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TEORIA SOCIEDADE nº 15.2 – julho-dezembro de 2007 p. 138-171E
QUANDO A EXCEÇÃO VIRA REGRA:
OS FAVELADOS COMO POPULAÇÃO “MATÁVEL”
E SUA LUTA POR SOBREVIVÊNCIA
Juliana Farias
RESUMO
Na primeira parte deste artigo, focalizo alguns
momentos significativos dos dois primeiros anos
de atuação de um movimento social que luta contra
a violência policial em favelas no Rio de Janeiro,
destacando situações em que uma linguagem dos
Direitos Humanos é acionada, traduzida e reconfi-
gurada – trazendo mais elementos para o processo
de atualização dos vocabulários de protesto do
grupo. Na segunda parte, invisto em uma relei-
tura do histórico das favelas na cidade do Rio de
Janeiro, buscando articular ferramentas teóricas
e elementos empíricos capazes de me auxiliar na
interpretação do processo de construção dos me-
canismos que possibilitaram o enquadramento dos
moradores de favelas como um grupo populacional
merecedor de “tratamentos especiais” – processo
que transformou o conjunto dos favelados em uma
população “matável”
PALAVRAS-CHAVE
favelas
violência policial
direitos humanos
ação coletiva
139
NO DIA 16 DE ABRIL DE 2005, a primeira página do jornal Folha de S. Paulo exibia
suas manchetes encaixadas entre três fotografias coloridas. A fotografia localizada
na região central da página mostrava uma menina negra, séria, de uns seis ou
sete anos de idade, com um penteado de trancinhas bem feitas, dedo indicador
da mão esquerda na boca e olhar fixo nas lentes da câmera. Na mão direita a
menina segurava um cartaz no formato ‘pirulito’ que preenchia a fotografia de
uma margem lateral à outra, chamando a atenção do leitor para o texto: “I have
been a victim of violence!!! Who will be the next? YOU??? We hope not”. Abaixo
da fotografia, a legenda: “Globalizados. Menina exibe cartaz, em inglês, contra
violência; 1.200 sem-terra e favelados do Rio protestaram na língua para atingir
‘a opinião pública internacional’”.
A imagem havia sido registrada durante uma manifestação pública co-orga-
nizada pelo “Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra” e pela “Rede de
Comunidades e Movimentos contra Violência”. O cartaz que chamou a atenção
do fotógrafo, na verdade, é bilíngüe – de um lado o texto está em inglês e do outro
em português – e já havia estampado outras páginas de jornal em abril de 2004,
quando um grupo de moradores de favelas cariocas decidiu caminhar até a sede do
Governo do Estado para denunciar a violação dos seus direitos e exigir justiça.
Não só a imagem do cartaz bilíngue, mas outras que também retratam as duas
manifestações públicas mencionadas serão recuperadas durante a análise decritiva
que desenvolvo na primeira parte deste artigo. Após uma breve apresentação da
“Rede de Comunidades e Movimentos contra Violência”, focalizo alguns momentos
significativos dos seus dois primeiros anos de atuação, destacando situações em
que uma linguagem dos Direitos Humanos é acionada, traduzida e reconfigurada
– seja através das parcerias estabelecidas, nas entrelinhas dos discursos proferidos,
ou mesmo na confecção de faixas e cartazes – trazendo mais elementos para o
processo de atualização dos vocabulários de protesto do grupo
1
.
1
Este artigo apresenta parte das idéias desenvolvidas na minha dissertação de mestrado,
intitulada “Estratégias de Visibilidade, Política e Movimentos Sociais: reflexões sobre a luta
de moradores de favelas cariocas contra a violência policial” – trabalho que resultou de uma
TEORIA SOCIEDADE nº 15.2 – julho-dezembro de 2007E140
Já na segunda parte, invisto em uma releitura do histórico das favelas na cidade
do Rio de Janeiro, buscando articular ferramentas teóricas e elementos empíricos
capazes de me auxiliar na interpretação do processo de construção dos mecanismos
que possibilitaram o enquadramento dos moradores de favelas como um grupo
populacional merecedor de “tratamentos especiais” – processo que, ao longo do
tempo, transformou o conjunto dos favelados em uma população “matável”.
1. DIREITOS HUMANOS: FOCO E FONTE DE AÇÕES COLETIVAS
1.1 Dos produtores do cartaz bilíngue
Para apresentar os produtores do tal cartaz bilíngüe, considero fundamental es-
crever algumas linhas sobre duas pessoas em especial: Thiago da Costa Correia
da Silva e Carlos Magno de Oliveira Nascimento
2
.
Thiago sempre gostou muito de matemática, se profissionalizou como me-
cânico e, ainda bem novo, foi pai de uma menina esperta de cabelos cacheados
chamada Gabriela. Carlos Magno gostava muito de esportes e desde que foi morar
com sua mãe e seu padrasto na Suíça aprendeu a esquiar. Carlos Magno também
estudava na Suíça, mas tinha vindo ao Brasil para se alistar no serviço militar
do seu país de origem e estava passando férias na casa da sua avó materna, que
morava no morro do Borel. Thiago da Costa também morava no morro do Borel
e os dois eram amigos de infância.
No dia 17 de abril de 2003, Thiago e Magno combinaram de se encontrar numa
barbeariaparacortaremocabelo.Abarbearia,quenaépocaeramuitoprocuradapelos
moradores mais jovens do Borel, ficava na Estrada da Independência, a via principal
quesobeomorroeporondeépossívelpassardecarro.QuandoMagnoeTiagosaíram
pesquisa etnográfica que se estendeu de abril de 2004 a julho de 2007. Agradeço a todos os
integrantes da “Rede de Comunidades e Movimentos contra Violência” (especialmente às
mães de vítimas de violência) pela confiança depositada na minha “observação participante”
e também à Dalva Correia, por todas as oportunidades de aprendizado que me proporcionou.
Agradeço, ainda, aos demais interlocutores cuja paciência eu gastei durante a elaboração deste
trabalho: Alberto Calil, Bianca Freire-Medeiros, Fabiene Gama, Jussara Freire, Lia Rocha,
Luiz Antonio Machado da Silva, Palloma Menezes, Patrícia Birman e Raíza Siqueira. Agradeço
especialmente à Marcia Pereira Leite, por nunca ter desistido de me orientar.
2
Todos os nomes apresentados neste artigo são verdadeiros. Ao utilizar os nomes verdadeiros
das vítimas, de seus familiares e dos demais atores envolvidos na luta contra violência policial,
estou respeitando as suas identidades individuais e também apoiando (dentro dos limites de
um trabalho acadêmico) os esforços para trazer visibilidade e legitimidade à luta em questão.
141QUANDO A EXCEÇÃO VIRA REGRA – Juliana Farias
dobarbeiro,escutaramsonsdetirosecorreram.CarlosAlbertodaSilvaFerreira,outro
morador da comunidade que tinha acabado de chegar à barbearia, também ouviu
os tiros e correu. Pensando que os tiros estavam vindo da parte de baixo da própria
Estrada da Independência, os três rapazes atravessaram a rua e seguiram para um
beco bem em frente à barbearia, conhecido como Vila da Preguiça.
Ao entrarem na Vila da Preguiça, os três rapazes foram alvejados. Um grupo
de policiais estava na laje de uma casa em construção na mesma vila. Justamente
de cima da laje partiram os primeiros disparos. Magno, que tinha 18 anos, morreu
na hora: levou seis tiros, dentre os quais três pelas costas (cabeça, braço direito
e região escapular esquerda) e três tiros pela frente (ombro esquerdo, bacia e
clavícula)
3
. Mas os tiros não partiram somente de cima da laje. Tiago, que tinha
19 anos, ainda agonizou no chão pedindo socorro e dizendo que era trabalhador.
Morreu após levar cinco tiros, quatro pela frente e um pelas costas (região dorsal
direita)
4
. O laudo ainda atesta uma “alta energia cinética” na saída dos projéteis, o
que demonstra que alguns dos disparos foram efetuados à “queima roupa”. Confir-
mando a versão dos disparos a curta distância, o laudo de Carlos Alberto também
aponta para uma “alta energia cinética” na saída dos projéteis. “Carlinhos”, como
era conhecido, era pintor e pedreiro e tinha 21 anos. Sofreu doze disparos (sendo
sete deles pelas costas), além de fratura no antebraço e no fêmur. É importante
observar que cinco dos disparos atingiram a parte interna do seu antebraço direito
e mãos direita e esquerda – o que demonstra que tentava se defender dos tiros
efetuados contra ele com os braços dobrados na frente do corpo e/ou do rosto
5
.
Esta é somente uma parte do resultado desta operação – realizada por dezes-
seis policiais do 6º Batalhão da Polícia Militar (BPM), sediado no bairro da Tijuca.
Houve ainda outra vítima fatal: Everson Gonçalves Silote, que tinha 26 anos e era
taxista. Everson voltava para casa a pé quando foi rendido por policiais militares na
EstradadaIndependência.Comotraziaumenvelopecomseusdocumentos,orapaz
tentou se identificar e, por esse motivo, teve seu braço direito quebrado por um
golpe do policial. Afirmando ser trabalhador, insistiu em mostrar os documentos,
mas foi executado antes de apresentá-los. Levou quatro tiros pela frente (tendo
cabeça e coração atingidos) e um pelas costas (próximo à coluna cervical)
6
.
Além das quatro vítimas fatais, tal incursão da polícia militar ainda deixou
baleados Pedro da Silva Rodrigues e Leandro Mendes – também moradores do
3
Laudo cadavérico 2658/2003 – Instituto Médico Legal (IML).
4
Laudo cadavérico 2659/2003 – IML.
5
Laudo cadavérico 2657/2003 – IML.
6
Laudo cadavérico 2660/2003 – IML.
TEORIA SOCIEDADE nº 15.2 – julho-dezembro de 2007E142
Borel. Ao fim das quatro execuções, os policiais colocaram os corpos de Magno,
Tiago, Carlinhos e Everson dentro do camburão que estava estacionado na saída da
Vila, na própria Estrada da Independência. Nenhum morador do local conseguiu
se aproximar das vítimas, nem mesmo seus familiares. Tiveram que se contentar
com as “instruções” dos policiais: “Se quiser ver, vai no [hospital do] Andaraí.”,
“Se quiser ver vai atrás, no Andaraí”
7
.
Hoje está evidente para mim que é impossível apresentar a ‘Rede de Comunida-
des e Movimentos contra Violência’ sem falar claramente da interrupção das vidas
de Carlos Alberto da Silva Ferreira, Carlos Magno de Oliveira Nascimento, Everson
Gonçalves Silote e Thiago da Costa Correia da Silva. Ou seja, trata-se de um grupo
de pessoas que se uniu quando as trajetórias desses quatro rapazes foram interrom-
pidas. Mas é importante ressaltar que o “quando” está destacado porque o grupo se
uniu a partir daquele episódio, mas não necessariamente por causa dele: parte dos
integrantes da ‘Rede’
8
já militava em outros movimentos sociais urbanos, já estava
7
Depoimento de Dalva Correia, mãe de Tiago da Costa Correia da Silva, em entrevista realizada
por mim, em maio de 2004. Além deste depoimento, utilizei outras fontes para elaborar esta
apresentação do caso do Borel: o Relatório de Execuções Sumárias (1997–2003), do Centro de
Justiça Global; um documento redigido no dia 24 de abril de 2003, pelos moradores do Borel,
para ser encaminhado aos poderes públicos e à imprensa, além de entrevistas e conversas
com moradores do Borel e com outros familiares das vítimas desta operação policial.
8
Paraotextonãoficarmuitorepetitivo,utilizareitambémapalavra‘Rede’paramereferirà‘Rede
de Comunidades e Movimentos contra Violência’. É necessário esclarecer ainda que, apesar da
relevânciadasdiscussõesarespeitodoconceitode“rede”nasciênciassociais,quetêmproduzido
diversas análises sobre as possibilidades e limites de suas diferentes modalidades de atuação,
sua natureza, seus objetivos e os contextos que presidem sua estruturação (consultar Castells
1999; Alvarez, Dagnino & Escobar, 2000), optei por não desenvolver este eixo analítico neste
trabalho, dado o foco de minha investigação. Entretanto, percebendo que tal esforço pode enri-
quecer as explicações a respeito do modo de operação da ‘Rede de Comunidades e Movimentos
contra Violência’, algumas observações se fazem necessárias. O termo “rede” é tomado por seus
integrantes apenas como uma parte do nome deste grupo por lhe permitir se apresentar publi-
camente enquanto um movimento social integrado por diversos atores e movimentos. Mas esta
apropriação do vocabulário político “do tempo” também indica, como sustenta Dagnino, “uma
construção coletiva que resulta [da] [...] articulação de movimentos sociais de vários tipos com
outros setores e organizações” [com base] “em um campo comum de referências e diferenças
para a ação coletiva e a contestação política (Baierle 1992: 19 apud Dagnino 2000: 80). Por
certo, esta articulação é, em vários casos, pontual e contextual – o que leva a autora a referi-la
nestas situações através da noção de “teias”. Mas, no caso em análise, esta forma de articulação
e apresentação pública de si é o que permite à ‘Rede’ lidar com as conhecidas variações de in-
serção e participação de atores individuais e coletivos – os chamados “fluxos” e “refluxos” dos
movimentossociais(MachadodaSilva&Ziccardi1983;Scherer-Warren&Krischke1987;Gohn
1997; Alvarez, Dagnino & Escobar 2000; entre outros) - e articular, discursiva e praticamente,
143QUANDO A EXCEÇÃO VIRA REGRA – Juliana Farias
ligada a trabalhos sociais e/ou projetos desenvolvidos em favelas do Rio de Janeiro,
ou já estava diretamente engajada em lutas contra a violência policial.
Enfim,todosestesmilitantesqueseencontraram(ousereencontraram)apartir
da Chacina do Borel traziam em sua bagagem experiências de participação política –
e esse é um dado fundamental para compreender a maneira como este grupo, que
hoje compõe a ‘Rede’, se organizou e como vem mantendo o seu trabalho desde
então. Para continuar a desenvolver este argumento, vou utilizar uma explicação
que um dos integrantes da ‘Rede’ apresentou na abertura de uma reunião do grupo.
Esta reunião aconteceu no dia 07 de maio de 2005, no auditório do CEDIM/RJ
(Conselho Estadual dos Direitos da Mulher)
9
– espaço que foi escolhido pela ‘Rede’
tanto por estar localizado no centro da cidade do Rio de Janeiro, quanto por oferecer
a infra-estrutura necessária para o encontro de um número significativo de pessoas.
Era a primeira reunião ampliada da ‘Rede’ após uma série intensa de atividades e
também foi uma reunião aberta a pessoas que não militavam junto ao grupo, mas
que poderiam se interessar pelo trabalho e agregar esforços.
Responsável por fazer a apresentação da ‘Rede’ naquele evento, Maurício
Campos
10
disse que o movimento era constituído por três grupos distintos: um
(do qual ele próprio afirmou fazer parte) formado por pessoas que não necessa-
riamente moram em favelas, mas que participam de movimentos sociais urbanos
e atuam em favelas e periferias; outro grupo composto por moradores de favelas
que participam de atividades políticas dentro e fora das favelas, mas que não são
familiares de vítimas diretas da violência policial; e um terceiro grupo, formado
especificamente pelos familiares de vítimas da violência policial em favelas –
“componentes diferentes, que a gente tem que saber ajustar”, segundo Maurício.
Afirmou ser este último o grupo mais forte dos três e complementou: “acostumamos
a chamar de mães, mas também existem irmãs, primos etc”.
modalidades diversas, presenciais e virtuais, de integração (ao) e participação no movimento.
Ver, a respeito das segundas, as análises de Appadurai (1996) e de Ribeiro (2000).
9
O Conselho Estadual dos Direitos da Mulher – CEDIM/RJ é um órgão de assessoramento
na implementação de políticas públicas, vinculado à Subsecretaria de Defesa e Promoção de
Direitos Humanos, da Secretaria de Estado de Assistência Social e Direitos Humanos. (Mais
informações em: http://www.cedim.rj.gov.br/cedim.htm). Antes de possuir a sua própria
sede (hoje localizada na Cinelândia, centro do Rio de Janeiro), a Rede de Comunidades e
Movimentos contra Violência utilizava diferentes espaços para se reunir (como salas cedidas
por ONGs localizadas dentro e fora das favelas, auditórios e/ou salas de diferentes sindicatos
do Rio de Janeiro, entre outros).
10
Maurício Campos milita em movimentos urbanos desde sua adolescência. Além de integrar a
Frente de Luta Popular, participa da Rede de Comunidades e Movimentos contra Violência
desde o seu surgimento.
TEORIA SOCIEDADE nº 15.2 – julho-dezembro de 2007E144
Esta espécie de tripé, que Maurício apresentou em 2005 como a base de
sustentação da ‘Rede’, é o modelo que tenho utilizado para definir o grupo. Essa
constituição mantém-se a mesma até hoje e, de fato, o militante soube medir os
pesos e apresentar a parte mais forte do tripé: os familiares. São eles (especialmente
as mães das vítimas) que detêm maior capacidade para legitimar as reivindicações
do grupo e trazer visibilidade à luta contra violência policial em favelas. Ainda
utilizando as palavras de Maurício:
As mães impedem que a gente perca o foco do movimento e são a prova
de que os efeitos do genocídio e do extermínio continuam. [...] Fazem
os outros companheiros do movimento entender que também há o en-
volvimento emocional.
Este último aspecto mencionado por Maurício é outro dado fundamental para
a compreensão do encaixe dos três grupos que compõem a ‘Rede’. Reconhecer
e saber lidar com as diferentes motivações que permitiram a cada um dos inte-
grantes da ‘Rede’ se engajarem na luta contra violência policial foi – e continua
sendo – um desafio para o grupo. Para explicar melhor o que estou chamando de
‘desafio’, vou puxar a linha do tempo um pouco para trás.
Se o início da história da ‘Rede’ está diretamente relacionado à Chacina do
Borel, também fez parte desta origem o sofrimento de Dalva Correia e Marta
Dahyle – mães de Thiago da Costa e Carlos Magno, respectivamente. Ao sofri-
mento de Dalva e Marta somaram-se a indignação e a solidariedade de outros
moradores do Borel, de membros de ONGs, da Associação de Moradores e de
outras instituições locais.
Já tiveram outras mortes aqui dentro da comunidade, mas essa foi em
grande número e chocou muito a comunidade, entendeu? A comunidade
ficou muito estremecida [...] todo mundo estava sentindo na pele que
aquilo que aconteceu naquele dia poderia voltar a acontecer a qualquer
momento, com qualquer um de nós, entendeu? [...] qualquer uma pessoa
estava correndo aquele risco. A gente tinha que pedir socorro de qualquer
jeito, não dava mais pra suportar... a violência estava muito grande.
11
11
DepoimentodeDonaMarlene,moradoradoBorel,ementrevistarealizadaporMárcioJerônimo,
durante a produção do documentário “Entre muros e favelas”. Agradeço imensamente a Márcio
Jerônimo, Susanne Dzeik e Kirsten Wagenschein – co-diretores do documentário – pela dispo-
nibilização do material bruto por eles filmado, além de todo o incentivo à minha pesquisa.
145QUANDO A EXCEÇÃO VIRA REGRA – Juliana Farias
A partir do dia 16 de abril de 2003, a indignação transformou-se em alimento
para a força política que marca o histórico de ação coletiva do Borel
12
. A fala de
Dona Marlene expressa os mesmos sentimentos de indignação, de desamparo, de
que “assim não dá para continuar” contidos na metáfora que Mônica Santos utilizou
para referir-se àquele e a outros episódios similares nas favelas e definir o que seria
o combustível do potencial transformador de sua população: “um coquetel molotov
de fracasso e utopia, de busca por mudança, por outro referencial”
13
. A mobilização
local foi reforçada por moradores de outras favelas (dentre os quais se destacavam
algumasmãesdevítimasdeoutrosepisódiosdeviolênciapolicial),porONGsdedefesa
dos Direitos Humanos como o Centro de Justiça Global e movimentos sociais como
a Frente de Luta Popular, o Centro de Cultura Proletária, e a Central de Movimentos
Populares. A reunião dessas pessoas configurou o embrião de um novo movimento
contra violência policial em favelas – o Movimento “Posso me identifica?”.
E de onde vem esse nome “Posso me identificar?”. Nós fomos, fizemos,
formamos um grupo, apesar de eu estar psicologicamente abalada, nós
formamos um grupo e demos..., cada uma deu uma idéia. Qual o nome que
deveríamos dar a um movimento desse? Porque todo movimento normal
tem que ter um nome. Aí uma deu um nome, a outra deu outro...
14
Como eles não puderam... que eles foram mortos e depois taxados de
bandidos, né?, que eram bandidos. Então, aí nós ficamos imaginando
como é que a gente ia fazer uma coisa assim pra chamar atenção. Aí nós
resolvemos botar, teve assim uma votação, aí nós resolvemos, é saiu:
“Posso me identificar?”. Então aí nós resolvemos e botamos. [...] A gente
acha que eles deveriam ter perguntado, né?: “quem é você, não sei o quê” e
não perguntaram... então resolvemos “Posso me identificar?” e ficou.
