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Balneário
de Constantino Mendes Alves
“Creio que tenho prova suficiente de que falo a verdade: a pobreza”
Sócrates
Personagens:
Dona Cecília
Zé Manel
Serafina
Isabelita
Agente de sondagens
Agente da judiciária
Balneário público
Tudo escuro. Alguém tenta sintonizar um rádio. Ainda no escuro ouve-se uma
notícia:
“A babysitter dos três filhos de Michael Jackson, Grace Rwaramba, revelou as
intimidades do «rei da pop» numa entrevista ao The Times, explicando que o cantor era
viciado em comprimidos e hipocondríaco, o que a obrigou a fazer-lhe, constantemente,
lavagens ao estômago.
Rwaramba também revelou que, logo após a morte do patrão, a mãe do cantor ligou-
lhe, para perguntar onde Michael escondia o dinheiro dentro de casa, sem sequer
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permitir que a ama falasse com as crianças. «Eu disse-lhe para ver nos sacos de lixo e
debaixo dos tapetes, mas dá para acreditar nisto?! Eles perderam Michael há poucas
horas e ligam a perguntar de dinheiro?!», criticou.”
A meio da notícia a luz vai acendendo, vê-se um balneário ( o cenário deve ser todo
branco), uma porta para o balneário dos homens e uma porta para o balneário das
mulheres, no meio um balcão onde está uma funcionária ouvindo a notícia de um
pequeno rádio. Do lado da porta dos homens está um homem (José Manuel 55 anos)
em tronco nu, fazendo exercícios de ginástica, está em boa forma, um pouco
encarniçado na cara (como amassado).
Dona Cecília ( sem olhar para ele)– Ó Zé, ouviste? Morreu há dois dias e já estão de
volta do dinheiro.
Zé Manel– Eu cá não sei nada disso. Micaelo, quem era esse? Ah o do pavilhão
Atlântico…Aquilo encheu, ina pá, foi só moedinhas…
Dona Cecília- Não é esse, esse era o Micael Carreira. Este era dos Estado Unidos, uma
Super estrela do pop. Ó Zé Manuel, olha o que estás a fazer, não podes estar nesses
propósitos no balneário, já te disse que aqui há regras, e quem as não cumpre não pode
usufruir dos serviços comunitários, isto é um espaço público e portanto eu não posso
permitir…
Zé Manel – Pronto, pronto, vou já vestir a T-shirt, onde é que eu a pus?
Dona Cecília – Deve estar lá para dentro. Vai lá buscá-la (Zé Manel vai lá para dentro)
E vê lá como deixas isso aí dentro, não quero nenhuma sujidade, senão tens de te haver
comigo, e eu não sou para brincadeiras. Sabes que eu aqui não permito brincadeiras, isto
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é um espaço público…( Zé Manel chega com uma t-shirt com o nome Continente
impresso) isso mesmo, respeitinho é que é bonito. Olha lá ó Ze Manel, onde é que foste
buscar essa t-shirt?
Zé Manel – Deram-ma no Continente da Gare do Oriente, para eu não fazer ondas e ir
pregar noutra freguesia, foi assim que eles disseram.
Dona Cecília– Ah pois devem ter dito, aquilo é um supermercado, um lugar de trocas
comerciais, não é para a pedincha.
Entra isabelita
Isabelita(22 anos)– Ora viva quem está e muito obrigado pelos bons dias que vão me
dar…
Zé Manel (tem um voz fininha) – Olá isabelita! Bom dia
Dona Cecília – Bons dias, Ora quem vem lá. Vens com as pilhas todas carregadas?
Olha que isto não é a praça do comércio…
Isabelita- Eu sei o regulamento não permite…eu não quero chatices, venho cá só dar
uma banhoca . Olá ó Zé manel, já me estava a esquecer de ti, como vão esses cornos,
continuam a dar luzinhas?
Dona Cecília – Eu não quero cá esses palavreados, ó Isabelita, eu já te disse…
Isabelita - Pronto, fecho já a boquita, não problems, eu não quero problemas
Dona Cecília – Pronto assim está bem. Anda cá para eu registar o teu número, tens o
cartão contigo?
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Isabelita- Ora aqui está, na melhor carteira do mundo , no soutiã das mamas, Oh
desculpe dona Cecília, o meu memorando estava já sair.
Dona Cecília – Bem dá-me lá esse número. Onde é que isto andou, cheira a alho.
Isabelita- Ah pois! A malta lá em Santos, faltou-nos a faca e eu utilizei o dispositivo
camarário para cortar o alho, foram cá umas salsichas, ó Zé Manel, aquilo parecia o
Tavares Rico.
Zé Manel – um bocado encolhido tímido- Ah a malta na Estrela também se diverte, às
vezes fazemos patuscadas…
Isabelita – Eh pá a vida da rua é cá uma festa, malta desta já não há…
Dona Cecília- Queres toalha?
Isabelita – Sim claro, eu hoje não trouxe guardanapos.
Entra um travesti.
Serafina – Olá a toda a gente, onde é que eu posso tomar banho?
Isabelita- Olha a Serafina. É pá é só escolheres. Se não apresentares o bi até podes ir às
mulheres.
Serafina- Ah! Claro é onde me sinto bem.
Dona Cecília – Ó Serafim, tu civilmente és um homem, mas como estás nessa festa
deixo-te ir ao das mulheres, mas fechas a porta não quero cá poucas vergonhas. Depois
vem cá dar o número. Tá sempre com pressa, dou-lhe sempre a primazia. Pronto
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Isabelita, toma lá um sabonete, não dois, dá uma ao Serafim, à Serafina, e duas toalhas,
com as pressas até se esqueceu…
Isabelita- Ok. Dona Cecília, daqui um pouco vou ficar num brinco
Dona Cecília- Vá lá, que eu contigo é que não brinco.
Isabelita vai para dentro.
Dona Cecília- e tu Zé manel, como vai ser a tua vida?
Zé Manel – Estou aqui a arrumar o malote, A Dona Cecilia não se importa de guardar-
me os meus haveres?
Dona Cecília- Ó Zé Manel já te disse uma série de vezes, os cacifos são para uso do
público, dou-te uma chavinha e pronto , podes ir à tua vida. Como vai ser o teu dia?
Zé Manel – Vou ajudar o Dias nos Prazeres, ele diz-me que me dá uma gorja se eu o
ajudar a abrir uma cova, depois vou até ao Príncipe Real ao meio-dia, arrumar os
carritos.
Dona Cecília- Mas essa Zona não era do Roberto? Vê lá onde te metes, isso é malta dos
estupefacientes, e isso é gente que não brinca.
Ouve-se um relinchar de cavalo vindo do balneário das mulheres (Isabelita)
Isabelita (fora) – Hiiiiiiiiiiii! Somos os cavalos de corrida (imita a canção)
Dona Cecília – (fala alto para is) – Pensei que já tinhas feito uma desintoxicação, não
tens tomado a tua metadona.
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Isabelita (lá de dentro) – Metadona! I love Metadona. Com a metadona até posso lavar
a …. Desculpe lá Dona Cecília. Só estou a brincar. Não, deixei-me disso…
Dona Cecília – Pronto Zé Manel, vai lá à tua vida. Olha diz-me lá onde tens dormido?
Zé Manel – Ali na Possidónio há lá um prédio fechado pela câmara, somos três a lá
dormir.
Dona Cecília- Não está cá quem ouviu isso, Ó Zé Manel com a câmara ninguém brinca,
já te disse que com a instituição autárquica ninguém deve brincar, A autarquia serve os
seus munícipes, há deveres e direitos, todos temos de cumprir as regras. Eu sou uma
funcionária Municipal não posso ouvir coisas dessas, com a minha ética profissional
Eu sou obrigada a denunciar casos desses, podes até perder os teus direitos, por
exemplo cancelarmos o teu cartão de utente do balneário. Está a entender? Faço-me
entender?
Zé Manel – Ó Dona Cecília aquilo é por pouco tempo, já ando de olho num quartito
aqui em Alcântara, A dona Joaquina, já tem 95 anos e já quase não se mexe, aquilo é
uma renda em conta, com uns recaditos que eu faça, mais três horas a arrumar, umas
gorjas do Dias, já deve dar, aquilo é uma renda baratinha.
Dona Cecília – Assim é que é falar…
Zé Manel - …/…A gente gosta de ter um cantinho não é? Nunca tive muita sorte, os
meus pais morreram novos, a minha irmã mais velha lá foi para a América, criei-me na
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rua, trabalhei muito tempo nas obras, mas depois do acidente não dá pra estar muito
tempo a fazer força…
Dona Cecília- Pois a sorte, é só para alguns, e há os com sorte a mais, mas esses sabes
o que te digo, engoliram o totobola e não dão conta, quer dizer alguns não querem dar
conta…mas isso é outro rosário…
Zé Manel - Sabe , eu sempre quis uma casa, ter família…
Dona Cecília – Eu sei, eu sei, o que toda a gente quer, não penses que és o único, o que
toda a gente quer, mas sabes…nem todos podem, há quem possa ter filhos e não quer, e
há quem queira e não possa, neste mundo os homens inventara um sarilho tão grande
que nem Deus se cá viesse agora resolvia em sete dias, como da outra vez, da Criação,
quando distribuiu em 7 dias o totoloto a cada um. Por falar em deus, ouve lá ó zm tu és
religioso?
Zé Manel - Quer dizer sou um bocado…
Dona Cecília- Sabes o que eu te digo, agarra nesse bocado que tem fé e atira-te para a
frente. Ainda estás em forma, podes fazer o que quiseres da tua vida. Vá atira-te de
mergulho.
Zé Manel - A dona Cecília é cá uma conselheira, até podia ser a minha madri…
Dona Cecília- Eh pá! O que aí vai, casamento? vai com calma, primeiro tens que
conseguires as condições. E já tens namorada?
zm (embaraçado) – Já a tenho debaixo de olho.
Dona Cecília- Tá bem! Tá bem, Olha cuidado com o olho e o com o que ele
olha…estás a perceber, não te compliques ainda mais… os tempos…
Isabelita – (vem de dentro com a toalha à cintura) – (vem a dançar cantarolando uma
canção reggae) (Zé Manel ri-se, timidamente bate palmas ao som do ritmo)
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Dona Cecília – Poucas danças aqui dentro, o regulamento diz…
Isabelita- Ó dona Cecília, eu já sei o que o regulamento diz…, mas diz mal, porque a
vida são dois dias, o Carnaval são três.
Dona Cecília – Não estamos no Carnaval e além disso…
Isabelita – Mas o Carnaval é sempre que um individuo quiser…
Dona Cecília- Isso diz-se do Natal, porque devemos ser solidários com os outros todo o
ano e…
Isabelita – Ó Dona Cecília, então o Carnaval também não é preciso todo o ano… ainda
aí gente com umas trombas, sentados em cada BMW, e jipes que até parecem do planeta
Neptuno, aquele que me parece é cinzento, o mais escuro, pois, que eu ainda cá tenho o
7ºano.
Dona Cecília – E devias ter continuado a estudar, sabes que estás em falta com a
sociedade, com o estado, devias frequentar a escola até ao 9ºano…
Isabelita – Sabe ó Dona Cecília, eu até gostava da cena de estudar, mas um dia ia para a
escola e atravessou-se-me o cavalo, e a partir daí fiquei a galope, até que me
convenceram da Madona…
Dona Cecília- Da metadona, queres dizer. E agora fizeste muito bem, estavas a dar
cabo de ti.
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Zé Manel - Ó gente vou andando, o Dias já deve estar à minha espera, Adeus Dona
Cecília, adeus isabelita (faz-lhe um sorriso)
Isabelita-. Adeus zm (zm sai) Até que é um gajo porreiro este zm.
Dona Cecília (vai para o balcão) – Deixaste tudo limpo?
Isabelita – Tudo limpinho, como um palácio, olhe como o palácio da Ajuda.
Dona Cecília- Ah! Dizes bem a verdade isto é mais que o palácio da Ajuda. Precisas de
alguma coisa?
Isabelita - Ó dona Cecília… precisava que me orientasse uns tampasses, esta noite não
fui despejar os caixotes do restaurante, e fiquei sem os habituais trocos, tá ver…
Dona Cecília – Isto pode ser o palácio da Ajuda, mas sabes que é do regulamento…
Isabelita- Eu sei, é só por dois dias…
Dona Cecília- Deixa lá eu arranjo-te qualquer coisa, há por aí umas coisitas dessas
(procura no balcão) mas diz-me lá se não foste ao restaurante o que foste fazer?
