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Tudo que flui é fluzz. Tudo que fluzz flui.
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Fluzz é o fluxo que não pode ser aprisionado por qualquer mainframe.
Porque fluzz é do metabolismo da rede. Ah!, sim, redes são fluições.
Fluzz evoca o curso constante que não se expressa e que não pode
ser sondado, nem sequer pronunciado do “lado de fora” do abismo:
onde habitamos. No “lado de dentro” do abismo não há espaço nem
tempo, ou melhor, há apenas o espaço-tempo dos fluxos. É de lá que
aquilo (aquele) que flui sem cessar faz brotar todos os mundos.
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Muitos mundos, isso mesmo. Não existe um mundo que se possa
dizer o mundo, a não ser por efeito de hierarquização.
Pensar e falar do mundo é tentar impingir um só mundo. Pois os
mundos são muitos. Um só mundo é uma invenção do broadcasting.
Broadcasting – um para muitos – é, obviamente, centralização, quer
dizer, hierarquia. Tirem as TVs e as rádios, os jornais e revistas, as
agências de notícias, talvez o cinema e não sobrará mais um só
mundo. Sem o broadcasting já teremos múltiplos mundos: cada qual
configurado pelas nossas conexões. Com a internet esses mundos se
multiplicam velozmente, mas não por difusão e sim por interconexão.
Desse ponto de vista, interconnected networks (internet) é, na
verdade, interconnected worlds. E fluzz é o vento que varre esses
inumeráveis interworlds.
No mundo hierárquico, não há interface para fluzz. Mas quando fluzz
for do regime dos múltiplos mundos interconectados, esses mundos
serão os novos Highly Connected Worlds do terceiro milênio.
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Nos novos mundos altamente conectados do terceiro milênio, vida
humana e convivência social se aproximarão a ponto de revelar os
“tanques axlotl” onde somos gerados como seres propriamente
humanos. Todos compreenderemos a nossa natureza de “gholas
sociais”.
Os tanques onde somos formados como pessoas são clusters,
“regiões” da rede social a que estamos mais imediatamente
conectados.
Um tipo especial de ghola: não um clone de um indivíduo, mas um
“clone” de uma configuração de pessoas. Toda pessoa, como dizia
Novalis (1798), é uma pequena sociedade; quer dizer, pessoa já é
rede! Pessoa é um ente cultural que replica uma configuração. É um
ghola social.
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Não há nada a fazer. Deixem fluzz soprar para ver o que acontece.
(Na verdade, dizer ‘deixem fluzz soprar’ é apenas uma maneira de
dizer, pois fluzz já é o sopro).
Quando fluzz soprar, prá que ensino, prá que escola? Quando fluzz
soprar, para que religião, para que igreja? Quando fluzz soprar, para
que corporação, para que partido? Quando fluzz soprar, para que
nação, para que Estado?
Oh! É claro que todas essas instituições perdurarão: como
remanescências. Não serão mais prevalecentes. Aliás, como já se
prenuncia, elas se contaminarão mutuamente: nações serão religiões,
escolas serão igrejas, Estados serão corporações... e tudo será,
afinal, o que é – sempre a mesma coisa: programas verticalizadores
que “rodam” na rede social instalando anisotropias no espaço-tempo
dos fluxos.
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Enquanto isso, porém, crescem subterraneamente as hifas, por toda
parte. Os alicerces das organizações hierárquicas vão sendo corroídos
e seu muros, antes paredes opacas para se proteger do outro, vão
agora virando “membranas sociais”, permeáveis à interação e
vulneráveis ao outro-imprevisível. Pessoas conectadas com pessoas
vão tecendo articulações que estilhaçam o mundo-único-imposto em
miríades de pedaços, não pelo combate, mas pela formação de redes.
E outras identidades – mais-fluzz – vão surgindo nos novos mundos
altamente conectados do terceiro milênio.
