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O Supremo Mentirão
A história de uma farsa, contada a partir
do caso de Henrique Pizzolato
Por Miguel do Rosário
A fuga
Três e quinze da manhã do dia 10 de setembro de 2013. A barulhenta Copacabana
dorme em silêncio, cortado intermitentemente por carros esparsos cruzando as
avenidas, latidos de cães mimados e gritos misteriosos, não se sabe de medo, loucura
ou prazer.
À porta de um grande apartamento na Domingos Ferreira, situado no último andar
de um edifício neoclássico, um casal se despede às lágrimas. Andrea Pizzolato,
enfim, empurra o marido com as mãos.
“Vai, vai, vai!”
Henrique Pizzolato entra no elevador, junto com um amigo, a que darei o nome
fictício de Leo, segurando apenas uma sacola de plástico, dessas de supermercado,
com três garrafas de água, de dois litros cada. A mochila, com algumas cuecas e
meias, e uma camisa sobressalente, já estava no carro, onde também já haviam
guardado um cacho de bananas e cereais.
Quando as portas pantográficas do elevador se abrem, os dois saem e caminham
até o portão. Não há zelador na portaria a esta hora.
Henrique contempla o saguão do edifício por alguns segundos, como quem lança o
último olhar para um lugar que talvez nunca mais voltará a ver. A mesa do zelador,
as pinturas nas paredes, os tapetes. Era uma bela entrada, austera e elegante.
Atravessam o portão como quem se esgueira para fora de uma prisão de segurança
máxima. A situação era um tanto ridícula, conta Leo, rindo. Agiam como dois espiões
atrapalhados de um filme de comédia. Não tinham noção nenhuma de como agir.
Então segue para o lado contrário de onde estava o carro, pensando vagamente em
“despistar” possíveis agentes da polícia. Dão a volta no quarteirão e chegam ao carro
pelo outro lado.
Leo estacionara na Avenida Atlântica. Entram no carro, sempre em silêncio, dão
partida e iniciam uma viagem que só terminaria em Dionisio Cerqueira, 1.408
quilômetros depois.
Segundo Leo, não havia exatamente um “plano de fuga”. Ele explica que Pizzolato
decidiu fugir do país exatamente um dia antes, na madrugada do dia 9.
Andrea e Henrique haviam recebido quatro ou cinco amigos em casa, para uma
reunião sobre a situação política e jurídica de Pizzolato. O Supremo Tribunal Federal
agendara para o dia 10 de setembro o debate sobre a admissibilidade dos embargos
infringentes. Seja qual fosse o resultado, havia expectativa de que a prisão de
Henrique aconteceria imediatamente após a votação. Se aceitassem que os
infringentes ainda existiam, Joaquim Barbosa poderia determinar que os réus que não
tivessem este direito, como Pizzolato, fossem presos logo. Se os infringentes caíssem,
seriam todos presos.
O dia 7 de setembro, dia da independência, já havia transcorrido sob intensa
expectativa de uma ordem de prisão para Pizzolato, pois ele já entendera que Barbosa
queria usar uma data simbólica para mandar prender os réus do mensalão. Não era a
primeira vez que experimentava essa tensão.
Ao fim de 2012, Pizzolato chegara a fazer uma mochila, esperando a chegada da
Polícia Federal. “Foi um trauma terrível”, relata Leo. Houve ainda outro “prende /
não prende” em julho de 2013, pouco antes do recesso de inverno do STF.
Após a tensão do 7 de setembro, portanto, o casal Pizzolato tinha tomar uma
decisão sobre o que fazer. Desde alguns meses que eles encaravam tudo relacionado
ao mensalão e a sua condenação como uma grande operação política, onde o
principal adversário não era exatamente o Judiciário, mas a mídia. Era das principais
empresas de mídia que vinham os ataques que então se materializavam em decisões
da Procuradoria Geral da República e de ministros do STF.
O casal recebia, regularmente, amigos e militantes que vinham discutir a
conjuntura política, e de que maneira se poderia reagir aos ataques da mídia.
Naquela noite de 8 para 9 de setembro, o clima ficou pesado. Os amigos que
chegavam só falavam em prisão, e sugeriam que Pizzolato pedisse asilo político em
alguma embaixada, de preferência de uma república latino-americana governada pela
esquerda, como Bolívia ou Equador.
Politicamente, contudo, a decisão não tinha sentido. Pizzolato e esposa estavam
desesperados. Despedem os amigos e decidem fazer uma outra reunião para
determinar o que fazer.
“Eles perguntaram minha opinião”, diz Leo, e eu respondi que, fosse eu, me
entregaria. Pizzolato chorava. Então Andrea interveio:
“Vou fazer igual vocês, homens, fazem. Vou botar o pau na mesa”. E deu um tapa
bem forte na mesa.
“Ele não vai se entregar!”
A decisão estava tomada. Quem dava as ordens era Andrea. E ela havia decidido.
Andrea voltou-se para Leo e perguntou: “Então você não vai nem ajudar?”
Leo rebateu rapidamente: “Absolutamente! Uma coisa não tem nada a ver com a
outra. Sou contra fugir, mas já que a decisão é esta, eu vou ajudar sim. E digo o
seguinte: isso tem de ser feito já!”
“Já quando?”, indagou Andrea.
“Amanhã”.
“Mas ele tem que ligar para alguém antes, para ajudá-lo a atravessar a fronteira”.
“Vamos fazer isso agora. Vamos até o centro, ligar de um orelhão”. E foram.
No dia seguinte, Leo voltou à casa de Pizzolato para darem início à operação.
Voltando à noite da fuga, Henrique e Leo, com este último ao volante, zanzaram
por mais de uma hora pela zona sul, sempre procurando despistar um eventual
seguidor. Parecia mais a fuga de Mr.Been.
Por fim, pegaram o túnel velho, passaram pelo centro da cidade, chegaram ao
Maracanã, e seguiram junto à linha do trem, pela avenida 24 de maio. Penetraram no
sertão profundo do subúrbio carioca, passando por Madureira e outros bairros, até
chegarem a São João de Meriti, de onde alcançaram a Dutra.
Pizzolato vestia calça jeans, tênis, uma camisa de manga curta e tinha um casaco
pendurado no ombro. Mantinha-se em silêncio absoluto. A tensão era total. Leo
fumava um cigarro atrás do outro.
Ambos só relaxaram quando chegaram à Dutra. Daí começaram a conversar.
Fizeram uma parada rápida num posto de gasolina obscuro, na altura de Itatiaia.
Nem saíram do carro. Não compraram nada para comer, nem foram ao banheiro.
Apenas encheram o tanque e prosseguiram.
A segunda parada seria apenas no Paraná, depois de terem passado por São Paulo.
Ainda no Paraná, pegaram trânsito pesado, motivo pelo qual chegariam uma hora
atrasado ao encontro combinado com um amigo de Pizzolato, em Dionisio Cerqueira,
que iria lhe ajudar a atravessar a fronteira com a Argentina.
Já na Argentina, Pizzolato seguiria para Buenos Aires, onde compraria um bilhete
aéreo usando o cartão de crédito de sua mulher.
Desembarcaria em Barcelona, Espanha, de onde seguiria de trem até o norte da
Itália, onde iria se estabelecer.
Essa é a história da fuga de Pizzolato. Uma aventura e tanto para um burocrata que
jamais correu grandes riscos na vida.
A história de uma farsa
Alguns livros já foram escritos sobre o mensalão enquanto processo político,
outros tantos sobre o julgamento. Entramos agora, porém, numa outra fase
bibliográfica, muito mais decisiva. Junto com as últimas defesas dos réus (os
embargos), vieram à luz uma série de documentos até então subtraídos à consulta
pública. Estes documentos vieram se somar à perplexidade, até hoje não superada, em
relação ao sinistro circo que assistimos em 2012, quando juízes da mais alta corte
rasgaram os princípios básicos do direito moderno, do bom senso e da própria
jurisprudência para chancelarem um justiçamento que interessava a poderosos
agentes do conservadorismo político nacional.
A mentira segue o padrão de uma doença. Ela fere o corpo com enorme virulência
num primeiro momento; em seguida, o uso dos remédios certos e, sobretudo, a
entrada em ação de anticorpos, gera um período de convalescença; por último, o
corpo humano pode sair fortalecido. Digo “pode sair”, porque é preciso que tenha,
efetivamente, vencido a doença; em caso contrário, poderá sofrer uma reincidência
muito mais lesiva, ou mesmo fatal.
O processo do mensalão caminha por duas vias, que às vezes se tocam, em outras
se afastam, mas desde o início interagindo intensamente. Numa, há o julgamento nas
instituições. Noutra, na opinião pública. Nas instituições (STF e, eventualmente,
alguma corte internacional), o julgamento se aproxima do fim de um ciclo. Na
opinião pública, a última palavra não é dada por nenhum ajuntamento burocrata,
doméstico ou estrangeiro, e sim por esta vetusta, calma e irônica senhora chamada
História. Neste campo, o julgamento ainda está só começando.
Agora sim, as pessoas têm acesso aos documentos. Não documentos periféricos,
referentes a detalhes do processo, mas documentos estratégicos, centrais, que
determinam e embasam todas as acusações e todas as defesas.
