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CADERNO
textos de referência
do projeto de formação
de profissionais
da Assistência Social
de Osasco
VOL. 4
Prefeitura do Município de Osasco
Secretaria de Assistência Social
prefeito
Jorge Lapas
secretária de assistência social
Suzete Souza Franco
diretora administrativa
Ester Begnini
diretora da proteção social básica
Elizete Nantes Mendes Saramello
diretora da proteção social especial
Danielle Silva Bueno
realização coordenação e organização
CADERNO
textos de referência
do projeto de formação
de profissionais
da Assistência Social
de Osasco
VOL. 4
organização
Carina Ferreira Guedes
Fernanda Ghiringhello Sato
Núcleo Entretempos
SÃO PAULO
2016
Introdução: construindo novas histórias na
Assistência Social de Osasco
Núcleo Entretempos
PARTE 1 | SEMINÁRIOS TEÓRICOS
Tempos da Cidade: história, rua e serviços
Daniel de Lucca
A rede de proteção de crianças e adolescentes em
acolhimento: construindo lugares de referência
Carla Biancha Angelucci
PARTE 2 | PRODUÇÃO DOS ENCONTROS TEMÁTICOS
Encontros Temáticos: práticas prioritárias e
possibilidades de experimentações
Proteção Social Básica
Acolhimento
Grupos e oficinas
Articulação PAIF e SCFV
Proteção Social Especial
Reuniões e funções no SAICA
Rodas de conversa e atividades na casa
Trabalho com famílias
PIA e construção de projetos de saída de
adolescentes por maioridade
PARTE 3 | NOVAS HISTÓRIAS: PRODUÇÕES DOS
PROFISSIONAIS DE OSASCO
Em busca do simples: uma experiência no serviço
de acolhimento para crianças e adolescentes
Isadora Canelli Bonfanti
Érica Moura
Cozinhando no CRAS
maria ismarlene rodrigues
O serviço de convivência e fortalecimento de
vínculos do CRAS Padroeira como interlocutor
do fortalecimento comunitário
Andressa Mota do Nascimento de Brito
Luciane de Paula Souza
Renata Silva Petrini
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O papel da arte educação com RPG
Lucas Nascimento Prado
Mariana Morás dos Santos
Horta na Casa
José Raimundo Santana de Matos
Luciana Oushiro
Diunei Conceição de Andrade
Projeto Adolescentes na cozinha e
Minha vida na cozinha
Ana Luzia Rodrigues
Edilene Vieira dos Santos Ribeiro
Izaque
O triunfo da arte: passeio pelo centro
histórico de São Paulo
Thiago Avelino da Silva
Desacolhimento de uma adolescente
patrícia petroni
Acolher com dignidade
Maria Jocélia dos Santos
Thiago Rodrigues
Tudo passa
Igor Luiz
Atividades com grupos: experiências e transformações
Lucas Nascimento Prado
Cinthia Franco
Evandro Pires
Do CR2 para Casa Juventude: entre a resiliência
e a esperança
Entrevista com Juliane Cristina de Lima
e Izabel Almeida
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É deste lugar de autoria
que esperamos que
os profissionais continuem
se responsabilizando pela
criação, junto aos usuários,
de novas narrativas
sobre a assistência social
de Osasco.
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Chimamanda Angola Adichie, em sua conferência no TED talk, em 2009, nos
adverte sobre “o perigo de uma história única”. As histórias únicas, nos conta,
são histórias que criam e perpetuam estereótipos, ou seja, reduzem uma vida,
uma cultura ou um sujeito a uma única característica. Como Nigeriana, ela
nos conta como muitas vezes foi recebida por pessoas como “africana, vinda
de um país e continente pobre, em guerras e com músicas tribais” sem que as
pessoas percebessem que sua história trazia outras complexidades. Ela não se
identificava com esse estereótipo da “africana”, pois isso pouco dizia da mul-
tiplicidade de povos, países e línguas da África, do que ela identificava como
sua história, das cidades e contrastes entre a miséria e a riqueza. Não só a vida
de Chimamanda era enquadrada nesse recorte, mas também toda a diversi-
dade de populações, comunidades, nações e sujeitos, que ficavam reduzidos a
esta única manchete sobre “A África”.
As histórias únicas são essas que se desvelam imediatamente e parecem
ser definitivas e totais, dando-nos a falsa sensação de que já sabemos tudo
sobre uma pessoa, um lugar, uma etnia, sobre alguém que atendemos ou um
profissional, ou mesmo sobre um serviço. Todos nós criamos e reproduzimos
histórias únicas, ou mesmo somos objetos e protagonistas de histórias únicas
criadas por outros ou por nós mesmos.
Um dos perigos das histórias únicas é que, ao serem repetidas e repeti-
das, elas ganham o status de verdade. Como verdades, quase não são con-
testadas e, aos poucos, vão silenciando outras histórias, outras perspectivas,
outras possibilidades de vir a ser. O imediato, o irrefletido, o reativo tempo
construindo novas histórias na
Assistência Social de Osasco
8
do presente, oculta o passado e facilita que essas histórias únicas circulem
como as histórias verdadeiras. Não há tempo, não há brecha que deixe surgir
a curiosidade real sobre o outro, que possibilite vê-lo como desconhecido; não
há questões sobre como essas histórias únicas e perigosas passaram a ser as
histórias que conhecemos.
Chimamanda nos provoca a pensar: as histórias únicas nos dão indícios
também sobre as estruturas de poder no mundo. “Nkali”, ensina, é um subs-
tantivo que pode ser traduzido livremente como “ser maior do que o outro”.
Os mundos e suas histórias - políticas, econômicas, sociais e culturais - são
também escritas a partir dessa força que atravessa e determina quais histó-
rias serão contadas, como são narradas e quem as conta. Se estamos no tem-
po presente, dos incêndios e urgências, no qual não há interrogação sobre
o passado, não há perguntas sobre quem mais pode narrar cada história, as
relações de poder e desigualdade que vulnerabilizaram o sujeito – usuário,
profissional, cidadão – são tomadas como naturais e como as únicas existen-
tes. O futuro, assim, também fica como um tempo que não existe, que não
chega: se não pensamos nas relações e narrativas como construções, também
não é possível enxergar a possibilidade de transformar, criar, questionar. As
pessoas passam a não se enxergar como contadores de histórias, de outras, de
múltiplas histórias, construtores de outras verdades possíveis.
Ao longo da formação Enlaces, ouvimos histórias únicas sobre o município,
a gestão, a assistência social e seus serviços, o passado-presente do CR1, assim
como dos Centros de Vivências. Aos poucos, os serviços, territórios, crianças,
adolescentes, usuários e profissionais foram ganhando complexidade e pro-
fundidade, abrindo novas margens e permitindo um novo olhar, com críticas
e potências, trazendo luzes, sombras e outras perspectivas. Assim, o mito do
serviço modelo, a lenda do território abandonado ou o caso difícil puderam
ganhar novas significações, a partir do envolvimento dos profissionais, da
abertura para se angustiarem, experimentarem e escutarem histórias, muitas.
Este último Caderno é registro e celebração dos questionamentos que pu-
deram deixar mais porosas essas verdades definitivas e dos novos narradores
que foram se apresentando ao longo deste ano de muito trabalho e tempo.
9
Assim, na primeira parte deste Caderno, o texto do seminário de Daniel
de Lucca nos apresenta a temporalidade e suas desigualdades como chave de
leitura para refletirmos sobre os tempos do trabalho e o trabalho do tempo
nos serviços. Nessa parte, também apresentamos o texto de Biancha Carla
Angelucci, que questiona as perigosas histórias sobre a infância que acarre-
tam na marginalização e exclusão e nos convida a pensar em como a rede de
proteção às crianças e adolescentes pode atuar na construção de lugares de
pertencimento e novas histórias junto às crianças e adolescentes acolhidos.
Na segunda parte, estão as produções coletivas, sistematizadas a partir dos
Encontros Temáticos realizados para as equipes dos Serviços de Acolhimento,
CRAS e Serviços de Convivência no primeiro semestre de 2016. São sete registros
que trazem discussões, processos de grupo e também as experimentações nos
serviços e seus impactos na escuta e no contato com o usuário como autor de
sua narrativa. Esperamos que esses registros possam facilitar a continuidade das
práticas produtoras de novas histórias criadas ao longo deste ano.
E como a multiplicidade de histórias faz mais sentido a partir de uma mul-
tiplicidade de autores, temos o prazer de publicar, na terceira e última parte
deste Caderno, as produções escritas pelos profissionais participantes da for-
mação, em que narram histórias e elaborações sobre sua prática e experiência
de trabalho, com intuito de registrar, circular e inspirar. São textos que trazem
uma multiplicidade de linguagens – da poesia ao texto acadêmico –, escritos
por profissionais das mais variadas funções – cozinheiros, técnicos, facilitado-
res, APS e gestores – que, a partir de seus olhares singulares, convidam a todos
a se permitirem escutar novas versões sobre as histórias.
É deste lugar de autoria que esperamos que os profissionais continuem se
responsabilizando pela criação, junto aos usuários, de novas narrativas sobre
a assistência social de Osasco.
Agradecemos a possibilidade dos encontros e por este ano tão repleto e
intenso de trabalho e criação.
equipe núcleo entretempos
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11
seminários
teóricos
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tempos da cidade:
história, rua e serviços
Não sou formado em serviço social, mas em antropologia e geografia, ciências
humanas que voltam-se respectivamente para temáticas ligadas à cultura e ao
espaço. Também sou pesquisador e professor, sendo que desenvolvi investi-
gações ligadas ao universo da população de rua e dos catadores de materiais
recicláveis em São Paulo. Rua e lixo, portanto. É deste lugar de fala que me
coloco aqui para conversar com vocês. Mas, antes de entrar no tema da discus-
são, levanto duas questões mais gerais sobre esses tópicos de estudo.
A rua não é apenas importante para a temática para população de rua e
outros grupos marginalizados, mas trata-se de uma forma da experiência ur-
bana que atinge todos nós que vivemos e trabalhamos na cidade. No início do
século XX, Georg Simmel já havia descrito o citadino como uma nova persona-
lidade da Europa moderna. Dizia ele que, para conseguirmos viver na cidade,
temos de ficar indiferentes para com o mundo externo da rua devido à sobre-
carga de estímulos que envolve o passante. Ou seja, para podermos avançar
em nossas tarefas no espaço público urbano, precisamos focar em nosso inte-
resse, desconsiderando as outras informações que nos rodeiam. Essa atitude
blasé, essa postura de indiferença, que é uma condição para se conseguir viver
e circular pela cidade, também é um dispositivo de proteção de nossa subje-
tividade, um modo de não ser levada pelas poderosas correntes urbanas de
movimentos, imagens, sons e luzes que coloniza e cerca o transeunte.
No Brasil, o sentido da rua é mais específico. Aqui ela é o lugar de quem
não tem lugar, é o espaço que resta aos desacolhidos e sem espaço priva-
do para si. Ditos populares como “foi parar no olho da rua” ou “a rua da
Daniel De Lucca 1
14
amargura”, expressam bem esta ideia da rua como “agasalhadora da misé-
ria” (para utilizar a terminologia de João do Rio). Por outro lado, a própria
palavra “lixo”, entre nós, tende a adquirir dois sentidos relacionados. Lixo é
aquilo que ninguém quer, é o inútil e poluente, objeto de descarte e rejeito.
Mas o lixo também pode ser um lugar, como diz a frase “lugar de lixo é no
lixo”. Como o lugar, o lixo também pode ser um espaço de acolhida
de coisas e pessoas, seres inanimados e seres animados rejeitados.
É assim que, por vezes, os sentidos da rua e do lixo se tocam, promo-
vendo a formação de agrupamentos humanos quase sempre subal-
ternizados, recusados e desassistidos. É dessas figuras de fronteira que
muito da novidade do mundo surge. Quem trabalha próximo dessas figuras
têm de lidar com um campo altamente conflitivo e contraditório, e por isso
mesmo de difícil entendimento e inteligibilidade. Assim, gostaria de discutir
pontualmente com vocês algumas categorias básicas de interpretação e aná-
lise da experiência urbana, destacando as possibilidades de pensar o tempo
e suas variações, as temporalidades. E faço isso considerando, principalmen-
te, os diferenciais de poder e a desigualdade de acesso que estrutura a vida
social na cidade.
Espaço e Tempo
Nos chamados estudos urbanos, um campo interdisciplinar que incorpora uma
ampla multiplicidade de ciências (urbanismo, geografia, sociologia, história,
antropologia etc), as categorias espaciais têm importância especial. Por isso
fala-se tanto em território, paisagem, zonas, habitação, localização, centro,
periferia, margem, fronteira etc. Essas categorias nos fornecem imagens de
conjunto, permitem interpretações que articulam as junções e divisões da ci-
dade, oferecem imagens poderosas sobre as formas de encontro e desencon-
tro entre pessoas e coisas, equipamentos e populações. Elas também ajudam
a dar um sentido de materialidade que ancora nossa experiência urbana e, em
grande medida, a determina em termos de escolha, mobilidade e segregação.
Mas, o que define o espaço? Uma pergunta difícil. Importa que historica-
mente sua definição foi alvo de grande controvérsia. Um exemplo claro é a dis-
cussão sobre o tamanho de um metro como unidade de medida intercambiável
15
que pode se multiplicar e desmultiplicar em milímetros, centímetros, quilô-
metros e jardas. A definição sobre a medição do metro não foi algo simples,
mas hoje, em muitos países, ele é uma unidade espacial tida como comple-
tamente natural, algo dado. Com isso quero dizer que o espaço é ele mesmo
construído e produzido pelos seres sociais que o manipulam como coisas evi-
dentes. Algo semelhante se pode falar em relação ao tempo. Quem definiu
o segundo, uma unidade basilar da medição temporal? Questão também di-
fícil. No entanto, é essa pequena unidade intervalar, o segundo, que fornece
o lastro para as ordens temporais que lhe seguem em escala ampliada: mi-
nutos, horas, dias, semanas, meses, anos, décadas, centenários, milênios etc.
Nesse sentido, o relógio e o calendário são poderosíssimas tecnologias
de controle do tempo. Historiadores contam que as primeiras manifesta-
ções trabalhistas no início da industrialização não foram contra o patrão,
muito menos contra o maquinário produtivo, mas contra uma máquina mui-
to específica: o relógio. Mirando no relógio como sujeito opressor imediato,
trabalhadores queriam quebrar com a mecânica daquele tempo que, acre-
ditavam eles, os dominava e os governava violentamente de fora. A revolta
contra o relógio era uma forma de não precisar seguir a risca o regime
disciplinar do tempo que os cerceava e os limitava. Antes eles estranhavam
o tempo do relógio, hoje todos nós incorporamos completamente esse tem-
po. Relógios de pulso e celulares acompanham de perto nossa vida mais
íntima como parte dela, fazem parte dela, a integram. Por sua vez, nosso
calendário nacional acaba por definir, em datas, feriados e festividades, um
tempo especificamente brasileiro. Determinado pelo Estado brasileiro, nos-
so calendário é cristão, articulado em função do “filho de Deus”, em antes
e depois de sua morte, AC e DC. Mas, se no Brasil nem todos são cristãos,
imaginem no resto do mundo. Países orientais possuem seus próprios siste-
mas de notação temporal. A Tailândia e a China, por exemplo, possuem seus
próprios calendários nacionais, muitos distintos dos cristãos. Se o ocidente
vive no ano de 2016, o Oriente chinês encontra-se mais a frente, no ano
de 4715. Mas, esses dois tempos, o ocidental e o oriental, coabitam o mesmo
planeta, são globalmente contemporâneos. Como então articular espaços e
tempos tão distintos?
16
Milton Santos, um de nossos maiores geógrafos, certa vez, chegou
a definir conceitualmente o espaço como “a acumulação desigual dos
tempos”. Para ele, os territórios eram formados por várias camadas
temporais mais ou menos desajustadas. Analisar tais camadas estra-
tificadas era fazer um espécie de “arqueologia do lugar”. Cada lugar
também teria sua própria velocidade, seu próprio tempo de giro. Milton
Santos, que no final da vida se interessava por desenvolver uma geografia mais
dinâmica, que chamou de “geografia dos tempos”, morreu em 2001. Não viveu
conosco os últimos 15 anos do país. Porém, ele acreditava que uma das princi-
pais formas de desigualdade no acesso aos recursos sociais era justamente de
ordem temporal. Para enfrentar o problema das relações entre as classes e os
espaços, refletia sobre o tempo. Pensava com isso que a pobreza era marcada
por um tempo lento e lerdo, um tempo preso no deslocamento entre o trabalho
e a casa, preso no trânsito. Este era o tempo dos subalternos e mais vulneráveis,
arrastado e demorado, atado ao mundo do trabalho precário e da tradição,
enquanto nos circuitos de riqueza a velocidade era alta, a infraestrutura tecno-
lógica dava impulso, tinha poder, rompia barreiras e ultrapassava o movimento
dos mais pobres. Segundo ele, essa era uma desvantagem estrutural para se
pensar a cidadania, como plena igualdade de direitos e, em última instância,
um limite para se fazer a própria “revolução” – um conceito que também im-
plica em mudança e transformação histórica. Seja como for, sabemos hoje que
os pobres também tem seus tempos rápidos. Os celulares permitem ao PCC dar
um “salve” numa cadeia, que se espraia rapidamente entre outras unidades
prisionais e que chega nas favelas, periferias e até nas ruas do centro das cida-
des (lembremos de maio de 2006 em São Paulo). De fato, o acesso a tecnologia
permitiu coisas inimagináveis em termos de aceleração do tempo.
A seguir, gostaria de destacar esta dimensão temporal nas relações ur-
banas e aponto a seguir, de forma muito esquemática, 3 eixos temporais in-
teressantes para se pensar a cidade e a política, sobretudo a partir de minha
experiência com o mundo das ruas e suas relações com o direito: 1) o tempo
histórico; 2) o tempo das ruas e; 3) o tempo dos serviços.
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Tempo histórico
Que fique claro, a democracia não é um valor absoluto. No Brasil, a democra-
tização pode ser entendida como um processo de luta histórica marcado por
um movimento de “vai e vem”. Tivemos surtos de democratização pós-Ge-
túlio Vargas e o golpe de 1964 desdemocratizou muitos destes direitos po-
líticos conquistados. Posteriormente, com as “diretas já”, a redemocratiza-
ção levou a uma nova “Constituição Cidadã” que é a que temos ainda hoje.
Atualmente, estamos passando por um intenso processo de desdemo-
cratização no qual nossa Constituição está sendo dilapidada e ar-
ruinada aos poucos. Com isso, a garantia de direitos se modifica e,
como as ondas do mar na areia, parece retrair os benefícios de am-
plos setores da população que, pela primeira vez na história do país,
tornaram-se foco de alguma atenção pública. Seja como for, importa
que no tempo histórico as políticas sociais se transformam de acordo com
os movimentos da economia política global e suas formas de entendimento.
Importa que foi com o fim da ditadura que assistimos ao surgimento de
novos e importantes direitos: ECA, Lei Maria da Penha, SUS, SUAS, Lei de
atenção à População de Rua e também o reconhecimento dos catadores de
materiais recicláveis como uma ocupação.
Na Região Metropolitana de São Paulo, esse processo histórico acompa-
nhou a transformação material da paisagem urbana: surgimento de condo-
mínios fechados, shoppings centers, crescimento de favelas, encastelamento
urbano e o erguimento de muros, encarceramento em massa e correlata es-
truturação de um mercado e uma nova tecnologia da segurança privada. No
campo das políticas sociais, os serviços da assistência social, depois da saúde e,
ao que tudo indica, agora os da educação, caminham em direção a uma tercei-
rização generalizada. Antigos movimentos sociais da periferia, neste processo,
institucionalizaram-se e se transformaram em ONGs “gestoras de políticas pú-
blicas”. Se antes esses sujeitos coletivos representavam os interesses populares
e pressionavam os poderes públicos de baixo para cima, agora, a direção do
sentido da representação pode ter sido invertida: eles representam muito mais
os interesses do Estado mediante projetos pontuais e licitações temporárias
voltadas para “públicos-alvo” muito específicos.
18
O tempo histórico marca a cadência dos serviços nos territórios
urbanos, estabelecendo relações com outras dinâmicas, instituições,
poderes e representações que ali já estavam circulando. Nas ruas do
centro de São Paulo, uma modificação nas últimas décadas é clara. Se a con-
quista dos direitos da população de rua se efetuou em decorrência da vincu-
lação deste contingente ao problema estrutural da migração (o êxodo rural) e
da ausência de trabalho (desemprego num mercado excludente), hoje toda a
figuração pública das vidas de rua não se faz mais em função da perspectiva
da “construção da cidadania”, mas da “falta de civilidade”: o uso de drogas
(marcadamente o crack) e a tal da “violência urbana” (mesmo quando são as
próprias vidas de rua que morrem e são as vítimas dessa violência). Cotejando
a relação entre política e cidade no transcorrer do tempo histórico, vemos
como o cenário atual é radicalmente outro.
Tempo das ruas
Saindo do tempo histórico e pensando no tempo do cotidiano nas ruas, a ques-
tão muda de forma. As experiências temporais mudam de figura para figura.
Do ponto de vista do morador de rua, ou mesmo do trabalhador de rua – cata-
dor, camelô, pedinte, prostituta, usuário ou vendedor de droga – as temporali-
dades das dinâmicas de rua são determinantes. Suas atividades dependem des-
sa organização temporal dos espaços públicos regulados por ordens diversas.
As pessoas que vivem e trabalham nas ruas experimentam, fundamen-
talmente, um tempo da espera. Organizam seu tempo em função do tem-
po do outro, dependem do ritmo alheio. É um tempo tático e não estra-
tégico. Como não possuem um lugar que lhe é próprio, a não ser a rua, que é
um espaço de outrem e que o poder público reivindica como seu, estes sujeitos
precisam saber esperar, aguardar. Eles devem ter muita paciência e astúcia. A
incerteza é uma certeza permanente, pois dependem quase sempre do outro.
Eles se movimentam muito em função deste ritmo alheio. É na relação com este
tempo de outro que o seu próprio tempo é construído.
No caso da pessoa em situação de rua, é comum que, se ele quer comer,
precisa se articular em função dos restaurantes que podem oferecer comida,
ou mesmo de seus clientes que podem se sensibilizar mediante um pedido.
19
Deve-se esperar o momento oportuno para pedir, acharcar. O pedir, esmola
ou não, é uma ação, uma relação social que depende do outro. Deve encon-
trar, portanto, um tempo comum entre aquele que se dispõe a dar e a neces-
sidade de quem recebe. O mesmo nos caso dos serviços da assistência,
entendidos por muitos moradores de rua mais na chave da dádiva e
do favor do que na chave dos direitos e do dever do Estado. Assim, ele
pega a fila duas horas antes do albergue (Centro de Acolhida) abrir ou
uma hora antes do refeitório distribuir as senhas. Seu tempo também
é organizado em função do tempo do serviço e há um longo tempo de
espera, o que promove uma segregação espaço-temporal do usuário,
que atrela sua mobilidade urbana com o lugar e o horário de funcio-
namento de um serviço especifico.