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Para o mundo único broadcast que remanesce o terceiro milênio
ainda não começou. Grandes “verdades” do final século 20 não foram
ainda revistas, conquanto não faltem evidências de seu
envelhecimento. Três exemplos eloqüentes:
O mundo virou uma aldeia global? Não. Está virando miríades
de aldeias globais.
Pensar globalmente e agir localmente? Não. Pensar e agir
glocalmente!
Sustentabilidade é resguardar recursos para as futuras
gerações? Não. É aprender a fluir com o curso...
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Os que continuam aprisionados no mundo único dos séculos passados
ainda não lograram perceber o que está em gestação neste período.
A revelia dos cegos “líderes mundiais” e além da compreensão dos
analistas de governos e corporações, grandes movimentos
subterrâneos estão em curso neste momento. De modo molecular,
distribuído e conectado de sorte a formar um feixe intenso de fluxos
– fluzz –, estão se articulando e se expressando glocalmente
experiências inovadoras que tendem a alterar na raiz a estrutura e a
dinâmica das sociosferas. Eis alguns exemplos fulcrais do que está
emergindo:
Não-Escolas: comunidades de aprendizagem (homescooling e,
sobretudo, communityschooling, cada vez mais na linha de
unschooling) em rede, sem currículo e sem professor e aluno.
Não-Igrejas: formas pós-religiosas de espiritualidade, livres
das ordenações das burocracias sacerdotais.
Não-Partidos: redes de interação política (pública) exercitando
a democracia local na base da sociedade e no cotidiano dos
cidadãos.
Não-Estados-nações: cidades inovadoras – como redes de
comunidades – que assumem a governança do seu próprio
desenvolvimento em rota de autonomia crescente em relação
aos governos centrais que tinham-nas por seus domínios.
Não-Empresas-hierárquicas: redes de stakeholders –
demarcadas do meio por membranas (permeáveis ao fluxo) e
não pode paredes opacas – como novas comunidades de
negócios do mundo que já se anuncia.
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Nada disso está sendo percebido pelos mantenedores do velho
mundo que são, invariavelmente, “net-avoids”, ou seja, aqueles que
desconfiam das redes quando não deveriam fazê-lo, posto que
justamente em uma época de transição para uma sociedade em rede.
E estes são, quase sempre, hierarcas. Não conseguem ver o que está
ocorrendo porque, do lugar onde operam, objetivamente, contra os
novos mundos que estão emergindo, a mudança não pode mesmo
aparecer. Alguns exemplos dessas categorias – que freqüentemente
se misturam e incidem em alguma combinação particular sobre um
mesmo indivíduo “vitorioso” (segundo os critérios do milênio
pretérito) – merecem ser destacados: os ensinadores ou burocratas
sacerdotais do conhecimento, os codificadores de doutrinas, os
aprisionadores de corpos, os construtores de pirâmides, os
fabricantes de guerras e os condutores de rebanhos.
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A resiliência dessas velhas funções, agenciadoras de um tipo de
mundo (erigido para exterminar outros mundos) que teima em não
desaparecer, não está conseguindo impedir o surgimento de novos
papéis sociais que antecipam uma nova época.
Caminhando fora dos trilhos estabelecidos, emergem a cada dia
novos atores do mundo glocalizado. Sim, eles já estão entre nós. Não
são conhecidos porquanto não são pessoas que ficaram famosas
segundo o que até então era considerado indicador de sucesso: pelo
seu poder, pela sua riqueza ou pelo seu conhecimento atestado por
títulos. Quem são? Ora são os múltiplos anônimos conectados,
habitantes de uma diversidade incrível de Highly Connected Worlds,
que não foram produzidos por broadcasting. São como aquele
personagem do romance Distraction de Bruce Sterling (1998) que,
para se identificar, afirmou: “Não temos raízes. Somos pessoas da
rede. Temos antenas”.
Tais papéis inéditos que estão sendo produzidos pela (ou em) rede
são também múltiplos. Por enquanto só conseguimos divisar alguns.
Três exemplos marcantes são os hubs, os inovadores e os
netweavers.
