1. PREDESTINAÇÃO UMA RELEITURA
A doutrina da predestinação (ploorismos) foi e será uma temática que sempre produzirá
muita celeuma. Infelizmente seu ensino sempre imprimiu um tônus gravoso de beligerante
divergência no seio da cristandade e entre seus maiores vultos, criando escolas teológicas
visceradamente antagônicas (agostinianos, pelagianos, calvinismo, arminianismo ou
remostrante).
Para alguns, suas supostas incoerências e terríveis implicações, tais como: anulação da
responsabilidade humana, comprometimento do livrearbítrio, autoria divina do pecado, enfim,
são de natureza tal que não podem ser superadas. Para esses predestinação é doutrina do
Diabo e heresia do inferno cheia do toda contradição.
Outros, entretanto, compreendem que as tais altissonantes implicações e contradições
atribuídas à predestinação, se vistas de modo mais particular e detido, na verdade não passam
de um grandioso paradoxo, ou seja, uma junção de dois pensamentos que aparentemente se
manifestam como contraditórios, mas que de fato não são. No caso material, esse paradoxo
recai nas realidades aparentemente irreconciliáveis da soberania divina sobre os atos
contingentes dos seres humanos, notadamente os da salvação e as livres escolhas humanas e
seus de desdobramentos: a responsabilidade moral e espiritual.
Reconhecendo as Tensões
Na verdade, independentemente da posição que se tome frente o debate acerca dessa
doutrina é impositivo, sob pena de total obscurantismo intelectual reconhecer duas assertivas
estruturais: a primeira é a real tensão que a predestinação impõe sobre o honesto estudante da
palavra de Deus (não há espaço aqui para os meros sofistas debatedores).
Ao adentrar os meandros bíblicos que apresentam esse ensino não dá pra dissimular o
incômodo que surge diante de indagações como: Será que temos livrearbitrio para tomarmos
decisões, ou será que de alguma forma todas às coisas já foram decididas por Deus? Até que
ponto Deus é soberano em relação a tudo o que ocorre no mundo e quais as linhas limítrofes da
responsabilidade do homem por seus atos? Tal desconforto que inapelavelmente atinge todos os
que se defrontam com esse magno tema constrói uma estrutura de resistência granítica, um
ponto sísmico de difícil categorização, pois, a Bíblia faz afirmações sólidas tanto acerca do
exercício soberano da ação de Deus sobre a existencia humana (Ef 1.11; Rm 9.19). Como sobre
a absoluta responsabilidade dos homens em suas ações (Mt 16.27).
2. Esse modo dual de conceber o tema no sentido da superação da própria dualidade
arremessa os estudiosos da predestinação em uma decisão binária, ora em rejeição como
consumada heresia, ora aceitação resignada do mistério divino da predestinação, orientação,
que de passagem é estimulada por João Calvino paladino da predestinação:
“E se é evidente que da vontade de Deus depende que a uns seja oferecida
gratuitamente a salvação e que outro se lhes negue, daí nascem grandes e
muitos árduos problemas, que não é possível explicar nem solucionar se os
fiéis não compreenderem o que devem com respeito ao mistério da eleição e
da predestinação” (Calvino,João, SP, 2007 VL 2, p.375).
A segunda assertiva preliminar é a natureza inescapavelmente bíblica da predestinação.
Isto é, independente da posição que se assuma quanto à interpretação da predestinação é
matéria de fato que ela está dentro das afirmações textos-doutrinais da Revelação (Rm 8.29-30;
Ef 1.5,11; At 13.48; Pv 21.1; Es 7.27; Êx 3.21; Pv 15.21 entre outros). De fato, muito do que se
ouve sobre a predestinação é mais subproduto da interpretação da mesma do que as afirmações
que os autores bíblicos fizeram.
