonando? Pegou o último biscoito e deu uma mordida. Nesse momenton, ouviu um gemido. - Estou aqui! disse Selena, dando um salto e aproximando-se da cama. Sentiu uma forte comoção interior e teve vontade de chorar. Sua avó querida parecia tão fraquinha ali com aqueles tubos ligados a ela! Estendeu o braço e tocou de leve na mão dela. - Está tudo bem! disse, tentando confortar a avó e a si mesma. A senhora vai ficar boa. Uma enfermeira entrou no quarto e se pôs a olhar a paciente com os cuidados de praxe. Selena deu um passo para trás. - Volto já! disse a moça. Se ela disser qualquer coisa, explique que Selena volta já.
  • 21. Caminhou apressadamente corredor abaixo em direção do telefone público e discou o número da tia. Estava ocupado. Aguardou alguns minutos e ligou de novo. Ainda ocupado. Ficou nervosa, como se fossem repreendê-la por haver levado Vó May para ser operada sem ter pedido a permissão deles. Discou de novo. Dessa vez, chamou. Aparentemente havia alguém em casa, então Selena deixou o telefone tocar quatro vezes. Na quarta, a “secretária” ligou automaticamente. “Oi!” disse. “É Selena de novo. Mãe, eu preciso muito falar com a senhora. Ahn...” parou sem saber o que mais dizer. “Eu... ah...” gaguejou. Receando que o dinheiro acabasse antes que terminasse o recado, soltou tudo de uma vez. “Estou no hospital e Vó May...” Não pôde terminar a sentença. O tempo acabou e o fone ficou dando sinal de ocupado, cortando o que ela dizia. “Ah, essa é ótima!” resmungou, procurando mais dinheiro. Só tinha trinta e cinco centavos. Não era suficiente para ligar para Phoenix. Irritada, Selena voltou correndo para quarto para ver a avó. Entretanto, quando chegou lá, Vó May não se encontrava mais ali.
  • 22. Capítulo Quatro - Com licença, disse Selena para uma enfermeira de uniforme branco que passava. Estou procurando a Sra. May Jensen. Sabe pra onde a levaram? Ela consultou sua prancheta de mão onde havia uma lista de pacientes. - Quarto 417, replicou. O elevador fica no fim do corredor. Selena soltou um suspiro de alívio. Por uns instantes, pensou que houvera alguma complicação e que tivessem levado sua avó de volta para a sala de cirurgia. Entrou no elevador calmamente e concluiu que talvez estivesse assistindo à televisão demais, principalmente aos programas com temas de “hospital”. O quarto 417 ficava no meio do corredor, próximo ao posto de enfermagem. Selena entrou e viu que Vó May parecia dormir tranqüilamente. Ela linha uma respiração bem peculiar quando adormecia. Era suave, mas constante, como que “encrespando” o ar. A jovem parou ao lado da cama e falou em voz baixa: - Sou eu. Selena. A senhora está bem? Orei pela senhora. Tenho certeza de que correu tudo bem. Nesse momento, o Dr. Utley entrou no quarto. - Ela já acordou? indagou ele. - Não. Ou pelo menos não acordou de todo. - É provável que fique dormindo mais algumas horas, explicou o médico. A essa altura, o efeito da anestesia já passou, mas aplicamos uns analgésicos muito fortes que causam sonolência. Ele olhou atentamente para o rosto de Vó May e em seguida examinou o soro e as sondas. - Parece que ela está bem, disse. Acredito que vai ficar boa. Tivemos muita sorte de descobrir o problema bem cedo. Havia apenas dois cálculos, mas ambos eram grandes. Tive
  • 23. de fazer uma incisão de cerca de quinze centímetros aqui, explicou ele, correndo o dedo em um ponto do lado direito do próprio abdômen, logo abaixo das costelas. Selena teve vontade de levar as mãos à barriga, mas conseguiu conter-se. Sentira uma estranha sensação no estômago só de ouvi-lo falar no corte, e achou que era melhor não procurar ver nada. - Ela terá de ficar internada pelo menos uma semana. Nos primeiros dias, estará meio grogue, mas sabendo que você está aqui se sentirá melhor, continuou o Dr. Utley, sorrindo para Selena. Você sabe que sua avó é uma mulher notável, não sabe? Selena sorriu. - É, eu sempre achei isso também, replicou. - Eu não me espantaria nada se ela se recuperasse na metade do tempo que os outros pacientes da idade dela levam para sarar. - E no entanto, comentou Selena, abaixando a voz para o caso de Vó May estar escutando, é muito doloroso saber que seu organismo está forte, mas a mente... concluiu ela, deixando a voz sumir, sem saber como terminar a frase. - É, eu sei, disse o Dr. Utley, acenando afirmativamente. É preciso um pouco de paciência e muito amor. Isso ajuda bastante. Ele deu uma espiada rápida no relógio. - Bom, tenho de pegar o avião, disse num tom mais animado. Vou sair de férias. Estava precisando de uma folga há um bom tempo. Meu assistente, o Dr. Adams, vai continuar cuidando dela por mim. É possível que ele passe aqui mais tarde, hoje ainda. - Obrigada, falou Selena. E tenha ótimas férias! - Espero que sim, respondeu ele, caminhando para a porta. Selen chegou perto da cama e tentou de novo conversar com Vó May. - Ouviu isso, vó? O Dr. Adams virá aqui para ver a senhora. Vou ficar enquanto a senhora quiser que eu fique, tá bom? Se precisar de alguma coisa, é só dizer.
  • 24. A resposta de Vó May foi um suspiro ligeiramente mais profundo. Selena foi para uma poltrona que havia num canto. Dobrou as pernas na cadeira, sentou-se sobre elas e se pôs a olhar pela janela. O quarto dava para outra fachada do prédio do hospital. Lá embaixo, no centro dos blocos do complexo hospitalar, havia um jardim muito bonito e bem cuidado. Estava chovendo. Olhou para o céu. Algumas nuvens escuras pareciam estar mais baixas, enquanto outras se mostravam fixas mais no alto. Não dava para ver o céu azulado acima delas. Era uma típica tarde de primavera em Portland. Selena se pôs a recordar tudo que lhe havia acontecido nos últimos meses. Em janeiro, fora para a Inglaterra, numa viagem missionária. Ali fizera amizade com as três jovens que haviam ficado no mesmo quarto que ela: Cris, Katie e Trícia. Embora essas moças fossem um pouco mais velhas, Selena se dera muito bem com todas, em tudo e por tudo. Entendera-se até melhor com elas do que com garotas da sua própria idade. Quando ela estava na Europa, sua família que morava em Pineville, uma cidadezinha da Califórnia, mudara-se para Portland. Em Pineville, ela conhecia todo mundo e todos a conheciam. Era uma das alunas mais populares de sua escola. Em Portland, porém, era apenas uma ilustre desconhecida. Aqui ela estudava numa escola particular, um colégio evangélico. A princípio gostara da idéia, pois, como o colégio era menor do que as escolas públicas de Portland, achou que se sentiria mais ou menos como em sua escola de Pineville. Contudo, depois que regressara da Inglaterra, tivera certa dificuldade de ajustar-se ali. O início havia sido horrível para ela. Mais tarde, tudo acabara se acertando, mas ela ainda não se integrara bem na turma. É claro que, em parte, ela própria era a culpada. Não se esforçara nem um pouco para fazer amizade com os colegas. Ainda assim, sendo ali uma escola evagélica, ela achara que os alunos seriam mais amigáveis do que os da escola pública, que eram mais numerosos. Entretanto não era o que estava acontecendo.