15
12
Datam do ano de 1954 as primeiras organizações de moradores de favelas no Rio de Janeiro,
dentre as quais se destaca a União dos Trabalhadores Favelados do Morro do Borel (Lima
1989; Machado da Silva 2002).
13
Trecho do depoimento de Mônica Santos, também moradora do Borel, durante debate na
Fundação Getúlio Vargas, em maio de 2007. Mônica Santos é uma das maiores referências
atuais de ações coletivas protagonizadas por moradores de favelas no Rio de Janeiro e, apesar
de não fazer parte da “Rede de Comunidades e Movimentos contra Violência”, concedeu-me
o privilégio da sua interlocução durante o desenvolvimento desta pesquisa.
14
Depoimento de Marta Dahyle, em entrevista realizada por mim, durante as filmagens do
documentário “Entre muros e favelas”, em dezembro de 2004.
15
Trecho da entrevista de Dalva Correia. Entrevista realizada por mim, em maio de 2004.
TEORIA SOCIEDADE nº 15.2 – julho-dezembro de 2007E146
Foi a primeira reunião rápida! Naquele dia foi a primeira reunião rápida,
porquecomeçouàsseteemeiaeterminouentreoitoeoitoemeiadanoite–
foi rápida! Porque foi decidido que aí ia ficar o “Posso me identificar?”
mesmo, que era uma marca que iria trazer mais uma força, porque era
“Posso me identificar?” porque os garotos não tinham tido tempo pra se
identificar, então ficou “Posso me identificar?” por isso.
16
Sentimentos como sofrimento, indignação e medo foram combinados a posi-
cionamentos políticos que reivindicavam a garantia plena dos direitos humanos
e civis da população residente em favelas. Apesar de terem conseguido promover
manifestações bem sucedidas, terem conquistado uma certa legitimidade para
ocupar o espaço público da cidade do Rio de Janeiro e terem ampliado a visibilidade
da luta contra a violência policial que atinge as favelas, nem todos os integrantes
do grupo concordavam com a manutenção de estratégias de atuação política
marcadas por ações reivindicatórias, atos públicos e atividades afins.
No segundo semestre de 2004, as divergências internas ao “Posso me identi-
ficar?” tomaram uma proporção maior: alguns dos integrantes responsáveis por
gerir seus eventuais recursos financeiros retiraram-se do movimento e o debate
em torno da modalidade de atuação acirrou-se. O grupo acabou se dividindo desi-
gualmente em dois blocos: um maior, que defendia a organização permanente de
passeatas e atos públicos para pressionar o poder público, exigir justiça, denunciar
a violação dos direitos humanos e reivindicar acesso à cidade; e outro, menor,
que sustentava a idéia de atuar através do desenvolvimento de projetos pontuais,
especialmente cursos profissionalizantes direcionados aos jovens
17
. Na tentativa de
16
Trecho de entrevista de Patrícia Oliveira, irmã de Wagner (único sobrevivente da chacina da
Candelária). Patrícia milita em defesa dos Direitos Humanos desde 1993 e integra a “Rede”
desde sua criação. Entrevista realizada por mim e por Larissa Accioly, em junho de 2007.
17
Ao analisarem o contexto dos anos 90 como período no qual se consolidaram “as metáforas da
guerra e da cidade partida como referência à violência urbana no Rio de Janeiro”, Machado
da Silva, Leite e Fridman (2005) examinam como se produziu uma “proposta, alternativa à
política de segurança pública então praticada, de “pacificação da cidade por meio de soluções
democráticas para o ’problema da segurança pública’”. Segundo os autores, a tentativa de
concretizar tal proposta deu-se através de três linhas de atuação de integrantes de ONGs,
movimentos sociais e pesquisadores interessados no processo. Gostaria de chamar a atenção
para o fato de que o grupo de integrantes do movimento “Posso me identificar?” que defendia
a realização de projetos pontuais voltados para jovens nas favelas, apesar de concentrar menor
número de pessoas, compartilhava, justamente, da aposta em uma das três linhas de atuação
apontadas por Machado da Silva, Leite e Fridman – aquela baseada na “proposição de novos
procedimentos e rotinas policiais, bem como de políticas públicas focadas nos segmentos
147QUANDO A EXCEÇÃO VIRA REGRA – Juliana Farias
solucionar o problema, o grupo majoritário decidiu ‘se emancipar’ do movimento
“Posso me identificar?”, elegendo uma nova denominação. Surgiu, então, a ‘Rede
de Comunidades e Movimentos contra a Violência’.
1.2 Sobre estratégias de visibilidade e sobrevivência
Ato público contra a violência do Estado/ Para que os direitos que são
garantidos para quem mora nos condomínios ricos sejam garantidos
também em nossas comunidades/ Será no dia 16 de abril/ Vamos nos
encontrar às 14h no Largo do Machado/ De lá, sairemos em passeata até
o Palácio do governo do Estado.
As frases acima compõem o panfleto de convocação para o ato organizado
pelo Movimento “Posso me identificar?” em 2004. Além de responsabilizarem o
Estado pelo tratamento violento que estavam recebendo, os moradores de favelas
localizavam geograficamente o grupo social que recebia um tratamento diferente
do seu e reivindicavam – em texto escrito na primeira pessoa do plural – igual-
dade de direitos. Na concentração do ato, os manifestantes se reuniram no Largo
do Machado no dia 16 de abril – um ano exato após a ‘chacina do Borel’. Foram
estendidos painéis de grafite que exibiam policiais de armas na mão, enquanto
policiais de armas na cintura rodeavam o carro de som que seria utilizado pelos
favelados.
De cima do carro de som, organizadores da manifestação conduziram o início
do ato, dando espaço às falas de várias mães de vítimas de violência policial. Uma
das principais lideranças do movimento “Mães do Rio”
18
, fez um discurso direcio-
nado especialmente para as outras mães de vítimas, pedindo força para continua-
rem a luta. Uma por uma, as mães surgiram no alto do carro com o microfone na
mão e contaram as histórias das mortes dos seus filhos e de suas lutas por justiça.
No mesmo espaço oferecido às mães para fazerem seus protestos individuais, o
discurso firme de Rute Sales
19
apresentou o Movimento “Posso me identificar?”:
Será que o poder público só vai funcionar pra nós como repressão? Nós
estamospedindopropoderpúblicoteroutrasmaneirasdeocuparasnossas
populacionais compreendidos como ‘de risco’, isto é, que se encontrariam em situações-limite
facilitadoras do ingresso no crime”.
18
Para uma análise específica a respeito das atuações de mães de vítimas de violência na cidade
do Rio de Janeiro, ver Leite (2004).
19
Rute Sales integra o Movimento Moleque, é ex-moradora do Borel e participa ativamente das
mobilizações políticas locais.
TEORIA SOCIEDADE nº 15.2 – julho-dezembro de 2007E148
comunidades, não só com repressão policial. Queria dizer que esse movi-
mento “Posso me identificar?”, ele nasce nas comunidades, são pessoas de
dentro da comunidade que não agüentam mais ficar calados, vendo seus
filhos serem assassinados. Se o país não tem pena de morte, porque que
toda comunidade favelada está condenada à morte e à exclusão?
Somente depois que diversas vozes amplificaram acusações e reivindicações
ao microfone, foi anunciado o início da passeata. Todos, então, se organizaram
para uma caminhada em direção ao Palácio do Governo do Estado. Na frente dos
participantes, seguia o carro de som. Logo atrás caminhavam os parentes das
vítimas do Borel, segurando a grande “faixa abre-alas” da passeata, que trazia
sobre o tecido preto a pergunta “Posso me identificar?” escrita em letras maiores,
e abaixo, a resposta: “... os Silvas, os Santos, os Souzas, os Costas, os Oliveiras, os
Pereiras, os Nascimentos, os Rodrigues, os Gonçalves. Em busca de DIGNIDADE!”.
O texto da resposta, escrito na cor branca, sugeria a possibilidade de substituição
de todos aqueles nomes por “os Zé Ninguém”, ou seja, aqueles a quem é negado
o direito de se identificar justamente porque não podem perguntar “Você sabe
com quem está falando?”
20
.
20
Chamo a atenção para a força simbólica da pergunta “Posso me identificar?” na evocação
pelos (e para) os “de baixo” das hierarquias e desigualdades que marcam nossa história,
especialmente por contraste ao recurso ao “você sabe com quem está falando?” recorrente
da parte dos “de cima” (DaMatta, 1981).
149QUANDO A EXCEÇÃO VIRA REGRA – Juliana Farias
Os manifestantes levaram dois tipos de cartazes para a passeata. Os maiores
também apresentavam fundo preto e frases como “Garantia de direitos funda-
mentais”, “Pela preservação da vida”, “Segurança às testemunhas e familiares” e
“Contra a violência”, escritas com tinta branca. Os cartazes menores (pirulitos),
com texto impresso na folha branca de formato A3, traziam as seguintes frases:
“Moro onde os meios de comunicação só chegam para contar os mortos”; “Nossa
dor não tem cor nem partido!”; “Moro no Brasil: o país com a segunda pior concen-
tração de renda do mundo!”. As frases desses cartazes menores eram escritas em
português de um lado e em inglês do outro lado – parte da estratégia de ampliar
a visibilidade e a legitimidade do movimento no exterior, especialmente para as
organizações de direitos humanos.
Durante todo o trajeto, os manifestantes tiveram que caminhar cercados
por policiais que, na maior parte do tempo, permaneciam com o cassetete na
mão. O policiamento aumentava conforme o grupo ia se aproximando do Palácio
do Governo do Estado – tornando evidente o fato de que o poder público ainda
enxergava os moradores de favelas como uma ameaça à cidade. Ao chegarem ao
Palácio, os manifestantes permaneceram no pátio. Uma fila de policiais fincou os
pés na frente do portão de ferro (já trancado) na entrada do prédio. Das janelas
do Palácio, funcionários do Governo do Estado fotografavam os manifestantes.
As mães de vítimas de violência que estavam presentes se posicionaram, também
em fila, diante dos policiais. As mães estavam seguras do seu direito de se mani-
festar; sabiam que agiam de acordo com a lei e, mesmo chorando, continuavam
face a face com os policiais – parte da instituição que estava sendo acusada como
responsável pelas chacinas. Entre as mães e os policiais, “apenas o altar formado
por fotografias, velas e flores – registros de medidas distintas das distâncias física
e moral entre as duas filas” (Leite & Farias 2008)
21
.
Com o carro de som estacionado também no pátio, foi lido um documento diri-
gido à sociedade civil, enquanto uma comissão de mães de vítimas pedia permissão
para entrar no Palácio e falar com a então governadora. As mães conseguiram
entrar, mas não foram atendidas pela Governadora e sim pelos seus Secretários.
Quando voltaram, foram convidadas, assim como os outros familiares de vítimas
de violência presentes, a pronunciarem no microfone os nomes dos mortos. A cada
nome falado, os manifestantes responderiam “presente”, reeditando uma tradição
dos movimentos contra a ditadura militar. Antes da chamada, no entanto, Dalva
Correia fez um discurso carregado de emoção e posicionamento político:
21
Para uma leitura específica sobre o uso não instrumental da linguagem religiosa nas manifes-
tações contra violência policial em favelas, ver Leite (2006) e Leite & Farias (2008).
TEORIA SOCIEDADE nº 15.2 – julho-dezembro de 2007E150
Queremos mostrar que somos pessoas pacíficas, que somos pessoas ci-
vilizadas. Não estamos aqui pra pedir. Estamos aqui pra exigir os nossos
direitos, fazendo um ato tranqüilo e civilizado. No dia 16 de abril, a essa
hora, meu filho estava voltando do trabalho, às 6:45h ele foi assassinado
quase na porta de casa. Isso é uma dor que só quem perde é que sabe.
É uma dor muito grande. Várias mães perderam seus filhos. Agora nós
vamos fazer a chamada dos filhos que eles tiraram de nós.
Dalva, então, gritou alto o nome do filho: “Thiago da Costa!” Sobe outra mãe
no carro de som e grita: “Carlos Rubens!” E assim vão chegando ao microfone
várias mães e outros parentes de vítimas de violência policial, dando continuidade
à chamada que foi iniciada por Dalva e que parecia não ter fim:
Flávio e Eduardo, Wallace e Daniel, Jonatan dos Santos, José Manuel
da Silva, Hanry, Jéferson Ricardo da Paz, Jean Alexandre - assassinado,
Bruno Muniz Paulino, Rafael Medina Paulino, Renam Medina Paulino,
Everson Gonçalves – taxista, Cristiano Oliveira Moraes, Leonardo dos
Santos, Luiz Eduardo, David Ferreira, Josué dos Santos, Ismael Sales dos
Santos, Caetano, Wanderley Soares Rodrigues, Paulo Soares Rodrigues,
Fabiano de Nova Iguaçu, Regina Célia, Valter de Oliveira Silva, assassi-
nado por PM: Márcio Antônio Maia de Souza [...].
O encerramento da manifestação foi marcado por oração e música, ambas
transmitidas pelos alto-falantes do carro de som, assim como todos os discursos
críticos e reivindicatórios. Sem tumulto, sem “quebra-quebra”, mais uma vez o
grupo mostrou que era capaz de realizar manifestações organizadas.
Após a manifestação de abril de 2004, o grupo formado a partir da Chacina
do Borel passou a ser visto (e a se ver também) como um movimento social
organizado, capaz de falar pelas favelas na cidade do Rio de Janeiro
22
. O grupo
passou por períodos de reestruturação, mas conseguiu manter como foco princi-
pal a questão da violência policial. Este processo ganhou fôlego no ano de 2005,
22
Não estou querendo dizer que o “Posso me identificar?” se transformou no porta-voz das
favelas na cidade. Diferentes grupos, especialmente Ongs e projetos sociais, articulam e
desarticulam parcerias no intuito de ampliar seu espaço ou consolidar sua posição como
legítimo representante das favelas na cidade – seja para expor suas reivindicações, seja
para atrair visibilidade para o que eles consideram aspectos positivos das favelas. Dentre
esses grupos, destaco, por exemplo, o Observatório de Favelas, a Central Única das Favelas
(CUFA), o Grupo Cultural Afroreggae e o Nós do Morro – que se articularam na formação
denominada “F4 – Favela a quatro”.
151QUANDO A EXCEÇÃO VIRA REGRA – Juliana Farias
quando a agenda do movimento – já reestruturado como ‘Rede de Comunidades
e Movimentos contra Violência’ – passou a incluir atividades que marcavam sua
legitimidade e que consolidavam e/ou ampliavam sua teia de relações. Mantendo
a data da chacina do Borel como representativa desta luta contra violência, foi
marcada para abril de 2005 uma nova manifestação pública. Ajustando calendá-
rios e objetivos, a ‘Rede’ acabou dividindo a organização do evento com um dos
movimentos sociais brasileiros de maior visibilidade em todo o país e também no
exterior. Se, no ato de 2004, o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra participou
como apoiador da luta contra a violência policial nas favelas, em 2005 agregaria
não só suas bandeiras vermelhas, como também suas reivindicações e parte de
suas estratégias de atuação à luta dos moradores de favelas.
Nova passeata, novo formato de parceria, nova divulgação – o cartaz da ma-
nifestação de 2005 foi marcado pela soma: “Pobres do campo e da cidade se unem
por reforma agrária e contra a violência do Estado e das elites”. Mas a ampliação da
chamada não se deveu somente à inserção das palavras que localizam diretamente
a participação do MST. Enquanto o panfleto de convocação para o ato de 2004
responsabilizava o Estado pela violência denunciada, em 2005 tal responsabilidade
também foi atribuída às elites. Mesmo que geograficamente separados, os grupos
descobriram diferentes motivos para se unirem. Até mesmo a escolha do mês de
abril fazia sentido para ambos: no dia 17 de abril de 1996 aconteceu o massacre
de Eldorado dos Carajás e no dia 16 de abril de 2003, a chacina do Borel.
O ato teve início na Candelária – marco histórico do centro da cidade do Rio de
Janeiro e palco de uma das mais emblemáticas chacinas cariocas
23
. Por volta das 14
horas, o local começou a ser ocupado por moradores de favelas, integrantes do MST,
integrantes do Movimento dos trabalhadores Sem-Teto, estudantes, integrantes de
Ongs, pesquisadores e jornalistas – todos dividindo o espaço com as quatro viaturas
da Polícia Militar estacionadas em cima da calçada. Policiais vestidos com coletes à
prova de balas vigiavam atentamente o momento inicial da manifestação.
Dois manifestantes abriram uma faixa produzida pela ‘Rede de Comunida-
des e Movimentos contra a Violência’, na qual estava escrito: “Os ricos querem
paz pra continuar ricos / Nós queremos paz pra continuar vivos”. Aos poucos,
outros manifestantes foram chegando e se posicionando uns ao lado dos outros.
Formou-se um grande círculo, no qual faixas, cartazes, fotografias, recortes de
jornal, bandeiras e camisetas passaram a compor um painel de denúncia das ações
23
Em 1993, oito meninos de rua que dormiam nas calçadas próximas à Igreja da Candelária foram
assassinados por policiais militares. O episódio ficou conhecido como “Chacina da Candelária”.
Sobre esta chacina e seus principais desdobramentos, consultar Ferraz (2005).
TEORIA SOCIEDADE nº 15.2 – julho-dezembro de 2007E152
policiais violentas e do descaso governamental. Outro elemento fundamental
para a composição desse painel era a expressão de dor e indignação desenhada
nos rostos de cada uma das mães de vítimas de violência policial que se posicio-
naram ao longo do círculo. Uma delas – integrante de uma associação de mães
do Espírito Santo
24
- segurava quatro cruzes de madeira, cada uma portando um
nome de vítima na haste horizontal.
No decorrer da manifestação, não só essas quatro cruzes, mas várias outras
passaram a integrar o conjunto de objetos utilizados para compor a denúncia das
mortes. Havia cruzes trazidas pelas mães do Espírito Santo, cruzes trazidas pelos
integrantes da ‘Rede’ e cruzes trazidas pelos integrantes do MST
25
. As cruzes não
simbolizavam somente o número elevado de assassinatos cometidos por policiais.
Mais que uma referência à morte, cada cruz carregada durante o protesto sugeria
a idéia de sacrifício e doação. Seguradas pelos manifestantes, as cruzes levavam ao
cenário da passeata um aspecto de procissão – os elementos do campo religioso
estavam presentes como em 2004; desta vez, mesclados às bandeiras vermelhas
do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra.
Oalargamentodoconjuntodecobranças,acusaçõesepalavrasdeordemocorria
à medida que militantes de outros movimentos e/ou organizações iam aderindo à
passeata.Desdeintegrantesda“MarchaMundialdasMulheres”arepresentantesde
24
AMAFAVV-ES – Associação de Mães e Familiares de Vítimas de Violência do Estado do
Espírito Santo.
25
Para uma análise da relação entre as estratégias de atuação política do MST e os elementos
provenientes do campo simbólico religioso (especialmente ligado à Teologia da Libertação),
ver Chaves (2002).
153QUANDO A EXCEÇÃO VIRA REGRA – Juliana Farias
sindicatosepartidospolíticos,muitaseramasbandeiraspresentes.Emmeioàscruzes
e bandeiras do MST, pairava a imagem clássica do rosto de Che Guevara fotografado
por Korda sobre um mapa da América Latina. A manifestação atingiu diferentes
setores sociais, agregando um número de manifestantes que fosse capaz de ocupar
todas as pistas da Avenida Rio Branco, uma das principais (e mais largas) do centro
da cidade do Rio de Janeiro. As faixas dos diferentes grupos presentes se uniam lado
alado,fechandocompletamenteapista,interrompendotemporariamenteotrânsito,
interferindo no cotidiano de outros moradores da cidade e os colocando cara a cara
com a questão da violência policial e da violação dos direitos humanos.
A passeata se encerrou no Fórum do Rio de Janeiro, onde são julgados os poli-
ciais acusados pelas mortes que ocorrem durante as incursões violentas nas favelas.
Assim como a chegada dos manifestantes no Palácio das Laranjeiras, em 2004, a
chegada ao Fórum do Rio de Janeiro em 2005 também foi marcada pelo ato de
depositar – no chão – cartazes e faixas com fotografias e mensagens. Entretanto,
as homenagens aos mortos neste local aconteceriam em diferentes etapas.
Uma parte do calçadão que fica em frente ao Fórum foi tomada pelos cartazes
com fotografias e mensagens que, desta vez, dividiam o espaço com as cruzes
brancas. Bem próximo às cruzes, foram depositados os cartazes com os nomes
de áreas urbanas e rurais onde aconteceram episódios de violência: Acari, Anapu,
Borel, Caju, Candelária, Eldorado dos Carajás, Felisburgo, Nova Iguaçu, Pavão-
Pavãozinho, Providência, Rocinha, Vigário Geral, entre outros. Dispostos lado a
lado num encaixe assimétrico, nomes e cruzes aproximavam não só sentimentos
e expectativas de grupos sociais distintos, mas também regiões do país que estão
distantes geograficamente. Desenhava-se no chão um outro mapa do Brasil a partir
da violência que atinge parcelas específicas da sua população.