Agora sim, terminado o ruflar histérico de tambores que testemunhamos em 2012,
num julgamento realizado em paralelo a um processo eleitoral, podemos analisar o
processo do mensalão com serenidade. Podemos escutar as versões dos réus, ler os
documentos, conversar francamente sobre o que realmente aconteceu naquele
período.
Temos ainda um mínimo de distanciamento histórico para entender uma série de
coisas. Mais importante que tudo: entendemos hoje os resultados profundamente
danosos à democracia se não levarmos esse debate às últimas consequências.
É aí voltamos a nos encontrar com o que existe de mais sólido em nós mesmos.
Não apenas queremos saber a verdade, a verdade nua e crua: nesse ponto, queremos
agir com a seriedade que faltou aos juízes. Queremos ler, reler e analisar os
documentos, alguns deles só há pouco disponibilizados ao público. São estes
documentos que nos dão base para assumir uma postura bem diferente a partir de
agora. Não mais na defensiva. Queremos encetar um contra-ataque político que vise
cobrar uma parte, ao menos, do profundo dano moral que as arbitrariedades causaram
a milhões de brasileiros e à democracia.
Não temos interesse de eximir o PT dos erros e dos crimes que tenha cometido.
Mas a questão já não é o PT. A questão, hoje, é a discussão da verdade, a denúncia do
arbítrio, da mentira, e do insuportável risco à democracia que é a conversão do
Supremo Tribunal Federal num instrumento político e partidário manipulado por
interesses econômicos obscuros.
Os documentos provam que a teoria do mensalão não se sustenta. Podemos
admitir, com profunda tristeza, que um STF corrompido pela vaidade e pela
chantagem, possa enveredar pelo arbítrio e agir na contramão da ética e da legalidade.
Isso nos deixa consternados e preocupados, mas um processo político ainda é algo
maior que tudo isso. O que não deixaremos passar, jamais, é a manipulação da
história. Os ministros do STF, a mídia, a procuradoria geral da república serão
denunciados às futuras gerações como protagonistas de uma vergonhosa página da
política brasileira. A Constituição Brasileira não é apenas um punhado de leis. Ela
encarna um espírito, uma visão de mundo, um destino. E nisto houve uma traição
imperdoável dos juízes aos valores encorpados na Carta Magna.
O PT não é santo. Houve caixa 2 nas campanhas de 2002, 2004, 2006,
possivelmente em todas as campanhas petistas. O PT foi o único partido que assumiu
francamente a culpa de fazer o que todos faziam: caixa 2.
Mas o STF fez de tudo justamente para derrubar a teoria do caixa 2 e, contra todas
as evidências documentais, produziu uma tese fictícia, sustentada sobre declarações
vazias, testemunhos contraditórios e ilações descabidas. As maiores lideranças
políticas de uma geração foram condenadas sem apresentação de nenhuma prova. A
mídia conseguiu derrubar líderes eleitos para glorificar heróis no Ministério Público e
no Judiciário – o que não seria exatamente um problema não fosse a quantidade
constrangedora de erros crassos, contradições, injustiças, que caracterizaram o
julgamento.
Lembrando o ditado popular, é hora da onça beber água. Contra o arbítrio, vamos
contrapor o debate democrático, à luz do dia, transparente, feito com serenidade,
amparados em documentos. Eu farei a parte que me cabe como jornalista, blogueiro e
intelectual: trabalhar duro, escrever, ponderar, analisar. O Paulo Moreira Leite
escreveu um excelente livro sobre o tema, mas há um manancial de informações
ainda não explorado e, sobretudo, não concatenado num conjunto.
Acusações contra Pizzolato lembram Dreyfus e Kafka
Pizzolato, o único “judeu” na diretoria do BB
Para melhor entender um acontecimento que envolve pessoas, façamo-lo a partir
do ponto-de-vista individual. Talvez possamos nos comunicar mais produtivamente
se começarmos nossa história a partir de um personagem menos visado, como
Henrique Pizzolato, ex-diretor de marketing do Banco do Brasil. Iniciar uma
abordagem sobre os erros no julgamento do mensalão a partir de Pizzolato tem a
vantagem de evitarmos, por enquanto, a furiosa politização provocada pelos nomes
de Dirceu e Genoíno, os mais graduados na hierarquia petista. E as falhas inúmeras
encontradas na denúncia contra Pizzolato tem o potencial de fazer ruir um edifício
acusatorio cada vez mais condenado por suas deficiências estruturais.
A história de Pizzolato lembra a saga do tenente francês Albert Dreyfus, pintada
com tintas kafkianas. Dreyfus era o único judeu entre os oficiais suspeitos de uma
traição a um governo estrangeiro, e por isso foi apontado, com base em provas falsas
e ilações enviesadas, como culpado de espionagem. Era inocente, mas virou um
símbolo máximo do ambiente de guerra midiática que tomara conta da França ao
final do século XIX, quando políticos e donos de jornais disputavam a primazia de
quem melhor manipulava a opinião pública. O ódio profundo nascido das lides entre
dryfusards e antidreyfusards, e o proselitismo político que se fazia em torno da
questão, nos remete à deliberada campanha udenista deflagrada por setores da mídia e
da oposição quando se percebeu o uso político que se poderia dar aos escândalos de
caixa 2 protagonizados por Marcos Valério e PT.
O nosso Dreyfus é Henrique Pizzolato. Era o único petista numa diretoria só de
tucanos, todos indicados para seus cargos na era FHC, numa instituição antes e hoje
controlada e presidida por executivos identificados com o PSDB. Foi capturado a
dedo. Era o único “judeu” no grupo. A maneira como tudo acontece, por sua vez,
lembra uma trama de Kafka: um suceder frenético, galopante, ininterrupto de
acusações vagas, mal formuladas, confusas, embora invariavelmente pesadíssimas
porque expostas com grande sensacionalismo midiático.
Como se um procurador e um juiz tivessem o poder de dizer que você é chinês, e
provar isso, independentemente de seu passaporte ser brasileiro, você ter cara de
brasileiro e falar português fluentemente como só um brasileiro poderia fazer. Não
importa, você é chinês e pronto, decreta o juiz, batendo o martelo. Os jornais todos
divulgam no dia seguinte, em manchetes garrafais, que ficou provada sua origem
chinesa. E ai de você se quiser protestar.
A acusação contra Pizzolato é simplesmente surreal. Diferentemente de Dirceu e
Genoíno, que ao menos incorporam fantasmagóricas responsabilidades políticas pelo
“esquema” de compra de apoio político, contra Pizzolato há uma acusação bem
direta: de ter sido o responsável pelo desvio dos R$ 73,8 milhões que a Visanet pagou
a DNA Propaganda. A denúncia serviria para caracterizar os recursos que Marcos
Valério, um dos sócio da DNA, distribuiu a parlamentares, como dinheiro público,
com isso enfraquecendo a tese de caixa 2 defendida pelos réus.
Entretanto, os documentos comprovam quatro erros crassos na denúncia. A Visanet
é privada; Pizzolato não tinha qualquer ingerência no contrato entre a empresa e a
DNA Propaganda; ele nunca foi o responsável pela relação entre o banco e o fundo de
publicidade da Visanet; os serviços de publicidade foram realizados.
A DNA Propaganda, hoje praticamente destruída, não era uma agência fictícia. Era
a maior agência de publicidade de Minas Gerais, detendo praticamente todas as
contas das estatais mineiras, da Telemig (então controlada por Daniel Dantas); havia
crescido à sombra do tucanato. Vinha ganhando mercado, obtendo prêmios locais e
internacionais, incomodando grandes firmas de São Paulo.
O contrato entre a Visanet e a DNA era perfeitamente legal. Uma empresa que
opera no mercado de cartões de crédito contrata uma das maiores agências do país
para realizar campanhas publicitárias. As campanhas são realizadas. As auditorias não
encontraram nenhuma irregularidade nas campanhas. Há gravações e documentos
que comprovam a sua realização.
Quanto aos bônus de volume pagos pelos meios de comunicação à DNA
Propaganda, os quais foram considerados, irresponsavelmente, por Joaquim Barbosa,
como uma transferência indevida de recursos pertencentes ao BB, também não houve
irregularidade. O pagamento de bônus de volume, apesar de eticamente questionável,
é uma prática regulamentada no país, e configura uma relação totalmente privada
entre meio e agência. Ou seja, entre uma empresa como a Globo, por exemplo, e a
DNA. O BB ou o Visanet sequer são informados sobre seus valores.
“Eles estatizaram a Visanet”, ironiza Pizzolato, que vive hoje um período de
recuperação moral e emocional.
O lendário jornalista Raimundo Pereira comprou a briga de Pizzolato e vem
usando a sua revista Retrato do Brasil para fazer uma denúncia duríssima, embasada
em documentos, contra os erros flagrantes de Joaquim Barbosa quando analisa o caso
Visanet. Alexandre Teixeira, combativo blogueiro carioca, faz o mesmo através do
blog MegaCidadania.
O acordo entre a Visanet e os bancos parceiros sugeria que estes indicassem um
gestor com responsabilidade para propor campanhas publicitárias da Visanet e
apontar nomes de agências. Aí temos outro intolerável erro de Joaquim Barbosa,
porque ele sempre teve em suas mãos, e o ignorou, um laudo com os nomes dos
gestores do fundo de 2001 a 2005. Todos “tucanos”. Pizzolato não estava entre eles.