No caso dos catadores de rua, a questão muda um pouco. Ele não pode
usar abrigos, albergues ou centros de acolhida. Quase não tem lugar para
estacionar a carroça dele. Além disso, para entrar, ele tem de estar às 17 horas
lá, sendo que o “bom material reciclável” começa a ser deixado pelas lojas
nas ruas justamente nesse horário, quando ele está entrando no albergue ou
casa de acolhida. Para ser catador de rua, a pessoa tem de saber circu-
lar, procurar, saber onde encontrar material, tem de saber garimpar
no espaço urbano. Mas tem de ter tempo para fazer tudo isso e extrair
o recurso lançado pelo cidadão como rejeito. Ele acompanha o tempo e
o espaço da desova dos materiais na cidade, são coletores nômades urbanos.
Considerando a questão das mulheres que vivem e trabalham nas ruas, a ques-
tão torna-se mais complexa ainda pois, principalmente nas noites, seus corpos
são objetos de desejo e violência. Daí que a vulnerabilidade de seus corpos
também varia de acordo com o tempo diário das ruas.
Tempo dos serviços
Uma última realidade temporal a colocar, muito brevemente, é o tempo dos
serviços. Se o discurso das políticas públicas é aquele da “garantia dos direi-
tos” e da “construção da cidadania”, no cotidiano dos serviços, ali precisa-
mente onde estes direitos deveriam ser efetivados, as coisas são bem mais
complicadas. Em termos legais, segundo o SUS e o SUAS, o acesso aos serviços
20
da assistência e da saúde é um direito, quase sempre universal e irrestrito mas,
na prática, mecanismos de seletividade, formais e informais, determinam em
grande medida o fluxo dos benefícios envolvidos. Com recursos limitados e um
público que não para de crescer, as organizações responsáveis e seus traba-
lhadores precisam reinventar a lógica de funcionamento local para conseguir,
como se diz, “fazer a máquina andar”. Este imperativo de funcionamento, “não
pode parar”, é um dos fatores que cria novos critérios locais de atendimento,
definindo perfis específicos e não o público em geral, selecionando-os princi-
palmente através da gravidade dos casos: pessoa em situação de rua; famílias
com crianças e que perderam suas casa; mulheres, gays e trans que sofrem
violência sexual; etilismo avançado e uso compulsivo de drogas; distúrbios li-
gados à saúde mental etc. Assim, boa parte dos encaminhamento funcionam
“apagando incêndio” e “passando o caso” para outros estabelecimentos.
Na minha experiência com os trabalhadores sociais de rua que
atuam no centro de São Paulo, este tempo da urgência é algo radical
que dita, em grande medida, o ritmo do cotidiano do serviço. A urgência
insurge como um evento prioritário que ultrapassa os outros casos.
Aqui o fundamental não é a “construção da cidadania” ou o direito so-
cial (habitação, saúde, educação, inserção etc), mas fundamentalmente
o direito à vida ou à sobrevida. É uma lógica diferente daquela na qual
a cidadania deveria operar, que defende direitos iguais para todos.
É o tempo da ação rápida, imediata e do “aqui agora”. O que faz tais servi-
ços serem colonizados por uma razão humanitária, uma lógica da salvação, do
curativo, da alimentação, do abrigamento e do acolhimento no frio (pensemos
nas 2.000 vagas criadas nas “tendas emergenciais” para a população de rua em
São Paulo no inverno de 2016). Trata-se do tempo da intervenção imediata e
do trauma. Relatos frequentes de que “os serviços apenas funcionam mediante
casos de surto” ou então de que “é mais fácil conseguir uma internação com-
pulsória que uma voluntária”, demonstram o tipo de seletividade aí envolvido.
Tudo isso torna o trabalho com o público das ruas um terreno de altamente
volátil e imprevisível, um espaço contornado por uma temporalidade própria,
distinguível e capaz de quebrar o fluxo do ordinário. Esta excepcionalidade de-
fine o tempo da urgência que gravita entorno do serviço.
21
Mas há também no tempo dos serviços a persistência de um tempo lento,
teimoso e que não muda. O tempo que permanece crônico, imutável. Não só
porque aparentemente “o público não adere às políticas públicas”, também
são “as políticas públicas que não aderem ao público”. Por sua vez, como se
ouve com frequência, “a rede não funciona”, “emperra na burocracia” e, por
isso, muitas vezes o árduo trabalho de um assistente social pode ir água abaixo.
Os Sistemas Únicos (SUS e SUAS) operam diariamente mediante números, esta-
tísticas e quantidades de casos. O que leva a um impasse no atendimento, que
opera em outra lógica temporal. Enquanto para os sistemas o que importa é
a população, seu número cifrado, para a relação de serviço o que importa é a
subjetivação, sua manifestação qualificada. Entre a ponta do serviço, quem
atende diretamente o público, e os gestores, que manipulam os dados e
orçamentos, há discrepâncias. O que faz o próprio tempo dos serviços
ser plural internamente, com tensões hierarquicamente articuladas.
22
Tempo do trabalho e trabalho do tempo
Tudo isso chama a atenção para uma morfologia política dos tempos. Mudan-
ças acontecem em uma cadência diferente, em que as transformações não são
perceptíveis de imediato. E era isso que queria trazer para vocês. Para quem
trabalha diretamente com a vida alheia, uma vida de outrem que também
afeta a sua, essas coisas ficam ainda mais complicadas, pois não se trata, como
a imagem de Charles Chaplin em “Tempos Modernos”, da simples manipula-
ção de peças inanimadas numa máquina em funcionamento e que não pode
parar. Aqui os objetos de trabalho são os próprios sujeitos humanos, o que
torna tudo mais difícil.
Fato é que o trabalho de acompanhamento na reelaboração da vida de
qualquer atendido – consultas no serviço de saúde, aquisição de documentos,
articulação de relações familiares e novas formas positivas de identificação –
tende a ser muito lento. Por sua vez, o tempo da destruição é muito mais rápido
e brusco. Ele quebra e rompe. A violência policial pode deslocar o lugar daquele
que, horas antes, foi um assistido do Estado, levando seus documentos, remé-
dios e até mesmo sua dignidade própria. Também um acontecimento corriquei-
ro nas ruas pode o humilhar, funcionando como um evento crítico que o lança
de volta “ao copo” ou “à pedra”. O tempo da desmontagem quase sempre é
mais veloz que o lento tempo da cuidadosa montagem.
Assim, a dinâmica dos serviços está na intersecção de inúmeros tem-
pos. Ela é um ponto de contato e de confrontação. O serviço é um lu-
gar de tensão entre mundos distintos e tem que lidar com isso. É preciso
guardar tempo para a maturação, a reflexão, a construção dos enten-
dimentos e sentidos. O trabalho do tempo é o trabalho de transforma-
ção do mundo. Por isso, o tempo do trabalho social tem de aprender a
acompanhar todos esses outros tempos: o seu tempo e o dos outros, o
tempo do trabalho e trabalho do tempo.
Ora, era justamente esse o problema fundamental destacado pelo o Pro-
fessor Milton Santos: a coexistência da multiplicidade de tempos num equilí-
brio sempre precário entre hierarquias de ritmos heterogêneos e antagônicos.
Esta coabitação dos tempos, anunciada por Milton Santos, pode ser assim des-
dobrada em seu outro, a dos tempos do habitar. Tempos esses, acompanhados
23
1.	DANIEL DE LUCCA – Professor da Fundação Escola de Sociologia e Política (FESP-SP) e
pesquisador do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (CEBRAP).
Email: dandelucca@gmail.com. Seminário proferido em 1 de julho de 2016, Osasco.
por um trabalho perpétuo alocação e realocação do ser no mundo, um ver-
dadeiro trabalho do tempo que se inscreve e se reinscreve permanentemente
no tecido da vida. Por mais precária e inabitável que seja a habitação alheia,
trata-se sempre de um modo específico de habitar o mundo. Um mundo, por
vezes, completamente destruído e composto apenas por fragmentos e destro-
ços. Mesmo o habitar pelo avesso, feito sem tempo próprio, nos escombros e
nas sombras, não deixa de ser uma “morada do ser” completamente legítima
pelo fato mesmo de sua existência. E nesta morada não há soluções extraor-
dinárias. O enfrentamento dos problemas não pode ser colocado no grande
heroísmo dos políticos que, de 4 em 4 anos, querem reinventar a roda, mas
na descida ao tempo ordinário do cotidiano. Por isso a importância de darmos
tempo ao trabalho do tempo. Dar tempo às formas de recomposição da vida
e reabitação do mundo, nossa e dos outros. A vida é recuperada não no ges-
to majestoso e extraordinário, mas na descida ao tempo comum, ao tempo
de cada habitar. Cada subjetivação ao seu modo, aos poucos, de pedaço em
pedaço, parte por parte. Pois, como nos dizem os narradores de nossas perife-
rias: “nada como um dia depois do outro dia”.
Referências
Charles Chaplin, “Tempos Modernos”, In: https://www.youtube.com/watch?v=
CozWvOb3A6E
Santos Milton, “O mundo global visto do lado de cá”, In: https://www.youtube.
com/watch?v=-UUB5DW_mnM
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a rede de proteção de crianças e
adolescentes em acolhimento: construindo
lugares de referência1
Gostaria de agradecer a possibilidade de interlocução sobre a produ-
ção e a sustentação de uma rede de proteção social a crianças e adoles-
centes que vivem situações de acolhimento institucional. O tema é muito
significativo, pois no coloca no exercício de pensar a construção de laços sociais
entre as crianças e adolescentes, a partir do lugar social de agentes públicos que
somos, quando atuamos nas mais diferentes políticas públicas. Agentes sociais
com a responsabilidade de acolher pessoas que, muitas vezes, não têm ape-
nas seus laços familiares impedidos, mas seus laços impedidos com a circulação
social, com a fruição do direito à cidade. Em grande parte das situações, suas
famílias de origem já tinham sistematicamente prejudicados seus direitos fun-
damentais, criando cenários de tamanha precarização da vida, que, por vezes,
impede que sustentemos nossa humanidade e a humanidade de nossas crianças
e adolescentes. Enfim, nosso trabalho, aqui, é o de criar possibilidades de resti-
tuição de direitos, de sustentação de intervenções subjetivantes.
Foram-me colocadas duas questões disparadoras, que eu nomeio assim:
•	 O lugar dos serviços de acolhimento nessa rede que busca efetivar
direitos das crianças e adolescentes
•	 O que podemos fazer, desde os equipamentos em que trabalhamos,
para apoiar a construção dos projetos de vida das crianças e
adolescentes que estão em serviços de acolhimento?
Carla Biancha Angelucci2
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Esses são temas centrais para todas/os nós, aqui presentes, e podem orientar
os trabalhos de hoje: efetivar direitos e apoiar a construção de proje-
tos de vida. Pensei, assim, em levantar alguns pontos que podem nos ajudar
na discussão. Vou apresentá-los aqui e ensaiar algumas reflexões:
Sobre crianças e adolescentes
É muito comum que encontremos palestras, livros e vídeos abordando o surgi-
mento da infância e da adolescência, como entidades abstratas e homogêne-
as. Afirmações como: “a infância surge nesse contexto...” ou “a adolescência
é construída na Idade Moderna”. Aparentemente, tais afirmações partem de
compreensões contextuais desse tempo da vida humana. Entretanto, ao não
fazerem leituras que considerem, por exemplo, a luta de classes, as diferenças
entre história ocidental e oriental, as diferenças de gênero e sua relação com o
trabalho doméstico, entre outros aspectos, acabam por disseminar uma ideia
de infância e uma ideia de adolescência como etapas da vida pelas quais to-
das/os nós passamos igualmente. Resumindo, continuamos homogeneizando
diferenças muito significativas, à medida em que implicam outras condições
de vida e outro olhar para os sujeitos.
Também é importante destacar que se cria uma expressão “infância
-adolescência”, inclusive com legislação e políticas específicas. Tal ex-
pressão acaba por convidar-nos a ler o fenômeno da infância e o fenô-
meno da adolescência sempre de maneira conjugada, forçando com-
preensões homogêneas sobre tempos tão distintos da vida humana.
Acabamos por falar de crianças de dois anos e de adolescentes de dezessete
anos a partir dos mesmos parâmetros, mesmo quando reconhecemos condi-
ções de vida e experiências tão distintas. Acabamos criando palavras de ordem
que não nos permitem avançar na garantia de direitos e, sobretudo, no res-
peito à autonomia. Por exemplo, falamos de protagonismo de crianças e ado-
lescentes como se fosse possível estabelecer os mesmos métodos e esperar a
mesma participação de uma criança pequena e de um jovem. Acabamos, assim,
não valorizando o protagonismo de ninguém.
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É nesse sentido, que sugiro dois deslocamentos para pensarmos a rede
de proteção: o primeiro estaria ligado à exigência de pensarmos sobre como
se objetivam as condições de vida das crianças e dos adolescentes
com quem trabalhamos. Quais são seus pertencimentos socioeconômicos,
etnicorraciais, religiosos? Que diferenças percebemos em relação à gênero
e à orientação sexual? Como isso constrói infâncias e adolescências e, mais
ainda, que desafios essas infâncias e essas adolescências trazem para nosso
trabalho? O segundo deslocamento é o de refutarmos a expressão infância
-adolescência que homogeneíza tempos da vida e experimentações do mun-
do tão distintas. É preciso que nos ocupemos de pensar distintas demandas
trazidas por esses diferentes tempos da vida.
Sobre o acolhimento
Há crianças, há adolescentes e há jovens que, pelos mais variados motivos,
não têm a possibilidade de conviver em família. Pelos mais diferentes motivos,
estão retiradas/os da convivência com a família expandida e também da expe-
riência comunitária. E isso implica muitas perdas. Gostaria de enfatizar aqui
o fato de que se trata de pessoas que estão fora dos processos de circulação
social que, em nossa sociedade, tomamos como fundamentais para o processo
de subjetivação. A produção e o reconhecimento de pertenças, com todos os
ônus e os bônus disso, estão impedidos ou, no mínimo, prejudicados.
São crianças e são adolescentes que, a todo tempo e em todos os lugares, são
lembrados de que suas vidas estão organizadas pela ausência de uma família. E
não se trata de dizer se seria melhor ou pior estarem com suas famílias. Trata-se
de reconhecermos que essa marca estará visível, pública e, por isso, constituirá a
maneira como elas/es serão olhadas/os a todo tempo nos mais diferentes espaços
sociais que circulem: da praça ao fórum. E cada pessoa que as/os olha, cada
espaço por elas/eles frequentado cria uma narrativa que busca justifi-
car a situação de acolhimento. Todas/os acham que têm o que dizer so-
bre a situação. Quase ninguém se preocupa em perguntar como aquela
criança, como aquela/e adolescente vive sua condição. Assim, espalham-
se versões sobre ela/ele, sem a possibilidade de que ela/ele possa dizer de
si. Não lhe é assegurado o lugar de sujeito de sua própria história.
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E, convenhamos, nós não costumamos ser muito generosos nas nossas his-
tórias... pensamos em pais violentos, em mães negligentes, em crianças terrí-
veis... enfim, partimos da ideia de que existe uma/um culpada/o. Alguém que
fez algo mau. Alguém que é mau.
Dificilmente, paramos para refletir sobre a construção da teia em que se
tece uma a história de uma vida, com seus tantos fios e suas tramas. Dificil-
mente, consideramos os momentos na vida em que nos enroscamos na teia,
perdemo-nos, não sabemos mais como voltar atrás, não sabe como seguir
adiante. Não por sermos maus, nem por sermos alvos de maldade alheia, mas
porque viver neste mundo é difícil.
Sobre efetivar direitos
Pois bem, nós, que estamos aqui, somos profissionais responsáveis por traba-
lhar com essas crianças e esses adolescentes em diferentes serviços, referidos a
distintas políticas que visam à garantia de diferentes direitos.
Em meio à tamanha complexidade e, muitas vezes, sem articulação
com nossos pares, é costumeiro que nos paralisemos diante da ideia de
que, como uma violência muito radical já ocorreu, como algo muito
fundamental deixou de ser garantido para essas pessoas, qualquer coi-
sa que façamos será insuficiente. Às vezes, pegamo-nos pensando que a
marca feita pela tragédia ou pela violência é tão brutal, tão profunda, que
esses meninos e meninas não vão terão outra possibilidade que a de perma-
necer em uma vida precária. Ou seja, por reconhecermos que um direito muito
fundamental foi violado, ficamos tão marcados por isso quanto nossos meni-
nos e nossas meninas. Parece que nada que possamos oferecer será suficiente.
Mas é preciso perguntar: suficiente para quê? Suficiente para quem? Se
nosso parâmetro é apagar a violação, cobrir seus rastros e seus efeitos, impe-
dir que a vida de meninos e meninas seja marcada pela dor, sim, nossa tarefa,
mais que insuficiente, é impossível. Estamos fadadas/os ao fracasso.
Porém, se compreendemos que nossa tarefa não é apagar o passa-
do e nem seus rastros, mas produzir, com as meninas e meninos, uma
narrativa sobre o que lhes passou e, com isso, uma certa leitura sobre
sua condição do sujeitos em um mundo concreto, abre-se caminho para
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ações de reconhecimento e reparação. Sim, todas e todos têm direito à
memória e à reparação. E, nós, agentes públicos, somos as/os profissio-
nais responsáveis por objetivar tais direitos.
Sobre apoiar a construção de projetos de vida
Esta é a nossa função: apoiar essas crianças e essas/es adolescentes em dois
movimentos que acontecem concomitantemente: a) conhecerem sua história
e conseguirem pensar sobre o que lhes aconteceu; b) perceberem que não são
condenados pela história, que ninguém é condenada/o. São todas/os marcadas/
os pela história, porque todas/os nós o somos. Isto permite lançarmos mão de
outros apoios, de outras pessoas, de outro repertório para, então, apossando-
nos do que foi feito de nós, podermos avançar na produção de sonhos.
Assim, nós, profissionais, temos uma importante contribuição que
é a de ofertar outras histórias, outros sonhos, outros projetos exis-
tentes em nossa cultura. Enfim, apresentar trajetos e sustentar, nesses
meninos e meninas, a afirmação de si como pessoas que têm uma histó-
ria, não uma condena: essa é nossa tarefa. Porém, para poder sonhar, é
necessário que esses sujeitos possam encontrar outro mundo que não
aquele que os feriu tão profundamente.
Sobre tecer redes
É nesse sentido que a tessitura da rede de proteção é tão importante, pois, o
que devolve uma criança ou uma/um adolescente que teve seus direitos vio-
lados ao mundo é a possibilidade de circular para encontrar outro mundo,
produzir outras pertenças. E isso se faz com participação comunitária.
Entretanto, não é fácil para ninguém, muito menos para esses meninos
e meninas, circular em um mundo tão hostil. Nosso mundo não é hospitalei-
ro. Não se trata de fazer a lista das instituições não hospitaleiras: a escola,
o Saica, a UBS, a guarda, a Vara da Infância... Trata-se de percebermos que
não construímos um processo de socialização baseado na hospitalidade. Por
hospitalidade quero dizer, muito simplesmente, a possibilidade de ofertarmos
espaços e relações em que os sujeitos sintam que estão sendo recebidos e re-
conhecidos como pessoas dignas de estarem ali.
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Nos espaços da vida cotidiana, nossas crianças e nossas/os adolescentes
que vivem situações de acolhimento são olhadas/os com desprezo, com medo,
com dó, com nojo... e, crianças e adolescentes que são, vivendo isso muitas e
muitas vezes em suas peles frágeis, às vezes grossas de tantas cicatrizes, vão
responder da forma como podem, não da forma que consideramos idealmen-
te adequada. É possível que elas/eles reiterem o estereótipo de que são agres-
sivas/os, de que são briguentas/os, impossíveis, sem graça, zumbis....
Quero lembrar, aqui, que somos nós as/os adultas/os dessa história.
Somos nós que temos que apoiar a criação de outras respostas, apresentando
outras possibilidades, outras possibilidades de relação entre as pessoas e com os
espaços da vida pública. Nós, as/os adultas/os temos o dever moral de criar condi-
ções para que esses meninos e meninas realizarem sua humanidade.
Crianças e adolescentes que sofreram muito costumam deixar de ser vistos
a partir da lente com a qual percebemos a infância e a adolescência. Como as/
os trabalhadoras/es rurais que, de tanto trabalhar de sol a sol, veem desapare-
cer as marcas da juventude, os corpos pequenos, às vezes mirrados de nossas
crianças, mesmo sendo corpos miúdos são vistos como corpos que não abri-
gam mais uma criança. Acabamos por sentir medo, por nos sentir ameaçadas/
os. É preciso esforço para lembrarmos – e lembrarmos a elas/eles também – de
que ali tem criança, de que ali tem um garoto ou uma garota.
E por isso, a rede é tão fundamental: porque ela nos coloca, as/os
adultas/os, de mãos dadas trabalhando. Profissionais de saúde, de educa-
ção, da assistência social, da segurança... todas/os discutindo como sustentar, na
comunidade, a ideia de que essas meninas e meninos precisam e podem parti-
cipar dos equipamentos sociais, das atividades, da circulação. Todas/os juntas/os
pensando o que fazer quando elas/es sofrem, quando violam as regras, quando
não reagem aos nossos convites. Somos nós, as/os adultas/os, que temos a fun-
ção social de nos responsabilizar por sustentar os laços sociais dessa meninada,
porque, afinal, foi o que estabelecemos desde a Constituição Federal de 1988 e
o Estatuto da Criança e do Adolescente, de 1990: queremos ser uma sociedade
em que as/os adultas/os protegem suas crianças e suas/seus adolescentes. Essa
afirmação tem significações as mais complexas. Destaco uma no contexto desta
discussão: a da criança como sujeito do cuidado público.
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Veja, o lugar de filha/o é sempre um lugar percebido como privado. Sou
filha de uma determinada mãe. Sou filha de um determinado pai. Meu pai não
me registrou. Minha mãe não pode ficar comigo, etc. A presença do pronome
possessivo e do indicativo de pertença sempre se fazem presentes.
Diferentemente do lugar de filha/o, o lugar de criança e o lugar de
adolescente é sempre um lugar público. Independentemente de quem são,
onde estão e como estão minhas/meus familiares, continuo sendo criança, conti-
nuo sendo adolescente. E sustentar condições para que a infância e adolescência
sejam vividas é função pública de todos nós que somos agentes públicas/os.
Termino compartilhando o poema A Praia, de Rabindranath Tagore, es-
critor indiano mencionado muitas vezes por Winnicott, o pediatra que se fez
psicanalista a partir do contato sensível com crianças muito machucadas pela
precariedade da vida na guerra.
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As crianças se encontram nas praias dos mundos sem fim.
O céu infinito está imóvel lá em cima e a água inquieta está revolta. Na praia
dos mundos sem fim as crianças se encontram entre gritos e danças.
Constroem as suas casas de areia e brincam com suas conchas vazias. Tecem
de folhas secas os seus botes e, sorrindo, os largam a flutuar no vasto mar. As
crianças se divertem na praia dos mundos.
Não sabem nadar, não sabem lançar redes. Os pescadores de pérolas mergu-
lham em busca de pérolas, os mercadores navegam em seus navios, enquanto
as crianças ajuntam seixos e os espalham de novo. Não procuram tesouros
escondidos, nem sabem lançar redes.
O mar encapela-se entre risos, e, pálido, fulgura o sorriso da praia do mar... As
ondas que trazem a morte cantam para as crianças baladas sem sentido, tal a
mãe que embala o berço de seu filho. O mar brinca com as crianças, e, pálido,
fulgura o sorriso da praia do mar...
As crianças se encontram na praia dos mundos sem fim. A tempestade vagueia
pelo céu sem caminhos; soçobram navios nos ínvios mares; a morte anda às
soltas, e as crianças brincam. Na praia dos mundos sem fim é que se dá o gran-
de encontro das crianças.