Não só nomes de localidades mereceram destaque nessa etapa da manifesta-
ção pública. Coladas nas cruzes brancas, tiras de papel ofício traziam impressos
os nomes completos das vítimas do massacre de Eldorado dos Carajás. Já os
assassinados na zona urbana tiveram seus nomes e sobrenomes anunciados ao
microfone durante uma longa lista de chamada. Além de responder “presente”
após o pronunciamento de cada nome, os manifestantes foram ‘convidados’ a
irem se deitando no chão.
Foram lidos ao microfone nome e sobrenome das vítimas de chacinas do Borel,
do Caju, da Candelária, de Nova Iguaçu, da Rocinha e de Vigário Geral, somando
um total de setenta e uma respostas “presente”. Ao final da chamada, uma tinta
vermelha preparada pelos organizadores foi derramada sobre as cruzes brancas,
os nomes das vítimas e dos locais das chacinas e alguns cartazes elaborados pelas
mães de vítimas.
TEORIA SOCIEDADE nº 15.2 – julho-dezembro de 2007E154
Um cartaz de cartolina trazia escrita à mão uma frase da relatora da Organi-
zação das Nações Unidas para Execuções Sumárias, Arbitrárias e Extrajudiciais,
Asma Jahangir: “Nenhuma sociedade civilizada deu à polícia o direito de julgar
e matar”. Depositado na calçada na frente do Fórum, o cartaz fez eco através do
grito puxado por um integrante da ‘Rede’ durante o encerramento da manifestação:
“A polícia mata o pobre, a justiça vem e encobre”. A este grito, repetido inúmeras
vezes, somou-se outro: “A impunidade começa aqui”.
2. DA TRANSFORMAÇÃO DOS MORADORES DE FAVELAS EM POPULAÇÃO “MATÁVEL”
Na manifestação de 2004, um grupo tentou ser recebido pela governadora para
cobrar justiça e exigir que seus direitos fossem garantidos; apesar de terem sido
recebidos por secretários e não pela governadora, chegaram a entrar no Palácio
do Governo, passando por uma porta que raramente se abre pra eles. Já em 2005
encerraram seu protesto ao lado de fora de um prédio onde eles sempre estão
presentes: durante diferentes audiências e julgamentos. O grito “A polícia mata o
pobre, a justiça vem e encobre” traduz para a linguagem de protesto uma denúncia
da participação de diferentes instâncias estatais no processo de transformação dos
moradores de favelas em uma população ‘matável’.
155QUANDO A EXCEÇÃO VIRA REGRA – Juliana Farias
Mas a argumentação da relatora da ONU chama atenção para um outro
aspecto, que nos coloca diante da complexidade deste processo: se “nenhuma
sociedade civilizada deu à polícia o direito de julgar e matar”, como entender a
parcela da “sociedade” do estado do Rio de Janeiro que compõe o júri popular e
absolve um policial que executou um morador de favela? Dos dezesseis policiais
militares envolvidos na operação que resultou na chacina do Borel, por exemplo,
cinco foram indiciados por homicídio qualificado em junho de 2003 (os demais
não foram indiciados por falta de provas). Em outubro de 2004, o 3º sargento da
Polícia Militar, Sidnei Pereira Barreto, foi julgado e absolvido pelo júri popular na
2
a
Vara Criminal, II Tribunal do Júri, Rio de Janeiro, acontecendo o mesmo com
o comandante da operação, o 2
o
tenente da PM, Rodrigo Lavandeira Pereira, em
fevereiro de 2005. Apenas em novembro de 2006, o cabo Marcos Duarte Ramalho
foi julgado pelo júri popular na 2ª Vara Criminal, também no II Tribunal do Júri
no Rio de Janeiro, e condenado a 49 anos de prisão (45 por três homicídios e 4
por uma tentativa de homicídio).
Estamos diante de formas de se exercer o poder (e aqui está incluído também
o poder de matar) em níveis variados, através de caminhos capilares, compondo
o complexo dos micro-poderes que participam do processo de transformação dos
moradores de favelas em uma população ‘matável’. Esta segunda parte do artigo
resulta do esforço de tentar compreender algumas engrenagens deste processo.
2.1 O termo ‘matável’
Pensando no processo através do qual o corpo biológico do cidadão passou a
ocupar uma posição central nos cálculos e estratégias do poder estatal, o filósofo
Giorgio Agamben recupera a noção de homo sacer – “uma obscura figura do direito
romano arcaico, na qual a vida humana é incluída no ordenamento unicamente
sob a forma de sua exclusão (ou seja, de sua absoluta matabilidade)” (Agamben
2002: 16)
26
.
Em suas notas, o tradutor do texto explica que a introdução da expressão
‘vida matável’ se faz por fidelidade ao original uccidibile (de uccidere, “matar ou
provocar a morte de modo violento”). Realizava-se, assim, uma equivalência à
idéia de ‘vida exterminável’, pois esta “vida nua” (a vida do homo sacer) “podia
26
As idéias de Agamben me foram apresentadas durante as reuniões das pesquisas “Human
rights, poverty and violence in Rio de Janeiro, Brasil: slum dwellers searching for recognition
and access to justice” (UNESCO, 2005/2006) e “Rompendo o cerceamento da palavra: a voz
dos favelados em busca de reconhecimento” (FAPERJ, 2005/2007), através do sociólogo Luis
Carlos Fridman – a quem deixo registrados meus sinceros agradecimentos.
TEORIA SOCIEDADE nº 15.2 – julho-dezembro de 2007E156
ser eventualmente exterminada por qualquer um, sem que se cometesse uma
violação” (Agamben 2002: 195). Como bem resume Fridman, “’a vida nua’ do
homo sacer é excluída da lei e dos direitos e incluída por ser aniquilável. Em suma,
matar um homo sacer não é passível de punição nem desperta culpa”; trata-se
de “destituição total, ausência absoluta de direitos, condição inapelável da ‘vida
nua’” (Fridman 2008).
Contudo, ao utilizar a expressão ‘população matável’ para me referir ao con-
junto dos moradores de favelas da cidade do Rio de Janeiro, devo ressaltar que
o faço com restrições, considerando que, contemporaneamente, esta noção só
se aplica a “situações-limite” - experiências extremas como a vivida nos campos
de concentração nazistas -, como analisa Pollak (1990 apud Catela 2001)
27
. O
que evidentemente não é o caso da população e do contexto examinados. Ainda
assim, considero que o recurso à noção de “vida matável” me permite construir
meu argumento, destacando e analisando determinados aspectos do cotidiano
dos moradores de favelas em suas localidades e em suas relações com segmentos
da cidade – especialmente a polícia - que não encompassam integralmente suas
vidas e experiências
28
. A noção de Agamben, portanto, enquanto apresentada
através da tradução para o português, aplica-se à minha argumentação; entre-
tanto, no original em que foi escrita, não: os favelados são “matáveis”, mas não
são homo sacer.
27
Catela segue, em sua análise do “mundo de familiares de desaparecidos na Argentina”, a
construção do termo “situação-limite” por Pollak, definindo-a como “uma ‘situação extra-
ordinária’ [que] provoca inéditas ações perante o imprevisível, situações para as quais não
fomos preparados, socializados, iniciados. Quebrando a ordem naturalizada do mundo ha-
bitual, o grupo social deve adaptar-se a um contexto novo e redefinir sua identidade e suas
relações com os outros grupos” (2001: 24). É impossível pensar como novas, extraordinárias
ou totalmente imprevisíveis as condições de vida e precariedade de direitos que marcam o
cotidiano dos moradores de favelas na cidade do Rio de Janeiro.
28
Uma outra ressalva se faz necessária. Na sua obra ‘Homo sacer: o poder soberano e a vida nua’,
Agamben deixa clara a incompatibilidade da sua reflexão com muitas das idéias formuladas
por Michel Foucault para pensar questões que envolvem “soberania do Estado” e “biopoder”,
especialmente. No entanto, gostaria de destacar que, como em meu trabalho utilizo a noção
de “vida matável” de Agamben sem subscrever sua perspectiva analítica, recorro ao mesmo
tempo às idéias de Foucault. Assumo, portanto, nesta nota, que há pontos deste debate
filosófico que não são trabalhados neste artigo.
157QUANDO A EXCEÇÃO VIRA REGRA – Juliana Farias
2.2 Da atualização dos mecanismos de controle: favelas e biopoder
Neste item, persigo duas vias analíticas distintas, no intuito de compreender como
o conjunto dos moradores de favelas foi transformado uma população “matável”.
A primeira via analítica é pautada por uma linha de pesquisa difundida pelas an-
tropólogas Veena Das e Deborah Poole (2004) como “antropologia das margens” –
através da qual se propõe investigar modalidades específicas da presença do Es-
tado em territórios considerados marginais. Já a segunda via possui como base
de sustentação a noção de “metáfora da guerra”, elaborada pela socióloga Márcia
Leite. As investigações de Leite (2000; 2008) possibilitam a compreensão dos
arranjos sociais formados em torno e a partir dos diferentes discursos a respeito
dos moradores das favelas cariocas, especialmente aqueles difundidos a partir
da década de 90.
Acompanhar o percurso dessas duas vias analíticas torna possível o cruza-
mento de uma contextualização global com uma contextualização local: enquanto
o enfoque sugerido pela “antropologia das margens” permite a inserção dos
moradores das favelas cariocas no conjunto de populações que recebem um
tratamento diferenciado em países da América Latina, da África e da Ásia, é
através da “metáfora da guerra” que se compreende a estruturação e o funcio-
namento da configuração social que definiu os rumos políticos mais recentes da
cidade do Rio de Janeiro, bem como sua interferência no destino da população
das favelas locais.
As “margens”, no contexto dos trabalhos reunidos em Anthropology in
the Margins of the State (Das & Poole 2004)
29
, não são demarcadas somente a
partir de aspectos geográficos: o descolamento de um modelo espacial de centro
e periferia foi acontecendo na medida em que se percebia que várias idéias a
respeito de “margens” eram baseadas em relações entre soberania e formas de
poder disciplinar, assim como em genealogias específicas de assuntos políticos e
econômicos. São apresentadas então três alternativas para a compreensão da idéia
29
A idéia da publicação “Anthropology in the Margins of the State” (2004), organizada por Das
e Poole, surgiu a partir de um seminário realizado na School of American Research, do qual
participaram pesquisadores dispostos a refletir sobre o desenvolvimento de etnografias de
um Estado que está encravado em práticas, linguagens e lugares considerados às margens do
Estado nacional. Partindo dessa idéia, as autoras reuniram trabalhos que aceitaram o convite
para repensar as fronteiras entre centro e periferia, público e privado, legal e ilegal. Segundo
as pesquisadoras, a “antropologia das margens” torna possível alcançar uma perspectiva
específica de entendimento do Estado porque, ao invés de capturar práticas exóticas, ela
indica que determinadas populações marginais se configuram a partir de um envolvimento
com o Estado que marca a transformação das exceções em regra.
TEORIA SOCIEDADE nº 15.2 – julho-dezembro de 2007E158
de “margens”: 1) periferias habitadas por pessoas consideradas insuficientemente
socializadas de acordo com as leis e a ordem vigentes; 2) lugares onde os direitos
podem ser violados através de dinâmicas distintas de interação das pessoas com
documentos, práticas e palavras do Estado; e 3) um espaço localizado entre corpos,
leis e disciplina.
Baseado na etnografia realizada por Veena Das, Asad (2004) afirma que para
identificar as margens do Estado, é necessário prestar atenção na inconstância da
lei em todos os lugares e na arbitrariedade das autoridades que buscam fazer da
lei algo constante. Das (2004) realizou um trabalho de campo na capital indiana,
acompanhando o caso das viúvas da comunidade Siglikar, cujos maridos foram
mortos em 1984, durante os conflitos ocorridos após o assassinato da Primeira-
Ministra Indira Gandhi. O que estava em questão eram as indenizações concedidas
aos familiares das vítimas: o governo reconheceu legalmente o direito das viúvas
de receberem o pagamento, mas as castas dominantes da comunidade Siglikar
entendiam que o pai de cada homem assassinado deveria ter recebido a indenização.
A solução do problema foi dividir igualmente a quantia entre as viúvas e os pais
– o que foi interpretado como um compromisso e executado em papel timbrado,
como se isto pudesse fazer do acordo algo válido “aos olhos da lei”. Para encerrar
o resumo do caso, vale destacar que tal compromisso nunca foi atribuído às leis
vigentes nem tratado como um acordo privado pelas partes concernidas – mas
conquistou legitimidade.
Para Das e Poole (2004), essas “margens”, onde uma configuração diferente
do bem comum é colocada em cena, não são simplesmente espaços nos quais o
Estado ainda tem que penetrar: elas devem ser vistas como lugares nos quais o
Estado é continuamente construído nos intervalos do cotidiano. As antropólogas
chamam atenção para o fato de que, em casos como o das viúvas Siglikar, práticas
do Estado não podem ser pensadas nos termos da lei ou da sua transgressão, mas
devem ser entendidas como práticas que se encontram simultaneamente dentro
e fora da lei.
Se a etnografia de Das em Nova Deli revela que um papel timbrado permite
que um acordo apareça como se fosse proveniente das leis do Estado, a investiga-
ção de Cohen (2004), em favelas de Mumbai e outras regiões marginalizadas da
Índia, evidencia a possibilidade da promoção de ‘sensações de cidadania’ a partir
de práticas estatais muito mais entrelaçadas com o dia-a-dia da população local.
A partir do acompanhamento de casos relacionados a três tipos de cirurgias
largamente difundidos na Índia (“operações de mudança de sexo, operações de
venda de rim e operações de planejamento familiar”), Cohen (2004) argumenta
que o arranjo da operação é fundamental para o que poderia ser chamado de
159QUANDO A EXCEÇÃO VIRA REGRA – Juliana Farias
presença do Estado na relação que estabelece com suas margens políticas
30
. Para
pensar na ligação deste arranjo da operação com formas de vida (novas práticas
de reconhecimento) e formas de troca (empresariamento médico e assistência sob
o neoliberalismo indiano), o autor elabora três conceitos: “suplementabilidade”,
“biodisponibilidade” e “operabilidade”.
Ser “suplementável” significa estar preparado para receber um presente
do Estado soberano na forma de um outro corpo; ser “biodisponível” significa
ser este corpo, importando somente enquanto uma articulação de mercados,
relações de afeto e desafeto e envolvendo a presença do aparato técnico; e ser
“operável” significa ser este corpo, não somente como uma articulação, mas
ser um corpo que possa servir como uma retribuição ao Estado – em alguns
casos como um sacrifício capaz de ressuscitar uma soberania problemática
ou ausente.
Cohen demonstra, em sua análise, como pobreza e vulnerabilidade política
interconectam-se ao desenvolvimento de “populações biodisponíveis”. Além desses
fatores, o autor também chama atenção para a promoção de campanhas políticas
que associavam esterilidade à modernidade, além de difundirem uma retórica
que ligava a doação de órgãos à salvação de vidas (deixando de lado os riscos
envolvidos). O pesquisador acompanha casos de diferentes mulheres, residentes
nas favelas de Chennai (Mumbai), que tinham vendido seus rins para uma clínica
sob a seguinte condição: as operações para retirada dos rins só seriam realizadas
se as mulheres aceitassem ligar as trompas.
A operação – apresentada como mais uma instância do governo – funciona,
assim, para embasar uma ordem governamental que pretende se mostrar inse-
rida na modernidade: a esterilização produz um “corpo-cidadão” que atua como
se fosse moderno e a castração produz um “corpo-politizado” com uma “relação
‘como se’” similar para a narrativa contratual da máquina do Estado moderno
(Cohen 2004). Assim mesmo, destacada, aparece em seu texto a expressão “as
if”, apresentada aqui através da tradução “como se” – é ela que caracteriza um
suposto pertencimento, algo que chamei anteriormente de ‘sensações de cidada-
nia’: assim como corpos atuam como se fossem modernos, homens passam a atuar
30
Escrevendo nos Estados Unidos durante um período marcado pela guerra contra o terrorismo,
Cohen identifica um ponto a ser discutido na modificação da política urbana americana: a
possibilidade de operações cirúrgicas serem vistas como exceção, mas também como uma
espécie de presente do governo para a população. No intuito de abrir pistas para o desen-
volvimento de uma “antropologia da operação”, o autor analisa características específicas
da operação para certos atores marginais em relação a práticas que constituem a afiliação
desses atores ao Estado, constituindo, também, o próprio Estado.
TEORIA SOCIEDADE nº 15.2 – julho-dezembro de 2007E160
como se fizessem escolhas individuais, como se fossem sujeitos políticos, como se
possuíssem direitos e como se vivessem uma democracia.
No caso da etnografia de Cohen, fica evidente o controle exercido sobre a vida
de determinadas populações, sem que este processo seja visto como desumano
e/ou como movido por práticas ilegais – pelo contrário. Fiz a opção de trazer o
exemplo da operação por dois motivos: 1) ele facilita a compreensão dos processos
de controle sobre a vida de determinadas populações constituídos em contextos nos
quais o excepcional vai sendo incorporado às práticas cotidianas e se transforma
em regra; e 2) ele nos coloca diretamente em contato com o que Michel Foucault
designou de “biopoder” - uma “nova tecnologia do poder”, exercida através da
“biopolítica”.
Foucault (2005b) apresenta o “biopoder” como uma tecnologia do poder com-
postapor“mecanismosregulamentadores”destinadosa“fixarumequilíbrio,manter
uma média, estabelecer uma espécie de homeostase, assegurar compensações”;
resumindo, seria o poder de “fazer viver”. Ao se incumbir “tanto do corpo quanto da
vida”, ou “da vida em geral, com o pólo do corpo e o pólo da população”, este poder,
entretanto, passa a ser exercido de tal forma que se torna capaz de matar.
Através do “biopoder”, portanto, há um retorno do antigo poder soberano –
caracterizado pelo “direito de morte”. Ao resgatar a teoria clássica de soberania,
Foucault sugere uma interpretação da afirmação de que o soberano tinha “direito
de vida e de morte” a partir do paradoxo contido na mesma e demonstra como
esse paradoxo teórico vem acompanhado, necessariamente, de um “desequilíbrio
prático”: “o efeito do poder soberano sobre a vida só se exerce a partir do momento
em que o soberano pode matar”. Torna-se evidente, assim, que nesse “direito de
vida e de morte” não é possível haver simetria: não se trata do “direito de fazer
morrer ou de fazer viver”, nem do “direito de deixar morrer e de deixar viver”, mas
sim do “direito de fazer morrer ou deixar viver” (Foucault 2005b: 287)
31
.
Voltando, então, para o exemplo trazido no caso analisado por Cohen, podemos
perceber como o “biopoder” era exercido no contexto de realização das operações,
o que nos permite refletir sobre a modalidade da presença do Estado naquelas
regiões da Índia: além de compactuar com a venda (a princípio, ilegal) de órgãos,
fornecendo espaço, profissionais e aparato técnico para a realização da retirada
31
Baseando-se nesta noção clássica de soberania, Foucault estabelece as devidas relações entre
a nova tecnologia de poder identificada por ele e o poder soberano: enquanto o “biopoder” é
exercido para “fazer viver”, ele consiste no contrário do poder soberano; entretanto, quando
passa a ser exercido para “matar, reclamar a morte, pedir a morte, mandar matar, dar a ordem
de matar, expor à morte não só seus inimigos, mas mesmo seus próprios cidadãos” (2005b:
304), o “biopoder” incorpora o poder soberano.
161QUANDO A EXCEÇÃO VIRA REGRA – Juliana Farias
dos rins, o governo desenvolvia, ao mesmo tempo, um processo silencioso de
extinção daquela população através da esterilização. Era praticamente um pacote
promocional: venda seus rins e fique estéril – o governo promove sua entrada
no mundo moderno.
Passo agora de “margens” indianas para “margens” brasileiras, de operações
cirúrgicas para operações policiais. Como argumentou Asad, “o Estado não é um
objeto fixo” (2004: 279). Subscrevendo a perspectiva analítica desenvolvida pela
“antropologia das margens”, admito a existência de diferentes modalidades de pre-
sença do Estado brasileiro nessas regiões e em relação às populações ‘marginais’.
No que interessa à temática examinada neste texto, devo sublinhar que tanto a
prefeitura da cidade do Rio de Janeiro, quanto os governos estadual e federal estão
presentes nas favelas de formas variadas. Mas para construir a base de sustenta-
ção de meu argumento central, faço uma opção: a presença do Estado nas favelas
cariocas é trabalhada estritamente através da análise de práticas da polícia nesses
territórios. Entendendo que a polícia é um dos pontos de apoio a partir dos quais
se garante a “governamentalização” do Estado, ou seja, a existência do Estado
na sua forma atual (Foucault 2004), sigo as pistas de Veena Das e Débora Poole
(2004) para buscar desenvolver esse eixo analítico.