  • 25. Vó May remexeu-se na cama. Selena olhou para ela, mas a avó acomodou-se, retomando o ritmo constante de sua respiraçao. A jovem voltou a olhar pela janela e a concentrar-se nas suas recordações. Selena pensou que, embora não quisesse deixar Vó May ali sozinha, amanhã teria de ir à entrevista na floricultura, onde havia a possibilidade de arranjar um emprego. Sem o trabalho, não teria dinheiro, e assim seria mais difícil participar dos círculos sociais do Colégio Royal. Duas semanas atrás, Amy, uma colega, convidara-a para irem a uma pizzaria numa sexta-feira à noite. Ela aceitara, mas quando a moça viera pegá-la, os pais de Selena não estavam em casa para lhe darem dinheiro, e ela não tinha nada na bolsa. Desculpou-se com Amy, dizendo que seus pais não estavam em casa e que não se sentia com liberdade de sair sem a permissão deles. A amiga pareceu entender a situação, mas depois disso nunca mais a convidara para nada. Então Selena estava convencida de que o emprego seria a solução para sua falta de relacionamento social. Selena permaneceu várias horas ao lado da cama, ouvindo a respiração compassada de Vó May e cumprimentando cada enfermeira que entrava para dar uma espiada na paciente. Sentiu o estômago “roncar” e pensou que deveria ir comer algo e tentar telefonar de novo para a mãe. Contudo não queria sair antes que Vó May acordasse; para que ela soubesse que a neta se achava ali. Afinal, quando começou a escurecer, achou que teria mesmo de sair. Foi ao posto das enfermeiras e explicou que iria sair e que demoraria uma hora ou menos. Elas se limitaram a sorrir compreensivamente, mas pareciam presas ao seu trabalho. Obviamente, não tinham para com Vó May o mesmo interesse que a neta. Selena teve uma sensação meio estranha quando subiu a escadinha da entrada da velha casa, em meio à escuridão da noite e abriu a porta. Nunca estivera ali sozinha. Como em sua família havia seis filhos, raramente ficava a sós. Sentiu-se meio tensa ao entrar na sala e caminhar para acender a luz. Entretanto os cheiros peculiares da casa lhe transmitiram a
  • 26. sensação de conforto. Havia um odor de canela misturado ao de naftalina. Eles estavam associados a recordações de infância, ao lugar em que ela gostava de se esconder quando brincavam de “pegador”: o armário largo e alto, forrado com um papel vermelho e amarelo, já meio desbotado. Ela le enfiava bem no fundo dele, atrás dos pesados casacos de inverno, sentindo aquele cheiro de naftalina e de canela. Ainda se lembrava de que numa de suas férias seu pai havia lido um livro para eles. Era a história de quatro crianças que entravam num armário cheio de casacos velhos e por ali chegavam a uma terra mágica chamada “Narnia”. E Selena acreditara que aquilo poderia acontecer realmente. Aliás, estava convencida de que aquele armário da casa de Vó May também era encantado. Se entrasse nele num momento mágico, também seria levada para “Narnia”. E tentou isso várias vezes, até que completou onze anos. No entanto, embora tivesse parado de fazer tentativas, lá no fundo ainda cria que seria possível. Era um devaneio maravilhoso ao qual ela até gostaria de poder entregar-se. Seria muito gostoso entrar no armário e ficar ali bem encolhidinha. Mas não. Agora já tinha dezesseis anos e no momento sua responsabilidade era cuidar da avó. Então tentou novamente ligar para a mãe. Dessa vez, o tio atendeu. - Alô! É Selena! disse. Antes que ela pudesse dizer outra palavra, o tio se pôs a berrar no telefone. - Onde é que você está? O que é que está acontecendo? Que recado foi aquele que você deixou na secretária? Sharon, vem cá! É sua filha! Selena nunca gostara muito do tio Daniel. Sua mãe veio ao telefone. Falou com uma voz calma, meio forçada, e a moça percebeu que ela estava cansada. Se ela estivesse em casa agora, iria vestir uma roupa esportiva e sair para fazer seu cooper e voltar toda suada. - Como é que você está, Selena? - Estou bem, respondeu. O problema é com Vó May. Hoje de manhã o Dr. Utley ligou e disse que, pelos resultados dos exames, ela deveria ser operada da vesícula imediatamente, E a cirurgia foi às onze horas.
  • 27. Selena deu os detalhes e mamãe ficou escutando calmamente. A garota ouvia a respiração pesada do tio, que estava escutando na extensão. Aquilo a deixou irritada. Assim que ela terminou de explicar tudo, ele disse: - Nós passamos a tarde toda tentando entrar em contato com você. Deixou sua mãe muito aflita, sabia? - Está tudo bem, interveio a mãe. E como é que ela está? - Quando saí de lá, ainda estava dormindo sob efeito dos remédios. Vou só fazer um lanche e voltar para lá em seguida. Mãe, onde é que tem dinheiro nesta casa? Tive de pegar as suas “gorjetas” da secadora pra poder ligar para a senhora. Sua mãe explicou-lhe que dentro de uma das gavetas da escrivaninha do escritório havia um envelope com dinheiro. Disse que ela podia pegar o quanto precisasse. Selena tirou $20,00 dólares. - Vou ver se volto para casa amanhã, disse a mãe. - Ah, que maravilha! resmungou tio Daniel na extensão, colocando o fone no gancho. A mãe ficou em silêncio alguns instantes, e depois disse: - A situação aqui está um pouco difícil. Acha que dá para passar a noite sozinha aí? - Vou voltar para o hospital, replicou Selena. Quero passar a noite lá, com Vó May. Houve outra pausa, e em seguida a mãe disse: - Você é o sonho de toda mãe, filha. Sabia? Se houver algum problema, ligue para mim, o.k.? Pode ligar, mesmo que seja no meio da noite. E se você não telefonar, então amanhã cedo ligo para o hospital para saber notícias. - 'Tá bom, disse Selena. Assim está ótimo. Tenho certeza de que ela vai passar muito bem. - Vou ficar orando por isso, concluiu a mãe.
  • 28. Capítulo Cinco Selena passou a noite encolhida na poltrona que havia no quarto de Vó May. Por volta de 3:30 avó acordou. Gemeu alto e parecia estar chorando. Selena saltou da poltrona e correu para perto da cama. Imediatamente apertou o botão par chamar a enfermeira. - Calma, vó! disse. A enfermeira já está vindo. A senhora quer um pouco de água? Pegou um copinho com água que estava na mesinha de cabeceira e deu para ela, juntamente com um canudinho. Entretanto Vó May não quis beber. Nem ao menos abriu os olhos. Ficou só gemendo e tentando se mover. - Cadê essa enfermeira? resmungou Selena. A senhora está incomodada, vó? Quer que a ajude a mudar de posição ou algo assim? A enfermeira entrou no quarto. - Oi! disse. - Ela está gemendo, explicou Selena, procurando falar com calma, embora estivesse nervosa. Não sei o que faço. - Como é que você está, hein? disse a mulher para Vó May, pegando de leve a mão dela para lhe sentir o pulso. Está sentindo dor? Vó May gemeu mais forte. - Ah, nós podemos dar um jeito nisso. Ela examinou o frasco de soro e continuou falando mais para si mesma do que para Selena ou a paciente. - Vamos colocar outro frasco aqui para você. - Serái que ela sabe que estou aqui? indagou Selena. A enfermeira fez que sim. - Ela está apenas grogue. É muito bom que você esteja aqui. Continue conversando com ela. Volto já.
  • 29. Selena pegou a mão de Vó May e segurou-a de leve. Estava fria e suada. - Como é que está minha avozinha querida? perguntou com voz alegre. Selena não levava muito jeito para animar uma pessoa doente. Contudo gostava muito da avó e, por ela, seria capaz até mesmo de exibir uma fachada de coragem quando na verdade se sentia meio insegura. A enfermeira retornou e fez seu serviço. Em seguida, Vó May se acalmou e dormiu de novo. Selena voltou para a poltrona e se ajeitou nela, cobrindo-se com um cobertor. Não conseguiu dormir. Passou as horas frias da madrugada orando e pensando. Orou e pensou bastante. Passava um pouco de 7:00h quando a campainha do telefone a despertou de uma leve sonolência. Deu um salto para atender. - Alô! - Alô! É mamãe. Como você está? - Estou bem. Vó May passou a noite muito bem. Ainda está dormindo, replicou Selena, sussurrando. - Não. Não estou, não, queridinha. Quem é? Selena olhou para a avó. Tinha os olhos um pouco inchados, mas não havia dúvida de que estava acordada. - É mamãe. Quer falar com ela? - Acho que sim. Não tenho muito o que dizer, respondeu ela, com a voz meio rouca. Selena aproximou o fone do ouvido da avó. - Não, disse Vó May, respondendo a uma pergunta da mãe de Selena. Estou bem. Só não estou conseguindo me mexer. Estou cheia de tubos por todo lado. Selena fitava a avó e viu a expressão do rosto dela se anuviar, lembrando-lhe as nuvens que vira no céu no dia anterior. O olhar dela era de quem estava confusa, sem lucidez. Ela fitou Selena e depois o aparelho.
  • 30. - Diga pra eles que não quero mais, falou com rispidez, afastando o rosto do telefone e procurando virar o ombro. Selena pegou o fone rapidamente. - Mãe, disse ela, acho que ela está com uma de suas crises de esquecimento. - Não quero nenhum, resmungava Vó May. Se eu quisesse mais panos de prato teria dito para eles. - Mãe! disse Selena. - Calma, Selena. Fique calma e tranqüila. Vai dar tudo certo. Olhe, eu est... Selena largou o fone e correu para segurar a mão da avó. Ela estava tentando arrancar o fio do soro. - Tem de deixar isso aí, falou com firmeza. Não pode tirar ainda não. Com uma das mãos segurou o pulso da avó, para que ela não arrancasse o tubinho, e com a outra apertou o botão para chamar a enfermeira. Do fone dependurado, vinha a voz de sua mãe que a estava chamando. - Fique assim, disse Selena, batendo de leve na mão da avó e afastando-a do fio do soro. A senhora está boa! - Mas eu não quero, insistia Vó May. Eles deviam ter me perguntado. Em seguida, ela se pôs a chorar como uma criança que sente que perdeu a luta. Nesse instante a enfermeira entrou no quarto. Era uma nova, que Selena ainda não vira. - Oi! disse, cumprimentando-a nervosamente. Minha avó está tentando arrancar a agulha do soro. - Pode não! disse a enfermeira meio na brincadeira, como se estivesse repreendendo uma criancinha. Isso irritou Selena. - Olhe aqui, falou em tom de defensiva, ela não está entendendo as coisas direito não, viu?