Isabelita – A malta de Santos ficámos a ver o tributo ao Michael Jackson, ali na montra
do café Bagdad, tá ver…coitadinho, aquilo é que era uma estrela…
Serafina – (vai entrando com um turbante como toalha)
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Pois, o que eu chorei mais as minhas amigas, fomos até pôr uma velinha na embaixada
americana…
Dona Cecília – Pois mas deixou 500 milhões de dívidas, aquilo é que era desorientação.
Tanto tempo que demoraste?
Serafina – Estive a fazer manicura nos pés, ora veja lá isto.
Isabelita- Um trabalho de profissional, muito bem, até podes concorrer às misses.
Serafina – Nada disso, eu hoje vou a um casting.
Dona Cecília – Ora bem, vejam lá quem, e onde é esse casting?
Serafina – é no Politeama, para o espectáculo da Gaiola das loucas
Dona Cecília – Adequados, ora vejam lá bem alguém a fazer por si. Estás a ver estes
exemplos Isabelita, precisas melhorar a tua auto estima…
Serafina- O cabelo já deve estar seco, tome lá dona Cecília, ainda tenho um caminho
longo a pé.
Dona Cecília- Vai lá, e felicidades, ou parte uma perna ou lá com se diz.
Isabelita- Merda, é merda que se diz
Dona Cecília - Isabelita, cuidado com a linguagem
Serafina- Adeus, au revoir!
Isabelita – Good bye my love good bye!
Dona Cecília- Fora daqui para fora vá, vá deixa-me trabalhar
Isabelita – Já vou dona Cecília, ainda tenho de fazer um penteado. Oh dona Cecília já
agora queria perguntar-lhe uma coisa…
Dona Cecília- …Diz lá, o que te apoquenta?
Isabelita – Ó Dona Cecília, é uma coisa um bocado burrocrática.
Dona Cecília- Não é burrocrática que se diz mas burocrática
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Isabelita – Isso, mais burro menos burro, eu é que estou a ficar uma ganda burra com
isto…
Dona Cecília- Diz lá, o que queres saber?
Isabelita – O que são recibos verdes?
Dona Cecília – Recibos verdes, o que é que andas a tramar?
Isabelita- Não, é uma cena que apareceu aí pra ver se ganho uns trocos…
Dona Cecília – Bem, recibos verdes, são recibos dessa cor que alguém passa quando
presta um serviço a um empregador ou contratante, mas o empregado não tem qualquer
contrato com ele, estás a perceber, é um empregado independente, que faz um serviço
aqui, outro ali…
Isabelita- É isso mesmo, um trabalhador independente, é isso mesmo que eu quero,
livre como um passarinho…
Dona Cecília – Boa tem vantagens e desvantagens, não ficas obrigada a um contrato
mas não tens a protecção de emprego. Ah! E tens de estar registada nas Finanças…
Isabelita- Eh pá! Isso é um bocado complicado aqui pra os meus fusíveis.
Dona Cecília – Não é nada! Eu posso ajudar-te, mas o que queres fazer? O que te deu
na cabeça, agora queres trabalhar?
Isabelita- É a utopia da minha vida, tá a ver um ganda arco-íris no meu horizonte. É
uma cena dos festivais rock, estão a pedir ajudantes, pra uma cena de carregar e
descarregar material sound and light, montar palcos nos festivais aí, a gente até pode
pedir autógrafos aos Mooonspell, está a ver é uma cena super- fixe
Dona Cecília – Vê lá onde te metes, não te ponhas outra vez nas drogas
Isabelita – Não, nada, eu agora sou só Metadona, estou completamente clean, isso era
outros tempos, quando a malta andava aí perdida. Agora tenho cenas fixes, tenho poisos
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certos e malta 100%, como aqui no balneário, a dona cecília também é muito fixe, é
como uma mãe…
Dona Cecília- Pois sou como uma mãe, e não quero que vos aconteça nenhum mal,
ouve lá ó Isabelita, ainda tens família?
Isabelita – Nada, havia um tio, mas gripou do álcool, está a fazer barro ali no cemitério
de Benfica, há dois anos.
Dona Cecília – Os teus pais morreram também, não foi?
Isabelita – Quando eu era pequena, morreram queimados num incêndio lá em casa, eu
estive num internato, mas aquilo era uma merda das grandes e saltei cá para fora, pra
rua, onde as andorinhas fazem a Primavera, freedom, até agora.
Dona Cecília – Vocês têm cá cada vida, andam pra aí desamparados…
Isabelita – Mas a gente tem a dc, que a gente gosta muito de si e desta cena do
balneário, aqui tá-se muito bem
Dona Cecília- Pois! Vocês bem precisam, mas também têm de merecê-lo, olha que eu
não sou de facilitismos.
Isabelita – Tá bem! Não é preciso fazer séria, a gente já sabe essa lição
Voz off – correio! dc corre para fora
Isabelita- Já vou também, adeus. (penteia-se ao espelho com um risco ao meio). Isto
hoje vai ser mesmo assim, um penteado todo à gótico.
Dona Cecília traz uma carta.
Dona Cecília – que é lá isto?
Isabelita- Novidades, algum candidato?
Dona Cecília- Não, nada disso, é da câmara. Estão a pedir um inventário e um relatório,
(lê) “como forma de avaliar despesas e encargos, equacionando no futuro a
possibilidade de encerramento de alguns desses estabelecimentos…
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Isabelita- É pá, querem fechar o lavadouro?
Dona Cecília- sei lá!
Apaga-se a luz
Acto II
Dona Cecília está só, começa a arrumar o balneário
Dona Cecília – Vai apanhando toalhas que estão penduradas ao longo da largura do
palco.
A máquina de secar outra vez avariada e não enviam ninguém para reparar, contenção
de custos. Será que estes políticos compreendem a importância de um balneário junto
desta população empobrecida? Quanto custará a manutenção de um serviço destes?
Menos com certeza que os 40 seguranças do ex- administrador daquele tal banco…
Não deve faltar muito para que encerrem isto, o engenheiro tinha má cara, não vem aí
coisa boa. E o que vai ser desta gente? São umas crianças, sem ninguém a olhar por
eles… e para não falar da salubridade desta gente, ficam para aí a criar bicho… o que se
fez por esta gente, e agora isto.
E o que vai ser de mim, vou para supranumerária, isso é mais que certo, daí é um passo
para me despedirem. 48 anos. Aonde eu vou parar? A minha mãe, velhita, mal se mexe,
uma reforma de invalidez, quase nada, mais o que eu ganho, a coisa ficava para as
despesas principais. O meu curso de dactilografia, que posso fazer agora com ele?
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Voz da Isabelita lá de dentro – a água está a ficar fria! Gaita, mais vale ir lavar o
cabedal ali no fontanário em frente.
Dona Cecília – Esta semana não há mais gasóleo, lavem-se como puderem
Dona Cecília – Isto está cada vez pior, e sabonetes só dão para dois dias, eu não sei o
que se passa com esta gente da câmara. 23 anos de funcionalismo público, é para rir,
“Não há melhor funcionária que a Dona Cecília para o lugar que ocupa!” que me
interessa a mim elogios desses. Nunca faltou nada aqui no balneário de Alcântara. 23
anos a cumprir o regulamento e nenhuma falta de respeito, com a Dona Cecília nunca
ninguém brincou, até esses de tatuagens nos braços, alguns até com cruzes suásticas nos
braços, nunca ninguém pisou o risco, Ah ! é que comigo ninguém brinca. Alguns são
coitados, perderam a família, têm maleitas, bom a gente ajuda, temos compaixão,
educamo-los, mostra-se-lhes um caminho, agora má educações, vícios e outras
deformidades e pecados, ah! Têm que me ouvir, e eu sei dar sermões. Uma vez
apareceu-me aí um negro, não é por ser negro, que eu respeito toda a gente, mas vá lá o
caraças do negro era mau, mau como um branco qualquer, bandido, eu percebi-lhe logo
pela pinta, o olhar de um lado para outro a maneira de mexer em objectos, pronto, mal
lhe tirei os olhos de cima desapareceu um relógio ao Américo, coitado coxo, sempre a
arrastar a perna. “Ó dona Cecília, por acaso, VExª, tratava-me com todo o respeito, não
viu um relógio Cauny que estava, penso eu, na estante do lavabo…” eu percebi logo,
fez-se-me cá uma luz, foi o malandreco do preto! Eu por acaso dava uma boa policial,
tenho perspicácia (fala directamente para o público) esperteza e inteligência nunca me
faltaram, o meu pai tinha uma oficina, muitos automóveis de várias marcas e eu punha-
me a adivinhar a profissão de cada dono de cada automóvel, pela arrumação dos
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automóveis, pelos objectos que traziam dentro, se era um determinado jornal, se usavam
luvas de condução, os autocolantes no pára-brisas eu sei lá uma quantidade de
pormenores, que eu anotava num caderninho, depois ia para o meu quarto pensar
naquilo tudo, punha-me a imaginar histórias e quase todas batiam certo, era uma
verdadeira Miss…marple acho que era assim que se chamava a velhota detective lá da
tal escritora inglesa. Até podia dar ministra, se tivesse estudos, pois, que ninguém me
falta ao respeito. Ah! Mas o tal preto, bom apanhei-o na rua, dei-lhe uma tal “descasca”
(diz a custo) desculpem o calão. Ele até ficou da cor do tal Michael Jackson que repouse
em paz. (apanha mais uma toalha). E claro no outro dia lá estava o cauny em cima do
balcão do balneário. Acabou de ser preso passados uns dias a roubar eu sei lá o quê,
Teve três anos lá dentro. Podia ter sido recuperado… bom se o mundo fosse redondo
ainda podia… mas não o homem fez o mundo plano, sempre a direito e às vezes nas
beiras há uns que caem no precipício, pra onde eu vou não tarda muito (põe as toalhas
todas num cesto) Podia até ter casado, foi-se embora foi pras franças e eu cá fui
andando, não sou muito de namoros, e como sou uma profissional…
Nunca apareceu nada que se “morda” (diz com malandrice), não é que ninguém se
interessasse, tive aí uns rodízios deles, uns bailes nos Amigos do Apolo, umas tardes na
feira popular, meia dúzia de beijocas e já estou a falar demai….
Aparecem todos à porta- Beijocas?
Dona Cecília atrapalhada - É muito feio ouvir atrás das portas.
Zé Manel está com o creme da barba na cara, is cheia de piercings e com o cabelo
espetado, serafina com rolos no cabelo.
Isabelita começa a cantar e a dançar os outros seguem-na
Isabelita- beija-me, beija-me mucho, beija-me como se fosse a última vez….
Depois fazem uma rapsódia de canções, Dona Cecília tenta impedi-los sem êxito
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Fica a festa total
Até que Dona Cecília, rebenta um saco de plástico- Silêncio! O artigo 32 do
regulamento dos balneários municipais diz: é expressamente proibido aos utentes dos
balneários municipais, qualquer manifestação individual ou colectiva que provoque
distúrbios ao…
Todos os outros mais alto que ela- normal funcionamento do balneário!
Dona Cecília – Vejo que compreenderam
Isabelita- Sim dc, mas uma beijoca…
Dona Cecília- o e o que isso tem toda a gente é livre
Isabelita- Ora bem dc, é o que eu digo a liberdade é uma coisa do Dom Camandro
Dona Cecília – Olha para ti, é isso que fazes com a tua liberdade? (indica as tatuagens
da Isabel)
Isabelita- Sim Dc isto é atitude, está ver!
Dona Cecília – Sim está bem, mas não sei se tens assim tanta condição de ter atitudes
em sociedade, deixa isso para outros os que possam fazer alguma coisa por vocês…
Isabelita- Pois, está ver dc, mas haverá mesmo alguém que faça alguma coisa por nós
Dona Cecília – claro que há! Há muita gente que pensa em vocês, vocês estão na ordem
do dia de uma boa percentagem de gente importante neste país.. e…
Isabelita – Ora Dona Cecília, não complique, senão eu ainda lhe dou uma lição…Vá lá
nós adoramo-la, não é pessoal, A dona Cecília é uma boa companheira
Serafina- Claro a nossa melhor companheira-
Zé Manel – Dona Cecília, nós estamos sempre consigo
Dona Cecília- Pronto! Ganhem juízo! Olhem como vocês estão, vá aprontem-se.
Zé Manel e ser e Is entram no balneário.
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Dona Cecília – Que malta levada do diabo…
Agente de sondagens – (entra) Bom dia! Bom dia!
Dona Cecília- Bom dia! O que deseja?