Em 1997, o Instituto de Estudos da Religião (ISER) publicou os dados de uma
pesquisa acerca da letalidade da ação policial no Rio de Janeiro. Coordenada por
Ignacio Cano, atualmente pesquisador do Laboratório de Análises da Violência
da UERJ, a pesquisa havia sido encomendada pela Comissão de Segurança Pú-
blica e pela Comissão de Direitos Humanos da Assembléia Legislativa do Estado
do Rio de Janeiro
32
. Foram apresentados dados condizentes com a hipótese de
que as premiações por bravura estavam incentivando os confrontos armados
(apontando, inclusive, promoções de policiais que haviam cometido execuções
de forma criminosa).
32
A demanda foi motivada pelo fato de ter se estabelecido - após uma série de matérias divulgadas
pelo Jornal do Brasil (de 7 a 16 de abril de 1996) - uma ligação entre o aumento do número
de mortos por “Autos de Resistência” e a gratificação por bravura instituída por decreto
em novembro de 1995 (período em que Nilton Cerqueira ocupava o cargo de Secretário
de Segurança do Estado do Rio de Janeiro). “No Estado do Rio de Janeiro, a Secretaria de
Segurança Pública aplicou entre os anos de 1995 e 1998 um programa de “premiações por
bravura”, concedidas preferencialmente a policiais envolvidos em ocorrências com resultado
de morte de suspeitos. Essas premiações incrementavam a remuneração do agente em 50%,
75% e até 150% sobre o salário original” (Cano 2003).
TEORIA SOCIEDADE nº 15.2 – julho-dezembro de 2007E162
Através de quadros comparativos sobre a atuação da polícia no “asfalto” e na
favela
33
, também foi revelado que a incidência de mortos pela polícia nas favelas
era seis vezes maior do que no “asfalto” e que a vitimização de policiais era maior
nas intervenções no “asfalto” do que na favela: morria um policial a cada 75 inter-
venções armadas com vítimas civis nas favelas, enquanto morria um policial a cada
35 ações armadas com vítimas civis no “asfalto”. A pesquisa demonstrou ainda
que a comparação entre os índices de letalidade na favela e no “asfalto” indicava
“uma clara intenção de matar por parte dos policiais nas suas intervenções nas
áreas carentes da cidade”. Essa diferença entre a atuação da polícia no “asfalto” e
na favela expressa claramente um dos resultados da aceitação de uma divisão da
cidade do Rio de Janeiro em dois pólos social e geograficamente demarcados:
Presumindo que se vivia de fato uma guerra que opunha morro e asfalto,
favelados e cidadãos, bandidos e policiais, os partidários desta perspec-
tiva aceitavam a violência policial em territórios dos e contra os grupos
estigmatizados e assistiam passivos ao envolvimento de policiais militares
em várias chacinas (Leite 2000: 75).
Foi, portanto, através da leitura desse Rio de Janeiro que Leite (2000) ela-
borou a noção de “metáfora da guerra”. Dando conta das entrelinhas embutidas
nesta metáfora, o estudo fornece os elementos necessários para o entendimento
das conexões estabelecidas entre a percepção de diferentes setores da socieda-
de carioca e os projetos de políticas públicas apresentados na/para a cidade a
partir de então. Leite recupera eventos e debates, formando uma cronologia dos
principais episódios violentos ocorridos na primeira metade da década de 90 e a
sua repercussão na cidade. As chacinas de Acari, Candelária e Vigário Geral as-
sociam-se às brigas nos bailes funk, dos seqüestros, dos arrastões nas praias, dos
confrontos entre facções rivais ou entre estas e a polícia para compor um novo
‘retrato’ do Rio de Janeiro.
Dito de outro modo: as novas modalidades de violência presentes no Rio de
Janeiro eram diretamente associadas às dinâmicas do tráfico de drogas; os terri-
tórios das favelas eram identificados como focos irradiadores desta violência e as
políticas públicas de segurança eram percebidas como ineficientes. Daí decorre o
que Soares (1996) conceituou como “cultura do medo” – que, segundo Leite, for-
maria a base para a redefinição das “relações dos cariocas com o território urbano
e com seus concidadãos, alterando-lhes a sociabilidade” (Leite 2000).
33
Utilizo os mesmos termos empregados na publicação de divulgação da pesquisa em questão.
163QUANDO A EXCEÇÃO VIRA REGRA – Juliana Farias
A construção da pauta de enfrentamento da violência era dividida, basica-
mente, entre um grupo que “defendia a combinação de políticas de promoção de
cidadania com alternativas eficientes no campo da segurança pública” e outro
que “considerava que a situação excepcional da cidade – de ‘guerra’ – não admitia
contemporizações com políticas de direitos humanos”. Diferentes setores da mídia,
parte dos moradores da cidade do Rio de Janeiro (especialmente os pertencentes
às camadas médias e abastadas) passaram a apoiar, portanto, o uso abusivo da
força durante as ações policiais em favelas.
Destaforma,portanto,consolidava-seumaestruturaquefuncionaria,aomesmo
tempo, como incentivo e respaldo para um tratamento diferenciado dos moradores
dasfavelascariocas.Nãosetratavadaelaboraçãodepropostaspolíticasquevisassem
modificar a atuação de um Estado que não estaria conseguindo garantir os direitos
da população. Pelo contrário: a cidade do Rio de Janeiro produzia, assim, a sedi-
mentação de um modelo de “cidadania de geometria variável” – na qual os direitos
são “eminentemente reversíveis e precários, podendo ser postos em dúvida a cada
mudança na correlação de forças políticas”, de acordo com Lautier (1997).
Bem distante da idéia de cidadania universal, este modelo coloca em questão
as interpretações da “violência urbana”
34
no Rio de Janeiro realizadas a partir da
leitura de um mal-funcionamento do Estado. Os moradores de favelas do Rio de
Janeiro não estariam experimentando a “dimensão residual de cidadania” que
configura a noção de “cidade escassa” desenvolvida por Carvalho (1995). Em um
contexto de “cidadania de geometria variável”, a atuação do Estado difere de acordo
com a posição econômica, social e política dos cidadãos, i.é, desenvolve-se sempre
“em situação”. Nas ‘margens’, o Estado não estaria deixando de “cumprir suas
obrigações” – elas apenas passavam a ser cumpridas de acordo com a perspectiva
dominante naquele momento: as exigências por tomada de medidas emergenciais
soavam mais alto que a aclamação por “um pacto estável e universalista”.
Recorro, mais uma vez, aos dados divulgados pelo ISER em 1997. Entre as com-
parações“asfalto”/favelatrazidaspelapesquisa,mechamoumuitaatençãoaqueestá
relacionada aos “autos de resistência”: enquanto 37,4% dos casos acontecidos fora
das favelas eram classificados como “autos de resistência”, 62% dos que ocorreram
em favelas foram registrados desta forma. Destaco o exemplo do “auto de resistên-
cia” por considerá-lo um tanto complexo e, por isso mesmo, “bom para pensar” a
modalidade de presença do Estado nas favelas através da atuação da polícia.
34
Para as diferentes representações de “violência urbana” abrigadas sob esta noção, consultar
Machado da Silva (2004).
TEORIA SOCIEDADE nº 15.2 – julho-dezembro de 2007E164
Inicialmente regulamentado pela Ordem de Serviço “N”, n
o
803, de 2 de
outubro de 1969, da Superintendência da Polícia Judiciária, do antigo estado da
Guanabara, o “auto de resistência” foi registrado pela primeira vez no dia 14 de
novembro do mesmo ano
35
. Em dezembro de 1974, o conteúdo da Ordem de Ser-
viço 803/69 foi ampliado pela Portaria “E”, n
o
0030, do Secretário de Segurança
Pública. De acordo com o juiz Sérgio Verani (1996), esta Portaria desenvolveu
uma ilegalidade básica, pois estabelecia que o policial não poderia ser preso em
flagrante nem indiciado. Verani destaca que:
A preocupação fundamental da Portaria é com o esclarecimento, no
inquérito, das ‘figuras penais consumadas ou tentadas pelo opositor
durante a resistência’. E determina que o inquérito, com o auto de exa-
me cadavérico e o atestado de óbito do opositor, seja remetido ‘ao Juízo
competente para processar e julgar os crimes praticados pelo opositor’,
com o fim de ‘permitir ao juízo apreciar e julgar extinta a punibilidade
dos delitos cometidos ao enfrentar o policial’. Se o opositor não morrer,
a autoridade deverá ‘Ordenar a lavratura do auto de prisão em flagrante
para os que foram dominados e presos’ (1996: 37).
Para o juiz, tal Portaria seria marcada por uma “absurda inconstitucionalida-
de”, pois, através dela, “quem legisla para o policial que mata é o próprio Secretário
de Segurança, de nada valendo o Código Penal, o Código de Processo Penal e a
Constituição Federal” (Verani 1996: 37). Retomando uma questão relacionada à
documentação do Estado apontada por Das e Poole (2004), o “auto de resistência”
pode ser entendido como um exemplo concreto da manutenção de um processo
de construção e reconstrução do Estado através das suas práticas de escrita.
Das e Poole (2004) deixam claro que o problema da (i)legibilidade da docu-
mentação do Estado é uma das bases de consolidação do controle estatal sobre
populações, territórios e vidas. As antropólogas ressaltam que, nas “margens” por
elas estudadas, a questão da origem da lei emerge não como o mito do Estado, mas
na forma de homens cujas habilidades para representar o Estado ou para aplicar
suas leis estão localizadas em uma disposição para se mover impunemente entre
o que aparece na forma da lei e práticas extrajudiciais.
Incursões violentas da polícia militar nas favelas cariocas continuam a aconte-
cer de forma sistemática. A manutenção de políticas de segurança pública marcadas
35
O registro ocorreu após uma ação policial realizada por integrantes do Grupo Especial de
Combate à Delinqüência em Geral – grupo que também havia sido formado em 1969 e ficou
conhecido como “Grupo dos Onze Homens de Ouro” (Verani 1996).
165QUANDO A EXCEÇÃO VIRA REGRA – Juliana Farias
por estas ações vem sendo questionada e denunciada por diferentes organizações
de Direitos Humanos nacionais e internacionais. Alguns casos estão registrados
em relatórios sobre execução sumária no Brasil, ou sobre Direitos Humanos em
geral (Justiça Global 2002; 2003), mas a polícia carioca fez por onde merecer um
relatório específico sobre ela – o “Relatório Rio: Violência Policial e Insegurança
Pública”, lançado em 2004, também pela ONG Justiça Global
36
.
No final de 2003, a Anistia Internacional produziu o relatório “Rio de Janeiro
2003: Candelária e Vigário Geral, 10 anos depois”. Se a chacina de Vigário Geral
aparece de forma explícita, o tempo marcado no título faz uma referência implícita
à chacina do Borel, que é descrita e analisada no interior do relatório. Entretanto,
o que eu gostaria de destacar agora não são os nomes das favelas, nem a visibili-
dade conquistada por cada caso contido no relatório. Quero chamar atenção para
o trecho “10 anos depois”.
Este trecho que compõe o título do relatório da Anistia Internacional sublinha
a continuidade do que considera um “processo de extermínio” dessas populações –
um processo que vem sendo desempenhado por alguns, legitimado por outros,
deixado de lado por muitos e denunciado por poucos. Enquanto alguns policiais
realizam incursões violentas nas favelas, outros já estão na delegacia registrando
mais um “auto de resistência”. Enquanto alguns policiais estão na delegacia re-
gistrando mais um “auto de resistência”, outros policiais estão sendo absolvidos
dentro do Fórum do Rio de Janeiro por júri popular. Enquanto alguns represen-
tantes da “sociedade civil” absolvem os policiais responsáveis pelas chacinas no
Fórum do Rio de Janeiro, outros representantes da “sociedade civil” estão em suas
casas escrevendo mensagens virtuais como:
Cada povo tem a polícia que merece, ou seja, povo abusado, polícia
abusada. Não é isso?
37
Eu sou fã da bope
38
porque eu quero ver todos esse bandidos mortos no
valão se do nem piedade!!! E quando prender, mata logo (sic).
36
Vale destacar também as denúncias apresentadas no relatório “Eles entram atirando”:
Policiamento de comunidades socialmente excluídas no Brasil, produzido pela Anistia
Internacional em 2005.
37
Os comentários apresentados neste trecho foram retirados de comunidades virtuais do Orkut.
Este levantamento foi realizado por Larissa Accioly e Gabriela Macedo, no âmbito do projeto
de pesquisa “Cidadania e Imagem” (Oficina de Ensino e Pesquisa em Ciências Sociais, Núcleo
de Antropologia e Imagem – NAI/UERJ). Para uma abordagem da relação entre comunidades
do Orkut e discriminação de moradores de favelas, consultar Siqueira (2006).
38
BOPE é a sigla que corresponde ao Batalhão de Operações Policiais Especiais da Polícia Militar.
TEORIA SOCIEDADE nº 15.2 – julho-dezembro de 2007E166
Às vezes, a participação no processo se dá através da acumulação de funções:
o mesmo policial que realiza a incursão violenta, acessa um computador, cria um
“grupo de discussão” ou uma “comunidade virtual” e anuncia:
Olá pessoal, para a alegria de vocês, posso dizer que só ontem lá no Alemão
eu contei 28 defuntos. Tá bom ou querem mais? Não foi o número que a
mídia está apresentando, eu contei 28! Acho até que tiveram mais uns dois
que tentaram socorrer mas que já estão sentados no colo do capeta!
E uma representante da “sociedade civil” responde:
Eu como cidadã brasileira e agora mais do que nunca fã, sinto-me muito
orgulhosa e segura... espero que continuem guerreiros e que deus ilumine
sempre o caminho de vocês... e que continuem sempre tendo vitória sobre
a morte... isso prova que vocês não estão de bobeira e que defendem por
puro amor... ISSO QUE É LIMPEZA [...] Afinal de contas, morreram
quantos??? [...] Pra cima deles, Larga o Aço!!!
Esta mesma representante da sociedade civil pode um dia fazer parte do júri
popular e votar contra a condenação de um policial que assassinou um morador
de favela. Enfim, este circuito que acabei de descrever é apenas uma versão bem
resumida da engrenagem que mantém o funcionamento do “processo de exter-
mínio” dos moradores de favelas da cidade do Rio de Janeiro. Entendo que, em
uma engrenagem como esta, se articulam “micro-poderes” e “biopoder”, fazendo
dos favelados uma população matável.
3. “TRANQÜILIZAR É TAREFA DE OUTROS”
Neste artigo, apresento apenas um dos enquadramentos possíveis do período mais
recente do processo de construção social do lugar das favelas e de seus moradores
na cidade do Rio de Janeiro, no qual é possível relacionar este “tratamento espe-
cial”, ao qual venho me referindo, com as intervenções públicas e também com
outras formas de exercício do poder. Gostaria de finalizar, lembrando que Roberto
Machado, em sua introdução à coletânea de Foucault intitulada “Microfísica do
Poder”, reforça a idéia de que “os poderes se exercem em níveis variados e em
pontos diferentes da rede social e [que] neste complexo os micro-poderes existem
integrados ou não ao Estado” (Machado 2004: XII). Lidamos, portanto, com
formas de exercício do poder que diferem daquelas exercidas pelo Estado, mas
a elas se articulam de maneiras variadas – sendo inclusive “indispensáveis a sua
167QUANDO A EXCEÇÃO VIRA REGRA – Juliana Farias
sustentação e atuação eficaz”, como esclarece Machado. Trata-se de um aspecto
fundamental do legado de Foucault: ter tornado evidente a existência de formas
díspares de exercício do poder, relacionadas a múltiplas áreas de ação, espalhadas
por espaços circunscritos, enraizadas em micro-relações sociais.
O caminho apontado pela linha da “antropologia das margens” é apenas uma
das possibilidades de utilização das ferramentas antropológicas para tentarmos
enxergar nas práticas cotidianas essas formas enraizadas de exercício do poder
capazes de transformar as exceções em regra. Através desta via, busco maneiras
de investigar o processo de transformação dos moradores de favelas em uma po-
pulação “matável” – compartilhando a idéia de que ainda seja necessário pensar
em direitos básicos/fundamentais quando nos propomos a abordar a temática
dos Direitos Humanos no Brasil. Nesse contexto, onde o direito à vida de deter-
minados grupos populacionais está em jogo, me posiciono a partir de um dos
ensinamentos de Clifford Geertz em Nova luz sobre a antropologia: “tranqüilizar
é tarefa de outros”.
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DOCUMENTÁRIO
“Entre muros e favelas”. 2005. Direção de Susanne Dzeik, Kirsten Wagenschein e Márcio Jerônimo.
Brasil-Alemanha, 60 min, cor.
JORNAL
Folha de S. Paulo, edição de 16 de abril de 2005.
171QUANDO A EXCEÇÃO VIRA REGRA – Juliana Farias
ABSTRACT
In the first part of this article, I focus on the two
first years action of a social movement which fight
against police violence in favelas in Rio de Janeiro,
highlighting situations that one human rights
language is activated, translated and reconfigured
– offering other elements to the actualization
process of the groups protest vocabulary. In the
second part, aiming to go deeper into the police
violence in favelas issue, I articulate theoretical
instruments and empirical elements to help me
in the interpretation of the construction process
of mechanisms which make possible a frame on
the slums dwellers like a social group who needs
“special care” – process that transformed the
entire group of favelas dwellers into a “killable”
population.
KEY WORDS
favelas
police violence
human rights
colective action
RECEBIDO EM
maio de 2008
APROVADO EM
novembro de 2008
JULIANA FARIAS
Mestre em Ciências Sociais pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade do
Estado do Rio de Janeiro – PPCIS/UERJ.

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  • 1. TEORIA SOCIEDADE nº 15.2 – julho-dezembro de 2007 p. 138-171E QUANDO A EXCEÇÃO VIRA REGRA: OS FAVELADOS COMO POPULAÇÃO “MATÁVEL” E SUA LUTA POR SOBREVIVÊNCIA Juliana Farias RESUMO Na primeira parte deste artigo, focalizo alguns momentos significativos dos dois primeiros anos de atuação de um movimento social que luta contra a violência policial em favelas no Rio de Janeiro, destacando situações em que uma linguagem dos Direitos Humanos é acionada, traduzida e reconfi- gurada – trazendo mais elementos para o processo de atualização dos vocabulários de protesto do grupo. Na segunda parte, invisto em uma relei- tura do histórico das favelas na cidade do Rio de Janeiro, buscando articular ferramentas teóricas e elementos empíricos capazes de me auxiliar na interpretação do processo de construção dos me- canismos que possibilitaram o enquadramento dos moradores de favelas como um grupo populacional merecedor de “tratamentos especiais” – processo que transformou o conjunto dos favelados em uma população “matável” PALAVRAS-CHAVE favelas violência policial direitos humanos ação coletiva
  • 2. 139 NO DIA 16 DE ABRIL DE 2005, a primeira página do jornal Folha de S. Paulo exibia suas manchetes encaixadas entre três fotografias coloridas. A fotografia localizada na região central da página mostrava uma menina negra, séria, de uns seis ou sete anos de idade, com um penteado de trancinhas bem feitas, dedo indicador da mão esquerda na boca e olhar fixo nas lentes da câmera. Na mão direita a menina segurava um cartaz no formato ‘pirulito’ que preenchia a fotografia de uma margem lateral à outra, chamando a atenção do leitor para o texto: “I have been a victim of violence!!! Who will be the next? YOU??? We hope not”. Abaixo da fotografia, a legenda: “Globalizados. Menina exibe cartaz, em inglês, contra violência; 1.200 sem-terra e favelados do Rio protestaram na língua para atingir ‘a opinião pública internacional’”. A imagem havia sido registrada durante uma manifestação pública co-orga- nizada pelo “Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra” e pela “Rede de Comunidades e Movimentos contra Violência”. O cartaz que chamou a atenção do fotógrafo, na verdade, é bilíngüe – de um lado o texto está em inglês e do outro em português – e já havia estampado outras páginas de jornal em abril de 2004, quando um grupo de moradores de favelas cariocas decidiu caminhar até a sede do Governo do Estado para denunciar a violação dos seus direitos e exigir justiça. Não só a imagem do cartaz bilíngue, mas outras que também retratam as duas manifestações públicas mencionadas serão recuperadas durante a análise decritiva que desenvolvo na primeira parte deste artigo. Após uma breve apresentação da “Rede de Comunidades e Movimentos contra Violência”, focalizo alguns momentos significativos dos seus dois primeiros anos de atuação, destacando situações em que uma linguagem dos Direitos Humanos é acionada, traduzida e reconfigurada – seja através das parcerias estabelecidas, nas entrelinhas dos discursos proferidos, ou mesmo na confecção de faixas e cartazes – trazendo mais elementos para o processo de atualização dos vocabulários de protesto do grupo 1 . 1 Este artigo apresenta parte das idéias desenvolvidas na minha dissertação de mestrado, intitulada “Estratégias de Visibilidade, Política e Movimentos Sociais: reflexões sobre a luta de moradores de favelas cariocas contra a violência policial” – trabalho que resultou de uma
  • 3. TEORIA SOCIEDADE nº 15.2 – julho-dezembro de 2007E140 Já na segunda parte, invisto em uma releitura do histórico das favelas na cidade do Rio de Janeiro, buscando articular ferramentas teóricas e elementos empíricos capazes de me auxiliar na interpretação do processo de construção dos mecanismos que possibilitaram o enquadramento dos moradores de favelas como um grupo populacional merecedor de “tratamentos especiais” – processo que, ao longo do tempo, transformou o conjunto dos favelados em uma população “matável”. 1. DIREITOS HUMANOS: FOCO E FONTE DE AÇÕES COLETIVAS 1.1 Dos produtores do cartaz bilíngue Para apresentar os produtores do tal cartaz bilíngüe, considero fundamental es- crever algumas linhas sobre duas pessoas em especial: Thiago da Costa Correia da Silva e Carlos Magno de Oliveira Nascimento 2 . Thiago sempre gostou muito de matemática, se profissionalizou como me- cânico e, ainda bem novo, foi pai de uma menina esperta de cabelos cacheados chamada Gabriela. Carlos Magno gostava muito de esportes e desde que foi morar com sua mãe e seu padrasto na Suíça aprendeu a esquiar. Carlos Magno também estudava na Suíça, mas tinha vindo ao Brasil para se alistar no serviço militar do seu país de origem e estava passando férias na casa da sua avó materna, que morava no morro do Borel. Thiago da Costa também morava no morro do Borel e os dois eram amigos de infância. No dia 17 de abril de 2003, Thiago e Magno combinaram de se encontrar numa barbeariaparacortaremocabelo.Abarbearia,quenaépocaeramuitoprocuradapelos moradores mais jovens do Borel, ficava na Estrada da Independência, a via principal quesobeomorroeporondeépossívelpassardecarro.QuandoMagnoeTiagosaíram pesquisa etnográfica que se estendeu de abril de 2004 a julho de 2007. Agradeço a todos os integrantes da “Rede de Comunidades e Movimentos contra Violência” (especialmente às mães de vítimas de violência) pela confiança depositada na minha “observação participante” e também à Dalva Correia, por todas as oportunidades de aprendizado que me proporcionou. Agradeço, ainda, aos demais interlocutores cuja paciência eu gastei durante a elaboração deste trabalho: Alberto Calil, Bianca Freire-Medeiros, Fabiene Gama, Jussara Freire, Lia Rocha, Luiz Antonio Machado da Silva, Palloma Menezes, Patrícia Birman e Raíza Siqueira. Agradeço especialmente à Marcia Pereira Leite, por nunca ter desistido de me orientar. 2 Todos os nomes apresentados neste artigo são verdadeiros. Ao utilizar os nomes verdadeiros das vítimas, de seus familiares e dos demais atores envolvidos na luta contra violência policial, estou respeitando as suas identidades individuais e também apoiando (dentro dos limites de um trabalho acadêmico) os esforços para trazer visibilidade e legitimidade à luta em questão.