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A despeito do fato, incontestável, de a dinâmica global da interação
entre as velhas instâncias organizativas ter mudado, anunciando a
emersão de uma verdadeira sociedade-rede, um novo padrão de
organização distribuído não logrou se materializar no interior e no
entorno das organizações empresariais, governamentais e sociais,
que continuaram ainda se estruturando de modo centralizado ou
hierárquico. Ou seja, o muro que caiu em 1989, caiu para o mundo
construído pelo broadcasting como um único mundo, sob o efeito das
poderosas forças da globalização (sobretudo da globalização das
telecomunicações e da globalização dos mercados), mas não chegou
a se localizar nas organizações realmente existentes em todos os
setores. A mudança continuou acontecendo, mas os novos (e
múltiplos) Highly Connected Worlds como que "cresceram
escondidos" nesta época de mudança e não apareceram ainda à luz
do dia, de sorte a consumar o que poderíamos chamar de uma
mudança de época. Esses "mundos-bebês" estão agora em gestação.
Os fenômenos acompanhantes desse glocal swarming serão
surpreendentes. Alguns já começaram a se manifestar: uma
tendência acentuada à desobediência dentro das organizações
hierárquicas, a incapacidade dessas organizações de inovar no ritmo
exigido pelas mudanças contemporâneas (ou melhor, de se estruturar
para inovar permanentemente) e - o que é mais drástico - as perdas
irreversíveis de oportunidades e condições de sustentabilidade para
as organizações fechadas que não forem capazes iniciar a transição
do seu padrão piramidal para um padrão de rede.
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Bem-vindos aos novos mundos-fluzz.
Esqueçam suas velhas idéias e práticas de comando e controle.
Abram mão de suas noções-século-20 de participação. E se livrem da
compulsão de gerir o conhecimento ou organizar conteúdos para os
outros (ou juntamente com eles). Preparem-se para entrar no
multiverso das interações.
Nos mundos-fluzz não é o conteúdo do que flui pelas conexões da
rede a variável fundamental para explicar o que acontece(rá) e sim o
modo-de-interagir e suas características, como a freqüência, as
reverberações, os loopings, as configurações de fluxos que se
constelam a cada instante, os espalhamentos e aglomeramentos
(clustering), os enxameamentos (swarming) que irrompem, as curvas
de distribuição das variações aleatórias introduzidas pela imitação
(cloning) que produzem ordem emergente (a partir da interação), as
contrações na extensão característica de caminho (crunch) dentro de
cada cluster...
Em vez de tentarem organizar a auto-organização, construam
interfaces para conversar com a rede-mãe, aquela que existe
independentemente de nossos esforços conectivos voluntários e que,
para usar uma imagem do Tao, é como o espírito do vale, suave e
multífluo, [como] a mulher misteriosa que age sem esforço ao se
deixar varrer pelo sopro, ao ser permeável ao fluxo que não pode ser
aprisionado por qualquer mainframe: fluzz.
Oh!, sim, redes são fluições. Este livro é sobre redes.
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Tudo é fluzz
Tudo flui como um rio.
Crátilo (c. 500 a. E. C., em um insight heraclítico, talvez)
Twiver.
200 milhões de timelines (em 2010) fluindo no twitter-river.
(A partir de 21/03/2006)
Fluzz é o Buzz que o Google não fez; e nem poderia fazer.
De uma conversa do autor com Marcelo Estraviz (2010) (1)
Tudo que flui é fluzz. Tudo que fluzz flui.
Tudo que flui é fluzz. Pronto. Qualquer outra definição seria diminutiva.
Qualquer outra explicação aprisionaria a imaginação criadora. Para ler este
livro é necessário soltar a imaginação que cria múltiplos sentidos. Para
escrever também (sim, esta é uma escritura de imaginação, não de
análise). Foi necessário até inventar palavra que não existe. Como disse o
poeta Manoel de Barros (pela boca do Bugre Felisdônio), “as coisas que não
existem são mais bonitas” (2).