Agente de sondagens – Deixe apresentar-me: sou Liliana Carreira, agente de campo da
empresa Sosondagens e estamos a realizar uma sondagem a pedido do executivo da
câmara de Lisboa sobre os organismos camarários abertos à utilização do público, pode
ver a minha credencial…e aqui a autorização do chefe administrativo…
Dona Cecília – Sim! Muito bem , como posso ser útil? Mas diga-me isso tem a ver com
o encerramento de balneários…
Agente de sondagens – Não, nada disso, isto não passa de uma formalidade para fins
estatísticos…
Dona Cecília – Pois mas os fins estatísticos servem para fins deliberativos, que por sua
passam a executivos…
Agente de sondagens – Calma, sossegue, venho em paz, penso que está enganada, esta
sondagem provavelmente tem a ver com futuro investimento, eu sei lá!... se calhar em
reequipamento dos próprios balneários(sorri com sorriso amarelo) por certo é uma coisa
boa, e… não demora nada…
Dona Cecília- Não não deve demorar nada com a vontade que eu tenho em responder a
isso, por mim podia acabar antes de começar.
Agente de sondagens - Bem, não se apoquente, não é minha finalidade… bom,
vejamos, há alguém do público para entrevistar? Há uma parte para o funcionário, outra
para os utentes…
Dona Cecília (um bocado de maus modos) – Sim há por aí uns utentes mas estão neste
momento cheios de sabão…
Agente de sondagens - Então vou começar por si, se não se importa, o seu cargo?
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Dona Cecília – Assistente de balneário 1ª classe.
Agente de sondagens - Ah! Tem piada, isso não tenho eu aqui. Eu acho que essa
categoria já não existe.
Dona Cecília – É o que eu sou, assistente de balneário de 1ªclasse
Agente de sondagens - Eu só tenho aqui: auxiliar de 1ª ou 2ª. As novas categorias…
Dona Cecília- As novas não me interessam, eu quando entrei era assistente de balneário
de 1ª classe.
Agente de sondagens – Sim mas as novas….
Dona Cecília- Se quer que eu seja nova ponha auxiliar de 1ª. Lá auxilio presto eu, e não
é brincadeira, a senhora havia de saber…
Agente de sondagens - Continuemos…. Há quanto tempo está neste serviço?
Dona Cecília – Diga-me lá porque me estão a fazer isto? Deviam-me respeitar…
Agente de sondagens - Mas a senhora não compreende isto não é o que pensa….
Saem os três do balneário
Todos (ameaçadores) - E o que pensa a senhora?
Dona Cecília – Calma lá gente, isto não pode ser assim…
Agente de sondagens - Ah! Como estão? Tenho também umas perguntinhas para
vocês…
Isabelita – Perguntas? A malta quer é respostas, quem é você?
Agente de sondagens - Eu sou uma agente da Sosondagens…
Isabelita – Eu pergunto outra vez, quem é você? Mesmo na realidadezinha, quem é
você? Quem a mandou cá? Vem fechar a loja? É que a malta não quer ouvir dizer não.
Isto é malta que está plos cabelos
Dona Cecília- Isabelita!
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Agente de sondagens – Não, não pensem nada disso, eu sou independente, sou uma
funcionária, não pretendo nada, eu não vou fechar nada, eu até acho o balneário… bom
vamos a algumas perguntas, está bem?
Serafina – Eu, não sei se sei responder, se for cá uma complicação
Agente de sondagens - Não, nada são umas perguntas muito simples…
Zé Manel – Eu gosto do balneário, pode escrever isso
Agente de sondagens – claro vou escrever isso, mas respondam-me, por exemplo o sr,
é utente há quanto tempo
Zé Manel – eu não me chamo isso, eu sou Zm e eu ando cá há 12 anos, a tomar banho e
a fazer a barba, às vezes corto as unhas dos pés porque na rua…
Agente de sondagens – Só um momento cada coisa, de cada vez
Isabelita- Cada coisa de cada vez, e eu agora já me passo dos carretos
Agente de sondagens – e a senhora? Vem cá muitas vezes
Isabelita – A senhora? Eu por acaso sou alguma senhora? Mas o que vem a ser isto,
com perguntas de pastelaria, isto é pra algum casamento ou baptizado…
Agente de sondagens – Calma, calma, eu queria-lhe perguntar se usa muitas vezes o
balneário
Isabelita – Nós todos usamos muito o balneário e usamos também muito a dona Cecília
e por isso não queremos ninguém aqui a fazer perguntas…
Agente de sondagens – Bom estou a perceber, acho que virei cá noutra altura…
Dona Cecília – vocês ainda pioram as coisas, deixem esta agente fazer o seu trabalho
Isabelita – isto não é trabalho. É trabalho policial, é uma chui! A gente não quer aqui
chuis
Serafina- Fora os chuis (diz numa voz efeminada)
Isabelita- Isso mesmo, fora os chuis! (grita)
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Zé Manel - fora os chuis
(correm com ela gritando palavras de ordem) (revolucionam o balneário sempre
gritando palavras de ordem, vão colocando cartazes, escrevendo e colando na boca de
cena)
- Fora os chuis
- Sim ao balneário não queremos outro cenário!
- Aqui não fecham!
- Cremo-nos lavar, urinar e cagar!
- Câmara municipal é o culpado principal
- Alcântara aberto é o que está certo
- Todos cá que a coisa está má
Dona Cecília chora
Todos dão conta do choro de dc e começam a calar-se
Dona Cecília- O que vocês fizeram? Vão destruir tudo num ápice- 23 anos de
dedicação absoluta, nunca infringi uma regra que fosse. O que têm contra mim? Não fiz
tudo por vós durante este tempo todo? Não merecia isto… para além das consequências
disto tudo, é uma vergonha enorme que sinto por isto que acabaram de fazer. Onde têm
a cabeça, não percebem que isto vai acabar mal?
Zé Manel – Mas nós só queremos ajudar.
Serafina- Dona cecília, isto tudo é para a apoiar.
Isabelita – Dona Cecília, isto é uma luta, uma batalha, uma guerra. Querem-nos tirar o
pouco que temos, o balneário tem sido um pouco a nossa casa. Não podemos deixá-los
fazer o que querem. O balneário não é deles, é dos manganos que aqui vêm, é dos
utentes como você diz. A cena já vai muito alta. Como fazemos? Cruzamos os braços?
Daqui ninguém sai, não a deixo fechar a porta
22
dc- façam como quiserem, eu vou à câmara falar com alguém, tenho de saber o que se
passa.
Zé Manel – Pode estar descansada, nós cuidamos do balneário (dc sai)
Isabelita – Não podemos perder o balneário, é nossa torre de controle.
Serafina- É o nosso lar, por bem dizer
Zé Manel – Perder o balneário é perder o norte
Isabelita- Pois mas agora estamos a leste, a nossa bússola neste oceano que se chama
cidade
Serafina – Ai que poesia! Não te sabia poeta, até me arrepiei nos braços
Zé Manel – É muito bonito o que disseste agora, gostei muito.
Isabelita- Tu até és um mangano sensível, o que eu disse não é nada de especial. Temos
é que pôr os mirantes bem nisto, não vá a chuialhada aparecer por aí, e depois é que é
cabo dos trabalhos
Zé Manel – Pois claro, não podemos dar isto de mão beijada
Serafina – de mão beijada, ai que bonito
Zé Manel – Oh Serafina não exageres, isto que eu disse não é poesia
Serafina- Deixem-me sentir que estou muito nervosa
Isabelita- Pronto! Fica aí a sentir, que a gente guarda o palácio.
Zé Manel – E o que se vai seguir, Isabelita?
Isabelita- Sei lá! O melhor é esperar as novidades da dona Cecília, depois se verá, o
que vier morre.
Serafina- Ai! Que expressão tão forte!
Isabelita- Deixa-te disso, Serafina! Olha, vê aí o rádio, põe música da boa!
Zé Manel – Isso um pouco de música, da boa!
Serafina- Ai. Não sei tem tantos postos de rádio (vai experimentando vários postos)
23
(põe a Antena 2)
Isabelita- Isso é muita cultura pra os meus ouvidos, que só ouvem lamúrias e apitos de
automóveis
(põe Micael Carreira)
Isabelita- Eh pá! Isso é pra cair de amores num prato de orelha de porco cozida
Serafina – Não sei o que querem…
Zé Manel – Uma coisa mais portuguesa, isso é só salamaleques de 5 tostões
(põe o rap/fado)
Isabelita- Olha aí está uma coisa boa para os abanos
Serafina – Isto até se pode dançar…
Zé Manel – Dançar?
Isabelita – Rap não se dança
Serafina – Tudo vale a pena dançar quando a alma não é pequena
Isabelita – Olha aí está também uma grande poetisa. Vamos lá a isto.
(dançam)
Zé Manel – Gostei de te ver dançar, isabelita
Isabelita – Gostaste pá! Andas-me a seguir com os mirones
Zé Manel – Os mirones é que gostam do que vêem
Isabelita – Eh pá! Tas-me a cantar uma canção…!
Zé Manel - Há já um tempo que gosto de olhar pra aí!
Isabelita – Vai com calma pá. Eu simpatizo contigo, mas…
Serafina- Querem ver o meu número pró politeama
(faz o número) (ser dança e canta os outros fazem coros)
Isabelita – Ó Serafina, como é que tu destes nessa festa de travesti
24
Serafina – Na verdade eu acho que isto nasceu comigo, sou assim comprendem, pronto
já nasci rapariga, mas com o coiso.
Isabelita – Pois dispenso pormenores.
Serafina - Isto é uma vida muito ingrata, não somos considerados ninguém nesta
sociedade, isto é uma grande gaita.
Zé Manel – Mas és homem ou mulher?
Serafina - Mas isso que interessa, sou pessoa não te basta, tenho sonhos como os
outros, penso, tenho opiniões e trabalho se for preciso como os outros-
Zé Manel – Isso não é verdade, não conseguias trabaslhar nas obras, dava-te alguma
vertigem castrapumba!
Serafina - Bem cada um é para o que nasce, acho que sou tão válida como outra pessoa
qualquer, há gente como eu, na polícia, nos bombeiros e até futebolistas
Isabelita - Futebolistas?
Serafina - Ora então!
Serafina- Seja com for cada um é pra o que nasce- mas que isto é obra do criador há
isso é que é. Ele quer-nos assim, cada um no seu ramo, a vida é uma árvore, que tem a
mesma raiz e deita frutos comuns.
Zé Manel – Ora isso é que é falar
Isabelita - Tá bem achado, ganda maluca e poetisa também!
(entra uma mulher polícia)
Agente da Judiciária – Quem é a Isabel Jorge Vicente?
Isabelita- Sou eu, o que há?
Agente da Judiciária - Tens que vir comigo.
Isabelita- O que é que eu fiz?
Agente da Judiciária – Isso é o que vais dizer daqui um bocado lá na esquadra.
25
Isabelita- Mas eu já há muito tempo que não ando no cavalo.
Agente da Judiciária - Não digas mais nada, tudo o que disseres p’ode servir para te
acusar
Zé Manel – se calhar foi aquele berbicacho do outro dia em Santos, lá do outro tipo
todo engravatado que queria que vocês andassem a vender droga
Isabelita- mas eu não fiz nada, juro pelos santinhos
Agente da Judiciária - juras lá na esquadra está descansada, agora tens de vir comigo,
ora põe lá os bracinhos a jeito…
Isabelita- Eh pá! Que ganda balde! Agora que a luta estava a começar. Zm toma conta
da área, ficas responsável pela luta, conto contigo (vai saindo)
Zé Manel – E eu conto contigo, tá bem?
Isabelita – Vá, não me partas o coração, tá bem?
Serafina- (chora) Adeus, Isabelita, vou ficar a chorar por ti
Isabelita – Poupa as lágrimas, eu hei-de voltar – I’ll be back! I’ll be back
Saem.
Zé Manel – Ó Serafina vou lá à esquadra, ela não pode ficar lá sozinha, pode precisar
de alguma coisa
Serafina fica só.
Serafina – Isto vai de mal a pior, parece que caiu aqui um meteoro, está a riscar a
humanidade toda. A humanidade é este balneário. Há anos que me lavo, me penteio, me
arranjo aqui, foi aqui que encontrei uma família, a dona Cecília, o Manel, a Isabelita, e
muitos outros que fazem destes dias duros, uma alegre existência. Na verdade não sei o
26
que há contra gente como nós, somos vítimas das nossas vidas e ainda parece que
somos perseguidos por sermos assim. Quando aqui venho, às vezes irritada por tanto
insulto em toda cidade., parece-me que volto à barriga da minha mãe. Quando me lavo
naquele sabonete sempre da mesma marca, passo horas a ensaboar-me, a deliciar-me
com a água que corre do chuveiro como se fosse água de marca tipo vichy ou coisa
assim, não nada disso é mais que água, é mel, é água tão doce como de uma manhã. Às
vezes esqueço esta bichisse toda, vejo-me. Sonho-me em qualquer lado, um dia num
escritório tratando de vários assuntos, muito sérios e delicados, outras sou uma
advogada defendendo grandes causas, até sonhei política, defendendo em comícios
ideias generosos e apontando o caminho da paz. Mas é de Deus que gosto de mais de
sonhar, voando sobre o mundo, puxando aqui e ali um cordelinho, soprando um
ventinho aqui e acolá, no chuveiro, aqui no balneário eu sou um bocadinho de tudo e
sobretudo sou uma pessoa entre outros, sou mais do que já pude ser noutro beco
qualquer.