As Predestinações
Daí que do que foi estabelecido até o momento fica claro que a predestinação é um
tema de natureza constitucionalmente escriturística, ao mesmo tempo também fica consignado
que temos versões sobre a predestinação que são veículos de um tipo de predestinacionismo
que nada tem haver com a predestinação bíblica, são sim, frutos de olhares teológicos sobre
esta, construindo vertentes conceituais polarizadas que designo de ‘predestinações’. É obvio, e
longe de qualquer disputa que muito do debate atual sobre a predestinação está calcado nessas
subdescrições teológicas derivativas.
A Superpredestinação
A primeira dessas percepções marcadamente ditadas pelo equivoco é a
superpredestinação, ou como ficou conhecida: dupla predestinação (praedestinatio gemina).
Conforme a lógica dessa argumentação, Deus de modo positivo decidiu o destino salvifico dos
homens determinando uns para o céu e positivamente rejeitando outros, tornando assim certo
sua ida para o inferno. Vejam o núcleo dessa posição encartada na declaração de seu maior
expoente, Chamamos predestinação ao decreto eterno de Deus pelo qual determinou o que quer
fazer de cada um dos homens. Porque Ele não os cria com a mesma condição, mas antes
ordena a uns para vida eterna, e a outros, para a condenação perpetua (Calvino,2007, p.380).
O conteúdo e a forma dessa doutrina são biblicamente delineados em textos da bíblia
onde Deus é visto como o autor absoluto tanto da salvação como da perdição do homem (Rm
9.19-24; Sl 115.3; Pv 16.4; Is 10.15; 45.9; Jr 18.6 entre outros). O problema aqui é que esses
textos não abordam a predestinação em sentido estrito, mas tratam da soberania (superomnia)
absoluta de Deus sobre os destinos da humanidade por ele criada em sentido amplo, lato, visto
3. que tanto a salvação como a perdição de suas criaturas não acontecem fora do centro
gravitacional da sua vontade soberana, quer em sentido comissivo (comissii), quer em sentido
permissivo, pois, em todas estas coisas à vontade e o poder de Deus também se tornam
manifestos e sua soberania absoluta é revelada (Bavinck, 2012, p.403).
É decisivo compreender, que conquanto, a soberania, decreto, conselho, providencia,
eleição e predestinação se relacionem de modo mútuo dependente, elas enquanto realidades
tópicas são fenômenos distintos. De maneira que a predestinação está contida nos decretos e,
por conseguinte os decretos na soberania de Deus como a superestrutura que a tudo engloba.
Não considerar isso, é que leva os signatários da dupla predestinação vê-la provada nos textos
em questão. Além disso, a bíblia atribui a reprovação humana, no sentido de sua gênese não há
uma determinação positiva de Deus, mas ao pecado do próprio homem (Rm 1.18-32; 3.9-23; Jr
23.9-12; Ef 2.1-3; Rm 6.23 entre outros), nesse particular colho as achegas do teólogo holandês
Herman Bavinck como descrito em sua opus magna, A Dogmática Reformada:
“Inteiramente errada, portanto, é a noção de que o conselho de Deus em
geral e o decreto da reprovação em particular são uma só decisão nua e crua
da vontade divina a respeito de destino eterno de uma pessoa. É errado
conceber o decreto como se ele apenas determinasse o fim de uma pessoa e
a forçasse nessa direção independente do que ela fizer” (Bavinck, Herman,
SP, 2012, VL 2, p.406).