Durante o período em que se celebra contrato com a DNA, o gestor era Léo Batista,
que assumiu o cargo em 2002, ainda no governo FHC, e ficou até abril de 2005.
Trata-se do laudo 2828, mais um entre inúmeros documentos que, apesar de
comprovarem a inocência de Pizzolato, foram sistematicamente ignorados, omitidos e
até mesmo ocultos pela acusação.
Por onde se olhe a denúncia de Barbosa contra Pizzolato no caso Visanet, se vê
apenas um despudorado falseamento da realidade, e a única explicação para isso seria
a tentativa de ajustar a realidade à teoria.
Pizzolato, que há mais de sete anos vive um terrível pesadelo moral, acusado por
um crime do qual não apenas é inocente, mas que seria impossível de cometer,
procura transparecer serenidade e até um pouco de bom humor quando analisa os
primeiros trovões que anunciaram a tempestade.
Para a oposição udenista, Pizzolato foi uma vítima útil, uma peça importante no
jogo para derrubar o governo. Mesmo no campo da esquerda, as preocupações
sempre se voltaram apenas para Dirceu e Genoíno. Mas Pizzolato também era um
quadro importante no partido, com uma bela história no processo de luta que
culminou na vitória de Lula em 2002. Um dos fundadores do PT no Paraná, Pizzolato
foi presidente do sindicato de bancários, da CUT e candidato a governador em seu
estado.
Pizzolato testemunhou muita coisa em 2002, e seu depoimento ajuda a esclarecer
uma série de pontos obscuros quando se procura entender o aparecimento de Marcos
Valério.
O caso Visanet
Um petista no lugar certo, na hora certa
Trazer o questionamento sobre a lisura no julgamento do mensalão para esta
grande ágora pública, a internet, nos permite provocar um debate instantâneo, que nos
ajuda a desenvolver nosso trabalho. Os dois primeiros textos já publicados geraram
algumas reações negativas curiosas. Um internauta fez uma declaração emocionante:
“O PT me fez desacreditar na política, e agora quer me fazer também descrer na
Justiça”. Outro se pergunta, perplexo, como pode ser que alguém “não entender que
partido político e seus governos, no Brasil, não passam de quadrilhas que vivem
meramente de dinheiro público? Assim, o Executivo é o poder que estrutura a
corrupção no Brasil. Resta ao Judiciário moralizar e colocar a política em seus
trilhos”.
Sem se dar conta, essas críticas apenas reforçam a argumentação central que
procurarei expor aqui: a acusação usou e abusou de uma lógica de “linchamento”,
que serviu para desqualificar o processo político e as entranhas da nossa jovem
democracia. E tudo em prol de soluções de força a serem tomadas pelo Ministério
Público e pelo Judiciário, tidos aqui na conta de instâncias “não políticas”. Só que
não é verdade. Onde existe poder, existe política. É claro que existe política no MP e
no Judiciário, só que de maneira mais obscura do que nas esferas do Estado
vinculadas ao sufrágio.
Como nasce um linchamento político? Pega-se uma comunidade revoltada com
séculos de corrupção, aponta-se-lhe um culpado, de preferência uma figura pública.
Que graça tem pegar um promotor corrupto ou um juiz incompetente. Como não
votamos, não nos sentimos culpados por seus crimes. Já um político corrupto gera um
sentimento de culpa coletiva. Como fomos idiotas em votar nesse calhorda! Daí para
a catarse do linchamento, é o passo seguinte.
Não vamos negar que existam políticos corruptos aos borbotões. E a missão
republicana do Ministério Público, do Judiciário, da Polícia Federal, e das próprias
institiuições políticas, é combatê-los. O que fazer, contudo, quando os próprios
corruptos, numa jogada brilhante, assumem a responsabilidade pelo combate à
corrupção e, ao invés de pegar os verdadeiros vilões, miram apenas em seus
adversários políticos; e, no lugar de uma investigação séria, se aliam aos meios de
comunicação para encetarem inquéritos fajutos, sensacionalistas e tendenciosos?
Pois é, meu inocente amigo, se queres fazer alguma coisa concreta para combater a
corrupção no Brasil, terás que se desvencilhar de toda ingenuidade. Existe luta de
poder, política e corrupção em todas as instituições da República, incluindo MP e
Judiciário. Não digo isso para sufocar a esperança do cidadão comum numa solução
ética para o problema político brasileiro. Claro que há! Mas certamente não é
linchando inocentes, nem manipulando inquéritos. A busca pela ética na política
passa também pela exigência de investigações rigorosas e imparciais, e julgamentos
justos, além do fortalecimento da consciência crítica do cidadão, que precisa estar
devidamente vacinado contra a demagogia de setores corruptos do MP e do
judiciário.
Temos que pegar os corruptos, mas temos que pegar também os corruptos que
simulam e manipulam investigações para desviarem a atenção da opinião pública.
E aí voltamos para o caso Visanet e para o indiciamento de Henrique Pizzolato.
Todos os laudos, auditorias e documentos à disposição do procurador geral da
República, Antônio Fernando de Souza, e do relator da ação junto ao STF, Joaquim
Barbosa, provavam a inocência de Pizzolato e, no entanto, ele foi indiciado e depois
condenado. Por quê?
Bem, o porque requer uma resposta mais complexa, pois trata de interesses
políticos, e vamos discuti-la mais adiante. Por enquanto, podemos analisar outra
questão: como? Como a procuradoria e o STF conseguiram a proeza de indiciar e
condenar um inocente, à revelia de tantos documentos que provavam o contrário?
Para isso, há uma resposta dura e direta: omissão e má-fé. Quando apareceu o
nome da Visanet na CPI e no noticiário, o Ministério Público mandou a Polícia
Federal investigar quem eram os responsáveis, dentro do Banco do Brasil, pela
relação com a Visanet, sobretudo quem fiscalizava, no BB, as campanhas
patrocinadas pelo Fundo de Publicidade da Visanet, nos anos de 2001 a 2005. A
investigação foi rápida e fácil. A parceria entre Banco do Brasil e Visanet data de
1999. A partir de 2001, a Visanet cria um fundo de publicidade, alimentado por seus
bancos parceiros. Esse fundo continuava sendo propriedade da Visanet, conforme
provam todas as auditorias já realizadas. Mas os parceiros tinham direito de orientar
campanhas, escolher as agências que as fariam e propor o pagamento das mesmas.
Executivos do Banco do Brasil integravam o Conselho de Administração da Visanet,
e havia um funcionário do BB com a função de “gestor” do Fundo de Publicidade
Visanet.
O nome de Pizzolato sequer aparece no laudo 2828, que reúne as informações
coletadas pela Polícia Federal a pedido do Ministério Publico, sobre a relação da
Visanet com o Banco do Brasil. Por uma razão simples: como diretor de marketing do
BB, Pizzolato não tinha nenhum controle sobre o fundo da Visanet, cuja relação com
o BB se dava através da diretoria de Varejo (que lida com cartões de crédito).
Pizzolato nunca foi gestor do fundo Visanet. A investigação descobrira ainda que a
Visanet mantinha relações com a DNA Propaganda ao menos desde 2001.
Todos os funcionários do BB que mantinham relações com a Visanet (funcionários
do BB que integravam o conselho de administração da Visanet, gestores do fundo
Visanet, diretores de Varejo, vice-presidente de Varejo, e o próprio presidente do
banco) eram remanescentes da era tucana. Todos haviam chegado aos respectivos
postos através de nomeações feitas antes da eleição de Lula, e todos se alinhavam
ideologicamente ao PSDB.
Entretanto, o laudo2828, mesmo contendo informações vitais à defesa e à
compreensão do processo, foi mantido em sigilo para os advogados de Pizzolato e
para a opinião pública. O documento foi varrido para debaixo dos espessos tapetes da
procuradoria e do STF. Quando a denúncia da Procuradoria foi encaminhada ao STF
e começou a ser debatida pelos ministros, o laudo 2828 jamais foi mencionado. O
relator da Ação, Joaquim Barbosa, ao arrepio das informações contidas num
documento que ele mesmo havia deferido, declara em seu voto:
“Assim, Henrique Pizzolato agiu com o dolo de beneficiar a agência representada
por Marcos Valério, que não havia prestado qualquer serviço em prol dos cartões do
Banco do Brasil de bandeira Visa, tampouco tinha respaldo contratual para fazê-lo.
De fato o contrato entre a DNA Propaganda e o Banco do Brasil não fazia qualquer
alusão à Visanet. “
O voto de Barbosa merece um prêmio: conseguiu reunir num pequeno trecho uma
quantidade tão grande de inverdades que pode arrumar um emprego fácil como
editorialista do jornal O Globo:
1 – Pizzolato não poderia ter agido “com dolo de beneficiar Marcos Valério”
porque nunca teve o poder de propor pagamentos para a DNA Propaganda. Essa
função era do gestor apontado pela diretoria de Varejo; na época de que trata a
acusação, esse gestor era Léo Batista dos Santos.