1.	Conferência de abertura do “Seminário de Rede: Enlaces entre a rede de proteção de cri-
anças e adolescentes em acolhimento”, realizado no dia 29 de Julho de 2016, em Osasco.
2.	Carla Biancha Angelucci – Psicóloga, doutora em Psicologia Social e mestra em
Psicologia Escolar. Professora da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo
nas áreas de Educação Especial e Sociologia a Educação. Email: b.angelucci@usp.br.
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Pois que sejamos mais praia de mundos sem fim para nossas meninas e
meninos encontrarem condições de nos habitar. Ao nos habitar, quem
sabe, poderão experimentar a hospitalidade que estamos tecendo nesta
rede. Rede que quer sustentar as possibilidades de sonho dessa gente miúda
que tem gesto reticente, pois que traz na memória as tantas andanças no fio
da navalha, sem rede.
Referências
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília. 1988
BRASIL. Estatuto da Criança e do Adolescente. Brasília. 1990.
WINNICOTT, D. W. O Brincar e a Realidade. Rio de Janeiro: Imago, 1975.
WINNICOTT, D.W. Privação e Delinquência. São Paulo: Martins Fontes, 1984.
34
2
35
produção
dos encontros
temáticos
36
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encontros temáticos:
práticas prioritárias e possibilidades
de experimentações
Em Novembro de 2015, o Núcleo Entretempos realizou o seminário “Construção
de diretrizes comuns para elaboração do Projeto Político-Pedagógico”, voltado
para os profissionais dos Serviços de Acolhimento para Crianças e Adolescentes,
CRAS e Serviços de Convivência e Fortalecimento de Vínculos, com uma pro-
posta diferente: escutar da gestão da SAS, em especial da diretoria da Proteção
Social Especial e da Proteção Social Básica, quais as prioridades e o planejamento
para os serviços que estavam sob sua gestão. Tais prioridades, pontos nevrálgicos
que eram o foco de atenção da gestão, foram traduzidas em práticas prioritarias
para os serviços, que precisavam ser implementadas, qualificadas e discutidas.
Assim, esse seminário teve como objetivo apresentar aos profissionais
o histórico e o momento atual dos serviços em Osasco e esclarecer, pactuar
e iniciar o desenvolvimento das práticas prioritárias mínimas que devem ser
desenvolvidas por cada um deles. Essas práticas constituem as diretrizes co-
muns dos Projeto Político-Pedagógico de cada tipo de instituição - Serviços
de Acolhimento, Cras e Serviços de Convivência. Essa direção de trabalho visou
estreitar e alinhar os projetos da gestão com as propostas dos serviços, para
que o investimento na formação ganhasse força e respaldo e também pudes-
se ser enxergado de forma mais ampla, pensando na execução da política de
assistência social no município de Osasco.
Após a apresentação, os participantes foram divididos em três grupos, por
serviço: CRAS, SCFV e SAICA. Em cada um dos grupos, foram apresentadas as
práticas prioritárias e abriu-se para comentários e questões. Em seguida, os gru-
pos foram redivididos em três grupos menores e cada um dos sub-grupos ficou
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responsável por debater e pensar na implementação de duas práticas. Dessa
forma, foi possível iniciar uma construção participativa das diretrizes e ações
comuns aos serviços.
O foco foi na troca de experiências e informações entre os profis-
sionais, favorecendo espaço para que todos pudessem trazer suas opi-
niões e ideias, realizando construções coletivas e democráticas sobre
como fortalecer e ou implementar as práticas discutidas no cotidia-
no do trabalho. O espaço também serviu como encontro e possibilidade
de elaboração, de não estar só, ao compartilharem as angústias, as dúvidas
e os desafios que surgem no trabalho. O encontro também permitiu discutir
o histórico, perceber ganhos nos serviços e abrir um olhar para o futuro: a
possibilidade de projetar.
Em 2016, com a intenção de dar seguimento a essas discussões e abrir es-
paço para novas práticas, a formação Enlaces criou um dispositivo, chamado de
Encontros Temáticos, pensado a partir das práticas prioritárias, com a ideia de
que fosse um espaço “mão na massa”, para fazer junto. Esses encontros não
tinham a ambição de esgotar a discussão sobre as práticas, mas de abrir novos
diálogos e auxiliar na implementação das mesmas. Os encontros tiveram os se-
guintes objetivos:
•	 Criar novos espaços de trocas sobre práticas entre os profissionais de
diferentes serviços;
•	 Viabilizar construções coletivas em relação às práticas a serem im-
plementadas;
•	 Ampliar o repertório de estratégias a partir das experiências em
cada serviço;
•	 Experimentar, a partir de proposições nos encontros, novos olhares
e possibilidades de intervenção que favorecessem a criatividade e o
encontro sensível;
•	 Fortalecer relações cooperativas e colaborativas entre os profissio-
nais que atuam na Assistência Social em Osasco;
•	 Elaborar conjutamente diretrizes comuns para a elaboração dos Pro-
jetos Político-Pedagógico dos serviços.
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Foram ofertados no total 7 encontros temáticos:
Para CRAS e SCFV
•	 Acolhimento - discussão das práticas: acolhimento coletivo e acolhi-
mento individual.
•	 Grupos e Oficinas – discussão das práticas: grupo socioeducativo,
grupo de convivência e desenvolvimento familiar, atividades com os
usuários dos serviços voltadas para conhecer e trabalhar questões
do território e intervenção piloto intergeracional.
•	 Articulação PAIF E SCFV – discussões das práticas: reunião mensal
entre CRAS e SCFV, ações de articulação em rede, discussão e revisão
de procedimentos de entrada, frequência e acompanhamento para
facilitar a inclusão do público prioritário e grupo mensal de famílias
nos SCFV que dialogue com as temáticas do PAIF.
Para SAICAS
•	 Reuniões e funções no SAICA – práticas discutidas: reunião mensal
em cada serviço com todos da equipe, definição dos papéis e fun-
ções de cada um para cada atividade da rotina diária.
•	 Roda de conversa e brincadeiras - práticas discutidas: roda de con-
versa e atividades semanais de convívio no serviço.
•	 Trabalho com famílias – prática discutida: trabalho com famílias.
•	 PIA e construção de projetos de sáida para os adolescentes – prá-
ticas discutidas: atualização do PIA semestralmente e atividades
específicas para construção de projeto de saída dos adolescentes
por maioridade.
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A seguir, apresentamos a
produção dos grupos, na
expectativa de que possam
ser compartilhados,
divulgados e convidem
a todos a experimentarem e
seguirem criando em sua
prática diária!
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proteção social básica
Acolhimento1
A acolhida, segurança prevista pelo SUAS, envolve o contato inicial de um in-
divíduo ou família com os serviços, a escuta de suas necessidades e demandas,
a oferta de informações sobre a política de assistência, o PAIF e o cuidado
constante para construção e manutenção de uma relação de confiança. Como
um momento privilegiado para construção de vínculo com as famílias, deve
ter a atenção de todos os trabalhadores, desde o momento de entrada de um
usuário no equipamento, até sua relação cotidiana.
No Encontro Temático sobre Acolhimento, procuramos discutir acolhimen-
to como postura, atitude presente a todo momento e cuidado constante que
envolve, desde a organização de um espaço organizado e convidativo à presen-
ça, até a relação com cada um dos profissionais. Algumas questões surgiram
durante este percurso de trabalho e contribuíram para guiar a construção de
ações que garantissem o direito de acolhimento do usuário:
•	 Como acolher mesmo em equipes que não tem um ambiente aco-
lhedor, uma vez que, independente do clima da equipe, é direito
do usuário ser acolhido?
•	 Como proporcionar acolhimento em espaços que não tem uma es-
trutura e nem recursos físicos adequados?
•	 Uma vez que se percebe que o compartilhamento das informações
proporciona um acolhimento melhor ao usuário, como envolver
toda a equipe do CRAS no acolhimento?
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Para iniciar o debate, fizemos um levantamento de referências de acolhi-
mento, para construir parâmetros coletivos para a ação. Em seguida, mapeamos
as práticas já realizadas nos serviços para, a partir disso, construir mudanças aos
poucos, a cada encontro, percebendo os efeitos no cotidiano. Por fim, expe-
rimentamos avaliar nossas ações de acolhimento com os usuários, para tomar
decisões de melhoria. Nos dois últimos encontros, construímos uma sistematiza-
ção para que sirva de referência para os serviços e componha a construção dos
Projetos Político-Pedagógicos.
O acolhimento, enquanto postura e abertura do serviço para receber os
usuários, escutar suas demandas e construir uma relação de confiança, se dá des-
de a recepção e envolve o modo como o espaço está organizado, as atitudes dos
profissionais e os momentos específicos de acolhida particularizada e em grupo.
A recepção é o momento no qual a família recebe a primeira atenção ao
adentrar no CRAS. Ela pode ser realizada por funcionários(as) de nível médio e
é um direito da família, cabendo ao profissional responder suas demandas de
forma solícita e respeitosa. O funcionário pode: repassar algumas informações
básicas sobre o Serviço PAIF, coletar algumas informações essenciais sobre a fa-
mília, agendar atendimento com os técnicos de nível superior, entre outros. A
recepção constitui ocasião fundamental para a adesão e criação de vín-
culos fundamentais para o retorno da família.
A acolhida, como ação essencial do PAIF, é o momento privilegiado no qual
começa o vínculo entre serviço e família. O profissional deve buscar compreen-
der as demandas, vulnerabilidades e necessidades apresentadas pelas
famílias, buscando também identificar seus recursos e potencialidades
e como tais situações se relacionam e ganham significado no território.
Na acolhida, a história de cada família deve ser compreendida, quando houver a
possibilidade, a partir da escuta do maior número possível de membros.
Ações de acolhimento nos serviços são momentos de estabelecer relações
de confiança e de reconhecimento da equipe de referência do CRAS como pro-
fissionais qualificados para o atendimento da demanda familiar, permitindo a
instituição do vínculo. Para que os profissionais se tornem referência, é ne-
cessário que as famílias experimentem relações de horizontalidade, uma
escuta respeitosa e amoral, que se expressa em atitudes por vezes simples,
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tais como: o profissional se apresentar pelo nome e chamar o usuário
pelo nome, a valorização da história, potência e relações das famílias,
a oferta das informações e encaminhamentos requeridos e relaciona-
das à demanda expressa e a participação das famílias na construção do
planejamento do atendimento e acompanhamento familiar. Na acolhida,
constrói-se uma corresponsabilização dos profissional com a família na resposta
às demandas e vulnerabilidades apresentadas, a fim de ampliar o caráter prote-
tivo do trabalho realizado.
Tomando como referência o estudo das normativas, construímos coletiva-
mente parâmetros para avaliar as ações de acolhimento. São posturas que ex-
pressam acolhimento:
Deixar a pessoa à vontade / Prestar atenção na pessoa /
Dar atenção à pessoa / Atender com bom humor / Dar
informações / Esclarecer dúvidas / Receber bem / Lembrar
das histórias das pessoas / Permitir que a pessoa conheça
o espaço, estar de portas abertas / Olhar no olho / Sorrir /
Estar inteira no que faz / Perceber e acolher as diferenças /
Ter tempo / Não ser invasiva / Possibilitar com que a pessoa
sinta que pode contar com/ter segurança / Possibilitar que
a pessoa se sinta: pertencente, cuidada e informada sobre o
quecabeounãoaoserviço/Resolveraquestãoqueapessoa
trouxe ou possibilitar o melhor encaminhamento / Se
preocupar com a pessoa, para além das burocracias / Olhar
paraapessoaenquantoelafala/Darcontaomaisdepressa
possível das senhas e filas / Não dar respostas apressadas
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Em continuidade a esse processo, experimentamos algumas mudanças nas prá-
ticas de acolhimento de cada serviço.
A equipe do CRAS KM 18 relatou que trocou o balcão da recepção por uma
mesa. Essa substituição permitiu que tanto o usuário quanto o funcionário esti-
vessem sentados, e portanto, mais a vontade durante a recepção. Eles percebe-
ram que os usuários aprovaram a mudança, e que isso permitia uma vinculação
maior dos mesmos com o CRAS.
Os funcionários do CRAS Padroeira relataram que a recepcionista passou a
participar dos acolhimentos coletivos, pois dessa forma ela conseguiu se apro-
priar melhor das atividades do CRAS e consequentemente informar melhor os
usuários que procuravam seus direitos. Esta mesma equipe também relatou as
mudanças que foram produzindo na forma de realizar os acolhimentos coleti-
vos e como elas foram proporcionando um maior vínculo entre os usuários e
com o CRAS. No início, elas realizavam o acolhimento com Power Point no qual
constavam tidas as informações sobre o CRAS. Com o tempo, o acolhimento foi
sendo realizado através de uma roda de conversa, no qual o tema tratado era
escolhido de acordo com as demandas dos usuários presentes. Elas ressaltam
que essa mudança foi possível na medida em que foram se apropriando da po-
lítica do SUAS e de informações que os usuários necessitam.
Já no CRAS Bonança, eles relataram de placas elaboradas com papel sulfi-
te informando aos usuários a localização do CRAS, uma vez que eles estavam
provisoriamente atendendo no espaço da Casa de Cultura, e não possuíam uma
placa identificando o serviço.
A partir dessas experiências fizemos uma sistematização para que sirva como
guia e seja utilizado na construção do PPP. Dividimos as práticas em: cuidados
com o espaço / ambientação, recepção, acolhida coletiva, acolhida particulari-
zada, acolhida anterior às atividades. Segue a síntese construída coletivamente.
1. RECEPÇÃO
O que é?
A recepção é o coração do CRAS, é o primeiro contato com os serviços do CRAS.
É o início, a base do atendimento, o primeiro passo para o processo de inclusão
da família na rede / política de assistência, com escuta qualificada.
45
Na recepção, é necessário dar atenção ao usuário, saber ouvi-lo para informar
corretamente o que o CRAS pode fazer por ele e o que existe dentro do CRAS
– tentar resolver os assuntos e evitar encaminhar de forma desnecessária. É fun-
damental acolher a todos que chegam.
Para que serve?
Orientar
Direcionar para próximo passo (dentro do CRAS ou fora)
Coletar informações sobre a demanda do usuário e, se necessário, agendar
acolhimento com o técnico e/ou CadÚnico.
Colher assinaturas de listas de presença de atividades.
Anotar todos os atendimentos.
Como acontece?
Diariamente, das 8h às 17h, por demanda espontânea e convocação.
Quando acontece?
Diariamente.
Que profissionais estão envolvidos?
Técnico de nível médio capacitado, com suporte da gestão. Para tanto, são
habilidades necessárias: educação, empatia e simpatia.
Para quem esta prática está destinada?
Para todos que chegam ao CRAS.
2. ACOLHIMENTO COLETIVO
O que é?
É a inserção do usuário no atendimento do CRAS, sendo a porta de entrada
para a política de assistência.
Para que serve?
Para que o usuário conheça o CRAS, a assistência social, os serviços que ele pode
acessar da assistência básica e especial e ter um exercício de cidadania. Nesse
momento, pode perceber também que as demandas são compartilhadas.
46
Como acontece?
Através de uma roda de conversa, numa sala apropriada com água e café,
para que o ambiente fique mais acolhedor. A equipe deve salientar o que é o
CRAS, a apresentação da equipe e dos munícipes por nome e bairro, informar
serviços, programas, projetos e fluxos. Se necessário, deve-se encaminhar o
munícipe para atendimento individual. Ao falar das atividades, deve-se salien-
tar o papel destas, suas etapas e duração.
Quando acontece?
Quando o usuário tem interesse pelas atividades, vem em busca de orienta-
ções ou serviços, informa que nunca esteve no equipamento ou necessita falar
com a equipe técnica.
Que profissionais estão envolvidos?
Recepção, APS e técnicos e auxiliar de cozinha. Os funcionários precisam ter
clareza do que é essa atividade. Pode haver participação de outros profissio-
nais de forma direta, não somente no suporte.
Para quem esta prática está destinada?
Para novos usuários. Também pode ser utilizada como capacitação para fun-
cionários novos.
3. ACOLHIMENTO INDIVIDUAL
O que é?
Atendimento privado, sigiloso e com mais durabilidade, “especializado”. Visa
garantir atenção maior, confiança do usuário e maiores esclarecimentos.
Para que serve?
Para acolher e ouvir com mais atenção e escuta qualificada. Muitas vezes, a
pessoa fica mais à vontade para contar sobre o que está acontecendo e se
sente acolhida e, por vezes, aliviada diante da escuta e orientação. A condu-
ção de cada situação pode ser feita a partir de suas especificidades, numa
ótica de corresponsabilização. Escuta qualificada: acolhimento, mapeamento
de potencialidades e vulnerabilidades que possam auxiliar na atenção ao mu-
nícipe, fortalecimento de vínculo entre munícipe e profissionais.
47
Como acontece?
Com agendamento. Em caso de urgência, atender na hora, pois a pessoa não
poderá aguardar. São consideradas situações desse tipo:
•	 insegurança alimentar
•	 violência doméstica – nesse caso, a recepção já orienta para procu-
rar o CREAS, informando a equipe técnica do CRAS.
Obs.: difícil avaliar quando uma situação é urgente; temos que aprimorar a
escuta. Para o usuário, é sempre urgente.
Que profissionais estão envolvidos?
Profissionais de nível médio e equipe técnica. O profissional de ensino médio
deve ser orientado pelo coordenador / técnico sobre como se faz a escuta e a
garantia de sigilo e depois passar as informações para o técnico dar continui-
dade ao acompanhamento.
Para que esta prática está destinada?
Todos os munícipes têm direto ao acesso ao CRAS.
4. ESPAÇO / AMBIENTAÇÃO
O que é?
Cuidados com o espaço e ambiente, em todos os espaços do CRAS. Organiza-
ção, limpeza, decoração acolhedora. Plantas dentro do CRAS dão uma sen-
sação de aconchego. Para tornar uma decoração acolhedora, é importante o
visual externo do CRAS estar bem cuidado, para uma boa primeira impressão.
Pode-se fazer decorações temáticas com os temas geradores.
Oferta de café, água e bolachas aos munícipes.
Para que serve?
Visa mostrar ao usuário que o espaço é dele e que ele deve zelar por ele.
Como acontece?
Com acolhimento por um todo, desde a recepção até o toalete. Ambiente
limpo, organizado, aconchegante e informativo, pela junção da equipe de lim-
peza, da recepção que organiza e do usuário que preserva o ambiente.
48
Quando acontece?
Sempre, a partir de quando o munícipe entra no CRAS.
Que profissionais estão envolvidos?
Todos. Atendentes, técnicos, APS e gestor.
Para quem esta prática está destinada?
Todos os munícipes e funcionários, para melhorar a qualidade no atendimento.
5. ACOLHIMENTO ANTES DE OFICINAS E GRUPOS
O que é?
Quando o usuário entra no CRAS e é acolhido e orientado pela recepção a
ir ao local das atividades. Deve ter um café já esperando e os mesmos ficam
aguardando o início das aulas. Envolve a postura da equipe antes / durante as
atividades e a ambiência.
Para que serve?
Para o usuário se sentir seguro, para fortalecer a relação entre CRAS e usuários
e favorecer a participação.
Como acontece?
Acolhimento desde o atendimento feito no telefone e a recepção.
Ideias:
•	 funcionário apresentar espaços do CRAS durante o período de espe-
ra; oferecer materiais informativos sobre os serviços de assistência.
•	 avaliação do usuário sobre sua primeira impressão ao entrar no CRAS.
Ex.: cumprimentar os idosos antes de começarem as atividades, oferecer bolacha
e café fazendo uma pequena conversa com eles, dar atenção, perguntar se estão
gostando do atendimento e dos serviços no CRAS e compartilhar experiências.
49
Quando acontece?
Desde a entrada, durante todo o processo.
Que profissionais estão envolvidos?
Todos.
Para que esta prática está destinada?
Usuários que chegam ao CRAS para participar de grupos.
1.	 Encontro Temático coordenado por Natália Felix Noguchi e Carolina Bertol.
50
51
grupos e oficinas1
O que faz um grupo ser bom? Foi a partir desta pergunta que iniciamos o en-
contro temático sobre grupos e oficinas nos CRAS e Serviços de Convivência.
Para os participantes, um bom grupo deve ter:
•	 Objetivos claros e definidos para que todos possam se compro-
meter e confiar na proposta.
•	 Proporcionar sentimento de pertencimento, confiança e de grupa-
lidade; uns ajudando os outros.
•	 Sentir-se reconhecido na sua individualidade e acolhido na sua
diferença. O grupo deve proporcionar efeitos para o coletivo e para
cada indivíduo.
•	 Momentos de descontração: ambiente lúdico, surpreendente e que
tenha um clima leve e acolhedor.
E por que fazer grupos na Assistência Social? Na medida em que esta política
lida com fragilidades relacionais, como violência, discriminação, humilhação,
isolamento etc, trabalhar essas questões também nas relações potencializa o
trabalho. Vale ressaltar também que as relações também podem ser fonte de
aprendizados e ampliação de repertório e, nesse sentido, podem fortalecer os
participantes e ajudar na prevenção de situações de risco.
Também dialogamos sobre alguns conceitos que podem ajudar no traba-
lho com grupos.
52
Para Pichon-Rivière (2009) tarefa é o elemento essencial do processo
grupal2
. Nessa perspectiva, o foco do trabalho não está centrado nos
indivíduos ou na totalidade dos grupos, mas na relação de um gru-
po e seus membros com uma dada tarefa. Em sua dimensão explícita, ela
corresponde ao motivo de constituição dos grupos; já sua dimensão implícita
está relacionada à elaboração e ruptura de estruturas esteriotipadas que se
colocam como obstáculo frente às situações de mudança. Assim, o objetivo de
constituição do grupo participa da tarefa, mas não a determina, visto que ela
se constrói ao longo do grupo.
As falas nos grupos podem ser consideradas a partir de dois eixos: o ver-
tical, que corresponde a história de cada um, sua singularidade – o traço – e o
eixo horizontal – a trama – que diz respeito ao comum, à construção coletiva
que sempre transcende a soma das individualidades. É tarefa do coordena-
dor trabalhar para que os dois eixos estejam presentes: é importante
reconhecer o que motiva cada um a estar lá, assim como proporcio-
nar que as pessoas reconheçam algo de comum, que elas se sintam per-
tencentes ao grupo.
Ao longo dos encontros, traçamos objetivos – PARA QUÊ - e estratégias –
COMO - para a realização dos grupos e oficinas. Assim, a partir do momento
de cada serviço e da singularidade de cada território, pensamos para que o
grupo poderia servir para, em seguida, trocarmos estratégias e metodologias
que pudessem ajudar a trabalhar os objetivos propostos.
No último encontro, registramos juntos os principais aprendizados dispa-
rados pelos encontros, que podem servir como diretrizes às equipes.
53
PAIF
Um desejo em comum se faz claro entre os participantes: criar um novo
olhar para os grupos para além do Renda Cidadã. Assim, os participantes
trocaram estratégias e aprendizados sobre a seguinte questão: o que faz, ou
pode fazer, alguém querer vir para um grupo?
•	 Reforçar menos a obrigatoriedade nos convites e jogar luz para o
que ele pode ter de interessante foi o primeiro aprendizado com-
partilhado. O que ajuda as pessoas a virem é o vínculo que elas pos-
suem com os profissionais, muito mais do que a condicionalidade.
•	 Palestra não! Nos grupos, as pessoas querem falar e ser ouvi-
das, então é importante favorecer estratégias para que as pessoas
possam falar e trocar entre si.