Sim, fluzz é uma nova palavra substantiva. A substância mesmo,
entretanto, muda a cada momento. Como? Não sabemos. Então este é uma
espécie de “Livro das Ignorãças”, que vai avançando em círculos, ou em
espiral, como nós, os humanos, quando caminhamos às cegas (3). Por isso,
cada capítulo imita os anteriores e clona (no sentido grego, original, do
termo) o que já veio: do galho nasce um broto, e outro, e outro – como
filosofemas, não argumentos formais. Entrementes, porém, a imaginação
salta vôo: Manoel de Barros (novamente ele, mas agora pela sua própria
boca) diria que “todas as coisas... [aqui] já estão comprometidas com aves”
(4).
O impagável Ben Jonson havia advertido que “não se cunha uma nova
palavra sem correr um grande risco, porque, se for bem aceita, os louvores
serão moderados; se for rejeitada, o desprezo é certo”. Isso foi lembrado
por Arthur Koestler (1967), quando, no seu (extraordinário) O fantasma da
máquina, criou a palavra hólon (5). Fluzz tem algo de hólon, se deixarmos
de olhar a máquina, a estrutura fixa, e começarmos a acompanhar o
fantasma que desliza pelos seus desvãos (the ghost-in). Por isso, como ele,
vamos correr o risco. Vamos seguir o risco. Vamos voar com a ave. Vamos
fluir com o curso.
Mas fluzz também é um novo adjetivo e assim será aplicado. Não se pode
dizer que uma coisa seja não-fluzz. Tudo é fluzz, em alguma medida. Mais-
fluzz, todavia, é o que está sujeito à mais-interatividade.
Mais interatividade, porém, não significa necessariamente interagir mais –
com mais freqüência, com mais pessoas – e sim estar mais aberto à
interação. O que tem mais interatividade? O que está mais vulnerável ao
outro-imprevisível.
Mais interatividade é, por isso, o que causa menos anisotropias no espaço-
tempo dos fluxos e, em conseqüência, menos deformações no campo social.
Ou seja, redes. Redes mais distribuídas do que centralizadas.
Atenção. Vai começar. Tudo que fluzz flui. Fluzz agora é verbo.
Tudo é fluzz | 0
(1) A palavra fluzz nasceu de uma conversa informal do autor, no início de 2010,
com Marcelo Estraviz, sobre o Buzz do Google. O autor observava que Buzz não
captava adequadamente o fluxo da conversação, argumentando que era necessário
criar outro tipo de plataforma (i-based e não p-based). Marcelo Estraviz respondeu
com a interjeição ‘fluzz’, na ocasião mais como uma brincadeira, para tentar
traduzir a idéia de Buzz+fluxo. Ulteriormente a idéia foi desenvolvida e recebeu
outros significados, que não têm muito a ver com o programa mal-sucedido do
Google, como se pode ver neste livro.
(2) BARROS, Manoel (1993). “Uma didática da invenção” in O Livro das Ignorãças.
Rio de Janeiro: Record, 2004.
(3) Cf. DIAZ, Jesus (2010). Humans can only walk in circles and we don’t know
why. Gizmodo:
<http://www.npr.org/blogs/krulwich/2010/11/03/131050832/a-mystery-why-can-
t-we-walk-straight>
(4) BARROS, Manoel (1993). “Mundo pequeno” in O Livro das Ignorãças: Ed. cit.
(5) KOESTLER, Arthur (1967). O fantasma da máquina. Rio de Janeiro: Zahar,
1969.
Índice
Tudo é fluzz | 0
No “lado de dentro” do abismo | 1
Inumeráveis interworlds| 2
Pessoa já é rede | 3
Anisotropias no espaço-tempo dos fluxos | 4
Hifas por toda parte | 5
O terceiro milênio já começou? | 6
Alterando a estrutura das sociosferas | 7
Os mantenedores do velho mundo | 8
Eles já estão entre nós | 9
“Mundos-bebês” em gestação | 10
Bem-vindos aos novos mundos-fluzz | 11