  • 4. 141QUANDO A EXCEÇÃO VIRA REGRA – Juliana Farias dobarbeiro,escutaramsonsdetirosecorreram.CarlosAlbertodaSilvaFerreira,outro morador da comunidade que tinha acabado de chegar à barbearia, também ouviu os tiros e correu. Pensando que os tiros estavam vindo da parte de baixo da própria Estrada da Independência, os três rapazes atravessaram a rua e seguiram para um beco bem em frente à barbearia, conhecido como Vila da Preguiça. Ao entrarem na Vila da Preguiça, os três rapazes foram alvejados. Um grupo de policiais estava na laje de uma casa em construção na mesma vila. Justamente de cima da laje partiram os primeiros disparos. Magno, que tinha 18 anos, morreu na hora: levou seis tiros, dentre os quais três pelas costas (cabeça, braço direito e região escapular esquerda) e três tiros pela frente (ombro esquerdo, bacia e clavícula) 3 . Mas os tiros não partiram somente de cima da laje. Tiago, que tinha 19 anos, ainda agonizou no chão pedindo socorro e dizendo que era trabalhador. Morreu após levar cinco tiros, quatro pela frente e um pelas costas (região dorsal direita) 4 . O laudo ainda atesta uma “alta energia cinética” na saída dos projéteis, o que demonstra que alguns dos disparos foram efetuados à “queima roupa”. Confir- mando a versão dos disparos a curta distância, o laudo de Carlos Alberto também aponta para uma “alta energia cinética” na saída dos projéteis. “Carlinhos”, como era conhecido, era pintor e pedreiro e tinha 21 anos. Sofreu doze disparos (sendo sete deles pelas costas), além de fratura no antebraço e no fêmur. É importante observar que cinco dos disparos atingiram a parte interna do seu antebraço direito e mãos direita e esquerda – o que demonstra que tentava se defender dos tiros efetuados contra ele com os braços dobrados na frente do corpo e/ou do rosto 5 . Esta é somente uma parte do resultado desta operação – realizada por dezes- seis policiais do 6º Batalhão da Polícia Militar (BPM), sediado no bairro da Tijuca. Houve ainda outra vítima fatal: Everson Gonçalves Silote, que tinha 26 anos e era taxista. Everson voltava para casa a pé quando foi rendido por policiais militares na EstradadaIndependência.Comotraziaumenvelopecomseusdocumentos,orapaz tentou se identificar e, por esse motivo, teve seu braço direito quebrado por um golpe do policial. Afirmando ser trabalhador, insistiu em mostrar os documentos, mas foi executado antes de apresentá-los. Levou quatro tiros pela frente (tendo cabeça e coração atingidos) e um pelas costas (próximo à coluna cervical) 6 . Além das quatro vítimas fatais, tal incursão da polícia militar ainda deixou baleados Pedro da Silva Rodrigues e Leandro Mendes – também moradores do 3 Laudo cadavérico 2658/2003 – Instituto Médico Legal (IML). 4 Laudo cadavérico 2659/2003 – IML. 5 Laudo cadavérico 2657/2003 – IML. 6 Laudo cadavérico 2660/2003 – IML.
  • 5. TEORIA SOCIEDADE nº 15.2 – julho-dezembro de 2007E142 Borel. Ao fim das quatro execuções, os policiais colocaram os corpos de Magno, Tiago, Carlinhos e Everson dentro do camburão que estava estacionado na saída da Vila, na própria Estrada da Independência. Nenhum morador do local conseguiu se aproximar das vítimas, nem mesmo seus familiares. Tiveram que se contentar com as “instruções” dos policiais: “Se quiser ver, vai no [hospital do] Andaraí.”, “Se quiser ver vai atrás, no Andaraí” 7 . Hoje está evidente para mim que é impossível apresentar a ‘Rede de Comunida- des e Movimentos contra Violência’ sem falar claramente da interrupção das vidas de Carlos Alberto da Silva Ferreira, Carlos Magno de Oliveira Nascimento, Everson Gonçalves Silote e Thiago da Costa Correia da Silva. Ou seja, trata-se de um grupo de pessoas que se uniu quando as trajetórias desses quatro rapazes foram interrom- pidas. Mas é importante ressaltar que o “quando” está destacado porque o grupo se uniu a partir daquele episódio, mas não necessariamente por causa dele: parte dos integrantes da ‘Rede’ 8 já militava em outros movimentos sociais urbanos, já estava 7 Depoimento de Dalva Correia, mãe de Tiago da Costa Correia da Silva, em entrevista realizada por mim, em maio de 2004. Além deste depoimento, utilizei outras fontes para elaborar esta apresentação do caso do Borel: o Relatório de Execuções Sumárias (1997–2003), do Centro de Justiça Global; um documento redigido no dia 24 de abril de 2003, pelos moradores do Borel, para ser encaminhado aos poderes públicos e à imprensa, além de entrevistas e conversas com moradores do Borel e com outros familiares das vítimas desta operação policial. 8 Paraotextonãoficarmuitorepetitivo,utilizareitambémapalavra‘Rede’paramereferirà‘Rede de Comunidades e Movimentos contra Violência’. É necessário esclarecer ainda que, apesar da relevânciadasdiscussõesarespeitodoconceitode“rede”nasciênciassociais,quetêmproduzido diversas análises sobre as possibilidades e limites de suas diferentes modalidades de atuação, sua natureza, seus objetivos e os contextos que presidem sua estruturação (consultar Castells 1999; Alvarez, Dagnino & Escobar, 2000), optei por não desenvolver este eixo analítico neste trabalho, dado o foco de minha investigação. Entretanto, percebendo que tal esforço pode enri- quecer as explicações a respeito do modo de operação da ‘Rede de Comunidades e Movimentos contra Violência’, algumas observações se fazem necessárias. O termo “rede” é tomado por seus integrantes apenas como uma parte do nome deste grupo por lhe permitir se apresentar publi- camente enquanto um movimento social integrado por diversos atores e movimentos. Mas esta apropriação do vocabulário político “do tempo” também indica, como sustenta Dagnino, “uma construção coletiva que resulta [da] [...] articulação de movimentos sociais de vários tipos com outros setores e organizações” [com base] “em um campo comum de referências e diferenças para a ação coletiva e a contestação política (Baierle 1992: 19 apud Dagnino 2000: 80). Por certo, esta articulação é, em vários casos, pontual e contextual – o que leva a autora a referi-la nestas situações através da noção de “teias”. Mas, no caso em análise, esta forma de articulação e apresentação pública de si é o que permite à ‘Rede’ lidar com as conhecidas variações de in- serção e participação de atores individuais e coletivos – os chamados “fluxos” e “refluxos” dos movimentossociais(MachadodaSilva&Ziccardi1983;Scherer-Warren&Krischke1987;Gohn 1997; Alvarez, Dagnino & Escobar 2000; entre outros) - e articular, discursiva e praticamente,
  • 6. 143QUANDO A EXCEÇÃO VIRA REGRA – Juliana Farias ligada a trabalhos sociais e/ou projetos desenvolvidos em favelas do Rio de Janeiro, ou já estava diretamente engajada em lutas contra a violência policial. Enfim,todosestesmilitantesqueseencontraram(ousereencontraram)apartir da Chacina do Borel traziam em sua bagagem experiências de participação política – e esse é um dado fundamental para compreender a maneira como este grupo, que hoje compõe a ‘Rede’, se organizou e como vem mantendo o seu trabalho desde então. Para continuar a desenvolver este argumento, vou utilizar uma explicação que um dos integrantes da ‘Rede’ apresentou na abertura de uma reunião do grupo. Esta reunião aconteceu no dia 07 de maio de 2005, no auditório do CEDIM/RJ (Conselho Estadual dos Direitos da Mulher) 9 – espaço que foi escolhido pela ‘Rede’ tanto por estar localizado no centro da cidade do Rio de Janeiro, quanto por oferecer a infra-estrutura necessária para o encontro de um número significativo de pessoas. Era a primeira reunião ampliada da ‘Rede’ após uma série intensa de atividades e também foi uma reunião aberta a pessoas que não militavam junto ao grupo, mas que poderiam se interessar pelo trabalho e agregar esforços. Responsável por fazer a apresentação da ‘Rede’ naquele evento, Maurício Campos 10 disse que o movimento era constituído por três grupos distintos: um (do qual ele próprio afirmou fazer parte) formado por pessoas que não necessa- riamente moram em favelas, mas que participam de movimentos sociais urbanos e atuam em favelas e periferias; outro grupo composto por moradores de favelas que participam de atividades políticas dentro e fora das favelas, mas que não são familiares de vítimas diretas da violência policial; e um terceiro grupo, formado especificamente pelos familiares de vítimas da violência policial em favelas – “componentes diferentes, que a gente tem que saber ajustar”, segundo Maurício. Afirmou ser este último o grupo mais forte dos três e complementou: “acostumamos a chamar de mães, mas também existem irmãs, primos etc”. modalidades diversas, presenciais e virtuais, de integração (ao) e participação no movimento. Ver, a respeito das segundas, as análises de Appadurai (1996) e de Ribeiro (2000). 9 O Conselho Estadual dos Direitos da Mulher – CEDIM/RJ é um órgão de assessoramento na implementação de políticas públicas, vinculado à Subsecretaria de Defesa e Promoção de Direitos Humanos, da Secretaria de Estado de Assistência Social e Direitos Humanos. (Mais informações em: http://www.cedim.rj.gov.br/cedim.htm). Antes de possuir a sua própria sede (hoje localizada na Cinelândia, centro do Rio de Janeiro), a Rede de Comunidades e Movimentos contra Violência utilizava diferentes espaços para se reunir (como salas cedidas por ONGs localizadas dentro e fora das favelas, auditórios e/ou salas de diferentes sindicatos do Rio de Janeiro, entre outros). 10 Maurício Campos milita em movimentos urbanos desde sua adolescência. Além de integrar a Frente de Luta Popular, participa da Rede de Comunidades e Movimentos contra Violência desde o seu surgimento.
  • 7. TEORIA SOCIEDADE nº 15.2 – julho-dezembro de 2007E144 Esta espécie de tripé, que Maurício apresentou em 2005 como a base de sustentação da ‘Rede’, é o modelo que tenho utilizado para definir o grupo. Essa constituição mantém-se a mesma até hoje e, de fato, o militante soube medir os pesos e apresentar a parte mais forte do tripé: os familiares. São eles (especialmente as mães das vítimas) que detêm maior capacidade para legitimar as reivindicações do grupo e trazer visibilidade à luta contra violência policial em favelas. Ainda utilizando as palavras de Maurício: As mães impedem que a gente perca o foco do movimento e são a prova de que os efeitos do genocídio e do extermínio continuam. [...] Fazem os outros companheiros do movimento entender que também há o en- volvimento emocional. Este último aspecto mencionado por Maurício é outro dado fundamental para a compreensão do encaixe dos três grupos que compõem a ‘Rede’. Reconhecer e saber lidar com as diferentes motivações que permitiram a cada um dos inte- grantes da ‘Rede’ se engajarem na luta contra violência policial foi – e continua sendo – um desafio para o grupo. Para explicar melhor o que estou chamando de ‘desafio’, vou puxar a linha do tempo um pouco para trás. Se o início da história da ‘Rede’ está diretamente relacionado à Chacina do Borel, também fez parte desta origem o sofrimento de Dalva Correia e Marta Dahyle – mães de Thiago da Costa e Carlos Magno, respectivamente. Ao sofri- mento de Dalva e Marta somaram-se a indignação e a solidariedade de outros moradores do Borel, de membros de ONGs, da Associação de Moradores e de outras instituições locais. Já tiveram outras mortes aqui dentro da comunidade, mas essa foi em grande número e chocou muito a comunidade, entendeu? A comunidade ficou muito estremecida [...] todo mundo estava sentindo na pele que aquilo que aconteceu naquele dia poderia voltar a acontecer a qualquer momento, com qualquer um de nós, entendeu? [...] qualquer uma pessoa estava correndo aquele risco. A gente tinha que pedir socorro de qualquer jeito, não dava mais pra suportar... a violência estava muito grande. 11 11 DepoimentodeDonaMarlene,moradoradoBorel,ementrevistarealizadaporMárcioJerônimo, durante a produção do documentário “Entre muros e favelas”. Agradeço imensamente a Márcio Jerônimo, Susanne Dzeik e Kirsten Wagenschein – co-diretores do documentário – pela dispo- nibilização do material bruto por eles filmado, além de todo o incentivo à minha pesquisa.
  • 8. 145QUANDO A EXCEÇÃO VIRA REGRA – Juliana Farias A partir do dia 16 de abril de 2003, a indignação transformou-se em alimento para a força política que marca o histórico de ação coletiva do Borel 12 . A fala de Dona Marlene expressa os mesmos sentimentos de indignação, de desamparo, de que “assim não dá para continuar” contidos na metáfora que Mônica Santos utilizou para referir-se àquele e a outros episódios similares nas favelas e definir o que seria o combustível do potencial transformador de sua população: “um coquetel molotov de fracasso e utopia, de busca por mudança, por outro referencial” 13 . A mobilização local foi reforçada por moradores de outras favelas (dentre os quais se destacavam algumasmãesdevítimasdeoutrosepisódiosdeviolênciapolicial),porONGsdedefesa dos Direitos Humanos como o Centro de Justiça Global e movimentos sociais como a Frente de Luta Popular, o Centro de Cultura Proletária, e a Central de Movimentos Populares. A reunião dessas pessoas configurou o embrião de um novo movimento contra violência policial em favelas – o Movimento “Posso me identifica?”. E de onde vem esse nome “Posso me identificar?”. Nós fomos, fizemos, formamos um grupo, apesar de eu estar psicologicamente abalada, nós formamos um grupo e demos..., cada uma deu uma idéia. Qual o nome que deveríamos dar a um movimento desse? Porque todo movimento normal tem que ter um nome. Aí uma deu um nome, a outra deu outro... 14 Como eles não puderam... que eles foram mortos e depois taxados de bandidos, né?, que eram bandidos. Então, aí nós ficamos imaginando como é que a gente ia fazer uma coisa assim pra chamar atenção. Aí nós resolvemos botar, teve assim uma votação, aí nós resolvemos, é saiu: “Posso me identificar?”. Então aí nós resolvemos e botamos. [...] A gente acha que eles deveriam ter perguntado, né?: “quem é você, não sei o quê” e não perguntaram... então resolvemos “Posso me identificar?” e ficou. 15 12 Datam do ano de 1954 as primeiras organizações de moradores de favelas no Rio de Janeiro, dentre as quais se destaca a União dos Trabalhadores Favelados do Morro do Borel (Lima 1989; Machado da Silva 2002). 13 Trecho do depoimento de Mônica Santos, também moradora do Borel, durante debate na Fundação Getúlio Vargas, em maio de 2007. Mônica Santos é uma das maiores referências atuais de ações coletivas protagonizadas por moradores de favelas no Rio de Janeiro e, apesar de não fazer parte da “Rede de Comunidades e Movimentos contra Violência”, concedeu-me o privilégio da sua interlocução durante o desenvolvimento desta pesquisa. 14 Depoimento de Marta Dahyle, em entrevista realizada por mim, durante as filmagens do documentário “Entre muros e favelas”, em dezembro de 2004. 15 Trecho da entrevista de Dalva Correia. Entrevista realizada por mim, em maio de 2004.
  • 9. TEORIA SOCIEDADE nº 15.2 – julho-dezembro de 2007E146 Foi a primeira reunião rápida! Naquele dia foi a primeira reunião rápida, porquecomeçouàsseteemeiaeterminouentreoitoeoitoemeiadanoite– foi rápida! Porque foi decidido que aí ia ficar o “Posso me identificar?” mesmo, que era uma marca que iria trazer mais uma força, porque era “Posso me identificar?” porque os garotos não tinham tido tempo pra se identificar, então ficou “Posso me identificar?” por isso. 16 Sentimentos como sofrimento, indignação e medo foram combinados a posi- cionamentos políticos que reivindicavam a garantia plena dos direitos humanos e civis da população residente em favelas. Apesar de terem conseguido promover manifestações bem sucedidas, terem conquistado uma certa legitimidade para ocupar o espaço público da cidade do Rio de Janeiro e terem ampliado a visibilidade da luta contra a violência policial que atinge as favelas, nem todos os integrantes do grupo concordavam com a manutenção de estratégias de atuação política marcadas por ações reivindicatórias, atos públicos e atividades afins. No segundo semestre de 2004, as divergências internas ao “Posso me identi- ficar?” tomaram uma proporção maior: alguns dos integrantes responsáveis por gerir seus eventuais recursos financeiros retiraram-se do movimento e o debate em torno da modalidade de atuação acirrou-se. O grupo acabou se dividindo desi- gualmente em dois blocos: um maior, que defendia a organização permanente de passeatas e atos públicos para pressionar o poder público, exigir justiça, denunciar a violação dos direitos humanos e reivindicar acesso à cidade; e outro, menor, que sustentava a idéia de atuar através do desenvolvimento de projetos pontuais, especialmente cursos profissionalizantes direcionados aos jovens 17 . Na tentativa de 16 Trecho de entrevista de Patrícia Oliveira, irmã de Wagner (único sobrevivente da chacina da Candelária). Patrícia milita em defesa dos Direitos Humanos desde 1993 e integra a “Rede” desde sua criação. Entrevista realizada por mim e por Larissa Accioly, em junho de 2007. 17 Ao analisarem o contexto dos anos 90 como período no qual se consolidaram “as metáforas da guerra e da cidade partida como referência à violência urbana no Rio de Janeiro”, Machado da Silva, Leite e Fridman (2005) examinam como se produziu uma “proposta, alternativa à política de segurança pública então praticada, de “pacificação da cidade por meio de soluções democráticas para o ’problema da segurança pública’”. Segundo os autores, a tentativa de concretizar tal proposta deu-se através de três linhas de atuação de integrantes de ONGs, movimentos sociais e pesquisadores interessados no processo. Gostaria de chamar a atenção para o fato de que o grupo de integrantes do movimento “Posso me identificar?” que defendia a realização de projetos pontuais voltados para jovens nas favelas, apesar de concentrar menor número de pessoas, compartilhava, justamente, da aposta em uma das três linhas de atuação apontadas por Machado da Silva, Leite e Fridman – aquela baseada na “proposição de novos procedimentos e rotinas policiais, bem como de políticas públicas focadas nos segmentos
  • 10. 147QUANDO A EXCEÇÃO VIRA REGRA – Juliana Farias solucionar o problema, o grupo majoritário decidiu ‘se emancipar’ do movimento “Posso me identificar?”, elegendo uma nova denominação. Surgiu, então, a ‘Rede de Comunidades e Movimentos contra a Violência’. 1.2 Sobre estratégias de visibilidade e sobrevivência Ato público contra a violência do Estado/ Para que os direitos que são garantidos para quem mora nos condomínios ricos sejam garantidos também em nossas comunidades/ Será no dia 16 de abril/ Vamos nos encontrar às 14h no Largo do Machado/ De lá, sairemos em passeata até o Palácio do governo do Estado. As frases acima compõem o panfleto de convocação para o ato organizado pelo Movimento “Posso me identificar?” em 2004. Além de responsabilizarem o Estado pelo tratamento violento que estavam recebendo, os moradores de favelas localizavam geograficamente o grupo social que recebia um tratamento diferente do seu e reivindicavam – em texto escrito na primeira pessoa do plural – igual- dade de direitos. Na concentração do ato, os manifestantes se reuniram no Largo do Machado no dia 16 de abril – um ano exato após a ‘chacina do Borel’. Foram estendidos painéis de grafite que exibiam policiais de armas na mão, enquanto policiais de armas na cintura rodeavam o carro de som que seria utilizado pelos favelados. De cima do carro de som, organizadores da manifestação conduziram o início do ato, dando espaço às falas de várias mães de vítimas de violência policial. Uma das principais lideranças do movimento “Mães do Rio” 18 , fez um discurso direcio- nado especialmente para as outras mães de vítimas, pedindo força para continua- rem a luta. Uma por uma, as mães surgiram no alto do carro com o microfone na mão e contaram as histórias das mortes dos seus filhos e de suas lutas por justiça. No mesmo espaço oferecido às mães para fazerem seus protestos individuais, o discurso firme de Rute Sales 19 apresentou o Movimento “Posso me identificar?”: Será que o poder público só vai funcionar pra nós como repressão? Nós estamospedindopropoderpúblicoteroutrasmaneirasdeocuparasnossas populacionais compreendidos como ‘de risco’, isto é, que se encontrariam em situações-limite facilitadoras do ingresso no crime”. 18 Para uma análise específica a respeito das atuações de mães de vítimas de violência na cidade do Rio de Janeiro, ver Leite (2004). 19 Rute Sales integra o Movimento Moleque, é ex-moradora do Borel e participa ativamente das mobilizações políticas locais.