•	 A tarefa dos grupos nos CRAS deve ser a reflexão sobre temas
que dialoguem com as questões vivenciadas pelos usuários.
Assim, delinear, delimitar o tema gerador a partir das questões ob-
servadas pelos profissionais torna o grupo muito mais interessante
para os usuários.
•	 A continuidade dos encontros também é importante. Um grupo
leva tempo até se formar enquanto grupalidade e, nesse sentido, sair
de um grupo sabendo quando vai ser o próximo e qual será o assunto
abordado ajuda a dar a ideia de um grupo, e não de encontros pontu-
ais. Estabelecer uma periodicidade – por exemplo, toda 1ª sexta-feira
do mês, ou a 3ª quarta-feira do mês – tem sido uma boa estratégia,
visto que assim, mesmo que uma pessoa perca um encontro, ela já sabe
quando será o próximo. Ofertar diferentes possibilidades de horários,
ou discutir com os participantes sobre o melhor horário, também ajuda.
•	 O cuidado com o enquadre do grupo é fundamental: manter o
horário de início, cuidar dos atrasos, assim como sustentar os combi-
nados do grupo. O tamanho do grupo também é importante, pois
em um grupo muito grande é mais difícil sustentar um espaço de
fala para todos os participantes. Pela experiência dos CRAS, grupos
entre 15 e 30 participantes tem tido um bom funcionamento.
54
•	 Considerando que há dois grupos previstos – os grupos so-
cioeducativos, com temas geradores, e os grupos de desen-
volvimento e convivência familiar – é interessante mesclar e
oferecer os dois formatos, pois ao mesmo tempo que é impor-
tante ampliar repertório e oferecer conteúdos, sempre dialogan-
do com as questões deles, também é fundamental proporcionar
um espaço de fala sobre as dificuldades cotidianas.
•	 Também foi ressaltada a importância de cuidados com a equipe.
Por exemplo, evitar coordenar os grupos sozinhos ou, caso isso seja
impossível, ter espaços de troca antes e depois com a equipe. Ficou
clara a importância de espaços de troca entre os CRAS, para
compartilhar como cada serviço está trabalhando os temas
geradores, falar sobre dúvidas e estratégias. Foram pensadas
em duas possibilidades não excludentes: a criação de um grupo de
whatssapp e a utilização dos encontros bimensais entre CRAS. Lem-
brou-se que a equipe também é uma forma de grupo e seu fortale-
cimento é essencial para promoveremos bons grupos.
55
SCFV
O ponto mais destacado pelos participantes foi o da articulação entre os
grupos e o trabalho realizado no PAIF e no Serviço de Convivência e For-
talecimento de Vínculos. Articular os dois serviços inclui que os facilitadores
e oficineiros estejam mais próximos da equipe técnica e se sintam parte da
equipe do CRAS, tanto no planejamento de ações e grupos quanto em recebe-
rem devolutivas sobre o andamento dos casos acompanhados. Foi destacada
a importância da discussão de casos de famílias atendidas pelo SCFV e PAIF,
para que facilitadores e oficineiros possam contribuir, a partir da sua escuta
e olhar, para pensar estratégias de aproximação, compreensão e encaminha-
mento nos atendimentos.
Destacou-se que facilitadores e oficineiros devem ter um olhar atento
para a dinâmica do grupo, mas também para cada usuário. Foram relatadas
situações em que a percepção de um oficineiro sobre a mudança na dinâmica
de um participante no grupo pode ajudar a compreender questões da família
e fortalecer o trabalho que a técnica já realizava no PAIF.
O trabalho do SCFV, sem uma articulação com as ações do PAIF e sem de-
finição do objetivo, da tarefa de cada oficina, acaba se tornando muitas vezes
mecânico e padronizado. O que ajuda a construir sentido, ousar e produ-
zir estratégias criativas na elaboração de oficinas é o esclarecimento
e pactuação do objetivo do que equipe técnica e oficineiros visam para
cada uma delas e a relação que tem com a proposta e território de cada
CRAS. Também foi ressaltada a importância dos oficineiros poderem explorar e
experimentar oficinas inovadoras, ao invés de oferecerem somente as opções
que os usuários já conhecem e tem familiaridade. Surpreender pode ser uma es-
tratégia interessante para convocar os usuários a identificarem outras potências.
Foi destacado a importância dos oficineiros e facilitadores conhecerem o
desejo técnico do CRAS em relação às oficinas que são realizadas. Assim,
essas poderão ser potencializadas para trabalhar as temáticas que emergem
no cotidiano do PAIF e poderão fortalecer a relação do usuário com ambos
serviços. Também foi considerada essencial que exista, da parte das equipes
técnicas e coordenações, uma postura acolhedora e disponível a escutar as
percepções e sugestões de quem trabalha no SCFV, de modo a não criar uma
56
hierarquização e desigualdade na relação com usuários e entre profissionais.
Os oficineiros, mesmo quando itinerantes, querem fazer parte da equipe
de cada CRAS por onde circulam!
Para trabalhar essas questões, surgiram como propostas:
•	 realização de reuniões periódicas entre os oficineiros que ro-
diziam nos CRAS, para troca de experiências e ideias para oficinas.
•	 realização de reuniões periódicas em cada CRAS com equipe e
oficineiros que participam do SCFV para discutir o planejamento
e andamento das ações e acompanhamento de usuários e também
alinhar as propostas para as oficinas.
Sobre o trabalho intergeracional e oficinas sobre o território, surgiram diver-
sas possibilidades de atuação:
•	 trabalhar sobre território pode ser um mote para alinhar as gera-
ções dos usuários atendidos no CRAS. As oficinas podem ter o bairro
como fio condutor e trocar materiais produzidos a partir de diferen-
tes abordagens com cada faixa etária de trabalho. Trabalhar com
produções (fotos, histórias, blog e outras mídias) pode ser uma es-
tratégia interessante.
•	 território pode ser algo ampliado para além do território físico ou
da área de abrangência de cada CRAS. Através de oficinas culturais
e de criatividade, é possível trabalhar com o repertório cultural dos
usuários, que também diz da relação com seu território de origem e
circulação, e ampliar para outras possibilidades.
•	 a tarefa dos grupos do SCFV é trabalhar questões de convivência a
partir da exploração e ampliação do repertório sociocultural, inde-
pendente de faixa etária dos usuários, a partir de questões identifi-
cadas junto à equipe técnica.
57
1.	 Encontro Temático coordenado por Carina Ferreira Guedes e Fernanda Ghiringhello Sato.
2.	 Pichon-Rivière define grupo como: “o conjunto restrito de pessoas, ligadas entre si
por constantes de tempo e espaço, e articuladas por sua mútua representação in-
terna, que se propõe, de forma explícita ou implícita, uma tarefa de constitui sua
finalidade” (Pichon-Rivière, 2009, p. 242-3).
58
59
articulação PAIF - SCFV1
A articulação entre PAIF e Serviço de Convivência e Fortalecimento de Vín-
culos é fundamental para materializar as ações de proteção social da política
de assistência, uma vez que atuam de maneira complementar e que visam
garantir as três seguridades da Assistência social: sobrevivência, acolhimento
e convivência. Para efetivar essa articulação, propusemos três questões que
nortearam os diálogos durante nossos encontros:
•	 Quais são atribuições de uma equipe que atua no PAIF? E no SCFV?
•	 O que torna a articulação entre esses serviços importante?
•	 Quais as consequências negativas da desarticulação entre PAIF e SCFV?
Cabe à Proteção Social Básica ampliar a capacidade protetiva das fa-
mílias, fortalecendo e diversificando sua rede de relações e reduzindo
fragilidades. Sua ação se dá na articulação entre serviços e benefícios e
deve ter caráter antecipatório – deve conhecer os territórios, famílias
e suas demandas, além do nível de desproteção em que se encontram e
atuar no enfrentamento a essas questões. Tem como finalidade mapear e
desenvolver potencialidades e aquisições da população com que atuam, for-
talecendo vínculos familiares e comunitários.
Para que se realize um trabalho de qualidade, PAIF e SCFV devem es-
tar referenciados, desenvolvendo ações complementares. Espera-se que
o PAIF contribua para a redução de situações de vulnerabilidade social,
60
aumento do acesso a serviços socioassistenciais e melhoria da quali-
dade de vida das famílias residentes no território de abrangência do
CRAS. Aos SCFV, cabe ofertar atividade que ampliem as trocas culturais,
vivências, sentimento de pertença, utilizando estratégias previstas na
Concepção de Convivência e Fortalecimento de Vínculos com vistas à
ampliação e diversificação de vínculos.
É importante ressaltar que no município de Osasco grande parte dos ser-
viços de convivência são efetivados por entidades conveniadas com a Prefei-
tura e que durante um longo tempo elas atuaram de forma independente
do CRAS. A ação de articulação e de estabelecimento de fluxo entre os dois
serviços é uma preocupação e demanda da gestão atual, que entende que ela
é fundamental para garantir a proteção social básica de acordo com as nor-
mativas do Ministério do Desenvolvimento Social e garantir a qualidade nas
ações desenvolvidas com os usuários.
Nesse sentido, este encontro temático teve como objetivos fortale-
cer as relações entre os profissionais dos serviços de convivência (so-
bretudo das entidades conveniadas) e as equipes que são responsáveis
pelas ações do PAIF; iniciar a articulação e o referenciamento entre os serviços e
estabelecer um fluxo de encaminhamento para a população atendida; construir
um campo comum de entendimento sobre o que cabe a cada serviço; intensificar
e multiplicar as ações que já são realizadas pelos serviços e que contribuem para
atingir as finalidades do PAIF e do SCFV. Para isso, foram utilizados principalmen-
te dois materiais de referência: a Concepção de Convivência e Fortalecimento de
Vínculos (MDS, 2013) e o Caderno de Orientações PAIF e SCFV (MDS, 2015).
Além disso, foram solicitadas atividades entre encontros, de modo que os
profissionais pudessem experimentar a articulação e mapear os fluxos.
Como forma de atingir os objetivos propostos, nós inicialmente apresenta-
mos o Caderno de Orientações descrito, destacando os objetivos de cada servi-
ço e como eles se articulam com as finalidades do trabalho de Proteção Social
Básica junto às famílias atendidas. A partir de relatos das práticas cotidianas e
exemplos dos serviços, buscamos refletir sobre os prejuízos, para os usuários e
para o trabalho, da desarticulação entre os dois serviços, construindo sentido
para os encontros e para a necessidade de articulação. Também realizamos um
61
mapeamento das atividades desenvolvidas pelos CRAS e pelos Serviços de Convi-
vência, analisando-as em relação aos objetivos do PAIF e do SCFV, as dificuldades
encontradas para efetivá-los, mas também refletindo sobre boas práticas.
Como forma de promover uma experimentação da articulação entre os ser-
viços, pensar a responsabilidade de cada um na construção da proteção social
e estimular a realização de ações integradas, promoveu-se uma discussão de
caso a partir da qual foram localizadas vulnerabilidades e elaboradas estraté-
gias e ações específicas para trabalhá-las. A atividade serviu de estímulo para
que os serviços colocassem em prática uma ação integrada no decorrer do mês.
Esta proposta permitiu trabalharmos as dificuldades encontradas para efetivar
ações conjuntas bem como potencialidades descobertas nesta articulação.
Nos últimos encontros, propusemos a realização de um mapeamento
conjunto, com o objetivo de identificar quais as famílias estão cadastradas
em quais serviços e como elas estão sendo atendidas, destacando-se as ações
incluídas neste acompanhamento. Além disso, buscamos construir um maior
esclarecimento das diferenças entre o PAIF e o SCFV, pois percebemos que
existiam muitas dúvidas a respeito das atividades especificas de cada um e
daquilo que era comum. Assim, refletimos sobre suas especificidades de es-
tratégias e de ação e como eles podem se complementar de forma a garantir
os direitos dos atendidos.
Ao final dos encontros, os participantes produziram reflexões sobre como
PAIF e SCFV podem desenvolver suas atividades de maneira articulada, as
quais são apresentadas a seguir:
1.	 O PAIF contribui para o trabalho realizado pelo Serviço de Convivência
na medida em que direciona a demanda e o acompanhamento para o
acesso a este, que investe no atendimento coletivo e na escuta quali-
ficada, que trabalha as questões comuns a diferentes famílias do terri-
tório a partir do acompanhamento familiar, que consolida a formação
de grupos e desenvolvimento familiar, e que auxilia na vinculação dos
usuários do PAIF ao SCFV, estando próximos dos mesmos e realizando
atividades conjuntas.
62
2.	 O SCFV contribui para o trabalho realizado pelo PAIF por meio da ava-
liação e intervenção por ciclo de vida, contextualizado em seu núcleo fa-
miliar. Os encontros temáticos e atividades festivas realizadas nos servi-
ços com a participação das famílias auxiliam para ampliar a convivência.
Além disso, contribui para a garantia de direitos quando realiza encami-
nhamentos para outros recursos e políticas públicas, bem como também
para acolhimento coletivo do CRAS. Em caso de direitos violados, faz
também encaminhamento para o CREAS.
3.	 Para que a parceria PAIF – SCFV se efetive, a equipe técnica do CRAS
deve ser responsável por fazer esta articulação. Dentro do SCFV,
este papel deve ser realizado pelo orientador e pela coordenação do
serviço, com os serviços de proteção de forma direta e indireta. Essa
articulação demanda ações como:
•	 conhecimento da rede socioassistencial
•	 reuniões entre as equipes
•	 conhecimento do território
4.	 É necessário, ainda, que se mantenha a vinculação e que sejam realiza-
das sistematizações, planejamentos e continuidade de temas e tarefas.
Para o acompanhamento, é necessário monitoramento do trabalho pe-
las técnicas. Vale ressaltar a importância da contratação de um pro-
fissional que tenha perfil para executar essas funções e da formação
continuada de toda a equipe, capacitações.
63
64
Durante os encontros pudemos experenciar os benefícios da articulação entre
os dois serviços. As profissionais da entidade Lar Jesus e do CRAS Rochdale
ressaltaram que estão desenvolvendo um trabalho mais próximo, e que em
função disso, uma usuária do SCFV da entidade Lar Jesus que frequentou por
cinco anos a instituição, mas que estava desmotivada para continuar partici-
pando, foi encaminhada e acompanhada até o CRAS pelo técnico da entida-
de que, através da articulação com a técnica do CRAS Rochdale, possibilitou
a criança começar a frequentar as atividades do SCFV dentro do espaço do
CRAS, tendo em vista que a família já era beneficiada pelo PAIF. Ou seja, a
articulação possibilitou um olhar ainda mais integral no acompanhamento da
família pelo CRAS e a possibilidade de inserir a criança em uma atividade mais
adequada a seus interesses e necessidades. Além disso, os profissionais do
CRAS e da entidade fizeram uma reunião e firmaram um acordo para que a or-
ganização e inserção do público no SCFV se desse por meio do referenciamen-
to primeiramente no PAIF realizado no espaço do CRAS. A técnica da entidade
também participa das reuniões que são realizadas no CRAS e acompanha os
usuários, o que contribui para a vinculação com o serviço.
Essa aproximação entre profissionais do PAIF e das entidades conveniadas
foi importante para que pudessem elaborar e pensar em atividades conjuntas.
A equipe do CRAS Piratininga programou duas atividades em conjunto com
a entidade conveniada e estavam fazendo uma força tarefa para cadastrar as
famílias que já eram atendidas pela entidade no PAIF. O mesmo ocorreu no
CRAS Bonança, que estavam cadastrando as famílias que frequentam a Casa
de Cultura e a entidade Cristo Rei. Os profissionais da GAAPS, entidade refe-
renciada ao CRAS Munhoz, participaram de um grupo socioeducativo realiza-
do pela equipe do PAIF e que isso contribuiu para a aproximação entre eles e
o planejamento de mais ações conjuntas.
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Todos os profissionais ressaltaram que o trabalho social com famílias de-
manda uma ação articulada com vistas à garantia de proteção. No entanto,
destacou-se que a falta de recursos humanos capacitados, bem como a falta
de materiais para o trabalho proposto podem limitar a atuação e comprome-
ter a articulação entre os serviços; bem como a falta de entendimento e com-
preensão das especificidades e objetivos de cada serviço. Recomenda-se cui-
dado na seleção dos profissionais, além da formação permanente das equipes.
Lembrar
•	 Tanto o PAIF quanto o SCFV fazem parte do CRAS, ainda que as ati-
vidades do Serviço de Convivência possam ser realizadas em espaço
físico diferente e por uma instituição parceira, e por isso devem
atuar tendo como foco garantir as três seguridades da assistência:
acolhimento, convivência e sobrevivência.
•	 O SCFV está matriculado no PAIF; isto significa que os encaminha-
mentos devem partir do PAIF para o SCFV;
•	 O SCFV não se restringe ao CRAS, mas também pode estar articula-
do junto com o território.
•	 Articulação de trabalho não ocorre entre instituições, mas entre pes-
soas: o contato entre profissionais e o conhecimento dos trabalhos
que desenvolvem é fundamental para a efetivação dessa articulação.
1.	 Encontro Temático coordenado por Mariana Manfredi Magalhães, Natália Felix No-
guchi e Carolina Bertol.
66
67
reuniões e funções no SAICA1
A proposta deste Encontro Temático foi a de convidar o grupo de profissio-
nais, formado principalmente por gestores e APS, mas com participação de
uma técnica e uma cozinheira, a pensar nas funções/atribuições de seu tra-
balho no SAICA e da importância das reuniões de equipe como prática de
cuidado com a equipe e frente aos objetivos do serviço de acolhimento, con-
forme determinado pelas Orientações Técnicas. Determinar e discriminar
as funções de cada profissional no serviço de acolhimento é tarefa que
vem permeada de afetações e questões: é uma casa ou um serviço? So-
mos equipe ou família para as crianças e adolescentes? Ao construir-
mos vínculo, é profissional ou pessoal? Se a criança me chama de mãe, o
que responder? Temos todos a mesma função em relação às crianças?
Falar dessas questões ajudou a emergir diversas dúvidas dos profissionais
em relação a como agir, como se localizar em relação ao seu trabalho, so-
bre a identidade profissional de quem atua em serviços de acolhimento para
crianças e adolescentes e, principalmente, em relação à função, à diferença,
a ser desempenhada em relação ao cuidado com as crianças e adolescentes.
A experiência de estar com profissionais de SAICAS diferentes foi importan-
te para ajudar a perceber quais questões eram coletivas sobre o trabalho, e
quais tinham relação com a história e funcionamento de cada casa.
Em um segundo momento, discutimos sobre o que é função: a tarefa
que algo ou alguém tem que desempenhar; uma direção de trabalho que
indica intencionalidade e finalidade; o que determina a diferença que deve
proteção social especial
68
ser operacionalizada por um serviço ou profissional. A partir desta definição,
como pensar a função do Serviço de Acolhimento Institucional para
Crianças e Adolescentes?
Discutimos então sobre as três seguridades que o SUAS2
, como política
pública, tem que garantir:
•	 Sobrevivência: visa garantir um padrão mínimo para uma vida
digna e cidadã.
•	 Convivência: partindo do princípio de que é na convivência que de-
senvolvemos potencialidades e aprendemos uns com os outros, e de
que quanto mais vínculos relacionais as pessoas possuem e quanto mais
sustentados no tempo forem estes vínculos, mais protegidas elas estão.
•	 Acolhimento: se expressa na vivência do cidadão nos serviços do
qual ele frequenta, por meio de acesso a orientações, encaminha-
mentos sobre serviços e benefícios, ambiência acolhedora e que
assegure sua privacidade, condições de dignidade em ambiente fa-
vorecedor da expressão e do diálogo, ter reparados ou minimizados
os danos por vivências de violações e risco sociais, ter sua identida-
de e integridade história de vidas preservadas.
O SAICA, como serviço do SUAS, é responsável por garantir essas três se-
guridades e pudemos pensar no grupo como, na rotina e prática diária,
essas funções estavam sendo desenvolvidas por cada serviço. Assim, os
profissionais destacaram a importância da criação de projetos que permitissem
trabalhar esses três aspectos, pensando que garantir a sobrevivência é algo
mais direto e imediato e que pensar em acolhimento - e como a criança e ado-
lescente se sente ou não acolhido - e a convivência - com a família, o bairro, os
vizinhos, amigos e outros serviços da rede - são questões mais desafiadoras e
que exigem um investimento de trabalho a médio e longo prazo.
Em seguida, falamos sobre a história e as mudanças na função social e polí-
tica que ocorreram em relação aos serviços para atender crianças e adolescentes
até chegar à política atual dos SAICAS. Partindo da concepção dos orfanatos,
localizados na discussão como representantes de instituições maiores e totais3
,
69
foi possível discutir sobre as transformações na forma do cuidado às crianças
e adolescentes, trabalho com famílias e a rede e também sobre a diferença na
função a ser desempenhada pelos profissionais nos serviços de acolhimento.
Seguem algumas das diferenças principais:
Orfanato SAICA
Regulamentado pelo Código de Menores Regulamentado pelo ECA
Estadia permanente Estadia provisória
Ambiente institucional - atendimento em
grandes grupos
Ambiente familiar - atendimento em
pequenos grupos
Trabalho assistencial de atendimento
à criança, sem foco no retorno da criança
ao ambiente familiar
Trabalho focado no retorno à família ou
colocação em família substituta.
Foco no fortalecimento de vínculos
familiares e comunitários
Centralização de serviços no local
da moradia, sem uma visão maior de
inserção comunitária
Utilização da rede de serviços comunitários
como escola, centros comunitários de
bairro, ONGs, postos de saúde locais, como
forma de promover a inserção comunitária
Esquecer o passado
Trabalho com história de vida junto à
criança e elaboração de projeto singular
Trabalhadores: funcionários, pajem,
irmã, monitor
Trabalhadores: educadores,
cuidadores, técnicos
Projeto determinado pelo Estado
Projeto Politico-Pedagógico construído
de forma democrática a partir das
Orientações Técnicas
Regras visando disciplina e obediência
Regras visando desenvolvimento da
participação cidadã
O grupo fez uma reflexão crítica sobre como olhares e concepções de traba-
lho ainda ecoam e reproduzem ações provenientes de um modelo mais insti-
tucionalizado e muitas vezes estigmatizado em relação às crianças que estão
em situação de acolhimento e os cuidados que necessitam. Perceber como o
passado ainda se faz presente e como orientações divergentes convivem no
cotidiano dos serviços de acolhimento é essencial para que os profissionais con-
sigam transformar suas práticas e pensar suas funções de trabalho, inclusive em
relação à execução e ao debate sobre as políticas públicas existentes.
70
71
A retomada de determinados aspectos do SUAS (as seguridades e como
garanti-las) e da história do serviço de acolhimento pode ser muito provei-
tosa para as equipes já que permite que reconheçam seu trabalho de forma
mais ampla, construindo o caminho para essas perspectivas. Saber como
eram os orfanatos e como são os SAICAS possibilitou a desconstrução
de uma cultura de institucionalização para repensar o funcionamen-
to dessas instituições.
Aos poucos, fomos chegando às funções e às atribuições dos profissionais
em si, buscando consolidar os papéis na relação entre si e com as crianças e
adolescentes acolhidos. Qual a função que todos devem desempenhar em
relação às crianças? Quais as especificidades em relação a cada cargo?