  • 31. A mulher olhou para a jovem com expressão de espanto e pegou a mão de Vó May para examinar-lhe o pulso. Selena largou o braço que estava com o soro e pegou o fone. - Mamãe? - Pronto, querida, Está tudo bem aí? - Não sei. Creio que sim. Ela está com uma de suas crises de esclerose e... - Você agiu certo. Escute, eu ia lhe dizer que estou aqui no aeroporto. - Em Phoenix? - Não. Em Portland. Peguei o primeiro vôo hoje cedinho. Acha melhor eu tomar um táxi para ir ao hospital? Selena pensou um pouco. Sabia que levaria apenas meia hora para ir ao aeroporto e voltar. - Não, disse ela, com os olhos fixos na avó e na enfermeira. Vou aí buscá-la. Acho que Vó May ficará bem aqui. Eu a encontro perto da esteira de bagagem. Desligou e se pôs a observar a enfermeira, que fazia algumas anotações no computador onde se achavam registrados todos os dados e medicamentos da paciente. Parecia que Vó May voltara a dormir, embora estivesse meio inquieta. - Dê uma olhada nela pra mim, disse para a mulher. Volto já. - É pra isso que eu ganho os milhões que recebo todo mês, minha filha, replicou a enfermeira num tom ríspido. Selena saiu apressadamente, já desejando ter dito à mãe que pegasse um táxi. Não teve dificuldade para sair do estacionamento do hospital e descer a via expressa em direção ao aeroporto. O difícil seria acertar a pista certa ao chegar lá. Ela já se perdera mais de uma vez nas vias expressas de Portland, mas hoje não tinha muito tempo de sobra. Senta-se responsável por Vó May. Afinal avistou a placa que indicava a via de acesso para o aeroporto e conseguiu entrar sem maiores problemas. Avistou a mãe no setor de recolhimento das bagagens e saltou do
  • 32. carro para dar-lhe um abraço. Assim que sentiu os braços da mãe em torno dela, teve vontade de chorar, mas resistiu ao impulso. Fora forte até aquele momento e poderia continuar firme para não assustar a mãe. Sua mãe jogou a mala no assento de trás do fusca, e Selena passou para o banco do passageiro. Tão logo saíram da movimentada área do terminal, ela soltou um suspiro de alívio. Agora a mãe estava na direção; e não era apenas do carro. - Como é que você está? indagou ela, dando um olhar rápido para a filha. Antes, porém, que a moça respondesse, ela continuou: - Seria bom se a gente pudesse entrar em contato com seu pai. O médico falou quanto tempo ela terá de ficar internada? Ela já comeu alguma coisa? - Estou bem, creio que não e não, replicou Selena. Utilizara o método que seu irmão Wesley adotara para responder à mãe, que sempre fazia as perguntas uma atrás da outra. Sua mãe sorriu. - Nem lembro mais as perguntas que fiz, disse ela. Estou tão preocupada com as duas! Vamos começar de novo. Você está bem? - Claro. Estou ótima. - Você foi maravilhosa, Selena! - Eu não fiz nada, mãe. Na verdade, quase estraguei tudo. Contou-lhe que não acreditara em Vó May quando esta dissera que o médico havia telefonado. - Ainda bem que você teve o bom senso de não ir à aula, disse a mãe, abanando a cabeça. Não sei se eu teria tido. Quer que a leve pra casa para você dormir um pouco? - Não, quero ir para o hospital com a senhora. Selena olhou pela janela do carro quando entravam na via expressa. Nesse momento se lembrou de que tinha uma entrevista marcada na floricultura Zuzu's Petals, dali a pouco, às 9:00h.
  • 33. - Na verdade, talvez seja melhor eu ir para casa mesmo. Quero tomar um banho antes da entrevista. Acho que estou meio desarrumada. - E você terá de ir a pé à floricultura, disse a mãe. - Tudo bem, replicou a jovem. São apenas alguns quarteirões. Momentos depois, às cinco para as nove, Selena achou que aqueles quarteirões haviam se transformado em quilômetros. Apressou o passo. Com uma das mãos, pegou o cabelo, bem cheio e encaracolado, e agitou-o de leve para cima e para baixo. Na nuca, ainda estava um pouco molhado. Vestira uma camiseta clara, de mangas compridas, com um coletezinho bordado. Pusera uma saia de algodão, bem leve que ia até um pouco abaixo dos joelhos. E enfiara nos pés seu calçado predileto - a velha bota de cowboy que tinha sido de seu pai. Selena se apegara muito a ela, embora estivesse velha e meio fora de moda. Aliás, esse calçado era sua “marca registrada”. Quando faltava apenas uma quadra para chegar à floricultura, começou a cair uma garoa leve. Passou em frente de uma confeitaria, onde viu uma fila de clientes aguardando a “saída” dos pãezinhos doces, quentes, temperados com canela. Naquele momento a porta se abriu e o cheiro forte chegou até ela, dando-lhe vontade de entrar na fila também, entretanto, se quisesse chegar à hora ao seu compromisso, não poderia parar agora. A Zuzu's Petals ficava duas lojas abaixo. E com mais alguns passos chegou à loja. Selena fez uma rápida oração e girou a maçaneta da porta. Estava tranca
  • 34. Capítulo Seis Selena foi até a portinha lateral da loja e espiou pela fresta. Em seguida bateu de leve na vidraça. A luz estava apagada; não se via movimento algum no cômodo dos fundos. Estranho! pensou. Tenho certeza de que a entrevista seria hoje. E já passa de nove horas. Por que será que não tem ninguém aqui? Olhou para um lado e outro. Talvez a dona da loja tivesse ido tomar um café e comer um daqueles pãezinhos quentes, com sabor de canela. Repassou mentalmente a conversa que tivera com a mulher, uma semana atrás. Tinha certeza de que ela marcara para hoje, às 9:00h da manhã. Fora Vó May quem arranjara essa entrevista para Selena. A avó adorava flores e havia muitos anos que era cliente da Zuzu's Petals. A moça já ouvira a avó dizer várias vezes: - Se eu tivesse só dois dólares, com um compraria pão e o outro gastaria em flores. O pão é alimento para o corpo, mas as flores satisfazem o coração. Na semana anterior, Vó May ligara para a floricultura encomendando flores para uma tia de Selena que tivera bebê. E antes de encerrar a conversa, ela estendera-o para a neta, dizendo: - Ela vai lhe dar um emprego, queridinha. Selena conversara rapidamente com a mulher e combinara de ir lá. Agora encontrava-se à porta da loja fechada, sando se aquilo não fora um sonho. Um casal idoso passou perto dela, sob a chuva fina, cada um com um copo de café na mão e um saquinho de papel branco, que parecia conter os pãezinhos de canela. - Bom dia! disseram os dois juntos. Ela deu um sorriso e respondeu ao cumprimento. Em seguida passaram duas mulheres conversando animadamente. Logo depois delas, veio um senhor baixo, levando amarrado a uma coleira um enorme cachorro preto. Postada ali debaixo do toldo verde da loja, Selena se sentia quase como um porteiro de hotel. Seu estômago estava pedindo:
  • 35. - Quero um pãozinho de canela! O bom senso, porém, expondo uma porção de motivos, mandava que ela permanecesse ali até aparecer alguém. Sentia-se um pouco apreensiva, pensando que talvez devesse ter ido com a mãe para o hospital e, depois, ter ligado para a loja, marcando uma outra data para a entrevista. Todavia permaneceu ali durante uns bons vinte minutos. Afinal uma pequena van chegou e parou em frente loja. Na porta estavam gravadas em letra cor-de-rosa as palavras Zuzu's Petals. - Você é Selena? indagou a mulher que viera ao volante, saltando do veículo e correndo para debaixo do toldo. Eu sou a Charlotte. Desculpe a demora. Ela destrancou a porta e virou a placa onde se lia “Fechado”. * - Tive pedidos de arranjos para dois casamentos agora de manhã e me atrasei, continuou ela explicando. Vamos entrar. Quer café? - Não, obrigada. - Então você é a neta de Vó May, hein? Gosto muito dela. Como é que ela está? A dona da loja era uma mulher de muita energia. Tinha cabelo preto, bem curto, e olhos castanho-escuros, muito brilhantes, que combinavam com o cabelo. Na orelha direita tinha uns seis brincos de prata. Selena ainda não conseguira perceber se simpatizaria com ela ou não. - Bom, pra falar a verdade, ela está internada. Fez uma operação de vesícula ontem. Charlotte parou meio abruptamente e olhou para ela com expressão de preocupação. - Ah, eu não sabia. Ela está passando bem? Está no St. Mary? - Está. Parece que passa razoavelmente bem, replicou Selena. - Você irá vê-la hoje? Vou mandar umas flores pra ela. Ontem recebi uns lírios amarelos maravilhosos. Oh, mas que pena que ela está internada! * Nos Estados Unidos, devido ao inverno rigoroso, as lojas ficam com as, portas fechadas. Para indicar que estão funcionando, colocam uma placa a com a palavra Open (Aberto). No outro lado da placa, há o aviso Closed (Fechado), que deixam à vista ao fim do expediente. (N. da T.)