Por outro lado, quando vista de maneira nuclear a predestinação como via de expediente
instrumental do plus divino está diretamente relacionada aos eleitos de Deus e o modus
operandis da redenção destes, como bem nos apresenta Paulo: “4 assim como nos escolheu,
nele, antes da fundação do mundo, para sermos santos e irrepreensíveis perante ele; e
em amor 5 nos predestinou para ele, para a adoção de filhos, por meio de Jesus Cristo,
segundo o beneplácito de sua vontade,” (Ef 1.4-5). Vejam, que o apostolo particiona a eleição
( eklégomai) como “declaração definitiva de Deus” concernente a fé em Cristo (A.T. Robertson,
p.596)), da predestinação, no sentido em que torna esta viabilizadora dos objetivos daquela. A
forma como Paulo enxergava a predestinação, desabona qualquer interpretação que tente incluir
nela o ato positivo, comissivo da reprovação, pois, no seu modo de encarar, ela é agencia
proficiente da formação (symmórphous) de Cristo no eleito, desta maneira uma política
executiva de Deus completamente afirmativa: “28 Sabemos que todas as coisas cooperam
para o bem daqueles que amam a Deus, daqueles que são chamados segundo o seu
propósito. 29 Porquanto aos que de antemão conheceu, também os predestinou para
serem conformes à imagem de seu Filho, a fim de que ele seja o primogênito entre
muitos irmãos.” (Rm 8.28-29). Portanto, não agasalha um agir divino que diretamente reprove
baseado no simples ato de reprovar, assim se expressou Bavinck quanto a esse pensamento:
“Um problema final é que ele faz que a punição eterna dos réprobos seja um
objeto da vontade divina do mesmo modo e no mesmo sentido que a
salvação eterna dos eleitos e que, além disso, faz do pecado, que conduz à
punição eterna, um meio, do mesmo modo e no mesmo sentido que a
redenção em Cristo é o meio para salvação” ” (Bavinck, Herman, SP, 2012,
VL 2, p.396).
4. .
A dupla predestinação é uma excrescência interpretativo-teológica porque
inevitavelmente sequestra da predestinação como esboçada na palavra de Deus seu lugar
próprio de estabilizadora e garantidora do plano redentivo, do sistema da salvação, pois, esta se
bem compreendida determina o destino do eleito nas mãos da criatividade divina por via da
autodeterminação deste, ou seja, sua liberdade finita.
A predestinação metafísica
Outra apresentação da predestinação que em todos os sentidos é arbitrária em sua
forma e precária em seu conteúdo, engrossando assim o coro das ‘predestinações’ é aquela que
determina sua fonte, seu nascedouro numa deliberação divina antes da criação ou mesmo a
queda.
Essa posição foi consignada na história da teologia como supralapsarianismo. Essa
corrente do predestinismo foi magistralmente definida pelo afamado teólogo de Princeton em sua
Teologia Sistemática, Charles Hodge:
“Segundo esse ponto de vista, Deus, a fim de manifestar sua graça e justiça,
selecionou dentre homens criáveis (ou seja, dentre os homens a serem
criados) a certo número como vasos de misericórdia, e a outros como vaso
de ira. Na ordem do pensamento, a eleição e a reprovação precedem o
propósito de criar e de permitir a queda. A criação tem como fim a redenção.
Deus cria uns para serem salvos, e outros para serem perdidos. Este
esquema recebe o nome de supralapsariano porque pressupõe que os
homens como não caídos, ou antes, da queda, são os objetos da eleição
para vida eterna, e de preordenação para morte eterna” (Hodge, Charles, SP,
2001, p.719).
Exatamente nesse ponto arejado por Hodge da atuação predestinativa de Deus pré-
temporal e pré-queda (lapso) que reside o ponto nevrálgico de comprometimento do sistema,
onde a conta, por maior esforço que empreendam seus proponentes não fecha. Não fecha
porque não leva em consideração o caráter altamente retoricizado, hiperbólico da argumentação
paulina sobre a predestinação. Note bem, não que ela em si fosse para ele objeto de exibição
retórica, mas que ao utilizar-se de expressões do tipo: “Antes da fundação do mundo” Paulo
estava retoricamente assinalando não a condição ultratemporal da predestinação, como se ela
não fosse concebida no tempo e administrada na história; ao contrário, a realidade desta na
mente divina, no seu plano. Não há uma predestinação metafísica, mas ela nasce e
contingenciasse no universo empírico da experiência dos falantes como ato singularíssimo que
não permite nenhum álibi, como destacou François Turretine:
5. “Aqueles que se põem antes da queda (supra lapsum) ou da criação, para
determinar o objeto da predestinação, creem que vários decretos que são
concebidos por nós acerca do estado do homem devem ser organizados de
tal modo que o decreto da predestinação preceda ao da permissão da queda.