2 – A DNA Propaganda prestou, sim, serviços “em prol dos cartões do Banco do
Brasil de bandeira Visa”, e tinha total respaldo contratual para fazê-l0, desde 2001.
3 – Havia diversos pareceres à disposição de Barbosa comprovando a relação entre
a DNA, BB e Visanet.
Todas essas informações constavam em documentos vários; no caso do Laudo
2828, serviria sobretudo para provar a inocência de Pizzolato, mas o laudo foi oculto.
Os advogados de Pizzolato afirmam que, na denúncia da Procuradoria para o STF, o
laudo sequer foi anexado. Meses depois, após a denúncia ser aceita pelo STF, o laudo
é reintroduzido no banco de dados da acusação.
Pizzolato surge nessa história da seguinte forma. Como diretor de marketing, seu
nome aparece em três “notas técnicas”, que eram de circulação interna, sem nenhum
poder autorizativo, tratando de questões laterais referentes aos pagamentos a serem
emitidos à DNA com recursos do fundo da Visanet. O BB sugeria o pagamento, mas
quem o fazia era a Visanet, mediante a apresentação de notas fiscais e comprovantes
de realização de serviços por parte da DNA. E a pessoa responsável pela solicitação
do pagamento, através de um documento efetivamente autorizativo, era o gestor
indicado para essa função, não o diretor de marketing.
Eram pareceres internos, e o nome de Pizzolato aparece, no mesmo grau de
hierarquia, junto a outros três diretores. No total, são quatro notas técnicas, um das
quais Pizzolato sequer aparece. Porque apenas Pizzolato foi indiciado? A explicação
talvez esteja em sua história: tinha sido o primeiro diretor sindical eleito pelos
próprios funcionários do banco, ainda antes da redemocratização. Mesmo sendo
funcionário de carreira, e tendo ingressado via concurso, o talentoso sindicalista e
combativo militante político do Partido dos Trabalhadores seguramente não era
benvindo numa instituição dominada por tucanos de alta plumagem.
Mais tarde, contaremos porque o PT entregou o Banco do Brasil ao PSDB.
Ao menos um alto executivo do BB, um dos mais poderosos, também ligado aos
tucanos, trabalhou ativamente para incriminar Pizzolato. É Antônio Luiz Rios da
Silva, que havia sido vice-presidente de Varejo do Banco do Brasil em 2003, e
responsável pela nomeação de todos os funcionários que tinham relação com a
Visanet. Este cidadão, simplesmente, saiu do BB para se tornar presidente da…
Visanet, função que exerceu no auge das comissões de inquérito que investigavam o
mensalão! Um acaso não tão casual, que foi extremamente oportuno para a oposição
e trágico para Pizzolato, porque Rios, como presidente da Visanet e ex vice-
presidente de Varejo no BB, se recusou a fornecer os documentos que provariam a
inocência do petista, nem fez qualquer declaração neste sentido. Descobriu-se
também mais tarde mensagens do presidente do Supremo Tribunal Federal (STF),
Nelson Jobim, avisando Rios de que a Polícia Federal faria investigações nos
escritórios da Visanet. Ou seja, todos os tucanos, em todas as altas funções da
república, estavam se dando as mãos, solidariamente. (Documentos neste link)
São artimanhas como essas que explicam o indiciamento de Pizzolato.
Possivelmente, em meio às turbulentas conspirações que aconteciam nos bastidores
das CPIs que investigavam o mensalão, houve um decisão política sobre a trama e os
personagens. O nome de Pizzolato aparece quando se projetam os holofotes sobre a
relação do Banco do Brasil com a DNA Propaganda. Era o petista no lugar certo e na
hora certa.
Mas tudo começa com a figura de Marcos Valério. A oposição tinha que ligar
Marcos Valério, suposto “operador financeiro” do mensalão, ao desvio de dinheiro
público, e como a DNA Propaganda respondia por contas milionárias junto à Visanet,
que por sua vez mantinha contratos com o BB, iniciou-se o esforço para encontrar
um petista no BB que pudesse “fechar” a trama já armada por oposição e mídia.
No próximo capítulo, falaremos deste personagem até hoje explosivo: Marcos
Valério. De onde ele vem? Porque se torna de repente tão íntimo do PT? Pizzolato
participou de reuniões com o alto comando da campanha petista de 2002, e me
contou algumas histórias interessantes sobre a situação financeira do partido, e como
Valério aparece como “salvador da pátria”.
As bombas lá fora
As dívidas de campanha
Em algum momento lá trás, eu mencionei o “mínimo distanciamento histórico” em
relação aos fatos que produziram o escândalo do mensalão. Preciso agora enfatizar o
termo “mínimo”, ou mesmo me contradizer. Não há distanciamento histórico. As
bombas ainda explodem lá fora. O editorial do Globo hoje, 15 de maio de 2013, é:
“Mensalão recoloca STF em risco”, onde o jornalão assevera que o tribunal “precisa
ter consciência de que, ao decidir sobre novo julgamento, pode pôr a perder a
credibilidade obtida com sua atuação no caso até agora”. É uma ameaça. O Globo,
pela enésima vez, põe uma faca no pescoço dos ministros do STF e diz: vão em
frente.
A grande ironia é que o Globo está certo. Só que ao contrário. O STF está, de fato,
em risco de se desmoralizar, mas se se curvar mais uma vez aos interesses políticos e
às chantagens da família Marinho.
Eu falei nas bombas que estouram lá fora porque me lembrei de um comentário de
alguém sobre Jules Michelet, talvez o mais querido historiador francês. Em 1848,
Michelet escrevia sobre a revolução francesa enquanto ouvia, do lado de fora de sua
casa, as bombas de uma outra revolução acontecendo. Os mesmos princípios estavam
em jogo: a república, a democracia, a igualdade social. Michelet era um ardente
republicano e defensor dos legados da revolução francesa, mas não podia negar os
erros trágicos e brutais das lideranças que assumiram o poder no auge do “terror”
jacobino. Michelet, todavia, era inteligente demais para publicar uma denúncia contra
a revolução que pudesse ser instrumentalizada por seus adversários políticos para
atacar os princípios que ele, Michelet, acreditava. Michelet era o que, mais tarde, os
marxistas chamariam de “intelectual orgânico”. Hoje em dia, a historiografia oficial
francesa lê Michelet com muita cautela, tentando separar seu engajamento ideológico
e seus inegáveis talentos literários dos acontecimentos históricos em si. Após um
certo tempo, a academia tende a analisar os fatos com a frieza de um dissecador de
cadáveres. Mas todos admitem que, se você quiser sentir um pouco do calor
revolucionário que emanava das ruas parisienses, naqueles cinquenta anos a partir da
queda da Bastilha; se quiser entender o que aconteceu não apenas de maneira cerebral
ou acadêmica, mas apreender sobretudo suas reverberações espirituais, então você
precisa ler a História da Revolução Francesa de Jules Michelet.
Ao abordar a aparição de Marcos Valério no palco da história política brasileira,
começaremos a falar dos grandes erros do PT. O erro fundamental, naturalmente, foi
ganhar as eleições. Um parente meu, alguns meses após a posse de Lula, quando a
onda de cobranças deflagrou mais uma fornada “desencantados com a política”, me
disse assim mesmo: “O PT não deveria ter ganho”. Não era ironia. Havia muita gente,
na própria esquerda, que entendia que o PT não deveria ter ganho, para evitar o
processo de corrosão ética e ideológica provocado pelo poder.
Quando escavamos as origens do mensalão, batemos em alguma coisa sólida lá
embaixo, guardamos a pá e abrimos o baú encontrado, o que vemos?
A vitória de Lula não representa, naturalmente, apenas a vitória pessoal do ex-
metalúrgico, nem somente a ascenção do Partido dos Trabalhadores às funções
máximas do Executivo. Há um corte histórico, que nem o mais raivoso inimigo do PT
poderá negar. Uma coisa é o que acontece na superfície dos acontecimentos. A festa
do povo nas ruas. A cantoria, o choro e as bebedeiras. Outra coisa é o movimento
silencioso e profundo das placas tectônicas da história.
Vamos aos fatos.
Primeiro, a campanha. Todos os crimes eleitorais acontecem na campanha. A
campanha eleitoral, em si, é o crime fundamental do regime democrático.
Não por outra razão, quando os petistas começam a se recuperar do susto que
levaram com o escândalo do mensalão, repetirão em coro: a culpa é das campanhas!
Daí nasce o desejo de fazer uma reforma política para tampar o ralo por onde escorre
toda a decência e toda a ética.
Só que não vão conseguir. As campanhas eleitorais continuarão, para sempre,
sendo um crime político. Porque é nas campanhas que se mobilizam todas as forças,
todos os recursos, se amarram todos os compromissos. É nas campanhas que,
invariavelmente, vemos despontar no horizonte, caminhando em nossa direção, um
homem manco, de rosto estranho, com um pé deformado, semelhando um pé… de
cabra.
Perdoem-me a caricatura, que tentarei desfazer mais adiante, mas não posso
resistir: que figura mais parecida com o diabo senão aquele risonho moço de careca
luzidia chamado Marcos Valério?