  • 36. Enquanto Charlotte expressava seus sentimentos de pesar, foi para trás do balcão e se serviu de café. Perto havia uma pequena geladeira, que ela abriu com o pé. Retirou dela uma caixa de leite com sabor de baunilha. Derramou um pouco no café e em seguida fechou a porta da geladeira ainda com o pé. Fez tudo isso num só movimento. - Tem certeza de que não quer café? insistiu. - Não, obrigada, replicou Selena. - Sou movida a café, disse Charlotte, virando-se e acendendo as luzes da loja, que de fato era um encanto. Selena pensou que muito da energia dessa mulher devia ser proveniente da cafeína, e não um elemento natural de sua personalidade. - Então vejamos, continuou Charlotte, sentando-se num tamborete atrás do caixa e tomando um gole de seu café. Posso lhe pagar salário mínimo, e o horário de trabalho é das 8:00h às 17:00h, aos sábados e domingos. Você precisará ter carro próprio, mas lhe daremos um acréscimo para o combustível. Quer a vaga? Selena ficou parada, meio sem saber o que pensar. A entrevista é só isso? - Posso trabalhar sábado o dia todo, replicou, mas nada aos domingos. E nem sempre vou poder ter o carro à minha disposição. Achei que vocês queriam alguém para trabalhasse aqui na loja, e não para fazer entregas. - Não. Precisamos mesmo é de um entregador. Foi por isso que tive de sair cedo de manhã. Aliás, minhas sócias ainda estão na rua. O caso é que temos de ficar as três na loja e queremos arranjar um funcionário para ficar por conta das entregas. E essa pessoa vai ter que trabalhar aos domingos também. Se você não puder trabalhar nos dois dias, não posso lhe dar o emprego, explicou ela, sem rodeios. - Então acho que não vai dar pra mim, respondeu Selena, também de forma direta. De qualquer jeito, muito obrigada. Espero que consiga arranjar alguém. Assim dizendo, virou-se para sair, mas Charlotte exclamou:
  • 37. - Espere aí! Desceu do tamborete e caminhou rapidamente para os fundos da loja. Instantes depois retornava com um buquê de lírios amarelos, envolto em papel celofane e amarrado com uma imensa fita cor-de-rosa. - É para Vó May, explicou. Diga-lhe que todas nós lhe enviamos nossos votos de pronta recuperação. Selena pegou as flores e pensou que a melhor maneira de carregar aquilo era como se fosse uma Miss Universo desfilando na passarela. - Obrigada, disse. Acho que ela vai adorar. - É, vai sim, disse Charlotte, retomando seu café. Até mais, Selena! Chegando à calçada, Selena começou a desejar que tivesse trazido uma sombrinha. A chuva fina havia aumentado um pouco. Não se importava de se molhar, mas queria proteger as flores. Elas eram muito bonitas, mas o pacote todo era meio volumoso. Sentiu-se um pouco sem jeito de ir caminhando com aquilo. Desistiu inclusive de comprar os pãezinhos de canela. Não conseguiria carregar mais nada além das flores. Se pegasse mais um embrulho, teria problemas, principalmente com toda aquela chuva. Passou direto pela padaria, prometendo ao seu estômago que breve voltaria ali. A chuva apertou. Selena pensou que deveria ter trazido um agasalho. A manga da camiseta estava grudando em sua pele. Sentia a barra da saia também pegando na batata da perna. O cabelo lhe caía nas costas e colava no rosto. Teve mu arrepio e se pôs a andar mais depressa, procurando cobrir e proteger um pouco as flores. Sentiu-se deprimida. Parecia que todas as suas emoções haviam se ajuntado numa enorme bola. Tinha a sensação de estar carregando um peso de vinte quilos, debaixo daquela chuva. Não conseuira o emprego. Não tinha dinheiro, nem amigos, nem previsão de que a situação fosse melhorar num futuro próximo. Além disso, sua amada avó estava internada e ia pouco a pouco perdendo a lucidez. Não havia dúvida de que a vidinha calma e pacata de Pineville acabara
  • 38. mesmo. Antes eram os passeios a cavalo, os piqueniques com os vizinhos, as campinas cobertas de flores silvestres. Agora eram ruas movimentadas, cachorros latindo, ônibus soltando uma fumaça negra e floriculturas gerenciadas por pessoas frias, movidas a cafeína. Selena sentiu uma enorme solidão. Então se pôs a chorar, achando que talvez isso lhe trouxesse um pouco de alívio. E lágrimas grandes e quentes lhe rolaram pela face, contrastando com a chuva fria. Ergueu o rosto para o céu e deixou que a água a molhasse por completo. Soluços lhe subiam do peito. Não se importou nem um pouco de que as pessoas a vissem chorar nem ligou para o que pudessem pensar. Deixou escapar alguns soluços, sem tentar reprimi-los. Nada do que lhe dizia respeito estava saindo do jeito como queria. E a chuva continuava caindo. Tinha a impressão de que alguém derramara um balde de água em cima dela. Faltavam apenas cinco quarteirões para chegar em casa. Assim que entrasse, iria direto para a cama. Ou talvez fosse melhor tomar um banho bem quente, na banheira. Chegou a uma esquina onde havia um semáforo. Parou esperando o sinal abrir para ela. Com o canto do olho, percebeu que um jipe negro também parará ali. Estava bem ao lado dela, a poucos metros. Embora a janela do veículo estivesse fechada, dava para ouvir uma música alta, que vinha lá de dentro. E ouviu também muitas risadas de homens. Será que estavam rindo dela? Se estivessem, ela não poderia nem reclamar. Se ela estivesse dentro daquele carro, provavelmente também iria rir da figura dela. Sabia que estava ridícula, mais parecendo uma segunda colocada no concurso de beleza das “frangas molhadas”. As gargalhadas daqueles homens só serviram para aumentar ainda mais sua ágoa. Sentiu uma raiva enorme dominá-la. Piscou para remover as lágrimas dos olhos e virou a cabeça com um movimento brusco. O rapaz que estava no banco do passageiro olhava diretamente para ela. Seus olhares se encontraram. Selena suspendeu o fôlego. A expressão de seu rosto mudou. E o cara que a fitava parou de rir.
  • 39. Era Paul. O sinal abriu. O carro arrancou e partiu. Paul virou para trás, continuando a olhar para ela. Daí a pouco sumiram de vista. Selena deu um passo para atravessar a rua e pisou numa poça de água. Sentia-se entorpecida por dentro e por fora. Era o Paul. Ele me viu e estava rindo de mim. Selena nem viu como caminhou aquelas últimas quadras até em casa. Sua mente estava longe. Estava no Aeroporto de Heathrow, em Londres, onde conhecera o rapaz. Ela fora a um telefone público e o vira ali. Ele lhe pedira algumas moedas emprestadas para completar seu telefonema. Naquele momento, parecera que houvera um “clique” entre eles. Depois, quando estavam no avião, haviam conversado um pouco e acabaram descobrindo que tinham amigos comuns. Tudo parecia estar correndo muito bem. Aí, em dado momento, ele ficou sabendo a idade dela. Ele já estava na faculdade e tinha mais de vinte anos. Selena tinha apenas dezesseis e ainda estava no segundo ano do curso médio. O interesse de Paul por ela desapareceu no mesmo instante. Apesar disso, mais tarde ele lhe escrevera uma carta, que ela, por sua vez, respondera. Isso acontecera várias semanas atrás. E ele ainda não dera resposta à cartinha dela. Agora, depois daquele breve instante em que se viram na esquina, ela teve certeza de que ele nunca mais iria escrever. Era outro motivo para chorar. E ela chorou a valer.
  • 40. Capítulo Sete Selena se esticou bem na banheira antiga, sentindo a água quentinha. Fazia muito tempo que não tomava um banho daqueles. A última vez fora na época em que era menina e todos vinham passar as férias com a avó. Depois que tinham vindo morar na velha casa vitoriana de Vó May, ela só tomara no chuveiro do banheiro do andar de cima, que fora remodelado. Então gora procurou relaxar bastante na água morna e reconfortante. Assim que chegara em casa, ligara para o hospital. A mãe dissera que Vó May estava passando bem. Naquele momento estava descansando. Em seguida, a mãe lhe sugerira que dormisse um pouco para se refazer da noite passada no hospital, sentada na poltrona. Após o almoço, as duas voltariam para junto da avó. Era o que Selena precisava - um tempo para relaxar. Depois do belo banho quente, vestiu um blusão e uma calça de moletom. Com isso, e uma xícara de chá de jasmim, iria er- guer o espírito, que se achava envolto em emoções pesadas havia cerca de uma hora. Quando ela estava se servindo de mais um pouco de chá, o telefone tocou. - Alô! disse atendendo e sentindo um desejo profundo de que fosse Paul. - Oi, Selena! O que está fazendo? indagou uma voz feminina. - Nada, replicou ela. Quem é? Ela ficava furiosa quando as pessoas ligavam e iam conversando sem dizer quem eram. - Puxa! Quer dizer que já se esqueceu da gente? continuou a outra brincando. - Oi, Selena! falou outra voz de mulher. É Cris! Agora você já sabe de quem é a outra voz. - Katie! Cris! Oi, gente! Como é que vocês estão? - Estamos bárbaras! replicou Katie. E você? - Essa é a palavra que ela mais está usando agora, Selena, explicou Cris, entrando na conversa. Você vai cansar de ouvir isso.