Um dos conflitos comuns no trabalho dizem respeito às atribuições de cada
um e a consequente sobreposição ou abandono de algumas funções pela falta
de diálogo. O que cabe à gestão deste serviço? O que é responsabilidade da
equipe técnica? O que os APS tem autonomia e condição para conduzir no
cuidado das crianças? Como caminhar com funções determinadas, porém com
autonomia e parceria na equipe no percurso?
O grupo problematizou o nome Agente de Proteção Social (APS), re-
conhecendo que a função no SAICA diz de cuidado e educação, e não de
proteção, palavra ambígua que convoca a pensar quem está sendo pro-
tegido: as crianças da sociedade ou a sociedade das crianças?
O nome APS parece ser insuficiente ou excessivamente genérico para de-
finir e valorizar o trabalho que esses profissionais realizam. Os trabalhadores
que compunham esse grupo tiveram a tarefa de consultar suas equipes para
tentar chegar a um nome que contemplasse o trabalho que realizam. O nome
educador ou educador social foi o que mais apareceu e com o qual os profis-
sionais mostraram maior identificação.
Apesar do que é específico no cargo do APS, a função de educador e cui-
dador deve ser partilhada por todos que atuam na casa e tem contato com as
crianças. Cada profissional, em sua atribuição, contou como se localiza e de-
sempenha essa função no cotidiano. O aspecto mais forte ao longo da discus-
são foi a importância de que, na equipe, a história e projeto das crianças pos-
sam ser compartilhados. Conhecer a história ajuda na condução do trabalho,
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  • 1. CADERNO textos de referência do projeto de formação de profissionais da Assistência Social de Osasco VOL. 4
  • 2. Prefeitura do Município de Osasco Secretaria de Assistência Social prefeito Jorge Lapas secretária de assistência social Suzete Souza Franco diretora administrativa Ester Begnini diretora da proteção social básica Elizete Nantes Mendes Saramello diretora da proteção social especial Danielle Silva Bueno realização coordenação e organização
  • 3. CADERNO textos de referência do projeto de formação de profissionais da Assistência Social de Osasco VOL. 4 organização Carina Ferreira Guedes Fernanda Ghiringhello Sato Núcleo Entretempos SÃO PAULO 2016
  • 4. Introdução: construindo novas histórias na Assistência Social de Osasco Núcleo Entretempos PARTE 1 | SEMINÁRIOS TEÓRICOS Tempos da Cidade: história, rua e serviços Daniel de Lucca A rede de proteção de crianças e adolescentes em acolhimento: construindo lugares de referência Carla Biancha Angelucci PARTE 2 | PRODUÇÃO DOS ENCONTROS TEMÁTICOS Encontros Temáticos: práticas prioritárias e possibilidades de experimentações Proteção Social Básica Acolhimento Grupos e oficinas Articulação PAIF e SCFV Proteção Social Especial Reuniões e funções no SAICA Rodas de conversa e atividades na casa Trabalho com famílias PIA e construção de projetos de saída de adolescentes por maioridade PARTE 3 | NOVAS HISTÓRIAS: PRODUÇÕES DOS PROFISSIONAIS DE OSASCO Em busca do simples: uma experiência no serviço de acolhimento para crianças e adolescentes Isadora Canelli Bonfanti Érica Moura Cozinhando no CRAS maria ismarlene rodrigues O serviço de convivência e fortalecimento de vínculos do CRAS Padroeira como interlocutor do fortalecimento comunitário Andressa Mota do Nascimento de Brito Luciane de Paula Souza Renata Silva Petrini 7 10 13 25 34 37 41 51 59 67 77 83 89 98 101 109 113
  • 5. O papel da arte educação com RPG Lucas Nascimento Prado Mariana Morás dos Santos Horta na Casa José Raimundo Santana de Matos Luciana Oushiro Diunei Conceição de Andrade Projeto Adolescentes na cozinha e Minha vida na cozinha Ana Luzia Rodrigues Edilene Vieira dos Santos Ribeiro Izaque O triunfo da arte: passeio pelo centro histórico de São Paulo Thiago Avelino da Silva Desacolhimento de uma adolescente patrícia petroni Acolher com dignidade Maria Jocélia dos Santos Thiago Rodrigues Tudo passa Igor Luiz Atividades com grupos: experiências e transformações Lucas Nascimento Prado Cinthia Franco Evandro Pires Do CR2 para Casa Juventude: entre a resiliência e a esperança Entrevista com Juliane Cristina de Lima e Izabel Almeida 119 125 129 133 135 139 145 149 159
  • 6. 6 É deste lugar de autoria que esperamos que os profissionais continuem se responsabilizando pela criação, junto aos usuários, de novas narrativas sobre a assistência social de Osasco.
  • 7. 7 Chimamanda Angola Adichie, em sua conferência no TED talk, em 2009, nos adverte sobre “o perigo de uma história única”. As histórias únicas, nos conta, são histórias que criam e perpetuam estereótipos, ou seja, reduzem uma vida, uma cultura ou um sujeito a uma única característica. Como Nigeriana, ela nos conta como muitas vezes foi recebida por pessoas como “africana, vinda de um país e continente pobre, em guerras e com músicas tribais” sem que as pessoas percebessem que sua história trazia outras complexidades. Ela não se identificava com esse estereótipo da “africana”, pois isso pouco dizia da mul- tiplicidade de povos, países e línguas da África, do que ela identificava como sua história, das cidades e contrastes entre a miséria e a riqueza. Não só a vida de Chimamanda era enquadrada nesse recorte, mas também toda a diversi- dade de populações, comunidades, nações e sujeitos, que ficavam reduzidos a esta única manchete sobre “A África”. As histórias únicas são essas que se desvelam imediatamente e parecem ser definitivas e totais, dando-nos a falsa sensação de que já sabemos tudo sobre uma pessoa, um lugar, uma etnia, sobre alguém que atendemos ou um profissional, ou mesmo sobre um serviço. Todos nós criamos e reproduzimos histórias únicas, ou mesmo somos objetos e protagonistas de histórias únicas criadas por outros ou por nós mesmos. Um dos perigos das histórias únicas é que, ao serem repetidas e repeti- das, elas ganham o status de verdade. Como verdades, quase não são con- testadas e, aos poucos, vão silenciando outras histórias, outras perspectivas, outras possibilidades de vir a ser. O imediato, o irrefletido, o reativo tempo construindo novas histórias na Assistência Social de Osasco
  • 8. 8 do presente, oculta o passado e facilita que essas histórias únicas circulem como as histórias verdadeiras. Não há tempo, não há brecha que deixe surgir a curiosidade real sobre o outro, que possibilite vê-lo como desconhecido; não há questões sobre como essas histórias únicas e perigosas passaram a ser as histórias que conhecemos. Chimamanda nos provoca a pensar: as histórias únicas nos dão indícios também sobre as estruturas de poder no mundo. “Nkali”, ensina, é um subs- tantivo que pode ser traduzido livremente como “ser maior do que o outro”. Os mundos e suas histórias - políticas, econômicas, sociais e culturais - são também escritas a partir dessa força que atravessa e determina quais histó- rias serão contadas, como são narradas e quem as conta. Se estamos no tem- po presente, dos incêndios e urgências, no qual não há interrogação sobre o passado, não há perguntas sobre quem mais pode narrar cada história, as relações de poder e desigualdade que vulnerabilizaram o sujeito – usuário, profissional, cidadão – são tomadas como naturais e como as únicas existen- tes. O futuro, assim, também fica como um tempo que não existe, que não chega: se não pensamos nas relações e narrativas como construções, também não é possível enxergar a possibilidade de transformar, criar, questionar. As pessoas passam a não se enxergar como contadores de histórias, de outras, de múltiplas histórias, construtores de outras verdades possíveis. Ao longo da formação Enlaces, ouvimos histórias únicas sobre o município, a gestão, a assistência social e seus serviços, o passado-presente do CR1, assim como dos Centros de Vivências. Aos poucos, os serviços, territórios, crianças, adolescentes, usuários e profissionais foram ganhando complexidade e pro- fundidade, abrindo novas margens e permitindo um novo olhar, com críticas e potências, trazendo luzes, sombras e outras perspectivas. Assim, o mito do serviço modelo, a lenda do território abandonado ou o caso difícil puderam ganhar novas significações, a partir do envolvimento dos profissionais, da abertura para se angustiarem, experimentarem e escutarem histórias, muitas. Este último Caderno é registro e celebração dos questionamentos que pu- deram deixar mais porosas essas verdades definitivas e dos novos narradores que foram se apresentando ao longo deste ano de muito trabalho e tempo.
  • 9. 9 Assim, na primeira parte deste Caderno, o texto do seminário de Daniel de Lucca nos apresenta a temporalidade e suas desigualdades como chave de leitura para refletirmos sobre os tempos do trabalho e o trabalho do tempo nos serviços. Nessa parte, também apresentamos o texto de Biancha Carla Angelucci, que questiona as perigosas histórias sobre a infância que acarre- tam na marginalização e exclusão e nos convida a pensar em como a rede de proteção às crianças e adolescentes pode atuar na construção de lugares de pertencimento e novas histórias junto às crianças e adolescentes acolhidos. Na segunda parte, estão as produções coletivas, sistematizadas a partir dos Encontros Temáticos realizados para as equipes dos Serviços de Acolhimento, CRAS e Serviços de Convivência no primeiro semestre de 2016. São sete registros que trazem discussões, processos de grupo e também as experimentações nos serviços e seus impactos na escuta e no contato com o usuário como autor de sua narrativa. Esperamos que esses registros possam facilitar a continuidade das práticas produtoras de novas histórias criadas ao longo deste ano. E como a multiplicidade de histórias faz mais sentido a partir de uma mul- tiplicidade de autores, temos o prazer de publicar, na terceira e última parte deste Caderno, as produções escritas pelos profissionais participantes da for- mação, em que narram histórias e elaborações sobre sua prática e experiência de trabalho, com intuito de registrar, circular e inspirar. São textos que trazem uma multiplicidade de linguagens – da poesia ao texto acadêmico –, escritos por profissionais das mais variadas funções – cozinheiros, técnicos, facilitado- res, APS e gestores – que, a partir de seus olhares singulares, convidam a todos a se permitirem escutar novas versões sobre as histórias. É deste lugar de autoria que esperamos que os profissionais continuem se responsabilizando pela criação, junto aos usuários, de novas narrativas sobre a assistência social de Osasco. Agradecemos a possibilidade dos encontros e por este ano tão repleto e intenso de trabalho e criação. equipe núcleo entretempos
  • 10. 10 1
  • 12. 12
  • 13. 13 tempos da cidade: história, rua e serviços Não sou formado em serviço social, mas em antropologia e geografia, ciências humanas que voltam-se respectivamente para temáticas ligadas à cultura e ao espaço. Também sou pesquisador e professor, sendo que desenvolvi investi- gações ligadas ao universo da população de rua e dos catadores de materiais recicláveis em São Paulo. Rua e lixo, portanto. É deste lugar de fala que me coloco aqui para conversar com vocês. Mas, antes de entrar no tema da discus- são, levanto duas questões mais gerais sobre esses tópicos de estudo. A rua não é apenas importante para a temática para população de rua e outros grupos marginalizados, mas trata-se de uma forma da experiência ur- bana que atinge todos nós que vivemos e trabalhamos na cidade. No início do século XX, Georg Simmel já havia descrito o citadino como uma nova persona- lidade da Europa moderna. Dizia ele que, para conseguirmos viver na cidade, temos de ficar indiferentes para com o mundo externo da rua devido à sobre- carga de estímulos que envolve o passante. Ou seja, para podermos avançar em nossas tarefas no espaço público urbano, precisamos focar em nosso inte- resse, desconsiderando as outras informações que nos rodeiam. Essa atitude blasé, essa postura de indiferença, que é uma condição para se conseguir viver e circular pela cidade, também é um dispositivo de proteção de nossa subje- tividade, um modo de não ser levada pelas poderosas correntes urbanas de movimentos, imagens, sons e luzes que coloniza e cerca o transeunte. No Brasil, o sentido da rua é mais específico. Aqui ela é o lugar de quem não tem lugar, é o espaço que resta aos desacolhidos e sem espaço priva- do para si. Ditos populares como “foi parar no olho da rua” ou “a rua da Daniel De Lucca 1
  • 14. 14 amargura”, expressam bem esta ideia da rua como “agasalhadora da misé- ria” (para utilizar a terminologia de João do Rio). Por outro lado, a própria palavra “lixo”, entre nós, tende a adquirir dois sentidos relacionados. Lixo é aquilo que ninguém quer, é o inútil e poluente, objeto de descarte e rejeito. Mas o lixo também pode ser um lugar, como diz a frase “lugar de lixo é no lixo”. Como o lugar, o lixo também pode ser um espaço de acolhida de coisas e pessoas, seres inanimados e seres animados rejeitados. É assim que, por vezes, os sentidos da rua e do lixo se tocam, promo- vendo a formação de agrupamentos humanos quase sempre subal- ternizados, recusados e desassistidos. É dessas figuras de fronteira que muito da novidade do mundo surge. Quem trabalha próximo dessas figuras têm de lidar com um campo altamente conflitivo e contraditório, e por isso mesmo de difícil entendimento e inteligibilidade. Assim, gostaria de discutir pontualmente com vocês algumas categorias básicas de interpretação e aná- lise da experiência urbana, destacando as possibilidades de pensar o tempo e suas variações, as temporalidades. E faço isso considerando, principalmen- te, os diferenciais de poder e a desigualdade de acesso que estrutura a vida social na cidade. Espaço e Tempo Nos chamados estudos urbanos, um campo interdisciplinar que incorpora uma ampla multiplicidade de ciências (urbanismo, geografia, sociologia, história, antropologia etc), as categorias espaciais têm importância especial. Por isso fala-se tanto em território, paisagem, zonas, habitação, localização, centro, periferia, margem, fronteira etc. Essas categorias nos fornecem imagens de conjunto, permitem interpretações que articulam as junções e divisões da ci- dade, oferecem imagens poderosas sobre as formas de encontro e desencon- tro entre pessoas e coisas, equipamentos e populações. Elas também ajudam a dar um sentido de materialidade que ancora nossa experiência urbana e, em grande medida, a determina em termos de escolha, mobilidade e segregação. Mas, o que define o espaço? Uma pergunta difícil. Importa que historica- mente sua definição foi alvo de grande controvérsia. Um exemplo claro é a dis- cussão sobre o tamanho de um metro como unidade de medida intercambiável
  • 15. 15 que pode se multiplicar e desmultiplicar em milímetros, centímetros, quilô- metros e jardas. A definição sobre a medição do metro não foi algo simples, mas hoje, em muitos países, ele é uma unidade espacial tida como comple- tamente natural, algo dado. Com isso quero dizer que o espaço é ele mesmo construído e produzido pelos seres sociais que o manipulam como coisas evi- dentes. Algo semelhante se pode falar em relação ao tempo. Quem definiu o segundo, uma unidade basilar da medição temporal? Questão também di- fícil. No entanto, é essa pequena unidade intervalar, o segundo, que fornece o lastro para as ordens temporais que lhe seguem em escala ampliada: mi- nutos, horas, dias, semanas, meses, anos, décadas, centenários, milênios etc. Nesse sentido, o relógio e o calendário são poderosíssimas tecnologias de controle do tempo. Historiadores contam que as primeiras manifesta- ções trabalhistas no início da industrialização não foram contra o patrão, muito menos contra o maquinário produtivo, mas contra uma máquina mui- to específica: o relógio. Mirando no relógio como sujeito opressor imediato, trabalhadores queriam quebrar com a mecânica daquele tempo que, acre- ditavam eles, os dominava e os governava violentamente de fora. A revolta contra o relógio era uma forma de não precisar seguir a risca o regime disciplinar do tempo que os cerceava e os limitava. Antes eles estranhavam o tempo do relógio, hoje todos nós incorporamos completamente esse tem- po. Relógios de pulso e celulares acompanham de perto nossa vida mais íntima como parte dela, fazem parte dela, a integram. Por sua vez, nosso calendário nacional acaba por definir, em datas, feriados e festividades, um tempo especificamente brasileiro. Determinado pelo Estado brasileiro, nos- so calendário é cristão, articulado em função do “filho de Deus”, em antes e depois de sua morte, AC e DC. Mas, se no Brasil nem todos são cristãos, imaginem no resto do mundo. Países orientais possuem seus próprios siste- mas de notação temporal. A Tailândia e a China, por exemplo, possuem seus próprios calendários nacionais, muitos distintos dos cristãos. Se o ocidente vive no ano de 2016, o Oriente chinês encontra-se mais a frente, no ano de 4715. Mas, esses dois tempos, o ocidental e o oriental, coabitam o mesmo planeta, são globalmente contemporâneos. Como então articular espaços e tempos tão distintos?
  • 16. 16 Milton Santos, um de nossos maiores geógrafos, certa vez, chegou a definir conceitualmente o espaço como “a acumulação desigual dos tempos”. Para ele, os territórios eram formados por várias camadas temporais mais ou menos desajustadas. Analisar tais camadas estra- tificadas era fazer um espécie de “arqueologia do lugar”. Cada lugar também teria sua própria velocidade, seu próprio tempo de giro. Milton Santos, que no final da vida se interessava por desenvolver uma geografia mais dinâmica, que chamou de “geografia dos tempos”, morreu em 2001. Não viveu conosco os últimos 15 anos do país. Porém, ele acreditava que uma das princi- pais formas de desigualdade no acesso aos recursos sociais era justamente de ordem temporal. Para enfrentar o problema das relações entre as classes e os espaços, refletia sobre o tempo. Pensava com isso que a pobreza era marcada por um tempo lento e lerdo, um tempo preso no deslocamento entre o trabalho e a casa, preso no trânsito. Este era o tempo dos subalternos e mais vulneráveis, arrastado e demorado, atado ao mundo do trabalho precário e da tradição, enquanto nos circuitos de riqueza a velocidade era alta, a infraestrutura tecno- lógica dava impulso, tinha poder, rompia barreiras e ultrapassava o movimento dos mais pobres. Segundo ele, essa era uma desvantagem estrutural para se pensar a cidadania, como plena igualdade de direitos e, em última instância, um limite para se fazer a própria “revolução” – um conceito que também im- plica em mudança e transformação histórica. Seja como for, sabemos hoje que os pobres também tem seus tempos rápidos. Os celulares permitem ao PCC dar um “salve” numa cadeia, que se espraia rapidamente entre outras unidades prisionais e que chega nas favelas, periferias e até nas ruas do centro das cida- des (lembremos de maio de 2006 em São Paulo). De fato, o acesso a tecnologia permitiu coisas inimagináveis em termos de aceleração do tempo. A seguir, gostaria de destacar esta dimensão temporal nas relações ur- banas e aponto a seguir, de forma muito esquemática, 3 eixos temporais in- teressantes para se pensar a cidade e a política, sobretudo a partir de minha experiência com o mundo das ruas e suas relações com o direito: 1) o tempo histórico; 2) o tempo das ruas e; 3) o tempo dos serviços.
  • 17. 17 Tempo histórico Que fique claro, a democracia não é um valor absoluto. No Brasil, a democra- tização pode ser entendida como um processo de luta histórica marcado por um movimento de “vai e vem”. Tivemos surtos de democratização pós-Ge- túlio Vargas e o golpe de 1964 desdemocratizou muitos destes direitos po- líticos conquistados. Posteriormente, com as “diretas já”, a redemocratiza- ção levou a uma nova “Constituição Cidadã” que é a que temos ainda hoje. Atualmente, estamos passando por um intenso processo de desdemo- cratização no qual nossa Constituição está sendo dilapidada e ar- ruinada aos poucos. Com isso, a garantia de direitos se modifica e, como as ondas do mar na areia, parece retrair os benefícios de am- plos setores da população que, pela primeira vez na história do país, tornaram-se foco de alguma atenção pública. Seja como for, importa que no tempo histórico as políticas sociais se transformam de acordo com os movimentos da economia política global e suas formas de entendimento. Importa que foi com o fim da ditadura que assistimos ao surgimento de novos e importantes direitos: ECA, Lei Maria da Penha, SUS, SUAS, Lei de atenção à População de Rua e também o reconhecimento dos catadores de materiais recicláveis como uma ocupação. Na Região Metropolitana de São Paulo, esse processo histórico acompa- nhou a transformação material da paisagem urbana: surgimento de condo- mínios fechados, shoppings centers, crescimento de favelas, encastelamento urbano e o erguimento de muros, encarceramento em massa e correlata es- truturação de um mercado e uma nova tecnologia da segurança privada. No campo das políticas sociais, os serviços da assistência social, depois da saúde e, ao que tudo indica, agora os da educação, caminham em direção a uma tercei- rização generalizada. Antigos movimentos sociais da periferia, neste processo, institucionalizaram-se e se transformaram em ONGs “gestoras de políticas pú- blicas”. Se antes esses sujeitos coletivos representavam os interesses populares e pressionavam os poderes públicos de baixo para cima, agora, a direção do sentido da representação pode ter sido invertida: eles representam muito mais os interesses do Estado mediante projetos pontuais e licitações temporárias voltadas para “públicos-alvo” muito específicos.
  • 18. 18 O tempo histórico marca a cadência dos serviços nos territórios urbanos, estabelecendo relações com outras dinâmicas, instituições, poderes e representações que ali já estavam circulando. Nas ruas do centro de São Paulo, uma modificação nas últimas décadas é clara. Se a con- quista dos direitos da população de rua se efetuou em decorrência da vincu- lação deste contingente ao problema estrutural da migração (o êxodo rural) e da ausência de trabalho (desemprego num mercado excludente), hoje toda a figuração pública das vidas de rua não se faz mais em função da perspectiva da “construção da cidadania”, mas da “falta de civilidade”: o uso de drogas (marcadamente o crack) e a tal da “violência urbana” (mesmo quando são as próprias vidas de rua que morrem e são as vítimas dessa violência). Cotejando a relação entre política e cidade no transcorrer do tempo histórico, vemos como o cenário atual é radicalmente outro. Tempo das ruas Saindo do tempo histórico e pensando no tempo do cotidiano nas ruas, a ques- tão muda de forma. As experiências temporais mudam de figura para figura. Do ponto de vista do morador de rua, ou mesmo do trabalhador de rua – cata- dor, camelô, pedinte, prostituta, usuário ou vendedor de droga – as temporali- dades das dinâmicas de rua são determinantes. Suas atividades dependem des- sa organização temporal dos espaços públicos regulados por ordens diversas. As pessoas que vivem e trabalham nas ruas experimentam, fundamen- talmente, um tempo da espera. Organizam seu tempo em função do tem- po do outro, dependem do ritmo alheio. É um tempo tático e não estra- tégico. Como não possuem um lugar que lhe é próprio, a não ser a rua, que é um espaço de outrem e que o poder público reivindica como seu, estes sujeitos precisam saber esperar, aguardar. Eles devem ter muita paciência e astúcia. A incerteza é uma certeza permanente, pois dependem quase sempre do outro. Eles se movimentam muito em função deste ritmo alheio. É na relação com este tempo de outro que o seu próprio tempo é construído. No caso da pessoa em situação de rua, é comum que, se ele quer comer, precisa se articular em função dos restaurantes que podem oferecer comida, ou mesmo de seus clientes que podem se sensibilizar mediante um pedido.