Já não vem hoje mais ninguém.
Arranja umas toalhas para se deitar nelas.
Hoje sou só eu (fecha as portas) Deus quer que seja eu o Zelador mor
Acende uma vela
Hoje haverá apenas uma luz na humanidade.
III
Zé Manel (como que anda perdido, para trás e para frente cuidando aqui e ali de
qualquer coisa) – A vida anda pra trás e pra frente, depois vai pra trás depois vai pra
27
frente, é sempre este vaivém, estou cansado disto, queria assentar, mas nada pega, a
terra é má e a raiz também, não há planta que cresça aqui. A minha vida é com um
carrossel da feira popular, altos e baixos, mais baixos que altos, por bem dizer. Por
acaso a minha vida é na baixa.
A gente não é nada é certo, mas portamo-nos bem, fazemos o que podemos: lavamo-
nos-se, cuidamos-se do corpo, tentamos ser bem educados respeitadores, fazemos uns
biscates dentro das normas, dedicamo-nos aos fretes e ás gorjas, mas não saímos disto,
espécie de vadios bem educados. Talvez na província fosse diferente, lá há estrada a
direito, podemos seguir um rumo, se calhar encontrar uma porta amiga, um sitio onde
ficar, um trabalho, talvez até uma vida. Aqui a estradas são todas tortas, uma rua
desemboca noutra que vai dar a outra que por sua vez vai dar a outras, sempre como
num labirinto, por mais que se ande, tudo vai dar ao mesmo sítio, é o raio de uma
complicação. Pronto vivemos na cidade, mas o que é cidade pra nós, lixo, vícios e
problemas, a cidade não é feita pra gente, pra gente e pra gente, isto é bom é para robots
bem orientados, sem estas febres de liberdade, é pra gente com o juízo na carteira e
aritmética no coração, não é pra gente, malta da humanidade, A cidade é pra os ricos,
nas viravoltas entre o escritório e o supermercado, lojas, clínicas e cabeleireiro,
restaurantes e boites. Não se vive nas cidades, isso de viver com o coração a dar a dar
isso, não se vive, essa malta da alta não vive, aboneca-se, são bonecos e bonecas na
casinha das brincadeiras. E depois há a malta da política, mas o que faz a política, quem
manda é o que mais tem, sempre foi assim. “Zé Manel está aqui trabalho para fazeres,
se não quiseres há mais quem queira” pronto quando dizem isto a gente já sabe, quem
tem é que manda, quem manda escolhe, julga e resolve. O resto são tretas, ninguém
perde o que tem, menos nós que andamos por aqui na rua, menos nós que levamos com
a vida em cima de nós, nos tira a vaidade e o orgulho, nós vemos, vemos o que por aí
28
vai, vemos como podia ser diferente, quer dizer melhor pra todos, mas não, nós não
valemos nada, somos menos que um guardanapo num restaurante, o que dizemos e o
que vemos vai também para o lixo. O lixo dourado que este mundo deita…
…/…
(chega Dona Cecília)
Dona Cecília – Ora, como vai esta casa? Sem dono e sem lei?
Zé Manel – Estava preocupado consigo dc, todo o dia outra vez ocupada com os srs da
câmara?
Dona Cecília – E foi a terceira reunião, por fim, é o fim!
Zé Manel – Então?
Dona Cecília – Vamos fechar, não há volta a dar.
Zé Manel – O que lhes disse? Falou com quem?
Dona Cecília – O que lhes disse, ó Zé Manel aquilo é gente que não ouve, ou por outra
é gente que tem as orelhas coladas aos votos, não há ponto a dar-lhes, agora é que se
lembraram da economia, de pouparem etc. Sabes o que te digo, só não poupam onde
haviam de poupar, são pobres para umas coisas e para outras não. Como é que um país
que é um país admite uma coisa destas? Uns com tudo e muitos com pouco, até na
miséria. Eu não sei como esta gente consegue dormir à noite, ou sentar-se todos os dias
à noite para jantar e comer uma sopa de marisco e um bom bife de lombo, esta gente até
se esquece das suas próprias almas, é gente mesquinha, gente que não é gente, sabes o
que te digo, há muito que este mundo deixou de ser mundo, a sociedade é apenas uma
cadeia alimentar, e lá em cima estão apenas os maiores predadores, os maiores canibais,
29
neste caso, mesmo que tenham este palavreado de solidariedade ou camaradagem, por
trás disto e até de utopias, está a ambição pessoal, a próxima caçada.
Zé Manel – Parece que nem a conheço a falar desta maneira.
Dona Cecília – Pois Zm, nestas alturas a gente compreende certas realidades, isto tudo
é uma gigante máquina de destruição maciça que o homem engendrou, o homem quer
dizer, alguns, neste caso bastam alguns, uma máquina do diabo é o que eu te digo. Bem,
mas é assim, isto vai fechar e é hoje mesmo, vamos todos daqui para fora é como 2 e 2
são 4.
Zé Manel – Ora gaita para isto, não valeu nada o nosso protesto.
Dona Cecília – O como está a Isabelita? Ainda lá está?
Zé Manel – Fui lá visitá-la hoje de manhã. Gostou de me ver. Esta cheia de saudades
disto tudo, vai ficar desiludida quando souber como tudo acabou. Parece que não têm
nada contra ela, é só para chatear.
Dona Cecília – Pois! Tem de se conformar, é o que vai acontecer a nós todos.
Zé Manel – E o que vai fazer Dona Cecília?
Dona Cecília – Eu sei lá ainda não pensei em mim, eu ainda não fiquei em mim. O que
vou fazer? Vou ser supranumerária, é o que está a dar…
Zé Manel – Talvez ainda lhe arranjem qualquer coisa, sei lá…
Dona Cecília- Não te preocupes comigo, alguma coisa há-de acontecer
Serafina – Bom dia a todos, viva Portugal!
Dona Cecília. Ora bem alguém positivo, cheia de alegria.
Serafina- Como ficou isto do balneário?
Zé Manel – Vai fechar, não há nada a fazer…
Serafina – então estou triste e alegre
Dona Cecília – como é lá isso? Triste e alegre?
30
Serafina- Triste porque isto vai fechar, mas eu tinha ideia que isso ia acontecer, alegre
porque consegui o lugar no espectáculo do politeama.
Dona Cecília – Mas isso são grandes novidades, parabéns, conseguiste!
Zé Manel – Parabéns Serafina!
Serafina – E tenho mais novidades para si Dona Cecília.
Dona Cecília - Ah sim?
Serafina – Estão a pedir alguém para a bilheteira do teatro e eu lembrei-me da dc, eu
ainda não sabia o resultado disto, mas na via das dúvidas dei o seu nome, interessada?
Dona Cecília- Pois, parece-me boa ideia, obrigado serafina és um bom coração.
Serafina-Eu não me podia esquecer da Dona Cecília.
(entra isabelita)
Isabelita – Ora viva grande arraial, tudo contente?
Serafina – Viva!Viva!Viva! três meses de alegria
Isabelita – Bem podes dizer, o calabouço fedia por todos os lados, Aquilo está pior que
um aterro sanitário, é só escumalha, e olhem que não havia gente como nós dos sem-
abrigo.
Dona Cecília – Mas o que tinham contra ti?
Isabelita – queriam que eu desse com a língua nos dentes, bufasse, mas não havia nada
que bufar, os camones que passavam o cavalo já há muito que tinham dado corda aos
sapatos, já deviam estar a cantar flamenco lá a Espanha. Chatearam-me, chatearam-me,
mas só pra me meterem na ordem, porem-me medo. Bem também cantei-lhes cá uma
canção…
Zé Manel – Então Isabelita, destes-lhes uma lição?
Isabelita – Falei-lhes da liberdade:
31
“Vocês se não fossem chuis, o que é que gostavam de ser? Não sabem, nem
respondem, pois moi vos digo. Nada, simplesmente, rien! Zero abatatóides. E o que é
um zero ao pé de alguém (aponta para ela) menos zero! Que inda é menos que zero,
negativo. Porque aqui está alguém, estão a ver aqui a tatuagem? (vai interagindo com os
presentes como se eles fossem os policias) isto é um morcego, uma marca contra as
fodas, as vossas fodas, é o meu voo da noite, por entre as merdas que vocês nos deitam,
é a nossa liberdade, a noite o que resta desse dia que ocupam com as vossas top guns e
as merdas das ordens e das cenas sociais que vocês defendem, a nossa noite é linda e
vocês não sabem isso, andamos como morcegos alimentamo-nos como eles de insectos
e de restos da cena da sociedade, e curtimos, fazemos magia, alquimia, tá bem com a
cena da droga, mas fazemos a nossa liberdade. Porque somos muito nós, muito ser,
somos muita coisa que anda por aí perdida, e nós achámos, encontramos essas cenas aí,
reprimidas em vocês, olhem se calhar deixam nos bolsos à noite, ou nas fodas violentas
que vocês mandam nas vossas mulheres, reprimidos, estão todos reprimidos aí na cena
das televisões, das repartições, dessas merdas dos vossos jornais, depois atiram-nos com
política com cena de regras e preconceitos e morais, nós somos os novos cavaleiros,
essa cena da história, dos nobres antigos, somos os que sabemos, eh pá somos mais, e
vocês não têm o direito, é pá, vocês não ousem tocar-me, que eu fodo-vos um dedo,
ouviram, eu fodo-vos o juízo, até vocês cuspirem essa merda de cassete que vocês
bebem na cerveja”
Ficaram brancos, remoeram uns pró outros que o melhor era deixarem em paz.
Fizeram-me mais meia dúzia de perguntas e depois largaram-me como a um passarinho
se faz quando se abre a gaiola.
Dona Cecília – És boa rapariga, nunca to disse, mas tenho cá um cantinho pra ti (aponta
o coração)
32
Serafina – Eu acho-a formidável, obrigado amiga, por seres minha amiga, passo a
confusão das palavras, ai as palavras!
Dona Cecília- Pronto e tudo acaba assim, anda Serafina anda-me a ajudar a arrumar a
casa, temos que fechar isto antes do meio-dia.
Isabelita – O quê isto vai fechar?
Zé Manel - Não há nada a fazer, já está tudo decidido, temos que usar outro balneário
Isabelita – Eh! Pá isto parte-me o coração…
Zé Manel – A dona Cecília vai trabalhar para a bilheteira do Politeama
Isabelita – Inda bem pra ela, mas a malta não pode ir embora assim…
Dona Cecília- Como assim?
Isabelita- e então vamo-nos embora assim, sem mais nem menos.
Serafina – Pois cada um para seu lado.
Zé Manel – Até se me esvaía a alma.
Isabelita- Por falar em esvair, acho que tive uma ideia. Temos de fazer um pacto de
sangue, juntem-se a mim.
Os outros rodeiam-na.
Isabelita – Eu acho que a cena do balneário juntou-nos, foi uma coisa muito fixe, tem
de ficar escrito quanto estamos juntos nesta cena da amizade.
Serafina- Então e como vai ser?
Isabelita – Fazemos uma tatuagem.
Zé Manel – Por mim está bem, mas o quê se põe?
Isabelita – DC.
Zé Manel - DC?
Serafina- DC?
Isabelita – DC são as iniciais da Dona Cecília
33
Dona Cecília – Olha o que te havias de lembrar!
Isabelita – A sério, foi a dc que nos juntou como irmãos neste balneário
Zé Manel – Acho que sim por mim tudo bem
Isabelita- Tem que ser mesmo a sério, é a marca da nossa união
Serafina- eu vou pô-la no pescoço pra toda a gente ver
Zé Manel – Eu ponho-a no pulso, pra vê-la a todas horas
Dona Cecília- Bom, talvez a faça, mas tem de ser escondida, apesar de tudo guardar-
vos-ei sempre comigo.
Isabelita- Eu pô-la-ei no peito junto ao coração.
Dona Cecília- Minha Isabelita dá-me um beijinho (beijam-se)
Serafina – E quando nos encontraremos?