  • 11. TEORIA SOCIEDADE nº 15.2 – julho-dezembro de 2007E148 comunidades, não só com repressão policial. Queria dizer que esse movi- mento “Posso me identificar?”, ele nasce nas comunidades, são pessoas de dentro da comunidade que não agüentam mais ficar calados, vendo seus filhos serem assassinados. Se o país não tem pena de morte, porque que toda comunidade favelada está condenada à morte e à exclusão? Somente depois que diversas vozes amplificaram acusações e reivindicações ao microfone, foi anunciado o início da passeata. Todos, então, se organizaram para uma caminhada em direção ao Palácio do Governo do Estado. Na frente dos participantes, seguia o carro de som. Logo atrás caminhavam os parentes das vítimas do Borel, segurando a grande “faixa abre-alas” da passeata, que trazia sobre o tecido preto a pergunta “Posso me identificar?” escrita em letras maiores, e abaixo, a resposta: “... os Silvas, os Santos, os Souzas, os Costas, os Oliveiras, os Pereiras, os Nascimentos, os Rodrigues, os Gonçalves. Em busca de DIGNIDADE!”. O texto da resposta, escrito na cor branca, sugeria a possibilidade de substituição de todos aqueles nomes por “os Zé Ninguém”, ou seja, aqueles a quem é negado o direito de se identificar justamente porque não podem perguntar “Você sabe com quem está falando?” 20 . 20 Chamo a atenção para a força simbólica da pergunta “Posso me identificar?” na evocação pelos (e para) os “de baixo” das hierarquias e desigualdades que marcam nossa história, especialmente por contraste ao recurso ao “você sabe com quem está falando?” recorrente da parte dos “de cima” (DaMatta, 1981).
  • 12. 149QUANDO A EXCEÇÃO VIRA REGRA – Juliana Farias Os manifestantes levaram dois tipos de cartazes para a passeata. Os maiores também apresentavam fundo preto e frases como “Garantia de direitos funda- mentais”, “Pela preservação da vida”, “Segurança às testemunhas e familiares” e “Contra a violência”, escritas com tinta branca. Os cartazes menores (pirulitos), com texto impresso na folha branca de formato A3, traziam as seguintes frases: “Moro onde os meios de comunicação só chegam para contar os mortos”; “Nossa dor não tem cor nem partido!”; “Moro no Brasil: o país com a segunda pior concen- tração de renda do mundo!”. As frases desses cartazes menores eram escritas em português de um lado e em inglês do outro lado – parte da estratégia de ampliar a visibilidade e a legitimidade do movimento no exterior, especialmente para as organizações de direitos humanos. Durante todo o trajeto, os manifestantes tiveram que caminhar cercados por policiais que, na maior parte do tempo, permaneciam com o cassetete na mão. O policiamento aumentava conforme o grupo ia se aproximando do Palácio do Governo do Estado – tornando evidente o fato de que o poder público ainda enxergava os moradores de favelas como uma ameaça à cidade. Ao chegarem ao Palácio, os manifestantes permaneceram no pátio. Uma fila de policiais fincou os pés na frente do portão de ferro (já trancado) na entrada do prédio. Das janelas do Palácio, funcionários do Governo do Estado fotografavam os manifestantes. As mães de vítimas de violência que estavam presentes se posicionaram, também em fila, diante dos policiais. As mães estavam seguras do seu direito de se mani- festar; sabiam que agiam de acordo com a lei e, mesmo chorando, continuavam face a face com os policiais – parte da instituição que estava sendo acusada como responsável pelas chacinas. Entre as mães e os policiais, “apenas o altar formado por fotografias, velas e flores – registros de medidas distintas das distâncias física e moral entre as duas filas” (Leite & Farias 2008) 21 . Com o carro de som estacionado também no pátio, foi lido um documento diri- gido à sociedade civil, enquanto uma comissão de mães de vítimas pedia permissão para entrar no Palácio e falar com a então governadora. As mães conseguiram entrar, mas não foram atendidas pela Governadora e sim pelos seus Secretários. Quando voltaram, foram convidadas, assim como os outros familiares de vítimas de violência presentes, a pronunciarem no microfone os nomes dos mortos. A cada nome falado, os manifestantes responderiam “presente”, reeditando uma tradição dos movimentos contra a ditadura militar. Antes da chamada, no entanto, Dalva Correia fez um discurso carregado de emoção e posicionamento político: 21 Para uma leitura específica sobre o uso não instrumental da linguagem religiosa nas manifes- tações contra violência policial em favelas, ver Leite (2006) e Leite & Farias (2008).
  • 13. TEORIA SOCIEDADE nº 15.2 – julho-dezembro de 2007E150 Queremos mostrar que somos pessoas pacíficas, que somos pessoas ci- vilizadas. Não estamos aqui pra pedir. Estamos aqui pra exigir os nossos direitos, fazendo um ato tranqüilo e civilizado. No dia 16 de abril, a essa hora, meu filho estava voltando do trabalho, às 6:45h ele foi assassinado quase na porta de casa. Isso é uma dor que só quem perde é que sabe. É uma dor muito grande. Várias mães perderam seus filhos. Agora nós vamos fazer a chamada dos filhos que eles tiraram de nós. Dalva, então, gritou alto o nome do filho: “Thiago da Costa!” Sobe outra mãe no carro de som e grita: “Carlos Rubens!” E assim vão chegando ao microfone várias mães e outros parentes de vítimas de violência policial, dando continuidade à chamada que foi iniciada por Dalva e que parecia não ter fim: Flávio e Eduardo, Wallace e Daniel, Jonatan dos Santos, José Manuel da Silva, Hanry, Jéferson Ricardo da Paz, Jean Alexandre - assassinado, Bruno Muniz Paulino, Rafael Medina Paulino, Renam Medina Paulino, Everson Gonçalves – taxista, Cristiano Oliveira Moraes, Leonardo dos Santos, Luiz Eduardo, David Ferreira, Josué dos Santos, Ismael Sales dos Santos, Caetano, Wanderley Soares Rodrigues, Paulo Soares Rodrigues, Fabiano de Nova Iguaçu, Regina Célia, Valter de Oliveira Silva, assassi- nado por PM: Márcio Antônio Maia de Souza [...]. O encerramento da manifestação foi marcado por oração e música, ambas transmitidas pelos alto-falantes do carro de som, assim como todos os discursos críticos e reivindicatórios. Sem tumulto, sem “quebra-quebra”, mais uma vez o grupo mostrou que era capaz de realizar manifestações organizadas. Após a manifestação de abril de 2004, o grupo formado a partir da Chacina do Borel passou a ser visto (e a se ver também) como um movimento social organizado, capaz de falar pelas favelas na cidade do Rio de Janeiro 22 . O grupo passou por períodos de reestruturação, mas conseguiu manter como foco princi- pal a questão da violência policial. Este processo ganhou fôlego no ano de 2005, 22 Não estou querendo dizer que o “Posso me identificar?” se transformou no porta-voz das favelas na cidade. Diferentes grupos, especialmente Ongs e projetos sociais, articulam e desarticulam parcerias no intuito de ampliar seu espaço ou consolidar sua posição como legítimo representante das favelas na cidade – seja para expor suas reivindicações, seja para atrair visibilidade para o que eles consideram aspectos positivos das favelas. Dentre esses grupos, destaco, por exemplo, o Observatório de Favelas, a Central Única das Favelas (CUFA), o Grupo Cultural Afroreggae e o Nós do Morro – que se articularam na formação denominada “F4 – Favela a quatro”.
  • 14. 151QUANDO A EXCEÇÃO VIRA REGRA – Juliana Farias quando a agenda do movimento – já reestruturado como ‘Rede de Comunidades e Movimentos contra Violência’ – passou a incluir atividades que marcavam sua legitimidade e que consolidavam e/ou ampliavam sua teia de relações. Mantendo a data da chacina do Borel como representativa desta luta contra violência, foi marcada para abril de 2005 uma nova manifestação pública. Ajustando calendá- rios e objetivos, a ‘Rede’ acabou dividindo a organização do evento com um dos movimentos sociais brasileiros de maior visibilidade em todo o país e também no exterior. Se, no ato de 2004, o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra participou como apoiador da luta contra a violência policial nas favelas, em 2005 agregaria não só suas bandeiras vermelhas, como também suas reivindicações e parte de suas estratégias de atuação à luta dos moradores de favelas. Nova passeata, novo formato de parceria, nova divulgação – o cartaz da ma- nifestação de 2005 foi marcado pela soma: “Pobres do campo e da cidade se unem por reforma agrária e contra a violência do Estado e das elites”. Mas a ampliação da chamada não se deveu somente à inserção das palavras que localizam diretamente a participação do MST. Enquanto o panfleto de convocação para o ato de 2004 responsabilizava o Estado pela violência denunciada, em 2005 tal responsabilidade também foi atribuída às elites. Mesmo que geograficamente separados, os grupos descobriram diferentes motivos para se unirem. Até mesmo a escolha do mês de abril fazia sentido para ambos: no dia 17 de abril de 1996 aconteceu o massacre de Eldorado dos Carajás e no dia 16 de abril de 2003, a chacina do Borel. O ato teve início na Candelária – marco histórico do centro da cidade do Rio de Janeiro e palco de uma das mais emblemáticas chacinas cariocas 23 . Por volta das 14 horas, o local começou a ser ocupado por moradores de favelas, integrantes do MST, integrantes do Movimento dos trabalhadores Sem-Teto, estudantes, integrantes de Ongs, pesquisadores e jornalistas – todos dividindo o espaço com as quatro viaturas da Polícia Militar estacionadas em cima da calçada. Policiais vestidos com coletes à prova de balas vigiavam atentamente o momento inicial da manifestação. Dois manifestantes abriram uma faixa produzida pela ‘Rede de Comunida- des e Movimentos contra a Violência’, na qual estava escrito: “Os ricos querem paz pra continuar ricos / Nós queremos paz pra continuar vivos”. Aos poucos, outros manifestantes foram chegando e se posicionando uns ao lado dos outros. Formou-se um grande círculo, no qual faixas, cartazes, fotografias, recortes de jornal, bandeiras e camisetas passaram a compor um painel de denúncia das ações 23 Em 1993, oito meninos de rua que dormiam nas calçadas próximas à Igreja da Candelária foram assassinados por policiais militares. O episódio ficou conhecido como “Chacina da Candelária”. Sobre esta chacina e seus principais desdobramentos, consultar Ferraz (2005).
  • 15. TEORIA SOCIEDADE nº 15.2 – julho-dezembro de 2007E152 policiais violentas e do descaso governamental. Outro elemento fundamental para a composição desse painel era a expressão de dor e indignação desenhada nos rostos de cada uma das mães de vítimas de violência policial que se posicio- naram ao longo do círculo. Uma delas – integrante de uma associação de mães do Espírito Santo 24 - segurava quatro cruzes de madeira, cada uma portando um nome de vítima na haste horizontal. No decorrer da manifestação, não só essas quatro cruzes, mas várias outras passaram a integrar o conjunto de objetos utilizados para compor a denúncia das mortes. Havia cruzes trazidas pelas mães do Espírito Santo, cruzes trazidas pelos integrantes da ‘Rede’ e cruzes trazidas pelos integrantes do MST 25 . As cruzes não simbolizavam somente o número elevado de assassinatos cometidos por policiais. Mais que uma referência à morte, cada cruz carregada durante o protesto sugeria a idéia de sacrifício e doação. Seguradas pelos manifestantes, as cruzes levavam ao cenário da passeata um aspecto de procissão – os elementos do campo religioso estavam presentes como em 2004; desta vez, mesclados às bandeiras vermelhas do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra. Oalargamentodoconjuntodecobranças,acusaçõesepalavrasdeordemocorria à medida que militantes de outros movimentos e/ou organizações iam aderindo à passeata.Desdeintegrantesda“MarchaMundialdasMulheres”arepresentantesde 24 AMAFAVV-ES – Associação de Mães e Familiares de Vítimas de Violência do Estado do Espírito Santo. 25 Para uma análise da relação entre as estratégias de atuação política do MST e os elementos provenientes do campo simbólico religioso (especialmente ligado à Teologia da Libertação), ver Chaves (2002).
  • 16. 153QUANDO A EXCEÇÃO VIRA REGRA – Juliana Farias sindicatosepartidospolíticos,muitaseramasbandeiraspresentes.Emmeioàscruzes e bandeiras do MST, pairava a imagem clássica do rosto de Che Guevara fotografado por Korda sobre um mapa da América Latina. A manifestação atingiu diferentes setores sociais, agregando um número de manifestantes que fosse capaz de ocupar todas as pistas da Avenida Rio Branco, uma das principais (e mais largas) do centro da cidade do Rio de Janeiro. As faixas dos diferentes grupos presentes se uniam lado alado,fechandocompletamenteapista,interrompendotemporariamenteotrânsito, interferindo no cotidiano de outros moradores da cidade e os colocando cara a cara com a questão da violência policial e da violação dos direitos humanos. A passeata se encerrou no Fórum do Rio de Janeiro, onde são julgados os poli- ciais acusados pelas mortes que ocorrem durante as incursões violentas nas favelas. Assim como a chegada dos manifestantes no Palácio das Laranjeiras, em 2004, a chegada ao Fórum do Rio de Janeiro em 2005 também foi marcada pelo ato de depositar – no chão – cartazes e faixas com fotografias e mensagens. Entretanto, as homenagens aos mortos neste local aconteceriam em diferentes etapas. Uma parte do calçadão que fica em frente ao Fórum foi tomada pelos cartazes com fotografias e mensagens que, desta vez, dividiam o espaço com as cruzes brancas. Bem próximo às cruzes, foram depositados os cartazes com os nomes de áreas urbanas e rurais onde aconteceram episódios de violência: Acari, Anapu, Borel, Caju, Candelária, Eldorado dos Carajás, Felisburgo, Nova Iguaçu, Pavão- Pavãozinho, Providência, Rocinha, Vigário Geral, entre outros. Dispostos lado a lado num encaixe assimétrico, nomes e cruzes aproximavam não só sentimentos e expectativas de grupos sociais distintos, mas também regiões do país que estão distantes geograficamente. Desenhava-se no chão um outro mapa do Brasil a partir da violência que atinge parcelas específicas da sua população. Não só nomes de localidades mereceram destaque nessa etapa da manifesta- ção pública. Coladas nas cruzes brancas, tiras de papel ofício traziam impressos os nomes completos das vítimas do massacre de Eldorado dos Carajás. Já os assassinados na zona urbana tiveram seus nomes e sobrenomes anunciados ao microfone durante uma longa lista de chamada. Além de responder “presente” após o pronunciamento de cada nome, os manifestantes foram ‘convidados’ a irem se deitando no chão. Foram lidos ao microfone nome e sobrenome das vítimas de chacinas do Borel, do Caju, da Candelária, de Nova Iguaçu, da Rocinha e de Vigário Geral, somando um total de setenta e uma respostas “presente”. Ao final da chamada, uma tinta vermelha preparada pelos organizadores foi derramada sobre as cruzes brancas, os nomes das vítimas e dos locais das chacinas e alguns cartazes elaborados pelas mães de vítimas.
  • 17. TEORIA SOCIEDADE nº 15.2 – julho-dezembro de 2007E154 Um cartaz de cartolina trazia escrita à mão uma frase da relatora da Organi- zação das Nações Unidas para Execuções Sumárias, Arbitrárias e Extrajudiciais, Asma Jahangir: “Nenhuma sociedade civilizada deu à polícia o direito de julgar e matar”. Depositado na calçada na frente do Fórum, o cartaz fez eco através do grito puxado por um integrante da ‘Rede’ durante o encerramento da manifestação: “A polícia mata o pobre, a justiça vem e encobre”. A este grito, repetido inúmeras vezes, somou-se outro: “A impunidade começa aqui”. 2. DA TRANSFORMAÇÃO DOS MORADORES DE FAVELAS EM POPULAÇÃO “MATÁVEL” Na manifestação de 2004, um grupo tentou ser recebido pela governadora para cobrar justiça e exigir que seus direitos fossem garantidos; apesar de terem sido recebidos por secretários e não pela governadora, chegaram a entrar no Palácio do Governo, passando por uma porta que raramente se abre pra eles. Já em 2005 encerraram seu protesto ao lado de fora de um prédio onde eles sempre estão presentes: durante diferentes audiências e julgamentos. O grito “A polícia mata o pobre, a justiça vem e encobre” traduz para a linguagem de protesto uma denúncia da participação de diferentes instâncias estatais no processo de transformação dos moradores de favelas em uma população ‘matável’.
  • 18. 155QUANDO A EXCEÇÃO VIRA REGRA – Juliana Farias Mas a argumentação da relatora da ONU chama atenção para um outro aspecto, que nos coloca diante da complexidade deste processo: se “nenhuma sociedade civilizada deu à polícia o direito de julgar e matar”, como entender a parcela da “sociedade” do estado do Rio de Janeiro que compõe o júri popular e absolve um policial que executou um morador de favela? Dos dezesseis policiais militares envolvidos na operação que resultou na chacina do Borel, por exemplo, cinco foram indiciados por homicídio qualificado em junho de 2003 (os demais não foram indiciados por falta de provas). Em outubro de 2004, o 3º sargento da Polícia Militar, Sidnei Pereira Barreto, foi julgado e absolvido pelo júri popular na 2 a Vara Criminal, II Tribunal do Júri, Rio de Janeiro, acontecendo o mesmo com o comandante da operação, o 2 o tenente da PM, Rodrigo Lavandeira Pereira, em fevereiro de 2005. Apenas em novembro de 2006, o cabo Marcos Duarte Ramalho foi julgado pelo júri popular na 2ª Vara Criminal, também no II Tribunal do Júri no Rio de Janeiro, e condenado a 49 anos de prisão (45 por três homicídios e 4 por uma tentativa de homicídio). Estamos diante de formas de se exercer o poder (e aqui está incluído também o poder de matar) em níveis variados, através de caminhos capilares, compondo o complexo dos micro-poderes que participam do processo de transformação dos moradores de favelas em uma população ‘matável’. Esta segunda parte do artigo resulta do esforço de tentar compreender algumas engrenagens deste processo. 2.1 O termo ‘matável’ Pensando no processo através do qual o corpo biológico do cidadão passou a ocupar uma posição central nos cálculos e estratégias do poder estatal, o filósofo Giorgio Agamben recupera a noção de homo sacer – “uma obscura figura do direito romano arcaico, na qual a vida humana é incluída no ordenamento unicamente sob a forma de sua exclusão (ou seja, de sua absoluta matabilidade)” (Agamben 2002: 16) 26 . Em suas notas, o tradutor do texto explica que a introdução da expressão ‘vida matável’ se faz por fidelidade ao original uccidibile (de uccidere, “matar ou provocar a morte de modo violento”). Realizava-se, assim, uma equivalência à idéia de ‘vida exterminável’, pois esta “vida nua” (a vida do homo sacer) “podia 26 As idéias de Agamben me foram apresentadas durante as reuniões das pesquisas “Human rights, poverty and violence in Rio de Janeiro, Brasil: slum dwellers searching for recognition and access to justice” (UNESCO, 2005/2006) e “Rompendo o cerceamento da palavra: a voz dos favelados em busca de reconhecimento” (FAPERJ, 2005/2007), através do sociólogo Luis Carlos Fridman – a quem deixo registrados meus sinceros agradecimentos.