  • 19. 19 Deve-se esperar o momento oportuno para pedir, acharcar. O pedir, esmola ou não, é uma ação, uma relação social que depende do outro. Deve encon- trar, portanto, um tempo comum entre aquele que se dispõe a dar e a neces- sidade de quem recebe. O mesmo nos caso dos serviços da assistência, entendidos por muitos moradores de rua mais na chave da dádiva e do favor do que na chave dos direitos e do dever do Estado. Assim, ele pega a fila duas horas antes do albergue (Centro de Acolhida) abrir ou uma hora antes do refeitório distribuir as senhas. Seu tempo também é organizado em função do tempo do serviço e há um longo tempo de espera, o que promove uma segregação espaço-temporal do usuário, que atrela sua mobilidade urbana com o lugar e o horário de funcio- namento de um serviço especifico. No caso dos catadores de rua, a questão muda um pouco. Ele não pode usar abrigos, albergues ou centros de acolhida. Quase não tem lugar para estacionar a carroça dele. Além disso, para entrar, ele tem de estar às 17 horas lá, sendo que o “bom material reciclável” começa a ser deixado pelas lojas nas ruas justamente nesse horário, quando ele está entrando no albergue ou casa de acolhida. Para ser catador de rua, a pessoa tem de saber circu- lar, procurar, saber onde encontrar material, tem de saber garimpar no espaço urbano. Mas tem de ter tempo para fazer tudo isso e extrair o recurso lançado pelo cidadão como rejeito. Ele acompanha o tempo e o espaço da desova dos materiais na cidade, são coletores nômades urbanos. Considerando a questão das mulheres que vivem e trabalham nas ruas, a ques- tão torna-se mais complexa ainda pois, principalmente nas noites, seus corpos são objetos de desejo e violência. Daí que a vulnerabilidade de seus corpos também varia de acordo com o tempo diário das ruas. Tempo dos serviços Uma última realidade temporal a colocar, muito brevemente, é o tempo dos serviços. Se o discurso das políticas públicas é aquele da “garantia dos direi- tos” e da “construção da cidadania”, no cotidiano dos serviços, ali precisa- mente onde estes direitos deveriam ser efetivados, as coisas são bem mais complicadas. Em termos legais, segundo o SUS e o SUAS, o acesso aos serviços
  • 20. 20 da assistência e da saúde é um direito, quase sempre universal e irrestrito mas, na prática, mecanismos de seletividade, formais e informais, determinam em grande medida o fluxo dos benefícios envolvidos. Com recursos limitados e um público que não para de crescer, as organizações responsáveis e seus traba- lhadores precisam reinventar a lógica de funcionamento local para conseguir, como se diz, “fazer a máquina andar”. Este imperativo de funcionamento, “não pode parar”, é um dos fatores que cria novos critérios locais de atendimento, definindo perfis específicos e não o público em geral, selecionando-os princi- palmente através da gravidade dos casos: pessoa em situação de rua; famílias com crianças e que perderam suas casa; mulheres, gays e trans que sofrem violência sexual; etilismo avançado e uso compulsivo de drogas; distúrbios li- gados à saúde mental etc. Assim, boa parte dos encaminhamento funcionam “apagando incêndio” e “passando o caso” para outros estabelecimentos. Na minha experiência com os trabalhadores sociais de rua que atuam no centro de São Paulo, este tempo da urgência é algo radical que dita, em grande medida, o ritmo do cotidiano do serviço. A urgência insurge como um evento prioritário que ultrapassa os outros casos. Aqui o fundamental não é a “construção da cidadania” ou o direito so- cial (habitação, saúde, educação, inserção etc), mas fundamentalmente o direito à vida ou à sobrevida. É uma lógica diferente daquela na qual a cidadania deveria operar, que defende direitos iguais para todos. É o tempo da ação rápida, imediata e do “aqui agora”. O que faz tais servi- ços serem colonizados por uma razão humanitária, uma lógica da salvação, do curativo, da alimentação, do abrigamento e do acolhimento no frio (pensemos nas 2.000 vagas criadas nas “tendas emergenciais” para a população de rua em São Paulo no inverno de 2016). Trata-se do tempo da intervenção imediata e do trauma. Relatos frequentes de que “os serviços apenas funcionam mediante casos de surto” ou então de que “é mais fácil conseguir uma internação com- pulsória que uma voluntária”, demonstram o tipo de seletividade aí envolvido. Tudo isso torna o trabalho com o público das ruas um terreno de altamente volátil e imprevisível, um espaço contornado por uma temporalidade própria, distinguível e capaz de quebrar o fluxo do ordinário. Esta excepcionalidade de- fine o tempo da urgência que gravita entorno do serviço.
  • 21. 21 Mas há também no tempo dos serviços a persistência de um tempo lento, teimoso e que não muda. O tempo que permanece crônico, imutável. Não só porque aparentemente “o público não adere às políticas públicas”, também são “as políticas públicas que não aderem ao público”. Por sua vez, como se ouve com frequência, “a rede não funciona”, “emperra na burocracia” e, por isso, muitas vezes o árduo trabalho de um assistente social pode ir água abaixo. Os Sistemas Únicos (SUS e SUAS) operam diariamente mediante números, esta- tísticas e quantidades de casos. O que leva a um impasse no atendimento, que opera em outra lógica temporal. Enquanto para os sistemas o que importa é a população, seu número cifrado, para a relação de serviço o que importa é a subjetivação, sua manifestação qualificada. Entre a ponta do serviço, quem atende diretamente o público, e os gestores, que manipulam os dados e orçamentos, há discrepâncias. O que faz o próprio tempo dos serviços ser plural internamente, com tensões hierarquicamente articuladas.
  • 22. 22 Tempo do trabalho e trabalho do tempo Tudo isso chama a atenção para uma morfologia política dos tempos. Mudan- ças acontecem em uma cadência diferente, em que as transformações não são perceptíveis de imediato. E era isso que queria trazer para vocês. Para quem trabalha diretamente com a vida alheia, uma vida de outrem que também afeta a sua, essas coisas ficam ainda mais complicadas, pois não se trata, como a imagem de Charles Chaplin em “Tempos Modernos”, da simples manipula- ção de peças inanimadas numa máquina em funcionamento e que não pode parar. Aqui os objetos de trabalho são os próprios sujeitos humanos, o que torna tudo mais difícil. Fato é que o trabalho de acompanhamento na reelaboração da vida de qualquer atendido – consultas no serviço de saúde, aquisição de documentos, articulação de relações familiares e novas formas positivas de identificação – tende a ser muito lento. Por sua vez, o tempo da destruição é muito mais rápido e brusco. Ele quebra e rompe. A violência policial pode deslocar o lugar daquele que, horas antes, foi um assistido do Estado, levando seus documentos, remé- dios e até mesmo sua dignidade própria. Também um acontecimento corriquei- ro nas ruas pode o humilhar, funcionando como um evento crítico que o lança de volta “ao copo” ou “à pedra”. O tempo da desmontagem quase sempre é mais veloz que o lento tempo da cuidadosa montagem. Assim, a dinâmica dos serviços está na intersecção de inúmeros tem- pos. Ela é um ponto de contato e de confrontação. O serviço é um lu- gar de tensão entre mundos distintos e tem que lidar com isso. É preciso guardar tempo para a maturação, a reflexão, a construção dos enten- dimentos e sentidos. O trabalho do tempo é o trabalho de transforma- ção do mundo. Por isso, o tempo do trabalho social tem de aprender a acompanhar todos esses outros tempos: o seu tempo e o dos outros, o tempo do trabalho e trabalho do tempo. Ora, era justamente esse o problema fundamental destacado pelo o Pro- fessor Milton Santos: a coexistência da multiplicidade de tempos num equilí- brio sempre precário entre hierarquias de ritmos heterogêneos e antagônicos. Esta coabitação dos tempos, anunciada por Milton Santos, pode ser assim des- dobrada em seu outro, a dos tempos do habitar. Tempos esses, acompanhados
  • 23. 23 1. DANIEL DE LUCCA – Professor da Fundação Escola de Sociologia e Política (FESP-SP) e pesquisador do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (CEBRAP). Email: dandelucca@gmail.com. Seminário proferido em 1 de julho de 2016, Osasco. por um trabalho perpétuo alocação e realocação do ser no mundo, um ver- dadeiro trabalho do tempo que se inscreve e se reinscreve permanentemente no tecido da vida. Por mais precária e inabitável que seja a habitação alheia, trata-se sempre de um modo específico de habitar o mundo. Um mundo, por vezes, completamente destruído e composto apenas por fragmentos e destro- ços. Mesmo o habitar pelo avesso, feito sem tempo próprio, nos escombros e nas sombras, não deixa de ser uma “morada do ser” completamente legítima pelo fato mesmo de sua existência. E nesta morada não há soluções extraor- dinárias. O enfrentamento dos problemas não pode ser colocado no grande heroísmo dos políticos que, de 4 em 4 anos, querem reinventar a roda, mas na descida ao tempo ordinário do cotidiano. Por isso a importância de darmos tempo ao trabalho do tempo. Dar tempo às formas de recomposição da vida e reabitação do mundo, nossa e dos outros. A vida é recuperada não no ges- to majestoso e extraordinário, mas na descida ao tempo comum, ao tempo de cada habitar. Cada subjetivação ao seu modo, aos poucos, de pedaço em pedaço, parte por parte. Pois, como nos dizem os narradores de nossas perife- rias: “nada como um dia depois do outro dia”. Referências Charles Chaplin, “Tempos Modernos”, In: https://www.youtube.com/watch?v= CozWvOb3A6E Santos Milton, “O mundo global visto do lado de cá”, In: https://www.youtube. com/watch?v=-UUB5DW_mnM
  • 24. 24
  • 25. 25 a rede de proteção de crianças e adolescentes em acolhimento: construindo lugares de referência1 Gostaria de agradecer a possibilidade de interlocução sobre a produ- ção e a sustentação de uma rede de proteção social a crianças e adoles- centes que vivem situações de acolhimento institucional. O tema é muito significativo, pois no coloca no exercício de pensar a construção de laços sociais entre as crianças e adolescentes, a partir do lugar social de agentes públicos que somos, quando atuamos nas mais diferentes políticas públicas. Agentes sociais com a responsabilidade de acolher pessoas que, muitas vezes, não têm ape- nas seus laços familiares impedidos, mas seus laços impedidos com a circulação social, com a fruição do direito à cidade. Em grande parte das situações, suas famílias de origem já tinham sistematicamente prejudicados seus direitos fun- damentais, criando cenários de tamanha precarização da vida, que, por vezes, impede que sustentemos nossa humanidade e a humanidade de nossas crianças e adolescentes. Enfim, nosso trabalho, aqui, é o de criar possibilidades de resti- tuição de direitos, de sustentação de intervenções subjetivantes. Foram-me colocadas duas questões disparadoras, que eu nomeio assim: • O lugar dos serviços de acolhimento nessa rede que busca efetivar direitos das crianças e adolescentes • O que podemos fazer, desde os equipamentos em que trabalhamos, para apoiar a construção dos projetos de vida das crianças e adolescentes que estão em serviços de acolhimento? Carla Biancha Angelucci2
  • 26. 26 Esses são temas centrais para todas/os nós, aqui presentes, e podem orientar os trabalhos de hoje: efetivar direitos e apoiar a construção de proje- tos de vida. Pensei, assim, em levantar alguns pontos que podem nos ajudar na discussão. Vou apresentá-los aqui e ensaiar algumas reflexões: Sobre crianças e adolescentes É muito comum que encontremos palestras, livros e vídeos abordando o surgi- mento da infância e da adolescência, como entidades abstratas e homogêne- as. Afirmações como: “a infância surge nesse contexto...” ou “a adolescência é construída na Idade Moderna”. Aparentemente, tais afirmações partem de compreensões contextuais desse tempo da vida humana. Entretanto, ao não fazerem leituras que considerem, por exemplo, a luta de classes, as diferenças entre história ocidental e oriental, as diferenças de gênero e sua relação com o trabalho doméstico, entre outros aspectos, acabam por disseminar uma ideia de infância e uma ideia de adolescência como etapas da vida pelas quais to- das/os nós passamos igualmente. Resumindo, continuamos homogeneizando diferenças muito significativas, à medida em que implicam outras condições de vida e outro olhar para os sujeitos. Também é importante destacar que se cria uma expressão “infância -adolescência”, inclusive com legislação e políticas específicas. Tal ex- pressão acaba por convidar-nos a ler o fenômeno da infância e o fenô- meno da adolescência sempre de maneira conjugada, forçando com- preensões homogêneas sobre tempos tão distintos da vida humana. Acabamos por falar de crianças de dois anos e de adolescentes de dezessete anos a partir dos mesmos parâmetros, mesmo quando reconhecemos condi- ções de vida e experiências tão distintas. Acabamos criando palavras de ordem que não nos permitem avançar na garantia de direitos e, sobretudo, no res- peito à autonomia. Por exemplo, falamos de protagonismo de crianças e ado- lescentes como se fosse possível estabelecer os mesmos métodos e esperar a mesma participação de uma criança pequena e de um jovem. Acabamos, assim, não valorizando o protagonismo de ninguém.
  • 27. 27 É nesse sentido, que sugiro dois deslocamentos para pensarmos a rede de proteção: o primeiro estaria ligado à exigência de pensarmos sobre como se objetivam as condições de vida das crianças e dos adolescentes com quem trabalhamos. Quais são seus pertencimentos socioeconômicos, etnicorraciais, religiosos? Que diferenças percebemos em relação à gênero e à orientação sexual? Como isso constrói infâncias e adolescências e, mais ainda, que desafios essas infâncias e essas adolescências trazem para nosso trabalho? O segundo deslocamento é o de refutarmos a expressão infância -adolescência que homogeneíza tempos da vida e experimentações do mun- do tão distintas. É preciso que nos ocupemos de pensar distintas demandas trazidas por esses diferentes tempos da vida. Sobre o acolhimento Há crianças, há adolescentes e há jovens que, pelos mais variados motivos, não têm a possibilidade de conviver em família. Pelos mais diferentes motivos, estão retiradas/os da convivência com a família expandida e também da expe- riência comunitária. E isso implica muitas perdas. Gostaria de enfatizar aqui o fato de que se trata de pessoas que estão fora dos processos de circulação social que, em nossa sociedade, tomamos como fundamentais para o processo de subjetivação. A produção e o reconhecimento de pertenças, com todos os ônus e os bônus disso, estão impedidos ou, no mínimo, prejudicados. São crianças e são adolescentes que, a todo tempo e em todos os lugares, são lembrados de que suas vidas estão organizadas pela ausência de uma família. E não se trata de dizer se seria melhor ou pior estarem com suas famílias. Trata-se de reconhecermos que essa marca estará visível, pública e, por isso, constituirá a maneira como elas/es serão olhadas/os a todo tempo nos mais diferentes espaços sociais que circulem: da praça ao fórum. E cada pessoa que as/os olha, cada espaço por elas/eles frequentado cria uma narrativa que busca justifi- car a situação de acolhimento. Todas/os acham que têm o que dizer so- bre a situação. Quase ninguém se preocupa em perguntar como aquela criança, como aquela/e adolescente vive sua condição. Assim, espalham- se versões sobre ela/ele, sem a possibilidade de que ela/ele possa dizer de si. Não lhe é assegurado o lugar de sujeito de sua própria história.
  • 28. 28 E, convenhamos, nós não costumamos ser muito generosos nas nossas his- tórias... pensamos em pais violentos, em mães negligentes, em crianças terrí- veis... enfim, partimos da ideia de que existe uma/um culpada/o. Alguém que fez algo mau. Alguém que é mau. Dificilmente, paramos para refletir sobre a construção da teia em que se tece uma a história de uma vida, com seus tantos fios e suas tramas. Dificil- mente, consideramos os momentos na vida em que nos enroscamos na teia, perdemo-nos, não sabemos mais como voltar atrás, não sabe como seguir adiante. Não por sermos maus, nem por sermos alvos de maldade alheia, mas porque viver neste mundo é difícil. Sobre efetivar direitos Pois bem, nós, que estamos aqui, somos profissionais responsáveis por traba- lhar com essas crianças e esses adolescentes em diferentes serviços, referidos a distintas políticas que visam à garantia de diferentes direitos. Em meio à tamanha complexidade e, muitas vezes, sem articulação com nossos pares, é costumeiro que nos paralisemos diante da ideia de que, como uma violência muito radical já ocorreu, como algo muito fundamental deixou de ser garantido para essas pessoas, qualquer coi- sa que façamos será insuficiente. Às vezes, pegamo-nos pensando que a marca feita pela tragédia ou pela violência é tão brutal, tão profunda, que esses meninos e meninas não vão terão outra possibilidade que a de perma- necer em uma vida precária. Ou seja, por reconhecermos que um direito muito fundamental foi violado, ficamos tão marcados por isso quanto nossos meni- nos e nossas meninas. Parece que nada que possamos oferecer será suficiente. Mas é preciso perguntar: suficiente para quê? Suficiente para quem? Se nosso parâmetro é apagar a violação, cobrir seus rastros e seus efeitos, impe- dir que a vida de meninos e meninas seja marcada pela dor, sim, nossa tarefa, mais que insuficiente, é impossível. Estamos fadadas/os ao fracasso. Porém, se compreendemos que nossa tarefa não é apagar o passa- do e nem seus rastros, mas produzir, com as meninas e meninos, uma narrativa sobre o que lhes passou e, com isso, uma certa leitura sobre sua condição do sujeitos em um mundo concreto, abre-se caminho para
  • 29. 29 ações de reconhecimento e reparação. Sim, todas e todos têm direito à memória e à reparação. E, nós, agentes públicos, somos as/os profissio- nais responsáveis por objetivar tais direitos. Sobre apoiar a construção de projetos de vida Esta é a nossa função: apoiar essas crianças e essas/es adolescentes em dois movimentos que acontecem concomitantemente: a) conhecerem sua história e conseguirem pensar sobre o que lhes aconteceu; b) perceberem que não são condenados pela história, que ninguém é condenada/o. São todas/os marcadas/ os pela história, porque todas/os nós o somos. Isto permite lançarmos mão de outros apoios, de outras pessoas, de outro repertório para, então, apossando- nos do que foi feito de nós, podermos avançar na produção de sonhos. Assim, nós, profissionais, temos uma importante contribuição que é a de ofertar outras histórias, outros sonhos, outros projetos exis- tentes em nossa cultura. Enfim, apresentar trajetos e sustentar, nesses meninos e meninas, a afirmação de si como pessoas que têm uma histó- ria, não uma condena: essa é nossa tarefa. Porém, para poder sonhar, é necessário que esses sujeitos possam encontrar outro mundo que não aquele que os feriu tão profundamente. Sobre tecer redes É nesse sentido que a tessitura da rede de proteção é tão importante, pois, o que devolve uma criança ou uma/um adolescente que teve seus direitos vio- lados ao mundo é a possibilidade de circular para encontrar outro mundo, produzir outras pertenças. E isso se faz com participação comunitária. Entretanto, não é fácil para ninguém, muito menos para esses meninos e meninas, circular em um mundo tão hostil. Nosso mundo não é hospitalei- ro. Não se trata de fazer a lista das instituições não hospitaleiras: a escola, o Saica, a UBS, a guarda, a Vara da Infância... Trata-se de percebermos que não construímos um processo de socialização baseado na hospitalidade. Por hospitalidade quero dizer, muito simplesmente, a possibilidade de ofertarmos espaços e relações em que os sujeitos sintam que estão sendo recebidos e re- conhecidos como pessoas dignas de estarem ali.
  • 30. 30 Nos espaços da vida cotidiana, nossas crianças e nossas/os adolescentes que vivem situações de acolhimento são olhadas/os com desprezo, com medo, com dó, com nojo... e, crianças e adolescentes que são, vivendo isso muitas e muitas vezes em suas peles frágeis, às vezes grossas de tantas cicatrizes, vão responder da forma como podem, não da forma que consideramos idealmen- te adequada. É possível que elas/eles reiterem o estereótipo de que são agres- sivas/os, de que são briguentas/os, impossíveis, sem graça, zumbis.... Quero lembrar, aqui, que somos nós as/os adultas/os dessa história. Somos nós que temos que apoiar a criação de outras respostas, apresentando outras possibilidades, outras possibilidades de relação entre as pessoas e com os espaços da vida pública. Nós, as/os adultas/os temos o dever moral de criar condi- ções para que esses meninos e meninas realizarem sua humanidade. Crianças e adolescentes que sofreram muito costumam deixar de ser vistos a partir da lente com a qual percebemos a infância e a adolescência. Como as/ os trabalhadoras/es rurais que, de tanto trabalhar de sol a sol, veem desapare- cer as marcas da juventude, os corpos pequenos, às vezes mirrados de nossas crianças, mesmo sendo corpos miúdos são vistos como corpos que não abri- gam mais uma criança. Acabamos por sentir medo, por nos sentir ameaçadas/ os. É preciso esforço para lembrarmos – e lembrarmos a elas/eles também – de que ali tem criança, de que ali tem um garoto ou uma garota. E por isso, a rede é tão fundamental: porque ela nos coloca, as/os adultas/os, de mãos dadas trabalhando. Profissionais de saúde, de educa- ção, da assistência social, da segurança... todas/os discutindo como sustentar, na comunidade, a ideia de que essas meninas e meninos precisam e podem parti- cipar dos equipamentos sociais, das atividades, da circulação. Todas/os juntas/os pensando o que fazer quando elas/es sofrem, quando violam as regras, quando não reagem aos nossos convites. Somos nós, as/os adultas/os, que temos a fun- ção social de nos responsabilizar por sustentar os laços sociais dessa meninada, porque, afinal, foi o que estabelecemos desde a Constituição Federal de 1988 e o Estatuto da Criança e do Adolescente, de 1990: queremos ser uma sociedade em que as/os adultas/os protegem suas crianças e suas/seus adolescentes. Essa afirmação tem significações as mais complexas. Destaco uma no contexto desta discussão: a da criança como sujeito do cuidado público.
  • 31. 31 Veja, o lugar de filha/o é sempre um lugar percebido como privado. Sou filha de uma determinada mãe. Sou filha de um determinado pai. Meu pai não me registrou. Minha mãe não pode ficar comigo, etc. A presença do pronome possessivo e do indicativo de pertença sempre se fazem presentes. Diferentemente do lugar de filha/o, o lugar de criança e o lugar de adolescente é sempre um lugar público. Independentemente de quem são, onde estão e como estão minhas/meus familiares, continuo sendo criança, conti- nuo sendo adolescente. E sustentar condições para que a infância e adolescência sejam vividas é função pública de todos nós que somos agentes públicas/os. Termino compartilhando o poema A Praia, de Rabindranath Tagore, es- critor indiano mencionado muitas vezes por Winnicott, o pediatra que se fez psicanalista a partir do contato sensível com crianças muito machucadas pela precariedade da vida na guerra.
  • 32. 32 As crianças se encontram nas praias dos mundos sem fim. O céu infinito está imóvel lá em cima e a água inquieta está revolta. Na praia dos mundos sem fim as crianças se encontram entre gritos e danças. Constroem as suas casas de areia e brincam com suas conchas vazias. Tecem de folhas secas os seus botes e, sorrindo, os largam a flutuar no vasto mar. As crianças se divertem na praia dos mundos. Não sabem nadar, não sabem lançar redes. Os pescadores de pérolas mergu- lham em busca de pérolas, os mercadores navegam em seus navios, enquanto as crianças ajuntam seixos e os espalham de novo. Não procuram tesouros escondidos, nem sabem lançar redes. O mar encapela-se entre risos, e, pálido, fulgura o sorriso da praia do mar... As ondas que trazem a morte cantam para as crianças baladas sem sentido, tal a mãe que embala o berço de seu filho. O mar brinca com as crianças, e, pálido, fulgura o sorriso da praia do mar... As crianças se encontram na praia dos mundos sem fim. A tempestade vagueia pelo céu sem caminhos; soçobram navios nos ínvios mares; a morte anda às soltas, e as crianças brincam. Na praia dos mundos sem fim é que se dá o gran- de encontro das crianças. 1. Conferência de abertura do “Seminário de Rede: Enlaces entre a rede de proteção de cri- anças e adolescentes em acolhimento”, realizado no dia 29 de Julho de 2016, em Osasco. 2. Carla Biancha Angelucci – Psicóloga, doutora em Psicologia Social e mestra em Psicologia Escolar. Professora da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo nas áreas de Educação Especial e Sociologia a Educação. Email: b.angelucci@usp.br.