  • 41. Selena tirou o saquinho de chá de dentro da xícara e foi para a saleta, equilibrando o telefone sem fio entre o queixo e o ombro. Sentou-se numa poltrona de que gostava muito e colocou a xícara num descanso de copos, na beirada de uma mesa próxima. - Que legal que vocês ligaram! Parece que nossa viagem à Inglaterra foi há séculos! - É mesmo! concordou Katie. - Mas foi só algumas semanas atrás, disse Cris. Como é que você está? - Nem pergunte, replicou Selena, bebericando um pouco do chá. As semanas que passaram foram péssimas, e esses dois últimos dias foram um verdadeiro desastre. E vocês? Me contem como estão. Quem sabe isso me deixará mais animada. - Estamos aqui fazendo brownies, respondeu Cris. Quer dizer, estamos tentando fazer, se a Katie não comer todas as “gotas de chocolate”. - Comi só um pouquinho, defendeu-se a outra. Além disso, a gente pode pôr algumas passas e ninguém vai notar a diferença. - O Ted vai, replicou Cris. - Ele está aí também? indagou Selena. - Não; ele está na casa do pai, em Newport. Nós vamos para lá hoje à tarde, porque à noite vai haver uma festa na casa da Trícia. Queríamos que você viesse também, Selena. - Oh, gente, não me torturem assim. Vocês sabem que eu adoraria ir. Daria tudo para vê- las de novo. - Então, venha! exclamou Katie, dando mais ênfase à última palavra. - Ah, ótimo! falou Selena. Vocês se esqueceram de um bom detalhe - estou a mais de mil e quinhentos quilômetros de distância! - Já ouviu falar em avião? perguntou Katie. É uma das maravilhas do mundo moderno. Você pode chegar aqui em poucas horas. - Já ouviu falar em dinheiro? retrucou Selena. Já escutou aquela frase: “Não tenho dinheiro”?
  • 42. - Então arranje, disse Katie. - Já tentei, replicou Selena, levantando os pés e sentando-se em cima deles para aquecê- los. Tive uma entrevista para um emprego hoje cedo. Foi a mais curta deste mundo. Mas não consegui o trabalho. Era numa floricultura. Queriam que eu trabalhasse no domingo, o dia todo, e que tivesse carro próprio, para fazer entregas. - Você explicou que não trabalharia domingo porque vai à igreja? indagou Cris. - Não. A mulher nem perguntou por quê. Eu só disse que não poderia trabalhar no domingo. - Olha, disse Cris, eu trabalhei numa loja de animais. Avisei para o meu patrão que não poderia trabalhar no domingo porque tinha de ir à igreja, e ele foi muito compreesivo. Você também poderia tentar explicar tudo para a mulher lá. - É, exclamou Selena, mas não adiantaria. De qualquer jeito, não tenho carro próprio. Temos um fusca aqui que eu minha mãe usamos, mas ele já é meio velho. Não dá pra confiar nele. Mesmo que me aceitassem para trabalhar no sábado, nem sempre eu poderia ficar com o carro o dia todo. É, não ia dar certo, não. - Que pena! falou Cris. Vai tentar arranjar outro emprego? - Vou, replicou Selena. Aqui por perto tem muita loja e lanchonete. Creio que dá para encontrar um trabalho aqui sim. - E assim que arranjar serviço, interveio Katie, vá logo avisando que vai folgar no recesso da Páscoa, ouviu? Você tem de vir para cá, passar a semana toda conosco. - Se eu tiver dinheiro. - Tem de vir! disse Katie. É uma ordem! Selena escutou um ruído de alguém mastigando. - Katie, você está comendo o chocolate de novo? indagou Selena. - Só um pouquinho.
  • 43. - Assim vamos ter de comprar mais chocolate, Katie, falou Cris. Puxa, nunca pensei que fosse dizer uma coisa dessas, mas talvez aquela sua crise de alimentação natural não tenha sido tão ruim assim. Pelo menos os chocolates não acabavam tão depressa. Selena riu. - Ah, gente, estou com tanta inveja de vocês! disse ela. - Inveja é pecado! exclamou Katie. - Ah, você entendeu o que quero dizer. Vocês já são amigas há tanto tempo! Mas eu, desde que me mudei para cá, não fiz amizade com ninguém. Não conheço uma pessoa sequer que pudesse convidar para vir à minha casa para fazermos brownies. - Já, já, você arranjará alguém, comentou Cris. - Ah, é? Como? - Ponha um anúncio, ensinou Katie, dando outra mastigada. - Como assim? - Ponha um anúncio no jornalzinho da escola. Selena riu. - E como seria esse anúncio? “Precisa-se de uma alma gêmea”? - É, isso mesmo, replicou Katie, ainda mastigando. Que há de errado nisso?! - Onde é que você arranja essas idéias, Katie? perguntou Cris. E pára de comer esses chocolates! - Você não sabe que o chocolate é a melhor coisa do mundo para o cérebro? observou Katie. Aguça a percepção daquilo que é óbvio. E está claro que Selena está precisando de amigos. Continuo achando que o melhor a fazer é pôr o anúncio no jornal. - Pois eu, disse Cris, vou orar para que Deus lhe mande um tesouro peculiar, e que ele venha à sua porta.
  • 44. - Ei, espera aí. Ela não está querendo pedir uma pizza, não, interveio Katie. Ouça meu conselho, Selena, ponha o anúncio no jornal. É o melhor jeito de arranjar amigos. É bárbaro! Mas, falando de tesouro peculiar, e de tesouro bárbaro, o que aconteceu com Paul? - Ah, que coincidência você falar dele! exclamou Selena. - Quem é Paul? quis saber Cris. - Lembra daquele cara que te falei que Selena conheceu no aeroporto de Londres, quando ela estava voltando, que veio no mesmo avião, que eu disse que ele era crente, que tinha um irmão chamado Jeremy, que era colega do Douglas e quando fui na casa do Douglas no mês passado, Jeremy estava na reunião do grupo “Amigos de Deus”, e deu ao Douglas uma carta que o irmão dele escreveu para Selena, e o Douglas entregou a carta pra mim e eu mandei para Selena? explicou Katie num só fôlego. - Você não me contou nada disso, falou Cris. - Claro que contei! - Contou não, insistiu Cris, senão eu lembraria. - Tenho certeza de que contei, Cris. Parece que ultimamente sua memória anda muito seletiva. - O que você quer dizer com isso? Selena tomou outro gole de chá e ficou a ouvir as duas amigas discutindo, cada uma na sua extensão do telefone. - Quando é algum assunto que diz respeito ao Ted, você guarda direitinho na memória. O que não for relacionado com ele, fica perdido. - Ah, obrigada, Katie! exclamou Cris em tom irônico. Essa foi ótima! A verdade é que você não me contou mesmo que Selena tinha conhecido esse cara... como é o nome dele? - Paul, replicaram Selena e Katie juntas. - Ah, e eu o vi hoje, interveio Selena rapidamente, antes que as duas recomeçassem a “batalha” amistosa.
  • 45. - Que bárbaro! exclamou Katie. Como foi? Selena descreveu a cena em que estivera toda molhada, carregando o enorme embrulho do buquê de lírios. Do outro lado da linha, as duas a ouviam em completo silêncio, interrompido apenas pelo ruído característico de um saquinho de gotas de chocolate. - Alô! Será que estou deixando as duas chateadas com essa minha longa história? - Claro que não! replicou Cris imediatamente. Só foi muito estranho você tê-lo visto desse jeito. O que vai fazer agora? - Nada. O que posso fazer? - Talvez ele lhe telefone para perguntar se você está bem, comentou Katie. Pelo menos é isso que acontece nos filmes. - Não, interveio Cris. No filme, ele teria mandado o amigo dele parar o carro, teria corrido em sua direção com um guarda-chuva aberto e a teria levado até em casa. Chegando lá, você faria um chá para os dois. Selena riu. - E agora estou até tomando chá, explicou. Talvez, no meu caso, seja um filme classe B, daqueles bem baratos, e acaba comigo tomando chá sozinha. Não tem o mocinho nem o guarda-chuva. - Então o meu, interveio Katie, seria classe Z. Não teria o mocinho, nem o guarda- chuva, nem a história... - O seu parece mais um filme de suspense, interrompeu Cris. O final dele é um que ninguém espera. - E a sua história, disse Katie para Cris, está se tornando um daqueles romances de final previsível. A garota conhece o rapaz. Durante quatro anos, o rapaz se mostra um verdadeiro bobo. A garota se transforma numa linda mulher. Afinal o rapaz “acorda” e a garota vira uma perfeita abobalhada. Selena riu.