Isabelita – Por aí, sabes serafina a cidade é como o mundo também é redonda.
Zé Manel – Eu gostaria de te ver mais vezes, se possível.
Isabelita- Sabes Zé Manel também engraço contigo, és assim calado mas à faíscas que
atiram daí pra aqui e daqui pra aí.
Serafina- Vamos fazer um hip hip hip urra
Juntam-se todos.
Isabelita - Alcântara forever
Todos repetem – Alcântara forever
Saem
A última sair é Dona Cecília
Dona Cecília – 23 anos!(olha para todos os lados) Acho que não ficou aqui nada. (sai)
34
Fim

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  • 2. 2 Balneário de Constantino Mendes Alves “Creio que tenho prova suficiente de que falo a verdade: a pobreza” Sócrates Personagens: Dona Cecília Zé Manel Serafina Isabelita Agente de sondagens Agente da judiciária Balneário público Tudo escuro. Alguém tenta sintonizar um rádio. Ainda no escuro ouve-se uma notícia: “A babysitter dos três filhos de Michael Jackson, Grace Rwaramba, revelou as intimidades do «rei da pop» numa entrevista ao The Times, explicando que o cantor era viciado em comprimidos e hipocondríaco, o que a obrigou a fazer-lhe, constantemente, lavagens ao estômago. Rwaramba também revelou que, logo após a morte do patrão, a mãe do cantor ligou- lhe, para perguntar onde Michael escondia o dinheiro dentro de casa, sem sequer
  • 3. 3 permitir que a ama falasse com as crianças. «Eu disse-lhe para ver nos sacos de lixo e debaixo dos tapetes, mas dá para acreditar nisto?! Eles perderam Michael há poucas horas e ligam a perguntar de dinheiro?!», criticou.” A meio da notícia a luz vai acendendo, vê-se um balneário ( o cenário deve ser todo branco), uma porta para o balneário dos homens e uma porta para o balneário das mulheres, no meio um balcão onde está uma funcionária ouvindo a notícia de um pequeno rádio. Do lado da porta dos homens está um homem (José Manuel 55 anos) em tronco nu, fazendo exercícios de ginástica, está em boa forma, um pouco encarniçado na cara (como amassado). Dona Cecília ( sem olhar para ele)– Ó Zé, ouviste? Morreu há dois dias e já estão de volta do dinheiro. Zé Manel– Eu cá não sei nada disso. Micaelo, quem era esse? Ah o do pavilhão Atlântico…Aquilo encheu, ina pá, foi só moedinhas… Dona Cecília- Não é esse, esse era o Micael Carreira. Este era dos Estado Unidos, uma Super estrela do pop. Ó Zé Manuel, olha o que estás a fazer, não podes estar nesses propósitos no balneário, já te disse que aqui há regras, e quem as não cumpre não pode usufruir dos serviços comunitários, isto é um espaço público e portanto eu não posso permitir… Zé Manel – Pronto, pronto, vou já vestir a T-shirt, onde é que eu a pus? Dona Cecília – Deve estar lá para dentro. Vai lá buscá-la (Zé Manel vai lá para dentro) E vê lá como deixas isso aí dentro, não quero nenhuma sujidade, senão tens de te haver comigo, e eu não sou para brincadeiras. Sabes que eu aqui não permito brincadeiras, isto
  • 4. 4 é um espaço público…( Zé Manel chega com uma t-shirt com o nome Continente impresso) isso mesmo, respeitinho é que é bonito. Olha lá ó Ze Manel, onde é que foste buscar essa t-shirt? Zé Manel – Deram-ma no Continente da Gare do Oriente, para eu não fazer ondas e ir pregar noutra freguesia, foi assim que eles disseram. Dona Cecília– Ah pois devem ter dito, aquilo é um supermercado, um lugar de trocas comerciais, não é para a pedincha. Entra isabelita Isabelita(22 anos)– Ora viva quem está e muito obrigado pelos bons dias que vão me dar… Zé Manel (tem um voz fininha) – Olá isabelita! Bom dia Dona Cecília – Bons dias, Ora quem vem lá. Vens com as pilhas todas carregadas? Olha que isto não é a praça do comércio… Isabelita- Eu sei o regulamento não permite…eu não quero chatices, venho cá só dar uma banhoca . Olá ó Zé manel, já me estava a esquecer de ti, como vão esses cornos, continuam a dar luzinhas? Dona Cecília – Eu não quero cá esses palavreados, ó Isabelita, eu já te disse… Isabelita - Pronto, fecho já a boquita, não problems, eu não quero problemas Dona Cecília – Pronto assim está bem. Anda cá para eu registar o teu número, tens o cartão contigo?
  • 5. 5 Isabelita- Ora aqui está, na melhor carteira do mundo , no soutiã das mamas, Oh desculpe dona Cecília, o meu memorando estava já sair. Dona Cecília – Bem dá-me lá esse número. Onde é que isto andou, cheira a alho. Isabelita- Ah pois! A malta lá em Santos, faltou-nos a faca e eu utilizei o dispositivo camarário para cortar o alho, foram cá umas salsichas, ó Zé Manel, aquilo parecia o Tavares Rico. Zé Manel – um bocado encolhido tímido- Ah a malta na Estrela também se diverte, às vezes fazemos patuscadas… Isabelita – Eh pá a vida da rua é cá uma festa, malta desta já não há… Dona Cecília- Queres toalha? Isabelita – Sim claro, eu hoje não trouxe guardanapos. Entra um travesti. Serafina – Olá a toda a gente, onde é que eu posso tomar banho? Isabelita- Olha a Serafina. É pá é só escolheres. Se não apresentares o bi até podes ir às mulheres. Serafina- Ah! Claro é onde me sinto bem. Dona Cecília – Ó Serafim, tu civilmente és um homem, mas como estás nessa festa deixo-te ir ao das mulheres, mas fechas a porta não quero cá poucas vergonhas. Depois vem cá dar o número. Tá sempre com pressa, dou-lhe sempre a primazia. Pronto
  • 6. 6 Isabelita, toma lá um sabonete, não dois, dá uma ao Serafim, à Serafina, e duas toalhas, com as pressas até se esqueceu… Isabelita- Ok. Dona Cecília, daqui um pouco vou ficar num brinco Dona Cecília- Vá lá, que eu contigo é que não brinco. Isabelita vai para dentro. Dona Cecília- e tu Zé manel, como vai ser a tua vida? Zé Manel – Estou aqui a arrumar o malote, A Dona Cecilia não se importa de guardar- me os meus haveres? Dona Cecília- Ó Zé Manel já te disse uma série de vezes, os cacifos são para uso do público, dou-te uma chavinha e pronto , podes ir à tua vida. Como vai ser o teu dia? Zé Manel – Vou ajudar o Dias nos Prazeres, ele diz-me que me dá uma gorja se eu o ajudar a abrir uma cova, depois vou até ao Príncipe Real ao meio-dia, arrumar os carritos. Dona Cecília- Mas essa Zona não era do Roberto? Vê lá onde te metes, isso é malta dos estupefacientes, e isso é gente que não brinca. Ouve-se um relinchar de cavalo vindo do balneário das mulheres (Isabelita) Isabelita (fora) – Hiiiiiiiiiiii! Somos os cavalos de corrida (imita a canção) Dona Cecília – (fala alto para is) – Pensei que já tinhas feito uma desintoxicação, não tens tomado a tua metadona.
  • 7. 7 Isabelita (lá de dentro) – Metadona! I love Metadona. Com a metadona até posso lavar a …. Desculpe lá Dona Cecília. Só estou a brincar. Não, deixei-me disso… Dona Cecília – Pronto Zé Manel, vai lá à tua vida. Olha diz-me lá onde tens dormido? Zé Manel – Ali na Possidónio há lá um prédio fechado pela câmara, somos três a lá dormir. Dona Cecília- Não está cá quem ouviu isso, Ó Zé Manel com a câmara ninguém brinca, já te disse que com a instituição autárquica ninguém deve brincar, A autarquia serve os seus munícipes, há deveres e direitos, todos temos de cumprir as regras. Eu sou uma funcionária Municipal não posso ouvir coisas dessas, com a minha ética profissional Eu sou obrigada a denunciar casos desses, podes até perder os teus direitos, por exemplo cancelarmos o teu cartão de utente do balneário. Está a entender? Faço-me entender? Zé Manel – Ó Dona Cecília aquilo é por pouco tempo, já ando de olho num quartito aqui em Alcântara, A dona Joaquina, já tem 95 anos e já quase não se mexe, aquilo é uma renda em conta, com uns recaditos que eu faça, mais três horas a arrumar, umas gorjas do Dias, já deve dar, aquilo é uma renda baratinha. Dona Cecília – Assim é que é falar… Zé Manel - …/…A gente gosta de ter um cantinho não é? Nunca tive muita sorte, os meus pais morreram novos, a minha irmã mais velha lá foi para a América, criei-me na
  • 8. 8 rua, trabalhei muito tempo nas obras, mas depois do acidente não dá pra estar muito tempo a fazer força… Dona Cecília- Pois a sorte, é só para alguns, e há os com sorte a mais, mas esses sabes o que te digo, engoliram o totobola e não dão conta, quer dizer alguns não querem dar conta…mas isso é outro rosário… Zé Manel - Sabe , eu sempre quis uma casa, ter família… Dona Cecília – Eu sei, eu sei, o que toda a gente quer, não penses que és o único, o que toda a gente quer, mas sabes…nem todos podem, há quem possa ter filhos e não quer, e há quem queira e não possa, neste mundo os homens inventara um sarilho tão grande que nem Deus se cá viesse agora resolvia em sete dias, como da outra vez, da Criação, quando distribuiu em 7 dias o totoloto a cada um. Por falar em deus, ouve lá ó zm tu és religioso? Zé Manel - Quer dizer sou um bocado… Dona Cecília- Sabes o que eu te digo, agarra nesse bocado que tem fé e atira-te para a frente. Ainda estás em forma, podes fazer o que quiseres da tua vida. Vá atira-te de mergulho. Zé Manel - A dona Cecília é cá uma conselheira, até podia ser a minha madri… Dona Cecília- Eh pá! O que aí vai, casamento? vai com calma, primeiro tens que conseguires as condições. E já tens namorada? zm (embaraçado) – Já a tenho debaixo de olho. Dona Cecília- Tá bem! Tá bem, Olha cuidado com o olho e o com o que ele olha…estás a perceber, não te compliques ainda mais… os tempos… Isabelita – (vem de dentro com a toalha à cintura) – (vem a dançar cantarolando uma canção reggae) (Zé Manel ri-se, timidamente bate palmas ao som do ritmo)
  • 9. 9 Dona Cecília – Poucas danças aqui dentro, o regulamento diz… Isabelita- Ó dona Cecília, eu já sei o que o regulamento diz…, mas diz mal, porque a vida são dois dias, o Carnaval são três. Dona Cecília – Não estamos no Carnaval e além disso… Isabelita – Mas o Carnaval é sempre que um individuo quiser… Dona Cecília- Isso diz-se do Natal, porque devemos ser solidários com os outros todo o ano e… Isabelita – Ó Dona Cecília, então o Carnaval também não é preciso todo o ano… ainda aí gente com umas trombas, sentados em cada BMW, e jipes que até parecem do planeta Neptuno, aquele que me parece é cinzento, o mais escuro, pois, que eu ainda cá tenho o 7ºano. Dona Cecília – E devias ter continuado a estudar, sabes que estás em falta com a sociedade, com o estado, devias frequentar a escola até ao 9ºano… Isabelita – Sabe ó Dona Cecília, eu até gostava da cena de estudar, mas um dia ia para a escola e atravessou-se-me o cavalo, e a partir daí fiquei a galope, até que me convenceram da Madona… Dona Cecília- Da metadona, queres dizer. E agora fizeste muito bem, estavas a dar cabo de ti.