  • 33. 33 Pois que sejamos mais praia de mundos sem fim para nossas meninas e meninos encontrarem condições de nos habitar. Ao nos habitar, quem sabe, poderão experimentar a hospitalidade que estamos tecendo nesta rede. Rede que quer sustentar as possibilidades de sonho dessa gente miúda que tem gesto reticente, pois que traz na memória as tantas andanças no fio da navalha, sem rede. Referências BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília. 1988 BRASIL. Estatuto da Criança e do Adolescente. Brasília. 1990. WINNICOTT, D. W. O Brincar e a Realidade. Rio de Janeiro: Imago, 1975. WINNICOTT, D.W. Privação e Delinquência. São Paulo: Martins Fontes, 1984.
  • 34. 34 2
  • 36. 36
  • 37. 37 encontros temáticos: práticas prioritárias e possibilidades de experimentações Em Novembro de 2015, o Núcleo Entretempos realizou o seminário “Construção de diretrizes comuns para elaboração do Projeto Político-Pedagógico”, voltado para os profissionais dos Serviços de Acolhimento para Crianças e Adolescentes, CRAS e Serviços de Convivência e Fortalecimento de Vínculos, com uma pro- posta diferente: escutar da gestão da SAS, em especial da diretoria da Proteção Social Especial e da Proteção Social Básica, quais as prioridades e o planejamento para os serviços que estavam sob sua gestão. Tais prioridades, pontos nevrálgicos que eram o foco de atenção da gestão, foram traduzidas em práticas prioritarias para os serviços, que precisavam ser implementadas, qualificadas e discutidas. Assim, esse seminário teve como objetivo apresentar aos profissionais o histórico e o momento atual dos serviços em Osasco e esclarecer, pactuar e iniciar o desenvolvimento das práticas prioritárias mínimas que devem ser desenvolvidas por cada um deles. Essas práticas constituem as diretrizes co- muns dos Projeto Político-Pedagógico de cada tipo de instituição - Serviços de Acolhimento, Cras e Serviços de Convivência. Essa direção de trabalho visou estreitar e alinhar os projetos da gestão com as propostas dos serviços, para que o investimento na formação ganhasse força e respaldo e também pudes- se ser enxergado de forma mais ampla, pensando na execução da política de assistência social no município de Osasco. Após a apresentação, os participantes foram divididos em três grupos, por serviço: CRAS, SCFV e SAICA. Em cada um dos grupos, foram apresentadas as práticas prioritárias e abriu-se para comentários e questões. Em seguida, os gru- pos foram redivididos em três grupos menores e cada um dos sub-grupos ficou
  • 38. 38 responsável por debater e pensar na implementação de duas práticas. Dessa forma, foi possível iniciar uma construção participativa das diretrizes e ações comuns aos serviços. O foco foi na troca de experiências e informações entre os profis- sionais, favorecendo espaço para que todos pudessem trazer suas opi- niões e ideias, realizando construções coletivas e democráticas sobre como fortalecer e ou implementar as práticas discutidas no cotidia- no do trabalho. O espaço também serviu como encontro e possibilidade de elaboração, de não estar só, ao compartilharem as angústias, as dúvidas e os desafios que surgem no trabalho. O encontro também permitiu discutir o histórico, perceber ganhos nos serviços e abrir um olhar para o futuro: a possibilidade de projetar. Em 2016, com a intenção de dar seguimento a essas discussões e abrir es- paço para novas práticas, a formação Enlaces criou um dispositivo, chamado de Encontros Temáticos, pensado a partir das práticas prioritárias, com a ideia de que fosse um espaço “mão na massa”, para fazer junto. Esses encontros não tinham a ambição de esgotar a discussão sobre as práticas, mas de abrir novos diálogos e auxiliar na implementação das mesmas. Os encontros tiveram os se- guintes objetivos: • Criar novos espaços de trocas sobre práticas entre os profissionais de diferentes serviços; • Viabilizar construções coletivas em relação às práticas a serem im- plementadas; • Ampliar o repertório de estratégias a partir das experiências em cada serviço; • Experimentar, a partir de proposições nos encontros, novos olhares e possibilidades de intervenção que favorecessem a criatividade e o encontro sensível; • Fortalecer relações cooperativas e colaborativas entre os profissio- nais que atuam na Assistência Social em Osasco; • Elaborar conjutamente diretrizes comuns para a elaboração dos Pro- jetos Político-Pedagógico dos serviços.
  • 39. 39 Foram ofertados no total 7 encontros temáticos: Para CRAS e SCFV • Acolhimento - discussão das práticas: acolhimento coletivo e acolhi- mento individual. • Grupos e Oficinas – discussão das práticas: grupo socioeducativo, grupo de convivência e desenvolvimento familiar, atividades com os usuários dos serviços voltadas para conhecer e trabalhar questões do território e intervenção piloto intergeracional. • Articulação PAIF E SCFV – discussões das práticas: reunião mensal entre CRAS e SCFV, ações de articulação em rede, discussão e revisão de procedimentos de entrada, frequência e acompanhamento para facilitar a inclusão do público prioritário e grupo mensal de famílias nos SCFV que dialogue com as temáticas do PAIF. Para SAICAS • Reuniões e funções no SAICA – práticas discutidas: reunião mensal em cada serviço com todos da equipe, definição dos papéis e fun- ções de cada um para cada atividade da rotina diária. • Roda de conversa e brincadeiras - práticas discutidas: roda de con- versa e atividades semanais de convívio no serviço. • Trabalho com famílias – prática discutida: trabalho com famílias. • PIA e construção de projetos de sáida para os adolescentes – prá- ticas discutidas: atualização do PIA semestralmente e atividades específicas para construção de projeto de saída dos adolescentes por maioridade.
  • 40. 40 A seguir, apresentamos a produção dos grupos, na expectativa de que possam ser compartilhados, divulgados e convidem a todos a experimentarem e seguirem criando em sua prática diária!
  • 41. 41 proteção social básica Acolhimento1 A acolhida, segurança prevista pelo SUAS, envolve o contato inicial de um in- divíduo ou família com os serviços, a escuta de suas necessidades e demandas, a oferta de informações sobre a política de assistência, o PAIF e o cuidado constante para construção e manutenção de uma relação de confiança. Como um momento privilegiado para construção de vínculo com as famílias, deve ter a atenção de todos os trabalhadores, desde o momento de entrada de um usuário no equipamento, até sua relação cotidiana. No Encontro Temático sobre Acolhimento, procuramos discutir acolhimen- to como postura, atitude presente a todo momento e cuidado constante que envolve, desde a organização de um espaço organizado e convidativo à presen- ça, até a relação com cada um dos profissionais. Algumas questões surgiram durante este percurso de trabalho e contribuíram para guiar a construção de ações que garantissem o direito de acolhimento do usuário: • Como acolher mesmo em equipes que não tem um ambiente aco- lhedor, uma vez que, independente do clima da equipe, é direito do usuário ser acolhido? • Como proporcionar acolhimento em espaços que não tem uma es- trutura e nem recursos físicos adequados? • Uma vez que se percebe que o compartilhamento das informações proporciona um acolhimento melhor ao usuário, como envolver toda a equipe do CRAS no acolhimento?
  • 42. 42 Para iniciar o debate, fizemos um levantamento de referências de acolhi- mento, para construir parâmetros coletivos para a ação. Em seguida, mapeamos as práticas já realizadas nos serviços para, a partir disso, construir mudanças aos poucos, a cada encontro, percebendo os efeitos no cotidiano. Por fim, expe- rimentamos avaliar nossas ações de acolhimento com os usuários, para tomar decisões de melhoria. Nos dois últimos encontros, construímos uma sistematiza- ção para que sirva de referência para os serviços e componha a construção dos Projetos Político-Pedagógicos. O acolhimento, enquanto postura e abertura do serviço para receber os usuários, escutar suas demandas e construir uma relação de confiança, se dá des- de a recepção e envolve o modo como o espaço está organizado, as atitudes dos profissionais e os momentos específicos de acolhida particularizada e em grupo. A recepção é o momento no qual a família recebe a primeira atenção ao adentrar no CRAS. Ela pode ser realizada por funcionários(as) de nível médio e é um direito da família, cabendo ao profissional responder suas demandas de forma solícita e respeitosa. O funcionário pode: repassar algumas informações básicas sobre o Serviço PAIF, coletar algumas informações essenciais sobre a fa- mília, agendar atendimento com os técnicos de nível superior, entre outros. A recepção constitui ocasião fundamental para a adesão e criação de vín- culos fundamentais para o retorno da família. A acolhida, como ação essencial do PAIF, é o momento privilegiado no qual começa o vínculo entre serviço e família. O profissional deve buscar compreen- der as demandas, vulnerabilidades e necessidades apresentadas pelas famílias, buscando também identificar seus recursos e potencialidades e como tais situações se relacionam e ganham significado no território. Na acolhida, a história de cada família deve ser compreendida, quando houver a possibilidade, a partir da escuta do maior número possível de membros. Ações de acolhimento nos serviços são momentos de estabelecer relações de confiança e de reconhecimento da equipe de referência do CRAS como pro- fissionais qualificados para o atendimento da demanda familiar, permitindo a instituição do vínculo. Para que os profissionais se tornem referência, é ne- cessário que as famílias experimentem relações de horizontalidade, uma escuta respeitosa e amoral, que se expressa em atitudes por vezes simples,
  • 43. 43 tais como: o profissional se apresentar pelo nome e chamar o usuário pelo nome, a valorização da história, potência e relações das famílias, a oferta das informações e encaminhamentos requeridos e relaciona- das à demanda expressa e a participação das famílias na construção do planejamento do atendimento e acompanhamento familiar. Na acolhida, constrói-se uma corresponsabilização dos profissional com a família na resposta às demandas e vulnerabilidades apresentadas, a fim de ampliar o caráter prote- tivo do trabalho realizado. Tomando como referência o estudo das normativas, construímos coletiva- mente parâmetros para avaliar as ações de acolhimento. São posturas que ex- pressam acolhimento: Deixar a pessoa à vontade / Prestar atenção na pessoa / Dar atenção à pessoa / Atender com bom humor / Dar informações / Esclarecer dúvidas / Receber bem / Lembrar das histórias das pessoas / Permitir que a pessoa conheça o espaço, estar de portas abertas / Olhar no olho / Sorrir / Estar inteira no que faz / Perceber e acolher as diferenças / Ter tempo / Não ser invasiva / Possibilitar com que a pessoa sinta que pode contar com/ter segurança / Possibilitar que a pessoa se sinta: pertencente, cuidada e informada sobre o quecabeounãoaoserviço/Resolveraquestãoqueapessoa trouxe ou possibilitar o melhor encaminhamento / Se preocupar com a pessoa, para além das burocracias / Olhar paraapessoaenquantoelafala/Darcontaomaisdepressa possível das senhas e filas / Não dar respostas apressadas
  • 44. 44 Em continuidade a esse processo, experimentamos algumas mudanças nas prá- ticas de acolhimento de cada serviço. A equipe do CRAS KM 18 relatou que trocou o balcão da recepção por uma mesa. Essa substituição permitiu que tanto o usuário quanto o funcionário esti- vessem sentados, e portanto, mais a vontade durante a recepção. Eles percebe- ram que os usuários aprovaram a mudança, e que isso permitia uma vinculação maior dos mesmos com o CRAS. Os funcionários do CRAS Padroeira relataram que a recepcionista passou a participar dos acolhimentos coletivos, pois dessa forma ela conseguiu se apro- priar melhor das atividades do CRAS e consequentemente informar melhor os usuários que procuravam seus direitos. Esta mesma equipe também relatou as mudanças que foram produzindo na forma de realizar os acolhimentos coleti- vos e como elas foram proporcionando um maior vínculo entre os usuários e com o CRAS. No início, elas realizavam o acolhimento com Power Point no qual constavam tidas as informações sobre o CRAS. Com o tempo, o acolhimento foi sendo realizado através de uma roda de conversa, no qual o tema tratado era escolhido de acordo com as demandas dos usuários presentes. Elas ressaltam que essa mudança foi possível na medida em que foram se apropriando da po- lítica do SUAS e de informações que os usuários necessitam. Já no CRAS Bonança, eles relataram de placas elaboradas com papel sulfi- te informando aos usuários a localização do CRAS, uma vez que eles estavam provisoriamente atendendo no espaço da Casa de Cultura, e não possuíam uma placa identificando o serviço. A partir dessas experiências fizemos uma sistematização para que sirva como guia e seja utilizado na construção do PPP. Dividimos as práticas em: cuidados com o espaço / ambientação, recepção, acolhida coletiva, acolhida particulari- zada, acolhida anterior às atividades. Segue a síntese construída coletivamente. 1. RECEPÇÃO O que é? A recepção é o coração do CRAS, é o primeiro contato com os serviços do CRAS. É o início, a base do atendimento, o primeiro passo para o processo de inclusão da família na rede / política de assistência, com escuta qualificada.
  • 45. 45 Na recepção, é necessário dar atenção ao usuário, saber ouvi-lo para informar corretamente o que o CRAS pode fazer por ele e o que existe dentro do CRAS – tentar resolver os assuntos e evitar encaminhar de forma desnecessária. É fun- damental acolher a todos que chegam. Para que serve? Orientar Direcionar para próximo passo (dentro do CRAS ou fora) Coletar informações sobre a demanda do usuário e, se necessário, agendar acolhimento com o técnico e/ou CadÚnico. Colher assinaturas de listas de presença de atividades. Anotar todos os atendimentos. Como acontece? Diariamente, das 8h às 17h, por demanda espontânea e convocação. Quando acontece? Diariamente. Que profissionais estão envolvidos? Técnico de nível médio capacitado, com suporte da gestão. Para tanto, são habilidades necessárias: educação, empatia e simpatia. Para quem esta prática está destinada? Para todos que chegam ao CRAS. 2. ACOLHIMENTO COLETIVO O que é? É a inserção do usuário no atendimento do CRAS, sendo a porta de entrada para a política de assistência. Para que serve? Para que o usuário conheça o CRAS, a assistência social, os serviços que ele pode acessar da assistência básica e especial e ter um exercício de cidadania. Nesse momento, pode perceber também que as demandas são compartilhadas.
  • 46. 46 Como acontece? Através de uma roda de conversa, numa sala apropriada com água e café, para que o ambiente fique mais acolhedor. A equipe deve salientar o que é o CRAS, a apresentação da equipe e dos munícipes por nome e bairro, informar serviços, programas, projetos e fluxos. Se necessário, deve-se encaminhar o munícipe para atendimento individual. Ao falar das atividades, deve-se salien- tar o papel destas, suas etapas e duração. Quando acontece? Quando o usuário tem interesse pelas atividades, vem em busca de orienta- ções ou serviços, informa que nunca esteve no equipamento ou necessita falar com a equipe técnica. Que profissionais estão envolvidos? Recepção, APS e técnicos e auxiliar de cozinha. Os funcionários precisam ter clareza do que é essa atividade. Pode haver participação de outros profissio- nais de forma direta, não somente no suporte. Para quem esta prática está destinada? Para novos usuários. Também pode ser utilizada como capacitação para fun- cionários novos. 3. ACOLHIMENTO INDIVIDUAL O que é? Atendimento privado, sigiloso e com mais durabilidade, “especializado”. Visa garantir atenção maior, confiança do usuário e maiores esclarecimentos. Para que serve? Para acolher e ouvir com mais atenção e escuta qualificada. Muitas vezes, a pessoa fica mais à vontade para contar sobre o que está acontecendo e se sente acolhida e, por vezes, aliviada diante da escuta e orientação. A condu- ção de cada situação pode ser feita a partir de suas especificidades, numa ótica de corresponsabilização. Escuta qualificada: acolhimento, mapeamento de potencialidades e vulnerabilidades que possam auxiliar na atenção ao mu- nícipe, fortalecimento de vínculo entre munícipe e profissionais.
  • 47. 47 Como acontece? Com agendamento. Em caso de urgência, atender na hora, pois a pessoa não poderá aguardar. São consideradas situações desse tipo: • insegurança alimentar • violência doméstica – nesse caso, a recepção já orienta para procu- rar o CREAS, informando a equipe técnica do CRAS. Obs.: difícil avaliar quando uma situação é urgente; temos que aprimorar a escuta. Para o usuário, é sempre urgente. Que profissionais estão envolvidos? Profissionais de nível médio e equipe técnica. O profissional de ensino médio deve ser orientado pelo coordenador / técnico sobre como se faz a escuta e a garantia de sigilo e depois passar as informações para o técnico dar continui- dade ao acompanhamento. Para que esta prática está destinada? Todos os munícipes têm direto ao acesso ao CRAS. 4. ESPAÇO / AMBIENTAÇÃO O que é? Cuidados com o espaço e ambiente, em todos os espaços do CRAS. Organiza- ção, limpeza, decoração acolhedora. Plantas dentro do CRAS dão uma sen- sação de aconchego. Para tornar uma decoração acolhedora, é importante o visual externo do CRAS estar bem cuidado, para uma boa primeira impressão. Pode-se fazer decorações temáticas com os temas geradores. Oferta de café, água e bolachas aos munícipes. Para que serve? Visa mostrar ao usuário que o espaço é dele e que ele deve zelar por ele. Como acontece? Com acolhimento por um todo, desde a recepção até o toalete. Ambiente limpo, organizado, aconchegante e informativo, pela junção da equipe de lim- peza, da recepção que organiza e do usuário que preserva o ambiente.
  • 48. 48 Quando acontece? Sempre, a partir de quando o munícipe entra no CRAS. Que profissionais estão envolvidos? Todos. Atendentes, técnicos, APS e gestor. Para quem esta prática está destinada? Todos os munícipes e funcionários, para melhorar a qualidade no atendimento. 5. ACOLHIMENTO ANTES DE OFICINAS E GRUPOS O que é? Quando o usuário entra no CRAS e é acolhido e orientado pela recepção a ir ao local das atividades. Deve ter um café já esperando e os mesmos ficam aguardando o início das aulas. Envolve a postura da equipe antes / durante as atividades e a ambiência. Para que serve? Para o usuário se sentir seguro, para fortalecer a relação entre CRAS e usuários e favorecer a participação. Como acontece? Acolhimento desde o atendimento feito no telefone e a recepção. Ideias: • funcionário apresentar espaços do CRAS durante o período de espe- ra; oferecer materiais informativos sobre os serviços de assistência. • avaliação do usuário sobre sua primeira impressão ao entrar no CRAS. Ex.: cumprimentar os idosos antes de começarem as atividades, oferecer bolacha e café fazendo uma pequena conversa com eles, dar atenção, perguntar se estão gostando do atendimento e dos serviços no CRAS e compartilhar experiências.
  • 49. 49 Quando acontece? Desde a entrada, durante todo o processo. Que profissionais estão envolvidos? Todos. Para que esta prática está destinada? Usuários que chegam ao CRAS para participar de grupos. 1. Encontro Temático coordenado por Natália Felix Noguchi e Carolina Bertol.
  • 50. 50
  • 51. 51 grupos e oficinas1 O que faz um grupo ser bom? Foi a partir desta pergunta que iniciamos o en- contro temático sobre grupos e oficinas nos CRAS e Serviços de Convivência. Para os participantes, um bom grupo deve ter: • Objetivos claros e definidos para que todos possam se compro- meter e confiar na proposta. • Proporcionar sentimento de pertencimento, confiança e de grupa- lidade; uns ajudando os outros. • Sentir-se reconhecido na sua individualidade e acolhido na sua diferença. O grupo deve proporcionar efeitos para o coletivo e para cada indivíduo. • Momentos de descontração: ambiente lúdico, surpreendente e que tenha um clima leve e acolhedor. E por que fazer grupos na Assistência Social? Na medida em que esta política lida com fragilidades relacionais, como violência, discriminação, humilhação, isolamento etc, trabalhar essas questões também nas relações potencializa o trabalho. Vale ressaltar também que as relações também podem ser fonte de aprendizados e ampliação de repertório e, nesse sentido, podem fortalecer os participantes e ajudar na prevenção de situações de risco. Também dialogamos sobre alguns conceitos que podem ajudar no traba- lho com grupos.
  • 52. 52 Para Pichon-Rivière (2009) tarefa é o elemento essencial do processo grupal2 . Nessa perspectiva, o foco do trabalho não está centrado nos indivíduos ou na totalidade dos grupos, mas na relação de um gru- po e seus membros com uma dada tarefa. Em sua dimensão explícita, ela corresponde ao motivo de constituição dos grupos; já sua dimensão implícita está relacionada à elaboração e ruptura de estruturas esteriotipadas que se colocam como obstáculo frente às situações de mudança. Assim, o objetivo de constituição do grupo participa da tarefa, mas não a determina, visto que ela se constrói ao longo do grupo. As falas nos grupos podem ser consideradas a partir de dois eixos: o ver- tical, que corresponde a história de cada um, sua singularidade – o traço – e o eixo horizontal – a trama – que diz respeito ao comum, à construção coletiva que sempre transcende a soma das individualidades. É tarefa do coordena- dor trabalhar para que os dois eixos estejam presentes: é importante reconhecer o que motiva cada um a estar lá, assim como proporcio- nar que as pessoas reconheçam algo de comum, que elas se sintam per- tencentes ao grupo. Ao longo dos encontros, traçamos objetivos – PARA QUÊ - e estratégias – COMO - para a realização dos grupos e oficinas. Assim, a partir do momento de cada serviço e da singularidade de cada território, pensamos para que o grupo poderia servir para, em seguida, trocarmos estratégias e metodologias que pudessem ajudar a trabalhar os objetivos propostos. No último encontro, registramos juntos os principais aprendizados dispa- rados pelos encontros, que podem servir como diretrizes às equipes.
  • 53. 53 PAIF Um desejo em comum se faz claro entre os participantes: criar um novo olhar para os grupos para além do Renda Cidadã. Assim, os participantes trocaram estratégias e aprendizados sobre a seguinte questão: o que faz, ou pode fazer, alguém querer vir para um grupo? • Reforçar menos a obrigatoriedade nos convites e jogar luz para o que ele pode ter de interessante foi o primeiro aprendizado com- partilhado. O que ajuda as pessoas a virem é o vínculo que elas pos- suem com os profissionais, muito mais do que a condicionalidade. • Palestra não! Nos grupos, as pessoas querem falar e ser ouvi- das, então é importante favorecer estratégias para que as pessoas possam falar e trocar entre si. • A tarefa dos grupos nos CRAS deve ser a reflexão sobre temas que dialoguem com as questões vivenciadas pelos usuários. Assim, delinear, delimitar o tema gerador a partir das questões ob- servadas pelos profissionais torna o grupo muito mais interessante para os usuários. • A continuidade dos encontros também é importante. Um grupo leva tempo até se formar enquanto grupalidade e, nesse sentido, sair de um grupo sabendo quando vai ser o próximo e qual será o assunto abordado ajuda a dar a ideia de um grupo, e não de encontros pontu- ais. Estabelecer uma periodicidade – por exemplo, toda 1ª sexta-feira do mês, ou a 3ª quarta-feira do mês – tem sido uma boa estratégia, visto que assim, mesmo que uma pessoa perca um encontro, ela já sabe quando será o próximo. Ofertar diferentes possibilidades de horários, ou discutir com os participantes sobre o melhor horário, também ajuda. • O cuidado com o enquadre do grupo é fundamental: manter o horário de início, cuidar dos atrasos, assim como sustentar os combi- nados do grupo. O tamanho do grupo também é importante, pois em um grupo muito grande é mais difícil sustentar um espaço de fala para todos os participantes. Pela experiência dos CRAS, grupos entre 15 e 30 participantes tem tido um bom funcionamento.