A única maneira de pôr fim a este grande crime político, ao crime original, é dar
fim às campanhas. Ou seja, é dar fim ao regime democrático e instalar a ditadura. De
preferência, uma ditadura de juízes vitalícios. Aí sim, o país poderá respirar aliviado,
as classes instruídas poderão olhar, satisfeitas, para os donos do poder, que serão
homens cultos e severos, e que não chegaram onde chegaram através de campanhas
políticas sujas.
Ah, mas não é somente um crime. As campanhas mobilizam uma grande
quantidade de mão-obra. São milhares, quiçá milhões de pessoas trabalhando em todo
país, em tudo que é tipo de atividade. A moeda mais valiosa em qualquer campanha é
o trabalho. Qualificado, naturalmente. Se há dinheiro para pagar o trabalho, paga-se.
Se não se tem, faz-se dívidas. Arrisca-se. As campanhas mobilizam as apostas mais
temerárias que se pode conceber. Empresários, ativistas, políticos, donas de casa,
todo mundo aposta alguma coisa.
Após a vitória, Lula chama a equipe que coordenava a questão do financiamento
de sua campanha. Obviamente, sempre fora a questão crucial para a vitória. E
deixemos claro uma coisa: o PT não ganhou as eleições apenas por causa do amor
dos companheiros à causa. A campanha de Lula foi rica em recursos. E falo do Caixa
1, contabilizado. O professor Wanderley Guilherme dos Santos fez um levantamento
das eleições de 2002 e verificou que Lula ganhara mais dinheiro que seu adversário,
José Serra. Os empresários brasileiros, apesar de toda afinidade ideológica com o
PSDB, estavam traumatizados pela incompetência do governo FHC. O país quebrara
várias vezes, a carga tributária quase dobrara, os juros atingiram níveis insuportáveis.
Só quem ganhava dinheiro, em tese, eram os bancos. Mas até os bancos quebraram!
O capitalismo brasileiro foi empurrado à força para a esquerda, porque entendeu que
precisava de uma coisa básica para continuar produzindo riqueza: consumidores.
Pizzolato, que já participara de várias campanhas e entendia de economia, em
função de seu trabalho no Banco do Brasil, era um dos que trabalhavam no núcleo de
programa de governo do comitê e descreve a reunião com Lula em tons vívidos. Os
cardeais estavam todos presentes: José Dirceu, Palocci, Gushiken, etc. Lula só pediu
uma coisa: quero as contas de campanha totalmente ordenadas. Quero ser diplomado
sem a mínima mácula. E assim foi feito. Todos trabalharam como loucos para ordenar
sabe-se lá quantos milhares de notas fiscais, preencher sabe-se lá quantas planilhas.
Mas tudo foi cumprido à risca e Lula é diplomado com as contas de campanha em
dia.
Aí, vem uma outra reunião. A campanha nacional fora paga, mas os dirigentes
regionais aparecem com enormes pendências. Dívida tem que ser paga! Ainda mais
naquele Brasil em profunda crise econômica, desemprego altíssimo, como era em
2003. Ouvíamos casos de homicídios por dívidas de 15 reais. Que dizer então das
milionárias dívidas de campanha?
“Então Lula fez uma coisa de doido”, diz Pizzolato. Quando a gritaria dos
diretórios regionais em relação às dívidas começou a ficar alta demais, Lula chamou
Delúbio Soares, tesoureiro do partido e mandou: “Resolve isso, Delúbio”. O diretório
nacional do PT, por orientação do recém eleito chefe de Estado, assume as
milionárias dívidas dos núcleos regionais. O PT, de uma hora para outra, mesmo
tendo ganhado as eleições, se tornava uma instituição completamente falida e
endividada.
O Delúbio era o cara com mais intimidade com Lula, conta Pizzolato. Quando Lula
mandou ele assumir todas as dívidas, ele quase caiu da cadeira e rebateu de pronto:
“No meu, não, né, presidente (ele agora já chamava Lula de presidente)! No meu
arde!”
Palocci dá um risinho, bate nas costas de Delúbio e diz alguma coisa sobre o peso
de “ser governo”.
Delúbio vai atrás do dinheiro. O fundo partidário estava mais liso que a careca de
Valério: tudo havia sido gasto para que Lula se diplomasse com as contas pagas,
totalmente limpo. Onde está o dinheiro? Nos bancos. Segundo Pizzolato, Delúbio
gostava de fumar charutos; quem trabalhava mesmo eram os dois secretários à sua
disposição. Os petistas vão ao Banco do Brasil pegar emprestado. O patrimônio do
PT só permitia ao partido pegar uns 2 milhões de reais. Não dava nem para encher o
buraco do dente. A dívida total era mais de 50 milhões de reais. Os bancos não
queriam emprestar para o PT por uma questão burocrática básica: o partido tinha um
limite baixo.
Ironia quase trágica. O partido que vencera as eleições presidenciais não tinha
limite. Mas o empresário Marcos Valério tinha. Ele podia pegar quanto dinheiro
quisesse, porque era bem relacionado. “Hoje o pessoal fala mal do Valério, mas na
época ele foi o salvador da pátria”, conta Pizzolato.
Com Marcos Valério como avalista, o PT conseguiu levantar dois bons
empréstimos com o BMG e o Rural. Parte do problema estava sanado. Até aí tudo
bem. Mas ainda faltava dinheiro. Então Valério faz um acerto com Delúbio. Aí nasce,
efetivamente, o “mensalão”. Valério faz um empréstimo em seu nome, para pagar as
dívidas do PT. Delúbio fazia assim, conta Pizzolato: conforme os diretórios iam
ligando para cobrar o pagamento das dívidas, ele ligava para uma secretária de
Valério para fazer os pagamentos. Tudo isso acontecia em 2003. Só que o tempo foi
passando; em poucos meses, haveria outra eleição. Novas dívidas começaram a
surgir…
Contrato da DNA com Banco do Brasil é de 1994
Encontrei uma informação interessante para entender as relações de Marcos
Valério com o Banco do Brasil. A DNA Propaganda ganhou contrato com o BB, pela
primeira vez, em 1994. É bom frisar isso porque a mídia e as algumas declarações de
Joaquim Barbosa passaram a impressão que a agência de Marcos Valério era fictícia.
Era real, e mantinha contatos com grandes empresas públicas desde pouco depois de
sua criação. A DNA fez a campanha de Itamar Franco, de Collor e de Eduardo
Azeredo. Não fosse o escândalo, possivelmente seria a agência oficial de Aécio
Neves, pois um dos principais sócios da empresa era Clésio de Andrade, vice-
governador na gestão de Aécio.
Em 2002, o presidente era Francisco Castilho, que permanecia no comando durante
os episódios do mensalão. Porque apenas Marcos Valério foi indiciado? Porque a
oposição achava que Valério tinha feito com o PT o que havia feito com o PSDB
mineiro. Valério usou a DNA para realizar um Enduro (evento com motos)
superfaturado, mas os patrocínios serviram para quitar débitos de campanha.
Tirem as crianças da sala
“A compra de apoio político”.
Na verdade, o famigerado mensalão correspondeu a duas necessidades de caixa. A
primeira foram as dívidas da campanha de 2002. A segunda, a necessidade de investir
nas eleições de 2004 e integrar estratégias eleitorais de legendas coligadas. Ué,
“integrar estratégias”, ao supor partilhamento de recursos, não seria comprar apoio
político? Então o STF está certo? Não. Não está certo porque a acusação do STF não
é, exatamente, “compra” de apoio político, que é uma coisa genérica, difícil de ser
mensurada. Os ministros acusaram o governo de comprar a consciência dos
deputados, em votações específicas, e tal acusação só poderia ser feita mediante a
existência de uma confissão. O que não houve. A única confissão de compra de voto,
que eu me lembre, é do Ronivon Santiago (PFL-AC), que acusou o governo FHC de
organizar pagamentos de 200 mil para que os parlamentares votassem em favor da
emenda da reeleição.
Consolidar apoio político não é crime. O que move os grupos políticos são os
interesses econômicos. Se eu dou três ministérios para um partido, estou
“comprando” seu apoio político. Se distribuo tantos cargos para os quadros daquele
outro, idem. Se integro financeiramente campanhas entre partidos aliados, a mesma
coisa. Algumas dessas coisas podem configurar irregularidades ou uso de recursos
não-contabilizados, mas o crime não é a questão política, visto que a construção de
alianças em prol da governabilidade é um pressuposto necessário para estabilidade
institucional.
Os R$ 6 bilhões que a Secom deu à Globo nos últimos 10 anos não configuram
“compra de apoio político”? Nomear tucanos para chefiar a Procuradoria Geral da
República, por exemplo, foram operações quase suicidas de Lula para “comprar”
apoio político…
O crime que existiu é o caixa 2. O crime é dar dinheiro ilegalmente a uma
liderança partidária. Mas então que as condenações sejam para o crime de caixa 2 e
para o crime de lavagem de dinheiro e corrupção. A acusação de compras em massa
de consciências só seria possível se as mentes dos parlamentares “comprados” fossem
dissecadas em laboratório e ficasse provado que eles votaram porque, e só porque,
receberam uma quantia para isso. Essa é a grande falha da acusação, agravada pelo
fato de que os que receberam dinheiro para “votar” com o governo, já pertenciam à
base aliada. Alguns eram do próprio PT!