  • 10. 10 Zé Manel - Ó gente vou andando, o Dias já deve estar à minha espera, Adeus Dona Cecília, adeus isabelita (faz-lhe um sorriso) Isabelita-. Adeus zm (zm sai) Até que é um gajo porreiro este zm. Dona Cecília (vai para o balcão) – Deixaste tudo limpo? Isabelita – Tudo limpinho, como um palácio, olhe como o palácio da Ajuda. Dona Cecília- Ah! Dizes bem a verdade isto é mais que o palácio da Ajuda. Precisas de alguma coisa? Isabelita - Ó dona Cecília… precisava que me orientasse uns tampasses, esta noite não fui despejar os caixotes do restaurante, e fiquei sem os habituais trocos, tá ver… Dona Cecília – Isto pode ser o palácio da Ajuda, mas sabes que é do regulamento… Isabelita- Eu sei, é só por dois dias… Dona Cecília- Deixa lá eu arranjo-te qualquer coisa, há por aí umas coisitas dessas (procura no balcão) mas diz-me lá se não foste ao restaurante o que foste fazer? Isabelita – A malta de Santos ficámos a ver o tributo ao Michael Jackson, ali na montra do café Bagdad, tá ver…coitadinho, aquilo é que era uma estrela… Serafina – (vai entrando com um turbante como toalha)
  • 11. 11 Pois, o que eu chorei mais as minhas amigas, fomos até pôr uma velinha na embaixada americana… Dona Cecília – Pois mas deixou 500 milhões de dívidas, aquilo é que era desorientação. Tanto tempo que demoraste? Serafina – Estive a fazer manicura nos pés, ora veja lá isto. Isabelita- Um trabalho de profissional, muito bem, até podes concorrer às misses. Serafina – Nada disso, eu hoje vou a um casting. Dona Cecília – Ora bem, vejam lá quem, e onde é esse casting? Serafina – é no Politeama, para o espectáculo da Gaiola das loucas Dona Cecília – Adequados, ora vejam lá bem alguém a fazer por si. Estás a ver estes exemplos Isabelita, precisas melhorar a tua auto estima… Serafina- O cabelo já deve estar seco, tome lá dona Cecília, ainda tenho um caminho longo a pé. Dona Cecília- Vai lá, e felicidades, ou parte uma perna ou lá com se diz. Isabelita- Merda, é merda que se diz Dona Cecília - Isabelita, cuidado com a linguagem Serafina- Adeus, au revoir! Isabelita – Good bye my love good bye! Dona Cecília- Fora daqui para fora vá, vá deixa-me trabalhar Isabelita – Já vou dona Cecília, ainda tenho de fazer um penteado. Oh dona Cecília já agora queria perguntar-lhe uma coisa… Dona Cecília- …Diz lá, o que te apoquenta? Isabelita – Ó Dona Cecília, é uma coisa um bocado burrocrática. Dona Cecília- Não é burrocrática que se diz mas burocrática
  • 12. 12 Isabelita – Isso, mais burro menos burro, eu é que estou a ficar uma ganda burra com isto… Dona Cecília- Diz lá, o que queres saber? Isabelita – O que são recibos verdes? Dona Cecília – Recibos verdes, o que é que andas a tramar? Isabelita- Não, é uma cena que apareceu aí pra ver se ganho uns trocos… Dona Cecília – Bem, recibos verdes, são recibos dessa cor que alguém passa quando presta um serviço a um empregador ou contratante, mas o empregado não tem qualquer contrato com ele, estás a perceber, é um empregado independente, que faz um serviço aqui, outro ali… Isabelita- É isso mesmo, um trabalhador independente, é isso mesmo que eu quero, livre como um passarinho… Dona Cecília – Boa tem vantagens e desvantagens, não ficas obrigada a um contrato mas não tens a protecção de emprego. Ah! E tens de estar registada nas Finanças… Isabelita- Eh pá! Isso é um bocado complicado aqui pra os meus fusíveis. Dona Cecília – Não é nada! Eu posso ajudar-te, mas o que queres fazer? O que te deu na cabeça, agora queres trabalhar? Isabelita- É a utopia da minha vida, tá a ver um ganda arco-íris no meu horizonte. É uma cena dos festivais rock, estão a pedir ajudantes, pra uma cena de carregar e descarregar material sound and light, montar palcos nos festivais aí, a gente até pode pedir autógrafos aos Mooonspell, está a ver é uma cena super- fixe Dona Cecília – Vê lá onde te metes, não te ponhas outra vez nas drogas Isabelita – Não, nada, eu agora sou só Metadona, estou completamente clean, isso era outros tempos, quando a malta andava aí perdida. Agora tenho cenas fixes, tenho poisos
  • 13. 13 certos e malta 100%, como aqui no balneário, a dona cecília também é muito fixe, é como uma mãe… Dona Cecília- Pois sou como uma mãe, e não quero que vos aconteça nenhum mal, ouve lá ó Isabelita, ainda tens família? Isabelita – Nada, havia um tio, mas gripou do álcool, está a fazer barro ali no cemitério de Benfica, há dois anos. Dona Cecília – Os teus pais morreram também, não foi? Isabelita – Quando eu era pequena, morreram queimados num incêndio lá em casa, eu estive num internato, mas aquilo era uma merda das grandes e saltei cá para fora, pra rua, onde as andorinhas fazem a Primavera, freedom, até agora. Dona Cecília – Vocês têm cá cada vida, andam pra aí desamparados… Isabelita – Mas a gente tem a dc, que a gente gosta muito de si e desta cena do balneário, aqui tá-se muito bem Dona Cecília- Pois! Vocês bem precisam, mas também têm de merecê-lo, olha que eu não sou de facilitismos. Isabelita – Tá bem! Não é preciso fazer séria, a gente já sabe essa lição Voz off – correio! dc corre para fora Isabelita- Já vou também, adeus. (penteia-se ao espelho com um risco ao meio). Isto hoje vai ser mesmo assim, um penteado todo à gótico. Dona Cecília traz uma carta. Dona Cecília – que é lá isto? Isabelita- Novidades, algum candidato? Dona Cecília- Não, nada disso, é da câmara. Estão a pedir um inventário e um relatório, (lê) “como forma de avaliar despesas e encargos, equacionando no futuro a possibilidade de encerramento de alguns desses estabelecimentos…
  • 14. 14 Isabelita- É pá, querem fechar o lavadouro? Dona Cecília- sei lá! Apaga-se a luz Acto II Dona Cecília está só, começa a arrumar o balneário Dona Cecília – Vai apanhando toalhas que estão penduradas ao longo da largura do palco. A máquina de secar outra vez avariada e não enviam ninguém para reparar, contenção de custos. Será que estes políticos compreendem a importância de um balneário junto desta população empobrecida? Quanto custará a manutenção de um serviço destes? Menos com certeza que os 40 seguranças do ex- administrador daquele tal banco… Não deve faltar muito para que encerrem isto, o engenheiro tinha má cara, não vem aí coisa boa. E o que vai ser desta gente? São umas crianças, sem ninguém a olhar por eles… e para não falar da salubridade desta gente, ficam para aí a criar bicho… o que se fez por esta gente, e agora isto. E o que vai ser de mim, vou para supranumerária, isso é mais que certo, daí é um passo para me despedirem. 48 anos. Aonde eu vou parar? A minha mãe, velhita, mal se mexe, uma reforma de invalidez, quase nada, mais o que eu ganho, a coisa ficava para as despesas principais. O meu curso de dactilografia, que posso fazer agora com ele?
  • 15. 15 Voz da Isabelita lá de dentro – a água está a ficar fria! Gaita, mais vale ir lavar o cabedal ali no fontanário em frente. Dona Cecília – Esta semana não há mais gasóleo, lavem-se como puderem Dona Cecília – Isto está cada vez pior, e sabonetes só dão para dois dias, eu não sei o que se passa com esta gente da câmara. 23 anos de funcionalismo público, é para rir, “Não há melhor funcionária que a Dona Cecília para o lugar que ocupa!” que me interessa a mim elogios desses. Nunca faltou nada aqui no balneário de Alcântara. 23 anos a cumprir o regulamento e nenhuma falta de respeito, com a Dona Cecília nunca ninguém brincou, até esses de tatuagens nos braços, alguns até com cruzes suásticas nos braços, nunca ninguém pisou o risco, Ah ! é que comigo ninguém brinca. Alguns são coitados, perderam a família, têm maleitas, bom a gente ajuda, temos compaixão, educamo-los, mostra-se-lhes um caminho, agora má educações, vícios e outras deformidades e pecados, ah! Têm que me ouvir, e eu sei dar sermões. Uma vez apareceu-me aí um negro, não é por ser negro, que eu respeito toda a gente, mas vá lá o caraças do negro era mau, mau como um branco qualquer, bandido, eu percebi-lhe logo pela pinta, o olhar de um lado para outro a maneira de mexer em objectos, pronto, mal lhe tirei os olhos de cima desapareceu um relógio ao Américo, coitado coxo, sempre a arrastar a perna. “Ó dona Cecília, por acaso, VExª, tratava-me com todo o respeito, não viu um relógio Cauny que estava, penso eu, na estante do lavabo…” eu percebi logo, fez-se-me cá uma luz, foi o malandreco do preto! Eu por acaso dava uma boa policial, tenho perspicácia (fala directamente para o público) esperteza e inteligência nunca me faltaram, o meu pai tinha uma oficina, muitos automóveis de várias marcas e eu punha- me a adivinhar a profissão de cada dono de cada automóvel, pela arrumação dos
  • 16. 16 automóveis, pelos objectos que traziam dentro, se era um determinado jornal, se usavam luvas de condução, os autocolantes no pára-brisas eu sei lá uma quantidade de pormenores, que eu anotava num caderninho, depois ia para o meu quarto pensar naquilo tudo, punha-me a imaginar histórias e quase todas batiam certo, era uma verdadeira Miss…marple acho que era assim que se chamava a velhota detective lá da tal escritora inglesa. Até podia dar ministra, se tivesse estudos, pois, que ninguém me falta ao respeito. Ah! Mas o tal preto, bom apanhei-o na rua, dei-lhe uma tal “descasca” (diz a custo) desculpem o calão. Ele até ficou da cor do tal Michael Jackson que repouse em paz. (apanha mais uma toalha). E claro no outro dia lá estava o cauny em cima do balcão do balneário. Acabou de ser preso passados uns dias a roubar eu sei lá o quê, Teve três anos lá dentro. Podia ter sido recuperado… bom se o mundo fosse redondo ainda podia… mas não o homem fez o mundo plano, sempre a direito e às vezes nas beiras há uns que caem no precipício, pra onde eu vou não tarda muito (põe as toalhas todas num cesto) Podia até ter casado, foi-se embora foi pras franças e eu cá fui andando, não sou muito de namoros, e como sou uma profissional… Nunca apareceu nada que se “morda” (diz com malandrice), não é que ninguém se interessasse, tive aí uns rodízios deles, uns bailes nos Amigos do Apolo, umas tardes na feira popular, meia dúzia de beijocas e já estou a falar demai…. Aparecem todos à porta- Beijocas? Dona Cecília atrapalhada - É muito feio ouvir atrás das portas. Zé Manel está com o creme da barba na cara, is cheia de piercings e com o cabelo espetado, serafina com rolos no cabelo. Isabelita começa a cantar e a dançar os outros seguem-na Isabelita- beija-me, beija-me mucho, beija-me como se fosse a última vez…. Depois fazem uma rapsódia de canções, Dona Cecília tenta impedi-los sem êxito
  • 17. 17 Fica a festa total Até que Dona Cecília, rebenta um saco de plástico- Silêncio! O artigo 32 do regulamento dos balneários municipais diz: é expressamente proibido aos utentes dos balneários municipais, qualquer manifestação individual ou colectiva que provoque distúrbios ao… Todos os outros mais alto que ela- normal funcionamento do balneário! Dona Cecília – Vejo que compreenderam Isabelita- Sim dc, mas uma beijoca… Dona Cecília- o e o que isso tem toda a gente é livre Isabelita- Ora bem dc, é o que eu digo a liberdade é uma coisa do Dom Camandro Dona Cecília – Olha para ti, é isso que fazes com a tua liberdade? (indica as tatuagens da Isabel) Isabelita- Sim Dc isto é atitude, está ver! Dona Cecília – Sim está bem, mas não sei se tens assim tanta condição de ter atitudes em sociedade, deixa isso para outros os que possam fazer alguma coisa por vocês… Isabelita- Pois, está ver dc, mas haverá mesmo alguém que faça alguma coisa por nós Dona Cecília – claro que há! Há muita gente que pensa em vocês, vocês estão na ordem do dia de uma boa percentagem de gente importante neste país.. e… Isabelita – Ora Dona Cecília, não complique, senão eu ainda lhe dou uma lição…Vá lá nós adoramo-la, não é pessoal, A dona Cecília é uma boa companheira Serafina- Claro a nossa melhor companheira- Zé Manel – Dona Cecília, nós estamos sempre consigo Dona Cecília- Pronto! Ganhem juízo! Olhem como vocês estão, vá aprontem-se. Zé Manel e ser e Is entram no balneário.