  • 54. 54 • Considerando que há dois grupos previstos – os grupos so- cioeducativos, com temas geradores, e os grupos de desen- volvimento e convivência familiar – é interessante mesclar e oferecer os dois formatos, pois ao mesmo tempo que é impor- tante ampliar repertório e oferecer conteúdos, sempre dialogan- do com as questões deles, também é fundamental proporcionar um espaço de fala sobre as dificuldades cotidianas. • Também foi ressaltada a importância de cuidados com a equipe. Por exemplo, evitar coordenar os grupos sozinhos ou, caso isso seja impossível, ter espaços de troca antes e depois com a equipe. Ficou clara a importância de espaços de troca entre os CRAS, para compartilhar como cada serviço está trabalhando os temas geradores, falar sobre dúvidas e estratégias. Foram pensadas em duas possibilidades não excludentes: a criação de um grupo de whatssapp e a utilização dos encontros bimensais entre CRAS. Lem- brou-se que a equipe também é uma forma de grupo e seu fortale- cimento é essencial para promoveremos bons grupos.
  • 55. 55 SCFV O ponto mais destacado pelos participantes foi o da articulação entre os grupos e o trabalho realizado no PAIF e no Serviço de Convivência e For- talecimento de Vínculos. Articular os dois serviços inclui que os facilitadores e oficineiros estejam mais próximos da equipe técnica e se sintam parte da equipe do CRAS, tanto no planejamento de ações e grupos quanto em recebe- rem devolutivas sobre o andamento dos casos acompanhados. Foi destacada a importância da discussão de casos de famílias atendidas pelo SCFV e PAIF, para que facilitadores e oficineiros possam contribuir, a partir da sua escuta e olhar, para pensar estratégias de aproximação, compreensão e encaminha- mento nos atendimentos. Destacou-se que facilitadores e oficineiros devem ter um olhar atento para a dinâmica do grupo, mas também para cada usuário. Foram relatadas situações em que a percepção de um oficineiro sobre a mudança na dinâmica de um participante no grupo pode ajudar a compreender questões da família e fortalecer o trabalho que a técnica já realizava no PAIF. O trabalho do SCFV, sem uma articulação com as ações do PAIF e sem de- finição do objetivo, da tarefa de cada oficina, acaba se tornando muitas vezes mecânico e padronizado. O que ajuda a construir sentido, ousar e produ- zir estratégias criativas na elaboração de oficinas é o esclarecimento e pactuação do objetivo do que equipe técnica e oficineiros visam para cada uma delas e a relação que tem com a proposta e território de cada CRAS. Também foi ressaltada a importância dos oficineiros poderem explorar e experimentar oficinas inovadoras, ao invés de oferecerem somente as opções que os usuários já conhecem e tem familiaridade. Surpreender pode ser uma es- tratégia interessante para convocar os usuários a identificarem outras potências. Foi destacado a importância dos oficineiros e facilitadores conhecerem o desejo técnico do CRAS em relação às oficinas que são realizadas. Assim, essas poderão ser potencializadas para trabalhar as temáticas que emergem no cotidiano do PAIF e poderão fortalecer a relação do usuário com ambos serviços. Também foi considerada essencial que exista, da parte das equipes técnicas e coordenações, uma postura acolhedora e disponível a escutar as percepções e sugestões de quem trabalha no SCFV, de modo a não criar uma
  • 56. 56 hierarquização e desigualdade na relação com usuários e entre profissionais. Os oficineiros, mesmo quando itinerantes, querem fazer parte da equipe de cada CRAS por onde circulam! Para trabalhar essas questões, surgiram como propostas: • realização de reuniões periódicas entre os oficineiros que ro- diziam nos CRAS, para troca de experiências e ideias para oficinas. • realização de reuniões periódicas em cada CRAS com equipe e oficineiros que participam do SCFV para discutir o planejamento e andamento das ações e acompanhamento de usuários e também alinhar as propostas para as oficinas. Sobre o trabalho intergeracional e oficinas sobre o território, surgiram diver- sas possibilidades de atuação: • trabalhar sobre território pode ser um mote para alinhar as gera- ções dos usuários atendidos no CRAS. As oficinas podem ter o bairro como fio condutor e trocar materiais produzidos a partir de diferen- tes abordagens com cada faixa etária de trabalho. Trabalhar com produções (fotos, histórias, blog e outras mídias) pode ser uma es- tratégia interessante. • território pode ser algo ampliado para além do território físico ou da área de abrangência de cada CRAS. Através de oficinas culturais e de criatividade, é possível trabalhar com o repertório cultural dos usuários, que também diz da relação com seu território de origem e circulação, e ampliar para outras possibilidades. • a tarefa dos grupos do SCFV é trabalhar questões de convivência a partir da exploração e ampliação do repertório sociocultural, inde- pendente de faixa etária dos usuários, a partir de questões identifi- cadas junto à equipe técnica.
  • 57. 57 1. Encontro Temático coordenado por Carina Ferreira Guedes e Fernanda Ghiringhello Sato. 2. Pichon-Rivière define grupo como: “o conjunto restrito de pessoas, ligadas entre si por constantes de tempo e espaço, e articuladas por sua mútua representação in- terna, que se propõe, de forma explícita ou implícita, uma tarefa de constitui sua finalidade” (Pichon-Rivière, 2009, p. 242-3).
  • 58. 58
  • 59. 59 articulação PAIF - SCFV1 A articulação entre PAIF e Serviço de Convivência e Fortalecimento de Vín- culos é fundamental para materializar as ações de proteção social da política de assistência, uma vez que atuam de maneira complementar e que visam garantir as três seguridades da Assistência social: sobrevivência, acolhimento e convivência. Para efetivar essa articulação, propusemos três questões que nortearam os diálogos durante nossos encontros: • Quais são atribuições de uma equipe que atua no PAIF? E no SCFV? • O que torna a articulação entre esses serviços importante? • Quais as consequências negativas da desarticulação entre PAIF e SCFV? Cabe à Proteção Social Básica ampliar a capacidade protetiva das fa- mílias, fortalecendo e diversificando sua rede de relações e reduzindo fragilidades. Sua ação se dá na articulação entre serviços e benefícios e deve ter caráter antecipatório – deve conhecer os territórios, famílias e suas demandas, além do nível de desproteção em que se encontram e atuar no enfrentamento a essas questões. Tem como finalidade mapear e desenvolver potencialidades e aquisições da população com que atuam, for- talecendo vínculos familiares e comunitários. Para que se realize um trabalho de qualidade, PAIF e SCFV devem es- tar referenciados, desenvolvendo ações complementares. Espera-se que o PAIF contribua para a redução de situações de vulnerabilidade social,
  • 60. 60 aumento do acesso a serviços socioassistenciais e melhoria da quali- dade de vida das famílias residentes no território de abrangência do CRAS. Aos SCFV, cabe ofertar atividade que ampliem as trocas culturais, vivências, sentimento de pertença, utilizando estratégias previstas na Concepção de Convivência e Fortalecimento de Vínculos com vistas à ampliação e diversificação de vínculos. É importante ressaltar que no município de Osasco grande parte dos ser- viços de convivência são efetivados por entidades conveniadas com a Prefei- tura e que durante um longo tempo elas atuaram de forma independente do CRAS. A ação de articulação e de estabelecimento de fluxo entre os dois serviços é uma preocupação e demanda da gestão atual, que entende que ela é fundamental para garantir a proteção social básica de acordo com as nor- mativas do Ministério do Desenvolvimento Social e garantir a qualidade nas ações desenvolvidas com os usuários. Nesse sentido, este encontro temático teve como objetivos fortale- cer as relações entre os profissionais dos serviços de convivência (so- bretudo das entidades conveniadas) e as equipes que são responsáveis pelas ações do PAIF; iniciar a articulação e o referenciamento entre os serviços e estabelecer um fluxo de encaminhamento para a população atendida; construir um campo comum de entendimento sobre o que cabe a cada serviço; intensificar e multiplicar as ações que já são realizadas pelos serviços e que contribuem para atingir as finalidades do PAIF e do SCFV. Para isso, foram utilizados principalmen- te dois materiais de referência: a Concepção de Convivência e Fortalecimento de Vínculos (MDS, 2013) e o Caderno de Orientações PAIF e SCFV (MDS, 2015). Além disso, foram solicitadas atividades entre encontros, de modo que os profissionais pudessem experimentar a articulação e mapear os fluxos. Como forma de atingir os objetivos propostos, nós inicialmente apresenta- mos o Caderno de Orientações descrito, destacando os objetivos de cada servi- ço e como eles se articulam com as finalidades do trabalho de Proteção Social Básica junto às famílias atendidas. A partir de relatos das práticas cotidianas e exemplos dos serviços, buscamos refletir sobre os prejuízos, para os usuários e para o trabalho, da desarticulação entre os dois serviços, construindo sentido para os encontros e para a necessidade de articulação. Também realizamos um
  • 61. 61 mapeamento das atividades desenvolvidas pelos CRAS e pelos Serviços de Convi- vência, analisando-as em relação aos objetivos do PAIF e do SCFV, as dificuldades encontradas para efetivá-los, mas também refletindo sobre boas práticas. Como forma de promover uma experimentação da articulação entre os ser- viços, pensar a responsabilidade de cada um na construção da proteção social e estimular a realização de ações integradas, promoveu-se uma discussão de caso a partir da qual foram localizadas vulnerabilidades e elaboradas estraté- gias e ações específicas para trabalhá-las. A atividade serviu de estímulo para que os serviços colocassem em prática uma ação integrada no decorrer do mês. Esta proposta permitiu trabalharmos as dificuldades encontradas para efetivar ações conjuntas bem como potencialidades descobertas nesta articulação. Nos últimos encontros, propusemos a realização de um mapeamento conjunto, com o objetivo de identificar quais as famílias estão cadastradas em quais serviços e como elas estão sendo atendidas, destacando-se as ações incluídas neste acompanhamento. Além disso, buscamos construir um maior esclarecimento das diferenças entre o PAIF e o SCFV, pois percebemos que existiam muitas dúvidas a respeito das atividades especificas de cada um e daquilo que era comum. Assim, refletimos sobre suas especificidades de es- tratégias e de ação e como eles podem se complementar de forma a garantir os direitos dos atendidos. Ao final dos encontros, os participantes produziram reflexões sobre como PAIF e SCFV podem desenvolver suas atividades de maneira articulada, as quais são apresentadas a seguir: 1. O PAIF contribui para o trabalho realizado pelo Serviço de Convivência na medida em que direciona a demanda e o acompanhamento para o acesso a este, que investe no atendimento coletivo e na escuta quali- ficada, que trabalha as questões comuns a diferentes famílias do terri- tório a partir do acompanhamento familiar, que consolida a formação de grupos e desenvolvimento familiar, e que auxilia na vinculação dos usuários do PAIF ao SCFV, estando próximos dos mesmos e realizando atividades conjuntas.
  • 62. 62 2. O SCFV contribui para o trabalho realizado pelo PAIF por meio da ava- liação e intervenção por ciclo de vida, contextualizado em seu núcleo fa- miliar. Os encontros temáticos e atividades festivas realizadas nos servi- ços com a participação das famílias auxiliam para ampliar a convivência. Além disso, contribui para a garantia de direitos quando realiza encami- nhamentos para outros recursos e políticas públicas, bem como também para acolhimento coletivo do CRAS. Em caso de direitos violados, faz também encaminhamento para o CREAS. 3. Para que a parceria PAIF – SCFV se efetive, a equipe técnica do CRAS deve ser responsável por fazer esta articulação. Dentro do SCFV, este papel deve ser realizado pelo orientador e pela coordenação do serviço, com os serviços de proteção de forma direta e indireta. Essa articulação demanda ações como: • conhecimento da rede socioassistencial • reuniões entre as equipes • conhecimento do território 4. É necessário, ainda, que se mantenha a vinculação e que sejam realiza- das sistematizações, planejamentos e continuidade de temas e tarefas. Para o acompanhamento, é necessário monitoramento do trabalho pe- las técnicas. Vale ressaltar a importância da contratação de um pro- fissional que tenha perfil para executar essas funções e da formação continuada de toda a equipe, capacitações.
  • 63. 63
  • 64. 64 Durante os encontros pudemos experenciar os benefícios da articulação entre os dois serviços. As profissionais da entidade Lar Jesus e do CRAS Rochdale ressaltaram que estão desenvolvendo um trabalho mais próximo, e que em função disso, uma usuária do SCFV da entidade Lar Jesus que frequentou por cinco anos a instituição, mas que estava desmotivada para continuar partici- pando, foi encaminhada e acompanhada até o CRAS pelo técnico da entida- de que, através da articulação com a técnica do CRAS Rochdale, possibilitou a criança começar a frequentar as atividades do SCFV dentro do espaço do CRAS, tendo em vista que a família já era beneficiada pelo PAIF. Ou seja, a articulação possibilitou um olhar ainda mais integral no acompanhamento da família pelo CRAS e a possibilidade de inserir a criança em uma atividade mais adequada a seus interesses e necessidades. Além disso, os profissionais do CRAS e da entidade fizeram uma reunião e firmaram um acordo para que a or- ganização e inserção do público no SCFV se desse por meio do referenciamen- to primeiramente no PAIF realizado no espaço do CRAS. A técnica da entidade também participa das reuniões que são realizadas no CRAS e acompanha os usuários, o que contribui para a vinculação com o serviço. Essa aproximação entre profissionais do PAIF e das entidades conveniadas foi importante para que pudessem elaborar e pensar em atividades conjuntas. A equipe do CRAS Piratininga programou duas atividades em conjunto com a entidade conveniada e estavam fazendo uma força tarefa para cadastrar as famílias que já eram atendidas pela entidade no PAIF. O mesmo ocorreu no CRAS Bonança, que estavam cadastrando as famílias que frequentam a Casa de Cultura e a entidade Cristo Rei. Os profissionais da GAAPS, entidade refe- renciada ao CRAS Munhoz, participaram de um grupo socioeducativo realiza- do pela equipe do PAIF e que isso contribuiu para a aproximação entre eles e o planejamento de mais ações conjuntas.
  • 65. 65 Todos os profissionais ressaltaram que o trabalho social com famílias de- manda uma ação articulada com vistas à garantia de proteção. No entanto, destacou-se que a falta de recursos humanos capacitados, bem como a falta de materiais para o trabalho proposto podem limitar a atuação e comprome- ter a articulação entre os serviços; bem como a falta de entendimento e com- preensão das especificidades e objetivos de cada serviço. Recomenda-se cui- dado na seleção dos profissionais, além da formação permanente das equipes. Lembrar • Tanto o PAIF quanto o SCFV fazem parte do CRAS, ainda que as ati- vidades do Serviço de Convivência possam ser realizadas em espaço físico diferente e por uma instituição parceira, e por isso devem atuar tendo como foco garantir as três seguridades da assistência: acolhimento, convivência e sobrevivência. • O SCFV está matriculado no PAIF; isto significa que os encaminha- mentos devem partir do PAIF para o SCFV; • O SCFV não se restringe ao CRAS, mas também pode estar articula- do junto com o território. • Articulação de trabalho não ocorre entre instituições, mas entre pes- soas: o contato entre profissionais e o conhecimento dos trabalhos que desenvolvem é fundamental para a efetivação dessa articulação. 1. Encontro Temático coordenado por Mariana Manfredi Magalhães, Natália Felix No- guchi e Carolina Bertol.
  • 66. 66
  • 67. 67 reuniões e funções no SAICA1 A proposta deste Encontro Temático foi a de convidar o grupo de profissio- nais, formado principalmente por gestores e APS, mas com participação de uma técnica e uma cozinheira, a pensar nas funções/atribuições de seu tra- balho no SAICA e da importância das reuniões de equipe como prática de cuidado com a equipe e frente aos objetivos do serviço de acolhimento, con- forme determinado pelas Orientações Técnicas. Determinar e discriminar as funções de cada profissional no serviço de acolhimento é tarefa que vem permeada de afetações e questões: é uma casa ou um serviço? So- mos equipe ou família para as crianças e adolescentes? Ao construir- mos vínculo, é profissional ou pessoal? Se a criança me chama de mãe, o que responder? Temos todos a mesma função em relação às crianças? Falar dessas questões ajudou a emergir diversas dúvidas dos profissionais em relação a como agir, como se localizar em relação ao seu trabalho, so- bre a identidade profissional de quem atua em serviços de acolhimento para crianças e adolescentes e, principalmente, em relação à função, à diferença, a ser desempenhada em relação ao cuidado com as crianças e adolescentes. A experiência de estar com profissionais de SAICAS diferentes foi importan- te para ajudar a perceber quais questões eram coletivas sobre o trabalho, e quais tinham relação com a história e funcionamento de cada casa. Em um segundo momento, discutimos sobre o que é função: a tarefa que algo ou alguém tem que desempenhar; uma direção de trabalho que indica intencionalidade e finalidade; o que determina a diferença que deve proteção social especial
  • 68. 68 ser operacionalizada por um serviço ou profissional. A partir desta definição, como pensar a função do Serviço de Acolhimento Institucional para Crianças e Adolescentes? Discutimos então sobre as três seguridades que o SUAS2 , como política pública, tem que garantir: • Sobrevivência: visa garantir um padrão mínimo para uma vida digna e cidadã. • Convivência: partindo do princípio de que é na convivência que de- senvolvemos potencialidades e aprendemos uns com os outros, e de que quanto mais vínculos relacionais as pessoas possuem e quanto mais sustentados no tempo forem estes vínculos, mais protegidas elas estão. • Acolhimento: se expressa na vivência do cidadão nos serviços do qual ele frequenta, por meio de acesso a orientações, encaminha- mentos sobre serviços e benefícios, ambiência acolhedora e que assegure sua privacidade, condições de dignidade em ambiente fa- vorecedor da expressão e do diálogo, ter reparados ou minimizados os danos por vivências de violações e risco sociais, ter sua identida- de e integridade história de vidas preservadas. O SAICA, como serviço do SUAS, é responsável por garantir essas três se- guridades e pudemos pensar no grupo como, na rotina e prática diária, essas funções estavam sendo desenvolvidas por cada serviço. Assim, os profissionais destacaram a importância da criação de projetos que permitissem trabalhar esses três aspectos, pensando que garantir a sobrevivência é algo mais direto e imediato e que pensar em acolhimento - e como a criança e ado- lescente se sente ou não acolhido - e a convivência - com a família, o bairro, os vizinhos, amigos e outros serviços da rede - são questões mais desafiadoras e que exigem um investimento de trabalho a médio e longo prazo. Em seguida, falamos sobre a história e as mudanças na função social e polí- tica que ocorreram em relação aos serviços para atender crianças e adolescentes até chegar à política atual dos SAICAS. Partindo da concepção dos orfanatos, localizados na discussão como representantes de instituições maiores e totais3 ,
  • 69. 69 foi possível discutir sobre as transformações na forma do cuidado às crianças e adolescentes, trabalho com famílias e a rede e também sobre a diferença na função a ser desempenhada pelos profissionais nos serviços de acolhimento. Seguem algumas das diferenças principais: Orfanato SAICA Regulamentado pelo Código de Menores Regulamentado pelo ECA Estadia permanente Estadia provisória Ambiente institucional - atendimento em grandes grupos Ambiente familiar - atendimento em pequenos grupos Trabalho assistencial de atendimento à criança, sem foco no retorno da criança ao ambiente familiar Trabalho focado no retorno à família ou colocação em família substituta. Foco no fortalecimento de vínculos familiares e comunitários Centralização de serviços no local da moradia, sem uma visão maior de inserção comunitária Utilização da rede de serviços comunitários como escola, centros comunitários de bairro, ONGs, postos de saúde locais, como forma de promover a inserção comunitária Esquecer o passado Trabalho com história de vida junto à criança e elaboração de projeto singular Trabalhadores: funcionários, pajem, irmã, monitor Trabalhadores: educadores, cuidadores, técnicos Projeto determinado pelo Estado Projeto Politico-Pedagógico construído de forma democrática a partir das Orientações Técnicas Regras visando disciplina e obediência Regras visando desenvolvimento da participação cidadã O grupo fez uma reflexão crítica sobre como olhares e concepções de traba- lho ainda ecoam e reproduzem ações provenientes de um modelo mais insti- tucionalizado e muitas vezes estigmatizado em relação às crianças que estão em situação de acolhimento e os cuidados que necessitam. Perceber como o passado ainda se faz presente e como orientações divergentes convivem no cotidiano dos serviços de acolhimento é essencial para que os profissionais con- sigam transformar suas práticas e pensar suas funções de trabalho, inclusive em relação à execução e ao debate sobre as políticas públicas existentes.
  • 70. 70
  • 71. 71 A retomada de determinados aspectos do SUAS (as seguridades e como garanti-las) e da história do serviço de acolhimento pode ser muito provei- tosa para as equipes já que permite que reconheçam seu trabalho de forma mais ampla, construindo o caminho para essas perspectivas. Saber como eram os orfanatos e como são os SAICAS possibilitou a desconstrução de uma cultura de institucionalização para repensar o funcionamen- to dessas instituições. Aos poucos, fomos chegando às funções e às atribuições dos profissionais em si, buscando consolidar os papéis na relação entre si e com as crianças e adolescentes acolhidos. Qual a função que todos devem desempenhar em relação às crianças? Quais as especificidades em relação a cada cargo? Um dos conflitos comuns no trabalho dizem respeito às atribuições de cada um e a consequente sobreposição ou abandono de algumas funções pela falta de diálogo. O que cabe à gestão deste serviço? O que é responsabilidade da equipe técnica? O que os APS tem autonomia e condição para conduzir no cuidado das crianças? Como caminhar com funções determinadas, porém com autonomia e parceria na equipe no percurso? O grupo problematizou o nome Agente de Proteção Social (APS), re- conhecendo que a função no SAICA diz de cuidado e educação, e não de proteção, palavra ambígua que convoca a pensar quem está sendo pro- tegido: as crianças da sociedade ou a sociedade das crianças? O nome APS parece ser insuficiente ou excessivamente genérico para de- finir e valorizar o trabalho que esses profissionais realizam. Os trabalhadores que compunham esse grupo tiveram a tarefa de consultar suas equipes para tentar chegar a um nome que contemplasse o trabalho que realizam. O nome educador ou educador social foi o que mais apareceu e com o qual os profis- sionais mostraram maior identificação. Apesar do que é específico no cargo do APS, a função de educador e cui- dador deve ser partilhada por todos que atuam na casa e tem contato com as crianças. Cada profissional, em sua atribuição, contou como se localiza e de- sempenha essa função no cotidiano. O aspecto mais forte ao longo da discus- são foi a importância de que, na equipe, a história e projeto das crianças pos- sam ser compartilhados. Conhecer a história ajuda na condução do trabalho,