Mas voltaremos mais tarde aos erros do STF, que são muitos e terríveis. Agora
vamos nos alongar um pouco mais sobre realpolitik. Tirem as crianças da sala, por
favor.
Será que foi por isso, por exemplo, que o PT também “comprou” apoio político do
PSDB? O grupo de Gushiken e Palocci cedeu várias estruturas importantes aos
tucanos, em troca de apoio político no parlamento. O Banco do Brasil, o Banco
Central, os fundos de pensão. Tudo relacionado a Palocci e a Gushiken foi entregue
e/ou permaneceu com os tucanos.
Esse foi um debate duro que se deu bem “no seio” do governo, diz o ex-diretor de
marketing do Banco do Brasil, que observou essa disputa durante a campanha –
embora jamais tenha ocupado nenhum cargo de direção no partido. A decisão contou
com a oposição dura de José Dirceu. “O Zé era radicalmente contra isso, e ameaçou
fazer convenção e ganhar lá. Ele argumentava que os tucanos já estavam há muito
tempo no governo e tinham aparelhado tudo. Se continuassem ocupando funções-
chave, seria como se continuassem no poder.” Dirceu defendia uma grande aliança
com o PMDB, enquanto Lula via mais vantagem em se aliar aos pequenos partidos,
mantendo parcerias pontuais com o PMDB.
Delúbio chegou na primeira reunião após a vitória confiante de que seria elogiado
pela vitória eleitoral e pela bem sucedida prestação das contas da campanha nacional
junto ao STE. Quando recebeu a ordem de resolver um pepino de algumas dezenas de
milhões de reais, referentes às dívidas dos diretórios regionais, quase pulou da janela.
“Lula tentava acalmá-lo. Está tudo bem, Delúbio. Tudo bem. É melhor a gente
assumir isso do que correr o risco dessa gente fazer bobagem”, conta Pizzolato,
presente à reunião.
“Quando eu fui para a campanha, a coordenação me disse: precisamos de um cara
para plano de governo, para explicar isso e aquilo. Ainda durante a campanha, o
Delúbio me chama e diz: estamos no negativo”.
Delúbio diz a Pizzolato que o partido precisava de R$ 1,5 milhão para capital de
giro. Quem botava a mão na massa e trabalhava pra valer era o assessor de Delúbio,
Paulo Martins, que depois virou chefe de gabinete do Okamoto. O Delúbio só
assinava os papeis, fumando charutos. Pizzolato procedeu ao rito normal de qualquer
cliente e entrou em contato com o Banco do Brasil, para marcar uma entrevista e ver
o quanto o partido podia pegar emprestado junto à instituição. As regras eram rígidas,
e o PT só conseguiu pegar exatamente R$ 1,6 milhão, dando como garantia o próprio
fundo partidário.
Finda a campanha, todos sabiam que havia dívidas. Lula orienta o tesoureiro do
partido a assumir as dívidas regionais; começa a via sacra. Cada estado apresenta a
relação das dívidas.
Hoje se sabe que foi naquele momento que surge Marcos Valério. Com Valério
como avalista, o PT consegue um limite maior: R$ 3 milhões junto ao Banco Rural.
Mas ainda faltava muita coisa. Então Valério disse que podia “quebrar o galho”, e
pegou empréstimos mais vultosos em seu nome. Sua intenção, naturalmente, era ter o
PT lhe devendo favores, e fazer com que isso representasse, no futuro, uma gorda
conta estatal; essa era a a especialidade de Valério na DNA: fazer lobby junto a
governos e grandes empresários, e conseguir contas.
Alexandre Teixeira, autor do blog Megacidadania e pioneiro de um movimento em
defesa da anulação da Ação Penal 470, observa que a Receita Federal investigou 25
anos da vida de Pizzolato, e não encontrou nada.
Perguntei-lhe então sobre os 326.660,67 reais que foram sacados num escritório do
banco rural, no Rio. A versão de Pizzolato é que não sabia que se tratava de dinheiro.
Disse que atendeu um telefonema de uma pessoa que se identificou como secretária
da DNA e solicitou-lhe que fosse buscar documentos em um determinado endereço.
Pizzolato solicitou à secretária da PREVI que um contínuo fosse buscá-los. Eram dois
envelopes, que foram entregues, segundo ele, algumas horas depois a um emissário
do PT. Ele disse que achava que deveria ser material de campanha, porque já tinha
informação que DNA abrira uma empresa de marketing político, e queria trabalhar na
campanha do PT.
Em depoimento judicial, Valério disse que o diretório do PT do estado do Rio de
Janeiro, de acordo com o então tesoureiro do PT, Delúbio Soares, tinha débitos de
campanha de 2002, estava se preparando para as eleições municipais de 2004.
O tesoureiro do PT, então, solicitou a ele (Valério) que remetesse um total de R$
2.676.660,67 ao PT do Rio de Janeiro. As pessoas indicadas para o recebimento
foram Manuel Severino, Carlos Manuel e Pizzolato, disse Valério. Os R$ 326.660,67
repassados via Pizzolato seriam parte desse total.
Importante recordar que um notório tucano, o publicitário Nizan Guanaes, estava
em tratativas para fazer a campanha petista na capital do Rio.
Pizzolato, condenado por supostamente “desviar” recursos da Visanet (ainda
voltaremos uma última vez a este caso), explica que a CPMI dos Correios, que
investigava o mensalão, não tinha incluído a questão da Visanet. As investigações
vinham descobrindo, segundo consta no relatório final da CPMI, casos bem maiores
de caixa 2, pegando todos os partidos. “Aquilo ia revirar a república pelo avesso. A
Visanet era uma coisa mais neutra”. A oposição pensou que Valério estava fazendo
para os petistas o mesmo que havia feito para eles, que era receber uma quantia
superfaturada para realizar um evento. O que explicaria a mira afiada em Valério e
nos contratos de publicidade da DNA com a Visanet e Banco do Brasil. Só que as
campanhas da DNA junto à Visanet/BB foram realizadas. O “mensalão” não passou
pela Visanet, nem pelo BB, e sim pelo esquema de empréstimos tomados por Valério
junto a alguns bancos para sanar os problemas financeiros do PT.
Hoje há confirmação que Daniel Dantas, o jovem prodígio que ficou bilionário na
era FHC, era um dos principais clientes de Marcos Valério. Sua eventual participação
no abastecimento do valerioduto, no entanto, jamais foi explorada pela grande
imprensa. Ele até chegou a depor numa CPI, mas numa audiência a portas fechadas; a
acusação contra Pizzolato e Visanet foi seu biombo perfeito. Detalhe: Pizzolato é o
único dirigente do BB processado por Daniel Dantas, porque enquanto representante
dos funcionários do BB na Previ, e como tal membro do Conselho da Brasil Telecom
(empresa controlada por Dantas), Pizzolato proferiu um voto que desagradou o
poderoso banqueiro, que imediatamente ordenou sua exclusão do Conselho.
As bombas aqui dentro
Reflexões sobre a Bastilha mental
Dessa vez eu senti a vertigem. Escrever sobre um tema tão explosivo, aproximar-se
de pessoas que vivem até hoje dentro de uma usina nuclear cheia de vazamentos, me
deu a sensação de estar no topo de um edifício em chamas, olhando o abismo lá
embaixo.
Ou então parece que adentramos um ambiente altamente inflamável, mas escuro e
acendemos um fósforo para poder olhar ao redor. A intenção é boa, mas o risco,
altíssimo. As bombas não explodem apenas lá fora, como eu disse; há estilhaços que
entram pela janela e podem nos atingir. A Procuradoria Geral, alguns ministros do
STF e setores da imprensa tornaram-se, definitivamente, agentes políticos sem
qualquer escrúpulo, e provaram desfrutar de um poder sinistro: podem colher
qualquer história, inclusive textos nossos, e transformá-la em qualquer coisa. Daí o
perigo, eles tem o poder de criar a mentira e condenar com base naquela mentira.
Sobretudo ainda vivemos aquele clima pesado de tribunal, em que tudo que
dissermos pode se voltar contra nós. Agora sim entendi porque se precisa de
distanciamento histórico para se analisar uma situação com serenidade.
Vamos esclarecer algumas coisas sobre o texto anterior. Tragam as crianças de
volta para sala; eu errei ao pedir que elas saíssem. Elas têm que aprender desde cedo
algumas lições de vida.
O julgamento do mensalão foi viciado e condenou inocentes. A denúncia da
procuradoria foi inepta. Disso eu já sabia, porque acompanhei todo o processo,
escrevi sobre ele. Não digo que os réus são inocentes de qualquer coisa. O direito
moderno, desde o Iluminismo, após séculos de trevas jurídicas, entende que um
processo legal deve condenar ou absolver as pessoas em relação aos crimes que estão
sendo julgados. Senão vira, como virou, um linchamento. Insufla-se um ódio tão
grande nas pessoas contra a política, contra o governo, contra o partido dos
trabalhadores, que a culpabilidade ou não dos réus passa a ser um mero detalhe. É
como se eles tivessem que expiar a culpa por toda a podridão da política brasileira
dos últimos duzentos anos.