Acreditam que Deus contemplou a manifestação de sua gloria no exercício
da misericórdia e da justiça quanto à condenação dos homens antes de
haver contemplado a criação do homem ou a permissão de sua queda (...)
embora essa ordem nada contenha de absolutamente repulsivo ao
fundamento da salvação e da analogia da fé (e tem agradado grandes
homens e pessoas que merecem o bem-querer da igreja), varias objeções
impedem sua aceitação” (François, Turretine, SP, 2011, VL 1, p.532).
Portanto, um ensino que propague uma predestinação in abstrato que nada se importe
com o estado alienado da raça humana, não pode prosperar em sentido algum, visto que está
eivado de todo tipo de praga, sendo a pior delas a autoria divina, não apenas do pecado como
das desventuras humanas, ou seja, a caixa de Pandora não foi aberta por Adão, mas pelo
próprio Deus, o que é sem dúvidas uma caricatura e conscurpação da personalidade divina
como salientou doutor Hodge:
“Uma objeção ao sistema supralapsario relaciona-se ao fato de que ele é
inconsistente com a exibição bíblica do caráter de Deus. Ele é declarado
como Deus de misericórdia e de justiça. Mas não é compatível com esses
atributos divinos que os homens sejam predestinados à desgraça e à morte
eterna como inocentes, ou seja, antes que houvessem apostatado de Deus.
Se são deixados de lado e predestinados à morte por seus pecados, isso se
deveria ao fato de que, na predestinação, eles são considerados criaturas
culpadas e apostatadas” (Hodge, Charles, SP, 2001, p.722).
Predestinação uma nova olhada
Está além de qualquer contestação que a atmosfera de repulsa à doutrina da
predestinação por parte do público mais leigo é variante da mescla, do mix do discurso
academicista árido e impolífero, da veiculação de versões deturpadas sobre a predestinação e,
claro, dos problemas de Ego, sofridos pelo pecador caído ao ser sumariamente retirado dos
holofotes da atenção, no que concerne a sua salvação por parte dessa doutrina.
Do ponto de vista das abordagens distorcidas da predestinação seu enorme mal reside
no fato de não enfatizar os aspectos práticos que a destacam no todo orgânico da salvação
(soteria) como meio de deflagração da onipotência divina, conduzindo pecadores redimidos à
glorificação máxima do Deus Eterno (El Olam) ao estamparem a plena imagem (imago) do
santo cordeiro de Deus, Jesus em suas vidas e relacionamentos. Ser predestinado nesse
6. prisma, não é ser violado em nossa integridade humana, mas sim a garantia executivodivina de
sermos efetivamente salvos na existencia, da existencia para a eternidade (Jd 1.24-25).
Daí que nessa forma de discernir a predestinação, falar dela não é, portanto, falar de
agressão ao bem jurídico da liberdade humana, ao contrário é a efetivação real dessa liberdade
(Rm 8.32-36). Tratar da predestinação não é discutir sobre responsabilidade humana versos
soberania de Deus, mas sublinhar o soberano poder divino de construir uma nova humanidade
comprometida com os altos ideários da redenção como plano-piloto do reino dos céus (Cl 3.12-
17; Ef 4.17-24). Difundir o ensino da predestinação não é arruinar a busca pela santificação em
uma vida de humildade e fé, mas desvelar o pano de fundo de tais processos (Hb 10.10-
18).Proclamar a predestinação não é desencorajar a missão da igreja, longe disso é enfatizar o
Fiat divino que impulsiona e sustenta essa gloriosa e inestimável missão (At 4.23-31;1.8; Mt
28.18-20). Soli Deo Gloria!
Profº Revº Marcus Barbosa V.D.M
Psicanalista, Teólogo, Conferencista, professor de Direito e filósofo existencialista