  • 46. - É, disse ela, pelo visto, tudo está indo muito bem entre você o e o Ted. - Mais ou menos, replicou Katie, respondendo pela amiga. Você precisa vir aqui logo, Selena. Vou convocar uma reunião de emergência do nosso clube “Apenas Amigos”. Como eu e você somos as únicas que ainda são sócias, você é obrigada a vir. Ainda lembra do nosso clube, não lembra? - Claro! replicou Selena. Como eu iria esquecer? E ainda tenho plenas credenciais para fazer parte dele. Não há nenhum rapaz na minha vida, nem mesmo como amigo. E como a garota estivesse se sentindo com um espírito de gozação, continuou: - A não ser que, hoje de manhã, Paul tenha ficado tão impressionado com minha estonteante beleza, que já tenha vindo para cá para me tomar em seus braços. - Só em sonhos, Selena! comentou Katie. Na minha opinião, você pode riscar esse gaiato de sua lista. Talvez deva especificar no anúncio que está procurando novos sócios para o nosso clube “Apenas Amigos”. Podemos aceitar rapazes também em nosso grupinho. - Não mexe com esse negócio de anúncio, não, aconselhou Cris. Comece a orar. Eu também vou orar para que você conheça umas pessoas bem legais aí. - Então ore também para eu arranjar um emprego, disse Selena. Falta menos de um mês para o recesso da pascoa. - Está bem, replicou a amiga. Nesse momento, a porta da sala se abriu e Selena se ergueu de um salto. Sabia que sua mãe só iria chegar à tarde. Olhou para o velho relógio que se achava sobre a mesa de carvalho. Marcava 10:57h. A garota escutou passadas no assoalho de madeira de entrada. Arrependeu-se de não ter trancado a porta. Cobrindo a boca e o fone com uma das mãos, disse: - Gente, entrou alguém aqui em casa. - Você está sozinha? indagou Cris. - Estou, replicou Selena em voz baixa.
  • 47. A moça seguiu os passos se dirigindo para a cozinha e sentiu o coração bater com força. Eram passadas pesadas, como de um homem. - Não desliguem, não, falou para as amigas. Fiquem na linha. Se eu gritar aqui, liguem para a polícia de Portland imediatamente!
  • 48. Capítulo Oito Selena prendeu a respiração. Pelo telefone escutou Katie, fazendo o ruído de quem lambe os lábios. Logo Cris cochichou: - Pssssiu, Katie! Ao mesmo tempo, Selena ouvia as passadas ressoando pesadamente na cozinha e, em seguida, vindo na direção da saleta. - Está vindo para cá! sussurrou. - O que está acontecendo? indagou Katie. Quem é? De repente uma figura apareceu à porta. - Ué! exclamou Selena. O que você está fazendo aqui? Era Tânia. A jovem entrou na saleta, batendo as grandes botas de esquiar no assoalho de madeira. - E você? O que você está fazendo aqui? indagou ela. Cadê o carro? Achei que não havia ninguém em casa, por isso fiquei espantada quando vi que a porta da frente estava destrancada. - Quem é? gritou Katie no telefone. - É minha irmã, replicou Selena. Em seguida, virou-se para Tânia e disse: - Mamãe saiu com o carro. Ela está no Hospital St. Mary com Vó May. Ela fez uma operação de vesícula ontem. - Quem? perguntou Tânia com voz estridente. Quem operou a vesícula? Mamãe ou Vó May? - Ei, interrompeu Katie, você não nos contou isso. - Vó May. Mamãe voltou hoje de manhã para ficar com ela. Ela está passando bem. - Quem? quis saber Katie. Sua mãe ou sua avó? - As duas, explicou Selena. Ó gente, posso ligar para vocês mais tarde?
  • 49. - Claro, respondeu Cris. À noite vamos estar na casa da Tríci. Se você quiser, pode ligar para lá. Senão, daqui a uma semana vamos entrar em contato com você de novo, para ver como tudo está indo e se você virá aqui no recesso da Páscoa. - Está bem. Tchau, gente. Digam ao Douglas, à Trícia e ao Ted que mandei um abraço. - Pode deixar. Tchau, Selena! Ela desligou e se virou para Tânia, que estava de pé, com as mãos nos quadris. - Que é que está acontecendo? indagou ela em tom firme. Selena narrou-lhe tudo que havia acontecido. - Vou lá para o hospital, falou Tânia. - Vou com você, disse Selena, erguendo-se de um salto. Espere só eu calçar o sapato. - Primeiro vou trocar de roupa, explicou a irmã, que ainda estava com os trajes de esquiar. Em seguida foi saindo em direção à escada. - O que foi que aconteceu que você voltou mais cedo? indagou Selena. Eu tinha entendido que você iria ficar lá até domingo. Tânia abriu a porta do quarto e logo soltou um berro: - Selena! - Que foi? Estou aqui. - Parece que você não fez nada neste quarto depois que saí na quinta-feira. - Não fiz não, Tânia. Não tive tempo. O que aconteceu no seu passeio? - Nada! replicou a outra meio ríspida. Resolvi voltar mais cedo, foi só. E parece que foi muito bom eu ter vindo. Como Vó May foi para o hospital? - Eu a levei de carro. - Você matou aula? - Perdi aula, replicou Selena, calçando uma meia e em seguida o tênis. Era uma situação de emergência.
  • 50. Tânia não tinha um temperamento muito amistoso. Volta e meia brigava com Selena. Nesse dia, porém, parecia ainda mais irritadiça. Selena resolveu não insistir em perguntar por que ela regressara mais cedo do que deveria. Tânia se aprontou em silêncio e guardou sua roupa caprichosamente no armário. Em seguida, colocou as botas de esquiar dentro do closet. Por fim as duas rumaram escada abaixo, Tânia na frente. Selena pegou sua mochila, ainda molhada por causa da chuva da manhã. As duas saíram, e Selena já ia fechar a porta quando se lembrou das flores que deixara na cozinha. - Espere! disse. Tenho de pegar as flores. Correu à cozinha e abriu o armário para procurar uma sacola de plástico para carregar o buquê de lírios amarelos. Nisso, deu com os olhos num objeto muito importante, guardou-o, enrolou-o num pano de prato e guardou-o na mochila. Em seguida, apanhou uma sacola de plástico e colocou nela os lírios. Quando chegou lá fora, Tânia já estava com o carro ligado e verificava a maquiagem no espelhinho que havia na parte de trás do tapa-sol. Selena sentou-se no banco ao lado dela, mas antes teve de pegar um saquinho de papel branco que a irmã deixara sobre ele. Sentiu um leve cheiro de canela no ar. Ajustou o cinto de segurança, acomodou as flores no colo e em seguida olhou o saquinho de papel. Estava vazio. - O que é que linha aqui? indagou. - Onde? - Nesse saquinho de papel. Era um pão doce da confeitaria Mother Bear? - Era. E daí? perguntou Tânia, com a voz ainda um pouco irritada. - Nada. Só que eu estava com muita vontade de comer um pãozinho desses, só isso. Selena sentiu a boca cheia d'água e engoliu a saliva. Se estivesse com outra pessoa qualquer, iria abrir o saquinho e comer as migalhas.
  • 51. ‘Guenta firme aí, barriga! pensou. Prometo que muito breva vai chegar aí um pãozinho da MotherBear! Chegando ao hospital, Selena foi mostrando a Tânia o caminho para o quarto onde Vó May se encontrava. A avó estava dormindo e a mãe cochilava sentada na poltrona. - Vou colocar o vaso na mesinha, cochichou Selena, apontando para os lírios. A mãe de Selena remexeu-se, acordou e olhou para Tânia surpresa. As duas puseram-se a conversar em voz baixa, enquanto Selena procurava ajeitar os lírios na mesinha de cabeceira. Teve vontade de ouvir o que as duas estavam conversando. Tinha certeza de que a irmã contaria à mãe qual fora o problema que houvera na estação de esqui, bem antes de revelá-lo a Selena. - Queridinha! disse Vó May com a voz meio fraca. - Estou aqui, vó, replicou a moça, indo para perto da cama, ainda com o vaso na mão. Olhe aqui. A Charlotte lá da floricultura mandou esses lírios para a senhora. São lindos, não são? - Lírios! exclamou Vó May com expressão de satisfação. São minhas flores prediletas. - Vou colocá-los bem aqui, disse Selena. Mamãe e Tânia também vieram. As duas se aproximaram da cama e a avó ergueu o braço pegando a mão de Tânia. - Nini! disse Vó May para Tânia, que se inclinou e deu-lhe um beijo na testa. Vó May criara apelidos para todos os netos. Apenas Selena fora presenteada com o que parecia mais “norma”". Na verdade, o “Nini” de Tânia fora obra de Selena. Quando ela era pequenina, não conseguia pronunciar “Tânia” direito. Diziaapenas “Ni”. E Vó May o adotara. Os irmãos mais novos de Selena também a chamaram de “Sissi”. Contudo o apelido não pegara. Vó May sempre a chamara de “Queridinha” desde o dia em que ela nascera. - A senhora está se sentindo bem, vó? indagou Tânia. - Estou bem, mas ainda meio indisposta, respondeu Vó May, tentando sentar-se. Tânia arrumou os travesseiros para ela.