  • 18. 18 Dona Cecília – Que malta levada do diabo… Agente de sondagens – (entra) Bom dia! Bom dia! Dona Cecília- Bom dia! O que deseja? Agente de sondagens – Deixe apresentar-me: sou Liliana Carreira, agente de campo da empresa Sosondagens e estamos a realizar uma sondagem a pedido do executivo da câmara de Lisboa sobre os organismos camarários abertos à utilização do público, pode ver a minha credencial…e aqui a autorização do chefe administrativo… Dona Cecília – Sim! Muito bem , como posso ser útil? Mas diga-me isso tem a ver com o encerramento de balneários… Agente de sondagens – Não, nada disso, isto não passa de uma formalidade para fins estatísticos… Dona Cecília – Pois mas os fins estatísticos servem para fins deliberativos, que por sua passam a executivos… Agente de sondagens – Calma, sossegue, venho em paz, penso que está enganada, esta sondagem provavelmente tem a ver com futuro investimento, eu sei lá!... se calhar em reequipamento dos próprios balneários(sorri com sorriso amarelo) por certo é uma coisa boa, e… não demora nada… Dona Cecília- Não não deve demorar nada com a vontade que eu tenho em responder a isso, por mim podia acabar antes de começar. Agente de sondagens - Bem, não se apoquente, não é minha finalidade… bom, vejamos, há alguém do público para entrevistar? Há uma parte para o funcionário, outra para os utentes… Dona Cecília (um bocado de maus modos) – Sim há por aí uns utentes mas estão neste momento cheios de sabão… Agente de sondagens - Então vou começar por si, se não se importa, o seu cargo?
  • 19. 19 Dona Cecília – Assistente de balneário 1ª classe. Agente de sondagens - Ah! Tem piada, isso não tenho eu aqui. Eu acho que essa categoria já não existe. Dona Cecília – É o que eu sou, assistente de balneário de 1ªclasse Agente de sondagens - Eu só tenho aqui: auxiliar de 1ª ou 2ª. As novas categorias… Dona Cecília- As novas não me interessam, eu quando entrei era assistente de balneário de 1ª classe. Agente de sondagens – Sim mas as novas…. Dona Cecília- Se quer que eu seja nova ponha auxiliar de 1ª. Lá auxilio presto eu, e não é brincadeira, a senhora havia de saber… Agente de sondagens - Continuemos…. Há quanto tempo está neste serviço? Dona Cecília – Diga-me lá porque me estão a fazer isto? Deviam-me respeitar… Agente de sondagens - Mas a senhora não compreende isto não é o que pensa…. Saem os três do balneário Todos (ameaçadores) - E o que pensa a senhora? Dona Cecília – Calma lá gente, isto não pode ser assim… Agente de sondagens - Ah! Como estão? Tenho também umas perguntinhas para vocês… Isabelita – Perguntas? A malta quer é respostas, quem é você? Agente de sondagens - Eu sou uma agente da Sosondagens… Isabelita – Eu pergunto outra vez, quem é você? Mesmo na realidadezinha, quem é você? Quem a mandou cá? Vem fechar a loja? É que a malta não quer ouvir dizer não. Isto é malta que está plos cabelos Dona Cecília- Isabelita!
  • 20. 20 Agente de sondagens – Não, não pensem nada disso, eu sou independente, sou uma funcionária, não pretendo nada, eu não vou fechar nada, eu até acho o balneário… bom vamos a algumas perguntas, está bem? Serafina – Eu, não sei se sei responder, se for cá uma complicação Agente de sondagens - Não, nada são umas perguntas muito simples… Zé Manel – Eu gosto do balneário, pode escrever isso Agente de sondagens – claro vou escrever isso, mas respondam-me, por exemplo o sr, é utente há quanto tempo Zé Manel – eu não me chamo isso, eu sou Zm e eu ando cá há 12 anos, a tomar banho e a fazer a barba, às vezes corto as unhas dos pés porque na rua… Agente de sondagens – Só um momento cada coisa, de cada vez Isabelita- Cada coisa de cada vez, e eu agora já me passo dos carretos Agente de sondagens – e a senhora? Vem cá muitas vezes Isabelita – A senhora? Eu por acaso sou alguma senhora? Mas o que vem a ser isto, com perguntas de pastelaria, isto é pra algum casamento ou baptizado… Agente de sondagens – Calma, calma, eu queria-lhe perguntar se usa muitas vezes o balneário Isabelita – Nós todos usamos muito o balneário e usamos também muito a dona Cecília e por isso não queremos ninguém aqui a fazer perguntas… Agente de sondagens – Bom estou a perceber, acho que virei cá noutra altura… Dona Cecília – vocês ainda pioram as coisas, deixem esta agente fazer o seu trabalho Isabelita – isto não é trabalho. É trabalho policial, é uma chui! A gente não quer aqui chuis Serafina- Fora os chuis (diz numa voz efeminada) Isabelita- Isso mesmo, fora os chuis! (grita)
  • 21. 21 Zé Manel - fora os chuis (correm com ela gritando palavras de ordem) (revolucionam o balneário sempre gritando palavras de ordem, vão colocando cartazes, escrevendo e colando na boca de cena) - Fora os chuis - Sim ao balneário não queremos outro cenário! - Aqui não fecham! - Cremo-nos lavar, urinar e cagar! - Câmara municipal é o culpado principal - Alcântara aberto é o que está certo - Todos cá que a coisa está má Dona Cecília chora Todos dão conta do choro de dc e começam a calar-se Dona Cecília- O que vocês fizeram? Vão destruir tudo num ápice- 23 anos de dedicação absoluta, nunca infringi uma regra que fosse. O que têm contra mim? Não fiz tudo por vós durante este tempo todo? Não merecia isto… para além das consequências disto tudo, é uma vergonha enorme que sinto por isto que acabaram de fazer. Onde têm a cabeça, não percebem que isto vai acabar mal? Zé Manel – Mas nós só queremos ajudar. Serafina- Dona cecília, isto tudo é para a apoiar. Isabelita – Dona Cecília, isto é uma luta, uma batalha, uma guerra. Querem-nos tirar o pouco que temos, o balneário tem sido um pouco a nossa casa. Não podemos deixá-los fazer o que querem. O balneário não é deles, é dos manganos que aqui vêm, é dos utentes como você diz. A cena já vai muito alta. Como fazemos? Cruzamos os braços? Daqui ninguém sai, não a deixo fechar a porta
  • 22. 22 dc- façam como quiserem, eu vou à câmara falar com alguém, tenho de saber o que se passa. Zé Manel – Pode estar descansada, nós cuidamos do balneário (dc sai) Isabelita – Não podemos perder o balneário, é nossa torre de controle. Serafina- É o nosso lar, por bem dizer Zé Manel – Perder o balneário é perder o norte Isabelita- Pois mas agora estamos a leste, a nossa bússola neste oceano que se chama cidade Serafina – Ai que poesia! Não te sabia poeta, até me arrepiei nos braços Zé Manel – É muito bonito o que disseste agora, gostei muito. Isabelita- Tu até és um mangano sensível, o que eu disse não é nada de especial. Temos é que pôr os mirantes bem nisto, não vá a chuialhada aparecer por aí, e depois é que é cabo dos trabalhos Zé Manel – Pois claro, não podemos dar isto de mão beijada Serafina – de mão beijada, ai que bonito Zé Manel – Oh Serafina não exageres, isto que eu disse não é poesia Serafina- Deixem-me sentir que estou muito nervosa Isabelita- Pronto! Fica aí a sentir, que a gente guarda o palácio. Zé Manel – E o que se vai seguir, Isabelita? Isabelita- Sei lá! O melhor é esperar as novidades da dona Cecília, depois se verá, o que vier morre. Serafina- Ai! Que expressão tão forte! Isabelita- Deixa-te disso, Serafina! Olha, vê aí o rádio, põe música da boa! Zé Manel – Isso um pouco de música, da boa! Serafina- Ai. Não sei tem tantos postos de rádio (vai experimentando vários postos)
  • 23. 23 (põe a Antena 2) Isabelita- Isso é muita cultura pra os meus ouvidos, que só ouvem lamúrias e apitos de automóveis (põe Micael Carreira) Isabelita- Eh pá! Isso é pra cair de amores num prato de orelha de porco cozida Serafina – Não sei o que querem… Zé Manel – Uma coisa mais portuguesa, isso é só salamaleques de 5 tostões (põe o rap/fado) Isabelita- Olha aí está uma coisa boa para os abanos Serafina – Isto até se pode dançar… Zé Manel – Dançar? Isabelita – Rap não se dança Serafina – Tudo vale a pena dançar quando a alma não é pequena Isabelita – Olha aí está também uma grande poetisa. Vamos lá a isto. (dançam) Zé Manel – Gostei de te ver dançar, isabelita Isabelita – Gostaste pá! Andas-me a seguir com os mirones Zé Manel – Os mirones é que gostam do que vêem Isabelita – Eh pá! Tas-me a cantar uma canção…! Zé Manel - Há já um tempo que gosto de olhar pra aí! Isabelita – Vai com calma pá. Eu simpatizo contigo, mas… Serafina- Querem ver o meu número pró politeama (faz o número) (ser dança e canta os outros fazem coros) Isabelita – Ó Serafina, como é que tu destes nessa festa de travesti
  • 24. 24 Serafina – Na verdade eu acho que isto nasceu comigo, sou assim comprendem, pronto já nasci rapariga, mas com o coiso. Isabelita – Pois dispenso pormenores. Serafina - Isto é uma vida muito ingrata, não somos considerados ninguém nesta sociedade, isto é uma grande gaita. Zé Manel – Mas és homem ou mulher? Serafina - Mas isso que interessa, sou pessoa não te basta, tenho sonhos como os outros, penso, tenho opiniões e trabalho se for preciso como os outros- Zé Manel – Isso não é verdade, não conseguias trabaslhar nas obras, dava-te alguma vertigem castrapumba! Serafina - Bem cada um é para o que nasce, acho que sou tão válida como outra pessoa qualquer, há gente como eu, na polícia, nos bombeiros e até futebolistas Isabelita - Futebolistas? Serafina - Ora então! Serafina- Seja com for cada um é pra o que nasce- mas que isto é obra do criador há isso é que é. Ele quer-nos assim, cada um no seu ramo, a vida é uma árvore, que tem a mesma raiz e deita frutos comuns. Zé Manel – Ora isso é que é falar Isabelita - Tá bem achado, ganda maluca e poetisa também! (entra uma mulher polícia) Agente da Judiciária – Quem é a Isabel Jorge Vicente? Isabelita- Sou eu, o que há? Agente da Judiciária - Tens que vir comigo. Isabelita- O que é que eu fiz? Agente da Judiciária – Isso é o que vais dizer daqui um bocado lá na esquadra.