  • 19. TEORIA SOCIEDADE nº 15.2 – julho-dezembro de 2007E156 ser eventualmente exterminada por qualquer um, sem que se cometesse uma violação” (Agamben 2002: 195). Como bem resume Fridman, “’a vida nua’ do homo sacer é excluída da lei e dos direitos e incluída por ser aniquilável. Em suma, matar um homo sacer não é passível de punição nem desperta culpa”; trata-se de “destituição total, ausência absoluta de direitos, condição inapelável da ‘vida nua’” (Fridman 2008). Contudo, ao utilizar a expressão ‘população matável’ para me referir ao con- junto dos moradores de favelas da cidade do Rio de Janeiro, devo ressaltar que o faço com restrições, considerando que, contemporaneamente, esta noção só se aplica a “situações-limite” - experiências extremas como a vivida nos campos de concentração nazistas -, como analisa Pollak (1990 apud Catela 2001) 27 . O que evidentemente não é o caso da população e do contexto examinados. Ainda assim, considero que o recurso à noção de “vida matável” me permite construir meu argumento, destacando e analisando determinados aspectos do cotidiano dos moradores de favelas em suas localidades e em suas relações com segmentos da cidade – especialmente a polícia - que não encompassam integralmente suas vidas e experiências 28 . A noção de Agamben, portanto, enquanto apresentada através da tradução para o português, aplica-se à minha argumentação; entre- tanto, no original em que foi escrita, não: os favelados são “matáveis”, mas não são homo sacer. 27 Catela segue, em sua análise do “mundo de familiares de desaparecidos na Argentina”, a construção do termo “situação-limite” por Pollak, definindo-a como “uma ‘situação extra- ordinária’ [que] provoca inéditas ações perante o imprevisível, situações para as quais não fomos preparados, socializados, iniciados. Quebrando a ordem naturalizada do mundo ha- bitual, o grupo social deve adaptar-se a um contexto novo e redefinir sua identidade e suas relações com os outros grupos” (2001: 24). É impossível pensar como novas, extraordinárias ou totalmente imprevisíveis as condições de vida e precariedade de direitos que marcam o cotidiano dos moradores de favelas na cidade do Rio de Janeiro. 28 Uma outra ressalva se faz necessária. Na sua obra ‘Homo sacer: o poder soberano e a vida nua’, Agamben deixa clara a incompatibilidade da sua reflexão com muitas das idéias formuladas por Michel Foucault para pensar questões que envolvem “soberania do Estado” e “biopoder”, especialmente. No entanto, gostaria de destacar que, como em meu trabalho utilizo a noção de “vida matável” de Agamben sem subscrever sua perspectiva analítica, recorro ao mesmo tempo às idéias de Foucault. Assumo, portanto, nesta nota, que há pontos deste debate filosófico que não são trabalhados neste artigo.
  • 20. 157QUANDO A EXCEÇÃO VIRA REGRA – Juliana Farias 2.2 Da atualização dos mecanismos de controle: favelas e biopoder Neste item, persigo duas vias analíticas distintas, no intuito de compreender como o conjunto dos moradores de favelas foi transformado uma população “matável”. A primeira via analítica é pautada por uma linha de pesquisa difundida pelas an- tropólogas Veena Das e Deborah Poole (2004) como “antropologia das margens” – através da qual se propõe investigar modalidades específicas da presença do Es- tado em territórios considerados marginais. Já a segunda via possui como base de sustentação a noção de “metáfora da guerra”, elaborada pela socióloga Márcia Leite. As investigações de Leite (2000; 2008) possibilitam a compreensão dos arranjos sociais formados em torno e a partir dos diferentes discursos a respeito dos moradores das favelas cariocas, especialmente aqueles difundidos a partir da década de 90. Acompanhar o percurso dessas duas vias analíticas torna possível o cruza- mento de uma contextualização global com uma contextualização local: enquanto o enfoque sugerido pela “antropologia das margens” permite a inserção dos moradores das favelas cariocas no conjunto de populações que recebem um tratamento diferenciado em países da América Latina, da África e da Ásia, é através da “metáfora da guerra” que se compreende a estruturação e o funcio- namento da configuração social que definiu os rumos políticos mais recentes da cidade do Rio de Janeiro, bem como sua interferência no destino da população das favelas locais. As “margens”, no contexto dos trabalhos reunidos em Anthropology in the Margins of the State (Das & Poole 2004) 29 , não são demarcadas somente a partir de aspectos geográficos: o descolamento de um modelo espacial de centro e periferia foi acontecendo na medida em que se percebia que várias idéias a respeito de “margens” eram baseadas em relações entre soberania e formas de poder disciplinar, assim como em genealogias específicas de assuntos políticos e econômicos. São apresentadas então três alternativas para a compreensão da idéia 29 A idéia da publicação “Anthropology in the Margins of the State” (2004), organizada por Das e Poole, surgiu a partir de um seminário realizado na School of American Research, do qual participaram pesquisadores dispostos a refletir sobre o desenvolvimento de etnografias de um Estado que está encravado em práticas, linguagens e lugares considerados às margens do Estado nacional. Partindo dessa idéia, as autoras reuniram trabalhos que aceitaram o convite para repensar as fronteiras entre centro e periferia, público e privado, legal e ilegal. Segundo as pesquisadoras, a “antropologia das margens” torna possível alcançar uma perspectiva específica de entendimento do Estado porque, ao invés de capturar práticas exóticas, ela indica que determinadas populações marginais se configuram a partir de um envolvimento com o Estado que marca a transformação das exceções em regra.
  • 21. TEORIA SOCIEDADE nº 15.2 – julho-dezembro de 2007E158 de “margens”: 1) periferias habitadas por pessoas consideradas insuficientemente socializadas de acordo com as leis e a ordem vigentes; 2) lugares onde os direitos podem ser violados através de dinâmicas distintas de interação das pessoas com documentos, práticas e palavras do Estado; e 3) um espaço localizado entre corpos, leis e disciplina. Baseado na etnografia realizada por Veena Das, Asad (2004) afirma que para identificar as margens do Estado, é necessário prestar atenção na inconstância da lei em todos os lugares e na arbitrariedade das autoridades que buscam fazer da lei algo constante. Das (2004) realizou um trabalho de campo na capital indiana, acompanhando o caso das viúvas da comunidade Siglikar, cujos maridos foram mortos em 1984, durante os conflitos ocorridos após o assassinato da Primeira- Ministra Indira Gandhi. O que estava em questão eram as indenizações concedidas aos familiares das vítimas: o governo reconheceu legalmente o direito das viúvas de receberem o pagamento, mas as castas dominantes da comunidade Siglikar entendiam que o pai de cada homem assassinado deveria ter recebido a indenização. A solução do problema foi dividir igualmente a quantia entre as viúvas e os pais – o que foi interpretado como um compromisso e executado em papel timbrado, como se isto pudesse fazer do acordo algo válido “aos olhos da lei”. Para encerrar o resumo do caso, vale destacar que tal compromisso nunca foi atribuído às leis vigentes nem tratado como um acordo privado pelas partes concernidas – mas conquistou legitimidade. Para Das e Poole (2004), essas “margens”, onde uma configuração diferente do bem comum é colocada em cena, não são simplesmente espaços nos quais o Estado ainda tem que penetrar: elas devem ser vistas como lugares nos quais o Estado é continuamente construído nos intervalos do cotidiano. As antropólogas chamam atenção para o fato de que, em casos como o das viúvas Siglikar, práticas do Estado não podem ser pensadas nos termos da lei ou da sua transgressão, mas devem ser entendidas como práticas que se encontram simultaneamente dentro e fora da lei. Se a etnografia de Das em Nova Deli revela que um papel timbrado permite que um acordo apareça como se fosse proveniente das leis do Estado, a investiga- ção de Cohen (2004), em favelas de Mumbai e outras regiões marginalizadas da Índia, evidencia a possibilidade da promoção de ‘sensações de cidadania’ a partir de práticas estatais muito mais entrelaçadas com o dia-a-dia da população local. A partir do acompanhamento de casos relacionados a três tipos de cirurgias largamente difundidos na Índia (“operações de mudança de sexo, operações de venda de rim e operações de planejamento familiar”), Cohen (2004) argumenta que o arranjo da operação é fundamental para o que poderia ser chamado de
  • 22. 159QUANDO A EXCEÇÃO VIRA REGRA – Juliana Farias presença do Estado na relação que estabelece com suas margens políticas 30 . Para pensar na ligação deste arranjo da operação com formas de vida (novas práticas de reconhecimento) e formas de troca (empresariamento médico e assistência sob o neoliberalismo indiano), o autor elabora três conceitos: “suplementabilidade”, “biodisponibilidade” e “operabilidade”. Ser “suplementável” significa estar preparado para receber um presente do Estado soberano na forma de um outro corpo; ser “biodisponível” significa ser este corpo, importando somente enquanto uma articulação de mercados, relações de afeto e desafeto e envolvendo a presença do aparato técnico; e ser “operável” significa ser este corpo, não somente como uma articulação, mas ser um corpo que possa servir como uma retribuição ao Estado – em alguns casos como um sacrifício capaz de ressuscitar uma soberania problemática ou ausente. Cohen demonstra, em sua análise, como pobreza e vulnerabilidade política interconectam-se ao desenvolvimento de “populações biodisponíveis”. Além desses fatores, o autor também chama atenção para a promoção de campanhas políticas que associavam esterilidade à modernidade, além de difundirem uma retórica que ligava a doação de órgãos à salvação de vidas (deixando de lado os riscos envolvidos). O pesquisador acompanha casos de diferentes mulheres, residentes nas favelas de Chennai (Mumbai), que tinham vendido seus rins para uma clínica sob a seguinte condição: as operações para retirada dos rins só seriam realizadas se as mulheres aceitassem ligar as trompas. A operação – apresentada como mais uma instância do governo – funciona, assim, para embasar uma ordem governamental que pretende se mostrar inse- rida na modernidade: a esterilização produz um “corpo-cidadão” que atua como se fosse moderno e a castração produz um “corpo-politizado” com uma “relação ‘como se’” similar para a narrativa contratual da máquina do Estado moderno (Cohen 2004). Assim mesmo, destacada, aparece em seu texto a expressão “as if”, apresentada aqui através da tradução “como se” – é ela que caracteriza um suposto pertencimento, algo que chamei anteriormente de ‘sensações de cidada- nia’: assim como corpos atuam como se fossem modernos, homens passam a atuar 30 Escrevendo nos Estados Unidos durante um período marcado pela guerra contra o terrorismo, Cohen identifica um ponto a ser discutido na modificação da política urbana americana: a possibilidade de operações cirúrgicas serem vistas como exceção, mas também como uma espécie de presente do governo para a população. No intuito de abrir pistas para o desen- volvimento de uma “antropologia da operação”, o autor analisa características específicas da operação para certos atores marginais em relação a práticas que constituem a afiliação desses atores ao Estado, constituindo, também, o próprio Estado.
  • 23. TEORIA SOCIEDADE nº 15.2 – julho-dezembro de 2007E160 como se fizessem escolhas individuais, como se fossem sujeitos políticos, como se possuíssem direitos e como se vivessem uma democracia. No caso da etnografia de Cohen, fica evidente o controle exercido sobre a vida de determinadas populações, sem que este processo seja visto como desumano e/ou como movido por práticas ilegais – pelo contrário. Fiz a opção de trazer o exemplo da operação por dois motivos: 1) ele facilita a compreensão dos processos de controle sobre a vida de determinadas populações constituídos em contextos nos quais o excepcional vai sendo incorporado às práticas cotidianas e se transforma em regra; e 2) ele nos coloca diretamente em contato com o que Michel Foucault designou de “biopoder” - uma “nova tecnologia do poder”, exercida através da “biopolítica”. Foucault (2005b) apresenta o “biopoder” como uma tecnologia do poder com- postapor“mecanismosregulamentadores”destinadosa“fixarumequilíbrio,manter uma média, estabelecer uma espécie de homeostase, assegurar compensações”; resumindo, seria o poder de “fazer viver”. Ao se incumbir “tanto do corpo quanto da vida”, ou “da vida em geral, com o pólo do corpo e o pólo da população”, este poder, entretanto, passa a ser exercido de tal forma que se torna capaz de matar. Através do “biopoder”, portanto, há um retorno do antigo poder soberano – caracterizado pelo “direito de morte”. Ao resgatar a teoria clássica de soberania, Foucault sugere uma interpretação da afirmação de que o soberano tinha “direito de vida e de morte” a partir do paradoxo contido na mesma e demonstra como esse paradoxo teórico vem acompanhado, necessariamente, de um “desequilíbrio prático”: “o efeito do poder soberano sobre a vida só se exerce a partir do momento em que o soberano pode matar”. Torna-se evidente, assim, que nesse “direito de vida e de morte” não é possível haver simetria: não se trata do “direito de fazer morrer ou de fazer viver”, nem do “direito de deixar morrer e de deixar viver”, mas sim do “direito de fazer morrer ou deixar viver” (Foucault 2005b: 287) 31 . Voltando, então, para o exemplo trazido no caso analisado por Cohen, podemos perceber como o “biopoder” era exercido no contexto de realização das operações, o que nos permite refletir sobre a modalidade da presença do Estado naquelas regiões da Índia: além de compactuar com a venda (a princípio, ilegal) de órgãos, fornecendo espaço, profissionais e aparato técnico para a realização da retirada 31 Baseando-se nesta noção clássica de soberania, Foucault estabelece as devidas relações entre a nova tecnologia de poder identificada por ele e o poder soberano: enquanto o “biopoder” é exercido para “fazer viver”, ele consiste no contrário do poder soberano; entretanto, quando passa a ser exercido para “matar, reclamar a morte, pedir a morte, mandar matar, dar a ordem de matar, expor à morte não só seus inimigos, mas mesmo seus próprios cidadãos” (2005b: 304), o “biopoder” incorpora o poder soberano.
  • 24. 161QUANDO A EXCEÇÃO VIRA REGRA – Juliana Farias dos rins, o governo desenvolvia, ao mesmo tempo, um processo silencioso de extinção daquela população através da esterilização. Era praticamente um pacote promocional: venda seus rins e fique estéril – o governo promove sua entrada no mundo moderno. Passo agora de “margens” indianas para “margens” brasileiras, de operações cirúrgicas para operações policiais. Como argumentou Asad, “o Estado não é um objeto fixo” (2004: 279). Subscrevendo a perspectiva analítica desenvolvida pela “antropologia das margens”, admito a existência de diferentes modalidades de pre- sença do Estado brasileiro nessas regiões e em relação às populações ‘marginais’. No que interessa à temática examinada neste texto, devo sublinhar que tanto a prefeitura da cidade do Rio de Janeiro, quanto os governos estadual e federal estão presentes nas favelas de formas variadas. Mas para construir a base de sustenta- ção de meu argumento central, faço uma opção: a presença do Estado nas favelas cariocas é trabalhada estritamente através da análise de práticas da polícia nesses territórios. Entendendo que a polícia é um dos pontos de apoio a partir dos quais se garante a “governamentalização” do Estado, ou seja, a existência do Estado na sua forma atual (Foucault 2004), sigo as pistas de Veena Das e Débora Poole (2004) para buscar desenvolver esse eixo analítico. Em 1997, o Instituto de Estudos da Religião (ISER) publicou os dados de uma pesquisa acerca da letalidade da ação policial no Rio de Janeiro. Coordenada por Ignacio Cano, atualmente pesquisador do Laboratório de Análises da Violência da UERJ, a pesquisa havia sido encomendada pela Comissão de Segurança Pú- blica e pela Comissão de Direitos Humanos da Assembléia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro 32 . Foram apresentados dados condizentes com a hipótese de que as premiações por bravura estavam incentivando os confrontos armados (apontando, inclusive, promoções de policiais que haviam cometido execuções de forma criminosa). 32 A demanda foi motivada pelo fato de ter se estabelecido - após uma série de matérias divulgadas pelo Jornal do Brasil (de 7 a 16 de abril de 1996) - uma ligação entre o aumento do número de mortos por “Autos de Resistência” e a gratificação por bravura instituída por decreto em novembro de 1995 (período em que Nilton Cerqueira ocupava o cargo de Secretário de Segurança do Estado do Rio de Janeiro). “No Estado do Rio de Janeiro, a Secretaria de Segurança Pública aplicou entre os anos de 1995 e 1998 um programa de “premiações por bravura”, concedidas preferencialmente a policiais envolvidos em ocorrências com resultado de morte de suspeitos. Essas premiações incrementavam a remuneração do agente em 50%, 75% e até 150% sobre o salário original” (Cano 2003).
  • 25. TEORIA SOCIEDADE nº 15.2 – julho-dezembro de 2007E162 Através de quadros comparativos sobre a atuação da polícia no “asfalto” e na favela 33 , também foi revelado que a incidência de mortos pela polícia nas favelas era seis vezes maior do que no “asfalto” e que a vitimização de policiais era maior nas intervenções no “asfalto” do que na favela: morria um policial a cada 75 inter- venções armadas com vítimas civis nas favelas, enquanto morria um policial a cada 35 ações armadas com vítimas civis no “asfalto”. A pesquisa demonstrou ainda que a comparação entre os índices de letalidade na favela e no “asfalto” indicava “uma clara intenção de matar por parte dos policiais nas suas intervenções nas áreas carentes da cidade”. Essa diferença entre a atuação da polícia no “asfalto” e na favela expressa claramente um dos resultados da aceitação de uma divisão da cidade do Rio de Janeiro em dois pólos social e geograficamente demarcados: Presumindo que se vivia de fato uma guerra que opunha morro e asfalto, favelados e cidadãos, bandidos e policiais, os partidários desta perspec- tiva aceitavam a violência policial em territórios dos e contra os grupos estigmatizados e assistiam passivos ao envolvimento de policiais militares em várias chacinas (Leite 2000: 75). Foi, portanto, através da leitura desse Rio de Janeiro que Leite (2000) ela- borou a noção de “metáfora da guerra”. Dando conta das entrelinhas embutidas nesta metáfora, o estudo fornece os elementos necessários para o entendimento das conexões estabelecidas entre a percepção de diferentes setores da socieda- de carioca e os projetos de políticas públicas apresentados na/para a cidade a partir de então. Leite recupera eventos e debates, formando uma cronologia dos principais episódios violentos ocorridos na primeira metade da década de 90 e a sua repercussão na cidade. As chacinas de Acari, Candelária e Vigário Geral as- sociam-se às brigas nos bailes funk, dos seqüestros, dos arrastões nas praias, dos confrontos entre facções rivais ou entre estas e a polícia para compor um novo ‘retrato’ do Rio de Janeiro. Dito de outro modo: as novas modalidades de violência presentes no Rio de Janeiro eram diretamente associadas às dinâmicas do tráfico de drogas; os terri- tórios das favelas eram identificados como focos irradiadores desta violência e as políticas públicas de segurança eram percebidas como ineficientes. Daí decorre o que Soares (1996) conceituou como “cultura do medo” – que, segundo Leite, for- maria a base para a redefinição das “relações dos cariocas com o território urbano e com seus concidadãos, alterando-lhes a sociabilidade” (Leite 2000). 33 Utilizo os mesmos termos empregados na publicação de divulgação da pesquisa em questão.