A minha experiência nova, meio que assustadora, foi conhecer pessoalmente
algumas vítimas desse linchamento. Em Vigiar e Punir, Foucault descreve as torturas
físicas da idade média e analisa o desenvolvimento dessa tara inominável, que é o
prazer pelo sofrimento do outro. Logo no início do livro, há uma descrição
pavorosamente minuciosa do esquartejamento vivo de um condenado. É uma coisa
absurda; perguntamo-nos o tempo inteiro qual o objetivo daquilo?
Hoje a mesma técnica é utilizada, mas no campo psicológico. A tortura moral que a
mídia pode inflingir a um indivíduo e à sua família, ao envolvê-lo num processo
político, é algo terrivelmente chocante. É chocante inclusive se ele for culpado,
porque inventa-se uma forma de punição que não está prevista no código penal.
Existe o mundo das leis, onde as pessoas são condenadas estritamente pelo que
fizeram, e a punição vem rigorosamente prevista em acordo com a Constituição. As
punições morais operam num outro universo, não regido pelos códigos escritos, mas
por leis às vezes muito mais severas, porque milenares. Recentemente, um pai
“esqueceu” o filho recém-nascido dentro do carro por algumas horas, e o menino
morreu. O pai é culpado. Ninguém nega sua imperdoável irresponsabilidade. Mas o
juiz entendeu que a culpa que esse pai teria que carregar por toda a vida já era tão
terrível que não precisava sequer ir preso. O homem estava internado há dias, em
estado de choque, depois de tentar o suicídio. Não imagino nenhum sofrimento maior
do que o remorso de matar, sem querer, o próprio filho! Mesmo sabendo que ele é
culpado, mesmo tendo raiva do homem, não consigo deixar de sentir um pouco de
compaixão. Imagine então aplicar o mesmo tipo de punição moral a um inocente?
Com a transformação do mundo num espaço totalmente midiatizado, o poder da
punição moral, via exposição pública, atingiu um ponto crítico. A expressão
“assassinato de reputação”, muito usada nos últimos anos para descrever o processo
de denúncias, muitas vezes sem substância, contra adversários políticos, não diz tudo.
Não apenas se mata a reputação. Faz-se uma coisa tremendamente pior. Tortura-se,
lentamente, cruelmente, sadicamente.
É isso o que Genoíno tem repetido, sempre que há um movimento como que de
abutres a seu redor, tentando bicar mais um pedacinho de seu fígado: fui
barbaramente torturado na ditadura, mas o que têm feito comigo agora ainda é pior.
Se a coisa é chocante quando se trata de culpados por algum crime, obviamente é
muito mais quando estamos diante de um inocente. Quando é alguém distante de seu
universo, você simplesmente se afasta, como quem decide não assistir a determinado
filme de terror. Mas acontece às vezes de você topar com uma vítima. Falar com ela.
Comer uma pizza e tomar um guaraná com ela. Então todo o esforço que você fazia
para afastar a sua imaginação do tipo de tortura mental que a mídia pode inflingir a
uma pessoa inocente vai por água abaixo.
Isso foi o que mais me marcou.
Eu sempre fiz uma defesa do Lula e do PT porque entendia um e outro como
agentes do nosso desenvolvimento e da nossa libertação social. Se defendi ambos no
momento mais crítico, quando simplesmente não sabíamos o que havia acontecido,
agora que temos uma noção melhor das coisas, minha defesa é ainda mais tranquila e
mais enfática. No capítulo anterior, eu descrevi de maneira superficial o processo de
construção da governabilidade. Não dá para fazer um tratado sobre poder,
democracia, governabilidade, ética, moral e compromisso social em dois parágrafos.
Estes são temas que espero desenvolver melhor mais tarde.
O novo grau de circulação das informações está nos levando a um outro estágio:
estamos saindo de um tempo em que havia as coisas que podiam ser ditas, e as coisas
que não podiam ser ditas. Wikileaks, leis de transparência pública, internet, o mundo
político hoje está um bocado perplexo com a nova situação, em todos os países. Há
uma aflição constante no ar.
No Brasil, em particular, a situação chegou onde chegou porque a chamada opinião
pública, a verdadeira, não a de meia dúzia de colunistas, é refém de um processo que
começou lá em 1964. Começou até antes, na década de 50, mas somente em 1964 a
mídia, esta mídia, conseguiu se tornar hegemônica. Qualquer outra opinião era
criminalizada e, literalmente, morta. Durante mais de 20 anos, somente os barões
pontificavam sobre política, e roubou-se da sociedade brasileira não apenas o que ela
tinha de mais precioso, o direito de se expressar livremente, mas as consequências
positivas dessa liberdade: entender melhor a nós mesmos e a maneira de nos
governarmos; entender melhor a democracia, suas contradições e problemas.
Após a ditadura, a situação perdurou porque os desdobramentos iniciados no
regime militar continuaram acontecendo. O ambiente de profunda crise econômica,
por si só, mata a liberdade, de uma outra forma, pelo bolso. Assistimos a uma ou duas
gerações de jornalistas, cineastas, escritores, intelectuais, que tinham algum pendor
pela independência, e que podiam efetivamente contribuir com uma voz diferente,
para termos no Brasil um debate político mais plural e mais avançado, assistimos a
estas gerações se perderem na miséria econômica, na desesperança, na adversidade.
Com o PSDB no poder, atingimos o apogeu da corrupção moral. O Brasil jamais
debateu suficientemente o problema político causado pela decisão de FHC de aprovar
uma emenda para reeleger a si mesmo. A gente discutiu por anos a reeleição de
Chávez, jamais a de nosso próprio presidente. Jamais discutimos as implicações
morais disso, nem o obscuro processo para construir a maioria parlamentar naquela
votação. Chávez fez um plesbicisto popular. Consultou diretamente o povo. O
governo FHC aprovou a reeleição através de uma suja negociata palaciana.
Daí a sociedade brasileira nunca teve uma noção aproximada de como funciona o
processo político. De repente, com o escândalo do mensalão, há um esforço massivo,
deliberado, maquiavélico, covarde, de pegar uma sociedade fragilizada por décadas
de desinformação e manipular todos os seus preconceitos em relação a política e a
democracia, em prol de derrotar um projeto. Quando se abriram as cortinas dos
bastidores da democracia, e vimos as lideranças partidárias fazendo acordos para se
eleger, governar, pagar enormes dívidas de campanha, setores políticos viram a
oportunidade de ludibriar a população com um discurso hipócrita: vejam só, que
vergonha! nós nunca fizemos isso!
Não é verdade. Fizeram muito pior. E fazem algo infinitamente mais podre,
repetindo exatamente o que fizeram durante as campanhas udenistas: criminalizam a
política e desqualificam a democracia. Pintaram Vargas como um bandido porque o
Banco do Brasil emprestou dinheiro para Samuel Wainer criar a Última Hora, quando
todos os presidentes anteriores haviam emprestado quantias ainda maiores para O
Globo, para o Correio da Manhã e para os jornais de São Paulo. E agora criminalizam
o PT. Não ficaram satisfeitos com o mea culpa do partido por ter feito caixa 2.
Inventaram uma trama diabólica, sem base em nenhuma prova, para causar o maior
dano político e humano possível no partido e em tudo que ele representa.
Eu já tinha compreendido essa questão política. Mas agora, conhecendo Genoíno e
Pizzolato, eu passei a ver as coisas por um outro ângulo. Passei a ver as coisas numa
perspectiva humanista. De repente, tudo o mais se apagou, e eu vi uma figura humana
com braços e pernas em xis, como naquele desenho de Da Vinci.
Há tanta injustiça no mundo, no país, crianças drogadas na rua, o sistema de saúde
pública é precário, mas de repente o que mais nos choca é a injustiça contra o ser
humano à nossa frente. Esquecemos a política, a ideologia, os partidos, a democracia,
tudo é posto de lado quando se está diante de uma arbitrariedade.
Justamente por isso, essa pode ser a chave para a gente reverter essa tremenda
injustiça. O caso Pizzolato, em particular, detêm a chave para se anular a Ação Penal
470. Não sou apenas eu que enxergou isso. Raimundo Pereira, editor da Retrato do
Brasil, farejou algo semelhante. Não à tôa dedicou edições inteiras de sua revista aos
erros da procuradoria e do STF no caso Pizzolato. Outros jornalistas agora estão
abrindo o olho.
Num dos capítulos atrás, eu mencionei a obra-prima de Jules Michelet sobre a
revolução francesa. Lembrei-me agora de outro fato que nos faz pensar naquele mito
do eterno retorno. As coisas vão se repetindo o tempo inteiro, o que é bom, porque
nos dá chance de aprendermos e lidarmos com os monstros de maneira mais
experiente. Algumas da páginas mais belas que já li em minha vida são aquelas em
que Michelet descreve o processo que culminou na Tomada da Bastilha, esse evento
que marca o início de uma nova era no mundo.
A Tomada da Bastilha não nasceu da estratégia de lideranças políticas. Segundo
Michelet, foi um explosão espontânea, desorganizada, popular. A multidão acorreu,
furiosa, desesperada, na direção daquela fortaleza que simbolizava os aspectos mais
tenebrosos do regime monárquico. Como prova da espontaneidade da rebelião,
Michelet descreve a enorme quantidade de mulheres, velhos e crianças que
participavam.