  • 25. 25 Isabelita- Mas eu já há muito tempo que não ando no cavalo. Agente da Judiciária - Não digas mais nada, tudo o que disseres p’ode servir para te acusar Zé Manel – se calhar foi aquele berbicacho do outro dia em Santos, lá do outro tipo todo engravatado que queria que vocês andassem a vender droga Isabelita- mas eu não fiz nada, juro pelos santinhos Agente da Judiciária - juras lá na esquadra está descansada, agora tens de vir comigo, ora põe lá os bracinhos a jeito… Isabelita- Eh pá! Que ganda balde! Agora que a luta estava a começar. Zm toma conta da área, ficas responsável pela luta, conto contigo (vai saindo) Zé Manel – E eu conto contigo, tá bem? Isabelita – Vá, não me partas o coração, tá bem? Serafina- (chora) Adeus, Isabelita, vou ficar a chorar por ti Isabelita – Poupa as lágrimas, eu hei-de voltar – I’ll be back! I’ll be back Saem. Zé Manel – Ó Serafina vou lá à esquadra, ela não pode ficar lá sozinha, pode precisar de alguma coisa Serafina fica só. Serafina – Isto vai de mal a pior, parece que caiu aqui um meteoro, está a riscar a humanidade toda. A humanidade é este balneário. Há anos que me lavo, me penteio, me arranjo aqui, foi aqui que encontrei uma família, a dona Cecília, o Manel, a Isabelita, e muitos outros que fazem destes dias duros, uma alegre existência. Na verdade não sei o
  • 26. 26 que há contra gente como nós, somos vítimas das nossas vidas e ainda parece que somos perseguidos por sermos assim. Quando aqui venho, às vezes irritada por tanto insulto em toda cidade., parece-me que volto à barriga da minha mãe. Quando me lavo naquele sabonete sempre da mesma marca, passo horas a ensaboar-me, a deliciar-me com a água que corre do chuveiro como se fosse água de marca tipo vichy ou coisa assim, não nada disso é mais que água, é mel, é água tão doce como de uma manhã. Às vezes esqueço esta bichisse toda, vejo-me. Sonho-me em qualquer lado, um dia num escritório tratando de vários assuntos, muito sérios e delicados, outras sou uma advogada defendendo grandes causas, até sonhei política, defendendo em comícios ideias generosos e apontando o caminho da paz. Mas é de Deus que gosto de mais de sonhar, voando sobre o mundo, puxando aqui e ali um cordelinho, soprando um ventinho aqui e acolá, no chuveiro, aqui no balneário eu sou um bocadinho de tudo e sobretudo sou uma pessoa entre outros, sou mais do que já pude ser noutro beco qualquer. Já não vem hoje mais ninguém. Arranja umas toalhas para se deitar nelas. Hoje sou só eu (fecha as portas) Deus quer que seja eu o Zelador mor Acende uma vela Hoje haverá apenas uma luz na humanidade. III Zé Manel (como que anda perdido, para trás e para frente cuidando aqui e ali de qualquer coisa) – A vida anda pra trás e pra frente, depois vai pra trás depois vai pra
  • 27. 27 frente, é sempre este vaivém, estou cansado disto, queria assentar, mas nada pega, a terra é má e a raiz também, não há planta que cresça aqui. A minha vida é com um carrossel da feira popular, altos e baixos, mais baixos que altos, por bem dizer. Por acaso a minha vida é na baixa. A gente não é nada é certo, mas portamo-nos bem, fazemos o que podemos: lavamo- nos-se, cuidamos-se do corpo, tentamos ser bem educados respeitadores, fazemos uns biscates dentro das normas, dedicamo-nos aos fretes e ás gorjas, mas não saímos disto, espécie de vadios bem educados. Talvez na província fosse diferente, lá há estrada a direito, podemos seguir um rumo, se calhar encontrar uma porta amiga, um sitio onde ficar, um trabalho, talvez até uma vida. Aqui a estradas são todas tortas, uma rua desemboca noutra que vai dar a outra que por sua vez vai dar a outras, sempre como num labirinto, por mais que se ande, tudo vai dar ao mesmo sítio, é o raio de uma complicação. Pronto vivemos na cidade, mas o que é cidade pra nós, lixo, vícios e problemas, a cidade não é feita pra gente, pra gente e pra gente, isto é bom é para robots bem orientados, sem estas febres de liberdade, é pra gente com o juízo na carteira e aritmética no coração, não é pra gente, malta da humanidade, A cidade é pra os ricos, nas viravoltas entre o escritório e o supermercado, lojas, clínicas e cabeleireiro, restaurantes e boites. Não se vive nas cidades, isso de viver com o coração a dar a dar isso, não se vive, essa malta da alta não vive, aboneca-se, são bonecos e bonecas na casinha das brincadeiras. E depois há a malta da política, mas o que faz a política, quem manda é o que mais tem, sempre foi assim. “Zé Manel está aqui trabalho para fazeres, se não quiseres há mais quem queira” pronto quando dizem isto a gente já sabe, quem tem é que manda, quem manda escolhe, julga e resolve. O resto são tretas, ninguém perde o que tem, menos nós que andamos por aqui na rua, menos nós que levamos com a vida em cima de nós, nos tira a vaidade e o orgulho, nós vemos, vemos o que por aí
  • 28. 28 vai, vemos como podia ser diferente, quer dizer melhor pra todos, mas não, nós não valemos nada, somos menos que um guardanapo num restaurante, o que dizemos e o que vemos vai também para o lixo. O lixo dourado que este mundo deita… …/… (chega Dona Cecília) Dona Cecília – Ora, como vai esta casa? Sem dono e sem lei? Zé Manel – Estava preocupado consigo dc, todo o dia outra vez ocupada com os srs da câmara? Dona Cecília – E foi a terceira reunião, por fim, é o fim! Zé Manel – Então? Dona Cecília – Vamos fechar, não há volta a dar. Zé Manel – O que lhes disse? Falou com quem? Dona Cecília – O que lhes disse, ó Zé Manel aquilo é gente que não ouve, ou por outra é gente que tem as orelhas coladas aos votos, não há ponto a dar-lhes, agora é que se lembraram da economia, de pouparem etc. Sabes o que te digo, só não poupam onde haviam de poupar, são pobres para umas coisas e para outras não. Como é que um país que é um país admite uma coisa destas? Uns com tudo e muitos com pouco, até na miséria. Eu não sei como esta gente consegue dormir à noite, ou sentar-se todos os dias à noite para jantar e comer uma sopa de marisco e um bom bife de lombo, esta gente até se esquece das suas próprias almas, é gente mesquinha, gente que não é gente, sabes o que te digo, há muito que este mundo deixou de ser mundo, a sociedade é apenas uma cadeia alimentar, e lá em cima estão apenas os maiores predadores, os maiores canibais,
  • 29. 29 neste caso, mesmo que tenham este palavreado de solidariedade ou camaradagem, por trás disto e até de utopias, está a ambição pessoal, a próxima caçada. Zé Manel – Parece que nem a conheço a falar desta maneira. Dona Cecília – Pois Zm, nestas alturas a gente compreende certas realidades, isto tudo é uma gigante máquina de destruição maciça que o homem engendrou, o homem quer dizer, alguns, neste caso bastam alguns, uma máquina do diabo é o que eu te digo. Bem, mas é assim, isto vai fechar e é hoje mesmo, vamos todos daqui para fora é como 2 e 2 são 4. Zé Manel – Ora gaita para isto, não valeu nada o nosso protesto. Dona Cecília – O como está a Isabelita? Ainda lá está? Zé Manel – Fui lá visitá-la hoje de manhã. Gostou de me ver. Esta cheia de saudades disto tudo, vai ficar desiludida quando souber como tudo acabou. Parece que não têm nada contra ela, é só para chatear. Dona Cecília – Pois! Tem de se conformar, é o que vai acontecer a nós todos. Zé Manel – E o que vai fazer Dona Cecília? Dona Cecília – Eu sei lá ainda não pensei em mim, eu ainda não fiquei em mim. O que vou fazer? Vou ser supranumerária, é o que está a dar… Zé Manel – Talvez ainda lhe arranjem qualquer coisa, sei lá… Dona Cecília- Não te preocupes comigo, alguma coisa há-de acontecer Serafina – Bom dia a todos, viva Portugal! Dona Cecília. Ora bem alguém positivo, cheia de alegria. Serafina- Como ficou isto do balneário? Zé Manel – Vai fechar, não há nada a fazer… Serafina – então estou triste e alegre Dona Cecília – como é lá isso? Triste e alegre?
  • 30. 30 Serafina- Triste porque isto vai fechar, mas eu tinha ideia que isso ia acontecer, alegre porque consegui o lugar no espectáculo do politeama. Dona Cecília – Mas isso são grandes novidades, parabéns, conseguiste! Zé Manel – Parabéns Serafina! Serafina – E tenho mais novidades para si Dona Cecília. Dona Cecília - Ah sim? Serafina – Estão a pedir alguém para a bilheteira do teatro e eu lembrei-me da dc, eu ainda não sabia o resultado disto, mas na via das dúvidas dei o seu nome, interessada? Dona Cecília- Pois, parece-me boa ideia, obrigado serafina és um bom coração. Serafina-Eu não me podia esquecer da Dona Cecília. (entra isabelita) Isabelita – Ora viva grande arraial, tudo contente? Serafina – Viva!Viva!Viva! três meses de alegria Isabelita – Bem podes dizer, o calabouço fedia por todos os lados, Aquilo está pior que um aterro sanitário, é só escumalha, e olhem que não havia gente como nós dos sem- abrigo. Dona Cecília – Mas o que tinham contra ti? Isabelita – queriam que eu desse com a língua nos dentes, bufasse, mas não havia nada que bufar, os camones que passavam o cavalo já há muito que tinham dado corda aos sapatos, já deviam estar a cantar flamenco lá a Espanha. Chatearam-me, chatearam-me, mas só pra me meterem na ordem, porem-me medo. Bem também cantei-lhes cá uma canção… Zé Manel – Então Isabelita, destes-lhes uma lição? Isabelita – Falei-lhes da liberdade:
  • 31. 31 “Vocês se não fossem chuis, o que é que gostavam de ser? Não sabem, nem respondem, pois moi vos digo. Nada, simplesmente, rien! Zero abatatóides. E o que é um zero ao pé de alguém (aponta para ela) menos zero! Que inda é menos que zero, negativo. Porque aqui está alguém, estão a ver aqui a tatuagem? (vai interagindo com os presentes como se eles fossem os policias) isto é um morcego, uma marca contra as fodas, as vossas fodas, é o meu voo da noite, por entre as merdas que vocês nos deitam, é a nossa liberdade, a noite o que resta desse dia que ocupam com as vossas top guns e as merdas das ordens e das cenas sociais que vocês defendem, a nossa noite é linda e vocês não sabem isso, andamos como morcegos alimentamo-nos como eles de insectos e de restos da cena da sociedade, e curtimos, fazemos magia, alquimia, tá bem com a cena da droga, mas fazemos a nossa liberdade. Porque somos muito nós, muito ser, somos muita coisa que anda por aí perdida, e nós achámos, encontramos essas cenas aí, reprimidas em vocês, olhem se calhar deixam nos bolsos à noite, ou nas fodas violentas que vocês mandam nas vossas mulheres, reprimidos, estão todos reprimidos aí na cena das televisões, das repartições, dessas merdas dos vossos jornais, depois atiram-nos com política com cena de regras e preconceitos e morais, nós somos os novos cavaleiros, essa cena da história, dos nobres antigos, somos os que sabemos, eh pá somos mais, e vocês não têm o direito, é pá, vocês não ousem tocar-me, que eu fodo-vos um dedo, ouviram, eu fodo-vos o juízo, até vocês cuspirem essa merda de cassete que vocês bebem na cerveja” Ficaram brancos, remoeram uns pró outros que o melhor era deixarem em paz. Fizeram-me mais meia dúzia de perguntas e depois largaram-me como a um passarinho se faz quando se abre a gaiola. Dona Cecília – És boa rapariga, nunca to disse, mas tenho cá um cantinho pra ti (aponta o coração)
  • 32. 32 Serafina – Eu acho-a formidável, obrigado amiga, por seres minha amiga, passo a confusão das palavras, ai as palavras! Dona Cecília- Pronto e tudo acaba assim, anda Serafina anda-me a ajudar a arrumar a casa, temos que fechar isto antes do meio-dia. Isabelita – O quê isto vai fechar? Zé Manel - Não há nada a fazer, já está tudo decidido, temos que usar outro balneário Isabelita – Eh! Pá isto parte-me o coração… Zé Manel – A dona Cecília vai trabalhar para a bilheteira do Politeama Isabelita – Inda bem pra ela, mas a malta não pode ir embora assim… Dona Cecília- Como assim? Isabelita- e então vamo-nos embora assim, sem mais nem menos. Serafina – Pois cada um para seu lado. Zé Manel – Até se me esvaía a alma. Isabelita- Por falar em esvair, acho que tive uma ideia. Temos de fazer um pacto de sangue, juntem-se a mim. Os outros rodeiam-na. Isabelita – Eu acho que a cena do balneário juntou-nos, foi uma coisa muito fixe, tem de ficar escrito quanto estamos juntos nesta cena da amizade. Serafina- Então e como vai ser? Isabelita – Fazemos uma tatuagem. Zé Manel – Por mim está bem, mas o quê se põe? Isabelita – DC. Zé Manel - DC? Serafina- DC? Isabelita – DC são as iniciais da Dona Cecília
  • 33. 33 Dona Cecília – Olha o que te havias de lembrar! Isabelita – A sério, foi a dc que nos juntou como irmãos neste balneário Zé Manel – Acho que sim por mim tudo bem Isabelita- Tem que ser mesmo a sério, é a marca da nossa união Serafina- eu vou pô-la no pescoço pra toda a gente ver Zé Manel – Eu ponho-a no pulso, pra vê-la a todas horas Dona Cecília- Bom, talvez a faça, mas tem de ser escondida, apesar de tudo guardar- vos-ei sempre comigo. Isabelita- Eu pô-la-ei no peito junto ao coração. Dona Cecília- Minha Isabelita dá-me um beijinho (beijam-se) Serafina – E quando nos encontraremos? Isabelita – Por aí, sabes serafina a cidade é como o mundo também é redonda. Zé Manel – Eu gostaria de te ver mais vezes, se possível. Isabelita- Sabes Zé Manel também engraço contigo, és assim calado mas à faíscas que atiram daí pra aqui e daqui pra aí. Serafina- Vamos fazer um hip hip hip urra Juntam-se todos. Isabelita - Alcântara forever Todos repetem – Alcântara forever Saem A última sair é Dona Cecília Dona Cecília – 23 anos!(olha para todos os lados) Acho que não ficou aqui nada. (sai)