  • 52. - A senhora passou por uma cirurgia séria, vó, disse Tânia, sorrindo e alisando o cabelo branco e macio da avó. Precisará pelo menos de mais uns dois dias para se sentir disposta. Eu trouxe uma loção hidratante para a senhora. Quer que faça uma massagem nos seus pés com ela? - Oh, quero, sim, Nini. Meus pés estão frios. E será pode arranjar uma toalhinha úmida e quente para eu passar no rosto? - Vou pegar, disse Selena, levantando-se e indo para banheiro. - Quer comer um pouco mais do seu almoço? perguntou a mãe. E as três se puseram em ação, cuidando da querida paciente. E Vó May comeu todo o almoço. Selena sentiu alívio que pelo menos naquele momento ela se achava lúcida. Quanto tempo será que duraria essa fase de lucidez? - Que dia é hoje? quis saber Vó May. - Sábado, informou a mãe. - Ué, Nini, não era pra você estar esquiando? - Resolvi vir embora mais cedo, explicou Tânia. As coisas lá não eram do jeito que eu pensava. - Você chegou a esquiar? indagou a mãe. - Esquiei ontem o dia todo. A neve estava com um pouco de gelo e lá no alto do monte tinha neblina demais para o meu gosto. Mas o dia foi bom. - Então à noite é que houve o problema, deduziu Vó May, com olhos brilhantes e a mente bem alerta, evidentemente. Tânia deu uma olhada para a mãe e em seguida virou-se para a avó. Ainda estava com o vidro de loção hidratante na mão. - É, acho que posso dizer isso, replicou, colocando em seguida um pouco de loção numa das mãos. Creio que preciso arranjar amigos que tenham o mesmo conceito que tenho sobre diversão.
  • 53. Selena ficou a pensar se a irmã não iria aproveitar para falar sobre a questão da igreja que freqüentavam. As duas já haviam conversado com os pais sobre o assunto, mas eles tinham demonstrado certa relutância em abordá-lo com Vó May. A família estava freqüentando a igreja da avó. Era uma igreja legal, pequena, tradicional. A maioria dos que iam lá eram pessoas idosas, todas muito agradáveis. E havia também alguns casais jnvens. Entretanto não havia união de adolescentes nem de mocidade. Portanto, não existia nenhum tipo de reunião para eles, nem sequer classes de escola dominical. Nas vezes em que a família havia conversado sobre o assunto, tinham chegado sempre à mesma conclusão. “Nós vamos à igreja é para adorar a Deus em grupo, a família toda, e não em busca de sociabilidade.” Agora estavam as duas ali, Tânia e Selena, com o mesmo problema: sem amizades adequadas. Elas haviam tentado mostrar aos pais que, para jovens de 16 e 18 anos, a vida espiritual se acha muito relacionada com a necessidade de sociabilidade. - Precisamos arranjar uma igreja que tenha uma boa união de mocidade, falou Selena, passando a toalha úmida na testa da avó. Assim que ela disse isso, viu sua mãe estampar no rosto uma expressão tensa, demonstrando que achava que Selena não deveria ter dito aquilo. - Não se prendam por minha causa, comentou Vó May, fechando os olhos e esperando outro toque da toalha. Selena passou a toalha sobre os olhos da avó e parou ali um pouquinho mais do que precisava, para poder fitar a mãe. Tânia também olhava para a mãe com expressão de expectativa. A mãe parecia surpresa. Em seguida, deu de ombros e fez que sim com a cabeça. - De vez em quando, iremos à igreja da senhora, Vó May, disse Selena corajosamente, levando o assunto em frente. Mas a senhora não vai se importar se procurarmos uma igreja
  • 54. que tenha mais programação para os jovens, não é, vó? E pode ser até que algumas vezes a senhora queira ir à nossa greja também. - Para mim está bem, queridinha! Selena voltou a passar a toalha nos olhos da avó e deu um sorriso maroto, já esperando ver uma expressão de admiração no rosto da mãe e da irmã. Ela conseguira algo que seu pai nem tentara fazer: que Vó May concordasse em que procurassem outra igreja. A mãe e Tânia sorriam agradecidas. Selena se pôs a secar o rosto da avó com uma toalha enxuta e disse: - eu trouxe outra coisa para a senhora, vó. Tirou da mochila o pano de prato todo enrolado e abriu-o lentamente, mostrando para ela o objeto: era a xícara de porcelana da avó com o pires. Em casa, Vó May sempre utilizava uma xícara de porcelana para tomar café, água, suco, etc. Qualquer líquido que tomasse, era sempre numa xícara. E o de que ela mais gostava era café. - Vamos chamar a enfermeira e pedir um bule de café bem quente?
  • 55. Capítulo Nove - Acho que devíamos tentar ir à igreja de Vacouver, disse Tânia. A jovem se achava recostada em sua cama, enquanto Selena conscienciosamente procurava guardar suas roupas espalhadas pelo quarto. A mãe se sentara na ponta da cama de Selena, que ainda estava desarrumada. - É muito longe, observou a mãe. Essa é a vantagem da igreja de Vó May. Fica só a três quadras daqui. Além disso, parece muito estranho ir a uma igreja que fica em outro estado. - Ah, que é isso? E só atravessar o rio para chegar ao estado de Washington. A gente não levaria mais que uns quinze minutos de carro. Ouvi dizer que o grupo de jovens da igreja de Vancouver é muito bom, explicou Tânia. - É, interveio Selena, lá na escola ouvi alguém falar que tem uma igreja em Gresham que é muito boa também. - Gresham fica na direção oposta, disse a mãe, e a gente levaria uns vinte minutos de carro. - Está vendo? continuou Tânia, pegando os óculos para ler um livro. É melhor irmos na de Vancouver. Já liguei pra lá e me informram que o culto é às 10:00h. - Queri que seu pai estivesse em casa para conversarmos sobre isso todos juntos. Talvez seja melhor irmos à igreja de Vó May amanhã, pela última vez. Depois, no domingo que vem, começamos a visitar outras igrejas. - Por quê? quis saber Selena. - Para quê isso? interveio Tânia. De qualquer jeito, Vó May não vai estar aqui. Essa é a melhor ocasião para mudar-mos de igreja. A mãe deu um suspiro e ergueu as mãos como que entregando os pontos.
  • 56. - Estou com muito sono. Não consigo discutir mais. Vocês duas decidam aí. Vou aonde quiserem. Nesse momento quero mais é ir para a cama. Alguém já verificou a secretária eletrônica? - Não. - Estou preocupada com a Grace. Quando saí, ela não estava passando muito bem, e ainda por cima Daniel não ajuda nada. - Por que ele é sempre tão irritadinho? indagou Selena. Ontem, quando telefonei, parecia que ele iria me morder. A mãe deu outro suspiro. Pensou um pouco e depois disse: - No momento, eles estão passando por alguns problemas. Ele foi despedido no mês passado e o dinheiro do seguro saúde talvez não seja suficiente para pagar todas as despesas hospitalares da Grace. E depois você sabe como os gêmeos são levados. A família está passando por uma fase muito difícil. - A senhora queria ter ficado com eles? indagou Selena. Nós poderíamos ter tomado conta de Vó May. A mãe abanou a cabeça. - Já estava combinado que a irmã de Daniel iria para lá hoje à noite. Ela vai se sair melhor do que eu, cuidando do Daniel e dos meninos. Se vocês ainda não agradeceram a Deus pelo pai que têm... - Quer dizer, em vez de ter um pai como Daniel? observou Selena. - Eu só estou dizendo que devem agradecer a Deus pelo pai que têm. Eu às vezes esqueço de como Harold é um bom marido e um bom pai. A mãe se levantou para sair, mas parou no meio do caminho. - Sabe de uma coisa? Vamos orar nós três aqui, juntas, como eu fazia quando as duas eram pequenas.
  • 57. A mãe dirigiu-se para a cama de Tânia, e Selena a seguiu. Sentaram-se de frente umas para as outras, com as pernas cruzadas à moda oriental, e deram as mãos. Oraram por Vó May, pelo pai e os irmãos, pela tia Grace e pelo tio Daniel. A mãe engasgou um pouco quando orou por Grace e Daniel. Selena também sentiu um aperto na boca do estômago quando ela pediu a Deus que salvasse o casamento deles e protegesse os gêmeos. Em seguida a mãe fez uma petição cheia de ternura. Orou pelo futuro marido de Tânia e de Selena. Pediu a Deus que ambos entregassem a vida a Deus, se é que ainda não haviam entregado, que se tornassem homens de Deus e amassem muito a Tânia e Selena, bem como aos filhos que viessem a ter. E ao dizer tais palavras, chorou. Selena também sentiu os olhos se encherem de lágrimas, no momento em que disse “Amém”. Sabia que a mãe fazia essa oração havia já muitos anos, assim como Vó May também orara pelas pessoas com quem seus sete filhos iriam se casar. A mãe de Selena mesmo fora a resposta da oração que Vó May fizera por seu filho Harold. Desde pequena, Selena tinha conhecimento de que seus pais e sua avó oravam por seu futuro marido. Já até se acostumara com isso. Nessa noite, porém, fora diferente. Nesse momento, a oração de sua mãe parecera revestida de um novo vigor. Interiomente, a jovem reconheceu que aquela mulher que ali estava, de mãos dadas com ela, era uma poderosa intercessora. Sentiu que Deus iria enviar gloriosas bênçãos para ela por causa da oração de sua mãe. - Em nome de Jesus, que assim seja! disse a mãe, encerrando. - Que assim seja! repetiu Selena, abrindo os olhos ainda molhados de lágrimas. - Amém! disse Tânia. - Eu amo muito as duas! disse a mãe, abraçando-as e dando-lhes um beijo no rosto. - Eu também te amo, mãe! falou Selena, beijando-a também. E amo você também, disse para Tânia, sorrindo e abrindo um pouco o semblante. A irmã recebeu o beijinho de Selena, mas não disse nada.