  • 26. 163QUANDO A EXCEÇÃO VIRA REGRA – Juliana Farias A construção da pauta de enfrentamento da violência era dividida, basica- mente, entre um grupo que “defendia a combinação de políticas de promoção de cidadania com alternativas eficientes no campo da segurança pública” e outro que “considerava que a situação excepcional da cidade – de ‘guerra’ – não admitia contemporizações com políticas de direitos humanos”. Diferentes setores da mídia, parte dos moradores da cidade do Rio de Janeiro (especialmente os pertencentes às camadas médias e abastadas) passaram a apoiar, portanto, o uso abusivo da força durante as ações policiais em favelas. Destaforma,portanto,consolidava-seumaestruturaquefuncionaria,aomesmo tempo, como incentivo e respaldo para um tratamento diferenciado dos moradores dasfavelascariocas.Nãosetratavadaelaboraçãodepropostaspolíticasquevisassem modificar a atuação de um Estado que não estaria conseguindo garantir os direitos da população. Pelo contrário: a cidade do Rio de Janeiro produzia, assim, a sedi- mentação de um modelo de “cidadania de geometria variável” – na qual os direitos são “eminentemente reversíveis e precários, podendo ser postos em dúvida a cada mudança na correlação de forças políticas”, de acordo com Lautier (1997). Bem distante da idéia de cidadania universal, este modelo coloca em questão as interpretações da “violência urbana” 34 no Rio de Janeiro realizadas a partir da leitura de um mal-funcionamento do Estado. Os moradores de favelas do Rio de Janeiro não estariam experimentando a “dimensão residual de cidadania” que configura a noção de “cidade escassa” desenvolvida por Carvalho (1995). Em um contexto de “cidadania de geometria variável”, a atuação do Estado difere de acordo com a posição econômica, social e política dos cidadãos, i.é, desenvolve-se sempre “em situação”. Nas ‘margens’, o Estado não estaria deixando de “cumprir suas obrigações” – elas apenas passavam a ser cumpridas de acordo com a perspectiva dominante naquele momento: as exigências por tomada de medidas emergenciais soavam mais alto que a aclamação por “um pacto estável e universalista”. Recorro, mais uma vez, aos dados divulgados pelo ISER em 1997. Entre as com- parações“asfalto”/favelatrazidaspelapesquisa,mechamoumuitaatençãoaqueestá relacionada aos “autos de resistência”: enquanto 37,4% dos casos acontecidos fora das favelas eram classificados como “autos de resistência”, 62% dos que ocorreram em favelas foram registrados desta forma. Destaco o exemplo do “auto de resistên- cia” por considerá-lo um tanto complexo e, por isso mesmo, “bom para pensar” a modalidade de presença do Estado nas favelas através da atuação da polícia. 34 Para as diferentes representações de “violência urbana” abrigadas sob esta noção, consultar Machado da Silva (2004).
  • 27. TEORIA SOCIEDADE nº 15.2 – julho-dezembro de 2007E164 Inicialmente regulamentado pela Ordem de Serviço “N”, n o 803, de 2 de outubro de 1969, da Superintendência da Polícia Judiciária, do antigo estado da Guanabara, o “auto de resistência” foi registrado pela primeira vez no dia 14 de novembro do mesmo ano 35 . Em dezembro de 1974, o conteúdo da Ordem de Ser- viço 803/69 foi ampliado pela Portaria “E”, n o 0030, do Secretário de Segurança Pública. De acordo com o juiz Sérgio Verani (1996), esta Portaria desenvolveu uma ilegalidade básica, pois estabelecia que o policial não poderia ser preso em flagrante nem indiciado. Verani destaca que: A preocupação fundamental da Portaria é com o esclarecimento, no inquérito, das ‘figuras penais consumadas ou tentadas pelo opositor durante a resistência’. E determina que o inquérito, com o auto de exa- me cadavérico e o atestado de óbito do opositor, seja remetido ‘ao Juízo competente para processar e julgar os crimes praticados pelo opositor’, com o fim de ‘permitir ao juízo apreciar e julgar extinta a punibilidade dos delitos cometidos ao enfrentar o policial’. Se o opositor não morrer, a autoridade deverá ‘Ordenar a lavratura do auto de prisão em flagrante para os que foram dominados e presos’ (1996: 37). Para o juiz, tal Portaria seria marcada por uma “absurda inconstitucionalida- de”, pois, através dela, “quem legisla para o policial que mata é o próprio Secretário de Segurança, de nada valendo o Código Penal, o Código de Processo Penal e a Constituição Federal” (Verani 1996: 37). Retomando uma questão relacionada à documentação do Estado apontada por Das e Poole (2004), o “auto de resistência” pode ser entendido como um exemplo concreto da manutenção de um processo de construção e reconstrução do Estado através das suas práticas de escrita. Das e Poole (2004) deixam claro que o problema da (i)legibilidade da docu- mentação do Estado é uma das bases de consolidação do controle estatal sobre populações, territórios e vidas. As antropólogas ressaltam que, nas “margens” por elas estudadas, a questão da origem da lei emerge não como o mito do Estado, mas na forma de homens cujas habilidades para representar o Estado ou para aplicar suas leis estão localizadas em uma disposição para se mover impunemente entre o que aparece na forma da lei e práticas extrajudiciais. Incursões violentas da polícia militar nas favelas cariocas continuam a aconte- cer de forma sistemática. A manutenção de políticas de segurança pública marcadas 35 O registro ocorreu após uma ação policial realizada por integrantes do Grupo Especial de Combate à Delinqüência em Geral – grupo que também havia sido formado em 1969 e ficou conhecido como “Grupo dos Onze Homens de Ouro” (Verani 1996).
  • 28. 165QUANDO A EXCEÇÃO VIRA REGRA – Juliana Farias por estas ações vem sendo questionada e denunciada por diferentes organizações de Direitos Humanos nacionais e internacionais. Alguns casos estão registrados em relatórios sobre execução sumária no Brasil, ou sobre Direitos Humanos em geral (Justiça Global 2002; 2003), mas a polícia carioca fez por onde merecer um relatório específico sobre ela – o “Relatório Rio: Violência Policial e Insegurança Pública”, lançado em 2004, também pela ONG Justiça Global 36 . No final de 2003, a Anistia Internacional produziu o relatório “Rio de Janeiro 2003: Candelária e Vigário Geral, 10 anos depois”. Se a chacina de Vigário Geral aparece de forma explícita, o tempo marcado no título faz uma referência implícita à chacina do Borel, que é descrita e analisada no interior do relatório. Entretanto, o que eu gostaria de destacar agora não são os nomes das favelas, nem a visibili- dade conquistada por cada caso contido no relatório. Quero chamar atenção para o trecho “10 anos depois”. Este trecho que compõe o título do relatório da Anistia Internacional sublinha a continuidade do que considera um “processo de extermínio” dessas populações – um processo que vem sendo desempenhado por alguns, legitimado por outros, deixado de lado por muitos e denunciado por poucos. Enquanto alguns policiais realizam incursões violentas nas favelas, outros já estão na delegacia registrando mais um “auto de resistência”. Enquanto alguns policiais estão na delegacia re- gistrando mais um “auto de resistência”, outros policiais estão sendo absolvidos dentro do Fórum do Rio de Janeiro por júri popular. Enquanto alguns represen- tantes da “sociedade civil” absolvem os policiais responsáveis pelas chacinas no Fórum do Rio de Janeiro, outros representantes da “sociedade civil” estão em suas casas escrevendo mensagens virtuais como: Cada povo tem a polícia que merece, ou seja, povo abusado, polícia abusada. Não é isso? 37 Eu sou fã da bope 38 porque eu quero ver todos esse bandidos mortos no valão se do nem piedade!!! E quando prender, mata logo (sic). 36 Vale destacar também as denúncias apresentadas no relatório “Eles entram atirando”: Policiamento de comunidades socialmente excluídas no Brasil, produzido pela Anistia Internacional em 2005. 37 Os comentários apresentados neste trecho foram retirados de comunidades virtuais do Orkut. Este levantamento foi realizado por Larissa Accioly e Gabriela Macedo, no âmbito do projeto de pesquisa “Cidadania e Imagem” (Oficina de Ensino e Pesquisa em Ciências Sociais, Núcleo de Antropologia e Imagem – NAI/UERJ). Para uma abordagem da relação entre comunidades do Orkut e discriminação de moradores de favelas, consultar Siqueira (2006). 38 BOPE é a sigla que corresponde ao Batalhão de Operações Policiais Especiais da Polícia Militar.
  • 29. TEORIA SOCIEDADE nº 15.2 – julho-dezembro de 2007E166 Às vezes, a participação no processo se dá através da acumulação de funções: o mesmo policial que realiza a incursão violenta, acessa um computador, cria um “grupo de discussão” ou uma “comunidade virtual” e anuncia: Olá pessoal, para a alegria de vocês, posso dizer que só ontem lá no Alemão eu contei 28 defuntos. Tá bom ou querem mais? Não foi o número que a mídia está apresentando, eu contei 28! Acho até que tiveram mais uns dois que tentaram socorrer mas que já estão sentados no colo do capeta! E uma representante da “sociedade civil” responde: Eu como cidadã brasileira e agora mais do que nunca fã, sinto-me muito orgulhosa e segura... espero que continuem guerreiros e que deus ilumine sempre o caminho de vocês... e que continuem sempre tendo vitória sobre a morte... isso prova que vocês não estão de bobeira e que defendem por puro amor... ISSO QUE É LIMPEZA [...] Afinal de contas, morreram quantos??? [...] Pra cima deles, Larga o Aço!!! Esta mesma representante da sociedade civil pode um dia fazer parte do júri popular e votar contra a condenação de um policial que assassinou um morador de favela. Enfim, este circuito que acabei de descrever é apenas uma versão bem resumida da engrenagem que mantém o funcionamento do “processo de exter- mínio” dos moradores de favelas da cidade do Rio de Janeiro. Entendo que, em uma engrenagem como esta, se articulam “micro-poderes” e “biopoder”, fazendo dos favelados uma população matável. 3. “TRANQÜILIZAR É TAREFA DE OUTROS” Neste artigo, apresento apenas um dos enquadramentos possíveis do período mais recente do processo de construção social do lugar das favelas e de seus moradores na cidade do Rio de Janeiro, no qual é possível relacionar este “tratamento espe- cial”, ao qual venho me referindo, com as intervenções públicas e também com outras formas de exercício do poder. Gostaria de finalizar, lembrando que Roberto Machado, em sua introdução à coletânea de Foucault intitulada “Microfísica do Poder”, reforça a idéia de que “os poderes se exercem em níveis variados e em pontos diferentes da rede social e [que] neste complexo os micro-poderes existem integrados ou não ao Estado” (Machado 2004: XII). Lidamos, portanto, com formas de exercício do poder que diferem daquelas exercidas pelo Estado, mas a elas se articulam de maneiras variadas – sendo inclusive “indispensáveis a sua
  • 30. 167QUANDO A EXCEÇÃO VIRA REGRA – Juliana Farias sustentação e atuação eficaz”, como esclarece Machado. Trata-se de um aspecto fundamental do legado de Foucault: ter tornado evidente a existência de formas díspares de exercício do poder, relacionadas a múltiplas áreas de ação, espalhadas por espaços circunscritos, enraizadas em micro-relações sociais. O caminho apontado pela linha da “antropologia das margens” é apenas uma das possibilidades de utilização das ferramentas antropológicas para tentarmos enxergar nas práticas cotidianas essas formas enraizadas de exercício do poder capazes de transformar as exceções em regra. Através desta via, busco maneiras de investigar o processo de transformação dos moradores de favelas em uma po- pulação “matável” – compartilhando a idéia de que ainda seja necessário pensar em direitos básicos/fundamentais quando nos propomos a abordar a temática dos Direitos Humanos no Brasil. Nesse contexto, onde o direito à vida de deter- minados grupos populacionais está em jogo, me posiciono a partir de um dos ensinamentos de Clifford Geertz em Nova luz sobre a antropologia: “tranqüilizar é tarefa de outros”. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AGAMBEM, Giorgio. 2002. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. Belo Horizonte: Editora UFMG. ALVAREZ, Sonia, DAGNINO, Evelina e ESCOBAR, Arturo. (org.). 2000. Cultura e política nos movi- mentos sociais latino-americanos: novas leituras. Belo Horizonte: EdUFMG. ANISTIA INTERNACIONAL. 2003. Rio de Janeiro: Candelária e Vigário Geral, 10 anos depois. Londres: Amnesty International Publications. _____. 2005. “Eles entram atirando”: Policiamento de comunidades socialmente excluídas no Brasil. Londres: Amnesty International Publications. APPADURAI, Arjun. 1996. Modernity at large: cultural dimensions of Globalization. Minneapolis: University of Minnesota Press. ASAD, Talal. 2004. “Where are the Margins of the State?”. In: V. Das e D. Poole (orgs.) Anthropology in the Margins of the State. New Mexico: School of American Research Press. BAIERLE, Sérgio G. 1992. Um novo princípio ético político: prática social e sujeito nos movimentos populares urbanos em Porto Alegre nos anos 80. São Paulo: Ed.UNICAMP. CANO, Ignacio. 1997. Letalidade da Ação Policial no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: ISER. _____. 2003. “Execuções sumárias no Brasil: o uso da força pelos agentes do Estado”. In: JUSTIÇA GLOBAL. Execuções sumárias no Brasil – 1997/2003. Rio de Janeiro: Justiça Global/Núcleo de Estudos Negros.
  • 31. TEORIA SOCIEDADE nº 15.2 – julho-dezembro de 2007E168 CARVALHO, Maria Alice. 1995. “Cidade escassa e violência urbana”. In: Violência e participação política no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: IUPERJ. CASTELLS, Manuel. 1999. A sociedade em rede. São Paulo: Paz e Terra. CATELA, Ludmila. 2001. Situação-limite e memória: a reconstrução do mundo dos familiares de desaparecidos da Argentina. São Paulo: Hucitec: Anpocs. CHAVES, Christine de Alencar. 2002. “A Marcha Nacional dos sem-terra: estudo de um ritual político”. In: M. Peirano (Org). O dito e o feito: ensaios de antropologia dos rituais. Rio de Janeiro: Relume- Dumará: Núcleo de Antropologia da Política/UFRJ. COHEN, Lawrence. 2004. “Operability: Surgery at the Margin of the State”. In: V. Das e D. Poole (orgs.) Anthropology in the Margins of the State. New Mexico: School of American Research Press. DAGNINO, Evelina. 2000. “Cultura, cidadania e democracia. A tranformação dos discursos e práticas na esquerda latino-americana”. In: ALVAREZ, Sonia, DAGNINO, Evelina e ESCOBAR, Arturo. (org.) 2000. Cultura e política nos movimentos sociais latino-americanos: novas leituras. Belo Horizonte: EdUFMG. DAMATTA, Roberto. 1981. Carnavais, malandros e heróis: para uma sociologia do dilema brasileiro. Rio de Janeiro: Zahar Editores. DAS, Veena. 2004. “The Signature of the State: The Paradox of Ilegibility”. In: V. Das e D. Poole (orgs.) Anthropology in the Margins of the State. New Mexico: School of American Research Press. _____.; POOLE, Deborah. 2004. “State and its Margins: Comparative ethnographies”. V. Das e D. Poole (orgs.) Anthropology in the Margins of the State. New Mexico: School of American Research Press. FERRAZ, Joana D`arc Fernandes. 2005. “Crimes Policiais de Execução Sumária no Rio de Janeiro: um estudo de caso sobre a chacina de Vigário Geral, da Candelária e de Acari”. URBANITAS – Revista de Antropologia Urbana. Ano 2, Volume 2, número 1. Disponível on-line via www em: http://www. osurbanitas.org/. Capturado em 20 jul. 2007. FOUCAULT, Michel. 2004. Microfísica do Poder. 20 a ed. Rio de Janeiro: Edições Graal. _____. 2005a. História da Loucura. 8 a ed. São Paulo: Perspectiva. _____. 2005b. Em defesa da sociedade: curso no Collège de France (1975-1976). 1 a edição, 4 a tiragem. São Paulo: Martins Fontes. _____. 2007. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. 33 a ed. Petrópolis: Vozes. FRIDMAN, Luis Carlos. 2008. Morte e vida favelada. IN: MACHADO DA SILVA, L.A. (org.). Vida sob cerco: violência e rotina nas favelas do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: FAPERJ/Nova Fronteira. GEERTZ, Clifford. 2001. Nova luz sobre a antropologia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. GOHN, Maria da Glória. 1997. Teorias dos movimentos sociais: paradigmas clássicos e contemporâneos. São Paulo: Loyola. JUSTIÇA GLOBAL. 2002. Direitos Humanos no Brasil 2002. Relatório Anual do Centro de Justiça Global. Rio de Janeiro: Justiça Global. _____. 2003. Execuções sumárias no Brasil – 1997/2003. Rio de Janeiro: Justiça Global/Núcleo de Estudos Negros. _____. 2004. Relatório RIO: Violência Policial e Insegurança Pública. RJ: Justiça Global.
  • 32. 169QUANDO A EXCEÇÃO VIRA REGRA – Juliana Farias LANES, Patrícia. 2003. “Pedir justiça é pra quem pode?” Disponível on line via www em: http://www. novae.inf.br/. Capturado em 12 maio 2003. LAUTIER, Bruno. 1997. “Os amores tumultuados entre o Estado e a economia informal”. In: L.A. Machado da Silva (Org.) Contemporaneidade e Educação: Revista Semestral de Ciências Sociais e Educação, Ano II, número 1. Rio de Janeiro: Instituto da Cultura e Educação Continuada (IEC). LEITE, Márcia Pereira. 2000. “Entre o individualismo e a solidariedade: dilemas da política e da cidadania no Rio de Janeiro”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 15, n. 44. _____. 2006. “Rituals in politics: redefining collective action, languages and territories”. Trabalho apresentado no workshop Religion and Dislocations: Comparative Studies, Paulo Freire Program, VUA/UERJ, Rio de Janeiro. Mimeo. _____. 2008. Para além da metáfora da guerra: violência, cidadania, religião e ação coletiva no Rio de Janeiro. SP: Attar Editorial/CNPq-Pronex. (no prelo). _____.; FARIAS, Juliana. 2008. “Rituais e política: manifestações contra violência no espaço público”. In: S. Carneiro (org.) Cidade: olhares e trajetórias. Rio de Janeiro: FAPERJ/Garamond. (no prelo). LIMA, Nísia Verônica Trindade. 1989. O Movimento de Favelados do Rio de Janeiro: políticas do Estado e lutas sociais (1954-1973). Rio de Janeiro: Dissertação de Mestrado em Ciência Política, IUPERJ. MACHADO, Roberto. 2004. “Introdução. Por uma genealogia do poder”. In: M. Foucault. Microfísica do Poder. 20 a ed. Rio de Janeiro: Edições Graal. MACHADO DA SILVA, Luiz Antonio. 2002. “A continuidade do “problema favela””. In: L. Lippi Oliveira. (Org.). Cidade: história e desafios. Rio de Janeiro: FGV. _____. 2004. “Sociabilidade violenta: uma dificuldade a mais para a ação coletiva nas favelas”. In: I. Silva (org.) Rio: a democracia vista de baixo. Rio de Janeiro: IBASE. _____.; LEITE, Márcia Pereira e FRIDMAN, Luís Carlos. 2005. “Matar, morrer, civilizar: o problema da “segurança pública””. In: MAPAS: monitoramento ativo da participação da sociedade. Rio de Janeiro: IBASE, Ford Foundation, ActionAid. _____.; ZICCARDI, Alicia. 1993. “Movimentos sociais hoje: questões teóricas e estudos de caso”. In: ANPOCS (1993). Movimentos sociais urbanos, minorias étnicas e outros estudos. Brasília: ANPOCS (Série Ciências Sociais Hoje, vol. 2). RIBEIRO, Gustavo Lins. 2000. “Política cibercultural: ativismo político à distância na comunidade transnacional imaginada-virtual”. In: ALVAREZ, Sonia, DAGNINO, Evelina e ESCOBAR, Arturo. (org.) 2000. Cultura e política nos movimentos sociais latino-americanos: novas leituras. Belo Horizonte: EdUFMG. SCHERER-WARREN, Ilse e KRISCHKE, Paulo. (org.) 1987. Uma revolução no cotidiano? Os novos movimentos sociais na América do Sul. São Paulo: Brasiliense. SIQUEIRA, Raíza. 2006. “Cabeça de Porco ou Erro de Perspectiva Analítica? Uma breve discussão sobre a temática da violência”. Trabalho de conclusão de curso. Rio de Janeiro: IUPERJ. Mimeo. SOARES, L. E. et al. 1996. Violência e política no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Relume-Dumará/ ISER. VERANI, Sérgio. 1996. Assassinatos em Nome da Lei [Uma Prática Ideológica do Direito Penal]. Rio de Janeiro: Alderbarã.
  • 33. TEORIA SOCIEDADE nº 15.2 – julho-dezembro de 2007E170 DOCUMENTÁRIO “Entre muros e favelas”. 2005. Direção de Susanne Dzeik, Kirsten Wagenschein e Márcio Jerônimo. Brasil-Alemanha, 60 min, cor. JORNAL Folha de S. Paulo, edição de 16 de abril de 2005.
  • 34. 171QUANDO A EXCEÇÃO VIRA REGRA – Juliana Farias ABSTRACT In the first part of this article, I focus on the two first years action of a social movement which fight against police violence in favelas in Rio de Janeiro, highlighting situations that one human rights language is activated, translated and reconfigured – offering other elements to the actualization process of the groups protest vocabulary. In the second part, aiming to go deeper into the police violence in favelas issue, I articulate theoretical instruments and empirical elements to help me in the interpretation of the construction process of mechanisms which make possible a frame on the slums dwellers like a social group who needs “special care” – process that transformed the entire group of favelas dwellers into a “killable” population. KEY WORDS favelas police violence human rights colective action RECEBIDO EM maio de 2008 APROVADO EM novembro de 2008 JULIANA FARIAS Mestre em Ciências Sociais pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – PPCIS/UERJ.