  • 58. - Durmam bem! falou a mãe, bocejando. Se até as 9:00h eu não acordar, podem me chamar. - Então podemos ir à igreja de Vancouver? indagou Tânia. - Pra mim está bem, replicou Selena. - Pode ser, concordou a mãe, bocejando de novo e caminhando para a porta. Selena retirou seus pertences de cima da cama e entrou debaixo das cobertas. Sentiu que Tânia lhe dirigiu um olhar de crítica. - Que foi? indagou, sem olhar para a irmã. - Não vai guardar seus objetos não? - Amanhã! respondeu, imitando “Scarlett O'Hara”, a heroína de “E o Vento Levou...” Vou resolver isso amanhã E o amanhã acabou se prolongando por mais alguns dias. Afinal, na terça-feira, ela resolveu encarar a pilha de roupas. Dessa vez veio decidida a arrumar tudo. Tânia estava insistindo com ela para melhorar a aparência do quarto. Nos últimos dias, as duas estavam se dando muito bem. Ambas haviam gostado bastante da igreja de Vancouver. E na segunda-feira, Tânia tinha até permitido que Selena pegasse o “querido” carro dela para ir visitar a avó no hospital enquanto ela própria se aprontava para ir trabalhar. Vó May estava melhorando sensivelmente. O médico havia dito que, se tudo corresse bem durante o resto da semana, ela poderia voltar para casa no sábado. A velha senhora passava a maior parte do tempo dormindo. Contudo, sempre que estava acordada, sua memória estava boa. Selena separou as roupas limpas das sujas. Em seguida, pegou as sujas e dirigiu-se para o porão da casa, onde ficava a máquina de lavar. Assim que acabou de colocar nela a primeira trouxa, escutou a voz do pai dentro de casa. Desde que voltara do passeio, ele passara boa
  • 59. parte do tempo no hospital, com a mãe dele. Os dois irmãos menores, Kevin e Dilton, como sempre, faziam muito barulho. Parecia que tudo voltara ao normal. Nem tanto. Embora a crise relacionada com Vó May estivesse solucionada, os problemas de Selena ainda não estavam. Ainda não conseguira emprego nem arranjara amigos. Ademais, queria muito ir à Califórnia no recesso da Páscoa. Para isso, porém, precisava da permissão do pai, que agora já retomara a rotina de sempre. Então era o momento de lhe pedir. Selena subiu a escada do porão de dois em dois degraus. O pai estava na cozinha lavando uma maçã, na qual, em seguida, deu uma dentada. - Oi, meu paizinho querido e maravilhoso! principiou Selena, abraçando-o pelos ombros. - Eh...quanto é que você está querendo? indagou o pai sem pestanejar. Selena afastou-se dele. - Por que o senhor acha que vou pedir dinheiro? - Você vai, não vai? - Bom, não exatamente! - Seja o que for que vai pedir, vou ter que desembolsar algum dinheiro, não vou? Selena passou os braços novamente em torno do pai e encostou a cabeça no ombro dele. - Como é que o senhor consegue ser tão esperto e maravilhoso assim, meu paizinho querido e maravilhoso? Ele fitou a filha, que piscou várias vezes com ar de gozação. Harold Jensen caiu na risada e quase se engasgou com um pedaço de maçã. - É, parece que teremos uma conversa séria, disse ele ainda rindo. É melhor irmos para o escritório. - Pai! gritou Kevin lá do quintal, com sua vozinha aguda. O senhor pode vir aqui nos ajudar?
  • 60. - Que é que você quer? - A roldana da corda da casa na árvore quebrou. - Ah, eu vou aí daqui a uns... replicou ele e parou, olhando para Selena. Quanto tempo? perguntou para a filha. Vinte minutos? Meia hora? Três horas? - Vinte minutos, respondeu a jovem. Meu pedido é muito simples. - Vou aí daqui a uns vinte minutos, respondeu ele para o menino. Esperem eu chegar. Não tentem consertar sozinhos não, ouviu? - Nós esperamos, falou Dilton, o irmão de oito anos, sempre eficiente. - Está bom, concluiu o pai em voz baixa. Deu outra mordida na maçã. - Vamos lá, disse ele para a filha, conduzindo-a para a saleta que chamava de seu escritório. Era o cômodo de que o pai mais gostava. Uma das paredes tinha uma estante que ia do chão ao teto e estava repleta de livros. Muitos deles eram velhos volumes da coleção de Vó May, que ela fora adquirindo desde jovem. Alguns eram escritos em dinamarquês, a língua nativa da avó. O aposento tinha um cheiro peculiar de mofo, que lhe dava um ar de importância e ao mesmo tempo “caseiro”. Aqueles livros eram como amigos silenciosos, sempre dispostos a “dar” algo para os outros, sem exigir nada em troca, a não ser, vez por outra, uma limpezinha. Selena se instalou na sua poltrona predileta, que se achava encostada em um canto, perto da porta de folha dupla que dava para o jardinzinho dos fundos. Quando a luz do sol entrava ali, batia direto na cadeira. Um gato ali iria adorar deitar-se nela para tomar seu banho de sol. Naquele momento, o sol não estava batendo lá, mas mesmo assim Selena se acomodou nela e estendeu as pernas, colocando os pés no descanso que combinava com a poltrona. Seu pai sentou-se na sua poltrona giratória que se achava junto à escrivaninha, e virou- se para a filha. - Muito bem, disse, continuando a comer sua maçã. Pode “atirar”!
  • 61. - Eu queria ir visitar as amigas que conheci na Inglaterra. Elas me convidaram para passar o recesso da Páscoa com elas. Posso ir de avião até San Diego ou então para Orange County. Vou pagar todas as minhas despesas, só que ainda não arranjei trabalho. Estou a zero! - Ah, replicou o pai calmamente. É só isso? - Tentei arranjar um emprego na floricultura, mas a mulher disse que era para trabalhar aos domingos e que eu precisava ter carro próprio. Ainda não procurei em nenhum outro lugar, mas quero ver se arranjo um serviço aqui por perto, para não depender de carro. - Muito sensato, comentou o pai. - E aí? Posso ir? - Primeiro vou conversar com sua mãe sobre isso, mas acredito que não haverá problema, não. Mas numa coisa você tem razão: terá mesmo de arranjar o dinheiro para pagar a passagem. Essa viagem que sua mãe teve de fazer outro dia a Phoenix estava fora do nosso orçamento. Vamos fazer um trato: você se esforça para conseguir um trabalho e eu vou tentar encontrar um vôo que fique bem barato. Você tem preferência por algum aeroporto? Suas amigas vão lá pegá-la, não vão? - Claro! E o aeroporto não faz muita diferença. A cidade delas fica mais ou menos no meio dos dois. - O.k.! disse o pai. Então vou começar a ver preço de passagens. Selena deu um sorriso alegre. - Muito obrigada, meu paizinho querido e maravilhoso! - E, não fique muito confiante não. Isso ainda está na dependência de você poder pagar a passagem. - Eu sei, mas muito obrigada por ser meu pai. - De nada! replicou ele, abrindo a porta e dirigindo-se para a casa na árvore. Ah, e a propósito, continuou ele, virando-se ligeiramente, você já deu uma olhada na correspondência que está na escrivaninha? Tem uma carta lá para você.
  • 62. Capítulo Dez Selena saltou da poltrona e pegou a pilha de correspondência que estava sobre a mesa. Conta de água, boletos para pagar, propagandas, etc. Afinal deu com um envelope onde havia o nome Selena Jensen escrito em letras maiúsculas bem graúdas. Imediatamente reconheceu a caligrafia. Ela recebera apenas uma carta com aquela letra, mas já a lera umas cinqüenta vezes ou mais. Aliás, essa carta estava guardadinha debaixo do seu travesseiro. Agora chegava a “irmã gêmea” dela. Segurando o envelope com firmeza, voltou à sua poltrona e se pôs a virá-lo e revirá-lo nas mãos, antes de abri-lo. Quando será que Paul escreveu? Antes daquela hora que me viu, no sábado, ou depois? Será que escreveu para debochar de mim? Não conseguindo mais conter a curiosidade, abriu a carta com gestos cuidadosos. Dentro havia apenas uma folha, com uma cartinha curta, de poucas linhas. A escrita era mesmo característica de Paul, meio manuscrita meio em letra de forma, em caracteres bem grandes. Dizia o seguinte: Minha cara princesa dos lírios, Estou querendo saber uma coisa - e obviamente não é da minha conta - mas você pegou pneumonia? Se tiver pegado, devo lhe mandar umas flores? Ou será que aqueles lindos lírios irão durar todo o seu período de convalescença? Sinceramente, Um Mero Observador.