Qualquer pessoa podia ser presa e encarcerada na Bastilha. Até burgueses e
aristocratas podiam ser vítimas. Um caso comum, por exemplo, era uma mulher,
mancomunada com um amante, denunciar o próprio marido, para poder usufruir
livremente de seus bens. O marido apodrecia incomunicável na Bastilha pelo resto da
vida.
Michelet descreve como tudo começou. Entre os fatos que levaram ao
desenvolvimento de um ódio tão intenso dos franceses à Bastilha está justamente uma
mulher. Uma mulher simples, do povo, que achou uma carta de um homem que jazia
há muitos anos na prisão, por um crime que, segundo ele, não havia cometido.
Por trás dos grandes acontecimentos da revolução francesa, escreve Michelet,
jamais poderemos esquecer este caso, que ajudou a derribar os pilares morais nos
quais se assentava o regime. Ao conhecer Pizzolato e estudar seu caso, eu me senti
um pouco como aquela senhora do livro de Michelet.
A senhora não tinha pretensões de derrubar o regime. Ela sentiu-se tomada por
uma compaixão profunda por aquele homem, e passou a procurar as autoridades para
que avaliassem o caso. Acabou ganhando notoriedade. Foi ameaçada, ridicularizada,
agredida. Mas prosseguiu. Michelet não sabe o que aconteceu a esta mulher, nem ao
prisioneiro. Nas semanas seguintes, o Antigo Regime ruiu. Quando o povo tomou a
Bastilha e abriu os portões, libertando todos os prisioneiros, houve um momento de
grande júbilo. O povo abraçava, chorando, aqueles homens que permaneceram anos
esquecidos do mundo, largados numa masmorra, incomunicáveis. Havia centenas de
bastilhas em toda França. Elas representavam o absolutismo, o poder que o Estado
tinha para inflingir o pior de todos os sofrimentos a um indivíduo: acusá-lo das piores
barbaridades, sem lhe dar a chance de se defender.
Quando eu conheci Pizzolato e sua esposa, eu pensei: temos um cidadão brasileiro
e sua família sendo torturados numa bastilha ainda pior que aquela do Antigo
Regime, porque é uma bastilha mental. Ao mesmo tempo entendi que o caso
Pizzolato pode ser a chave para deflagrar uma reviravolta definitiva na farsa que
setores políticos e mídia armaram para aplicar um golpe 2.0 na sociedade brasileira.
Essa farsa vai se voltar contra os que a praticaram. Vamos tomar essa Bastilha.
A História não anda de avião
Homenagem a um jornalista
Outrora se falava que “ainda existem juízes em Berlim”, referindo-se aos
derradeiros magistrados que resistiram à sanha nazista e defenderam princípios
constitucionais numa Alemanha mergulhada em profunda crise. Que grande ironia
assistir, num Brasil que vive o apogeu de sua democracia e goza de sólida
estabilidade econômica, a inversão dessa frase. Não existem mais juízes em Brasília?
Essa pergunta ainda está no ar, visto que há um fiapo de esperança de vermos o STF
evitar a desmoralização de se render às forças do atraso e à arbitrariedade. Mas a
frase vale para uma outra atividade crucial quando se discute este processo político e
judiciário conhecido por “mensalão”. Ainda existem jornalistas no Brasil?
Felizmente, sim. Endereço a frase especialmente para o editor da revista Retrato do
Brasil, Raimundo Pereira, que realizou um trabalho criterioso e completo para
descontruir as mentiras contidas na denúncia da Ação Penal 470.
Se durante o julgamento, as matérias de Pereira fossem publicadas num jornal de
grande circulação e seu conteúdo fosse adaptado para a televisão, outro seria o
destino dos réus, e poderíamos testemunhar um outro debate, bem mais consequente.
Estaríamos agora discutindo, de maneira mais objetiva, um fato gravíssimo: a
construção de uma conspirata política para derrubar um governo eleito, ao arrepio de
inúmeros direitos constitucionais consagrados. A procuradoria e alguns ministros
lançaram cidadãos na fogueira da vergonha pública apenas para provar uma tese pré-
montada.
Relendo a Edição Especial da Retrato do Brasil, cuja manchete é “A Construção do
Mensalão”, e a edição número 65, intitulada “A Prova do erro do STF”, senti o alívio
de constatar que parte do trabalho que eu me dispunha a fazer, já está pronto, o que
me deixa um caminho aberto para passar à etapa seguinte, a análise das
consequências. O material coletado por Pereira derruba as teorias centrais da
denúncia da Procuradoria. A demolição que faz no caso Visanet, inclusive publicando
os documentos que os juízes se recusaram a ver, é particularmente arrasadora. Não
sobra pedra sobre pedra.
Consulte o site www.retratodobrasil.com.br, ou ligue para 11-3814 9030 para
solicitar as edições que tratam da Ação Penal 470.
Pereira faz o serviço que caberia a um juiz honrado: inocenta Henrique Pizzolato
consultando os documentos apresentados pelo próprio réu à acusação. E ainda
envereda por um caminho que eu também procurei trilhar nessa história: o aspecto
humano. É um aspecto essencial porque nos faz pôr de lado, por um momento, as
paixões políticas.
Perdoem-me insistir tanto na figura de Pizzolato. Não sou advogado dele, não
temos nenhum acordo pecuniário. Minha insistência se dá por várias razões.
Primeiro, por praticidade. Ele mora perto da minha casa, é uma figura de fácil acesso,
e sua vida familiar hoje tem apenas um objetivo: provar sua inocência; com toda a
calma e convicção, conta o que aconteceu, mostra os documentos, esclarece e procura
nos olhos do interlocutor uma explicação plausível para a arbitrariedade terrível que
lhe esmagou.
Segundo, por razões de afinidade: Pizzolato não é uma celebridade, como José
Dirceu, cercado de fãs e frenesi militante. É um indivíduo pacato, de hábitos
extremamente simples. Seria um pouco inexato chamá-lo de “um homem comum”,
porque não é fácil encontrar gente com uma história tão bonita. Uma história de
conquistas, luta política, grandes sonhos. Foi o primeiro diretor sindical eleito para
cargo de representação funcional na administração do Banco do Brasil. Foi um dos
articuladores, junto ao Banco, da campanha contra a fome idealizada por Betinho,
junto do qual viajou todo o país, iniciativa que abriria caminho para Lula mais tarde
fazer suas caravanas da cidadania. Na campanha de 2002, idealizou os kits de apoio a
Lula para a Classe A, as famosas estrelinhas douradas, que tanto ajudaram a quebrar
o preconceito das elites contra o PT. Como diretor de marketing do BB, levou a cabo
várias inovações, muitas das quais hoje passaram por retrocesso; e tinha planos de
fazer inúmeras outras, que poderiam trazer benefícios à instituição e ao país.
Terceiro, porque derrubando a acusação contra Pizzolato, desmonta-se um dos
suportes cruciais da Ação Penal 470, o uso de dinheiro público no mensalão, que
serviu à Procuradoria e ao STF para rechaçar a tese da defesa, de que os volumes
movimentados corresponderiam a um caixa 2 de campanha eleitoral.
A principal razão, sobretudo, do meu interesse na figura de Pizzolato é que sua
condenação (e o linchamento moral que sofreu, ainda mais severo) simboliza o caso
mais chocante de arbitrariedade que já testemunhei. Me fez pensar inclusive na
diferença entre injustiça e arbitrariedade.
Uma coisa é a injustiça, para o qual sempre concorrem as agruras do destino e
cujas responsabilidades se diluem por todo o corpo social e pelo tempo histórico.
Uma criança famélica vagando nas ruas da nossa cidade é culpa de todos nós, é culpa
da nossa história, mas justamente por essa culpa distribuir-se tanto, ela perde força
em nossa consciência. Viramos o rosto e seguimos em frente. Não podemos consertar
tudo.
Uma arbitrariedade é diferente. Não é, como a injustiça, uma consequência de
vícios históricos; ela tem um rosto ou vários rostos, e emerge de um ambiente de
violência extrema, no caso a violência covarde dos estamentos conservadores da
sociedade (mídia corporativa, certa elite aristocrática do funcionalismo, setores
raivosos da classe média) contra um ou mais indivíduos, sem lhe dar chance de se
defender.
Eu me recuso a aceitar ser responsável pela arbitrariedade cometida contra
Pizzolato; sinto-me, ao contrário, também uma vítima. Sinto-me vulnerável. O que
aconteceu a ele poderia acontecer a qualquer um. Claro, o fato de ser petista e ter
lutado, a vida inteira, por justiça social, ajuda a virar alvo.
Não é uma arbitrariedade que se poderia atribuir a uma confusão judiciária. Tanto
os procuradores quanto Joaquim Barbosa, que desde o início tinham acesso aos
documentos, dispunham de provas que o inocentavam completamente. Não só
ignoraram essas provas. Ocultaram-nas! Isso é o mais chocante. Documentos
fundamentais para se esclarecer a relação entre BB, Visanet e DNA foram
simplesmente escondidos embaixo do tapete pela procuradoria – e igualmente
ignorados por Joaquim Barbosa. Destacamos, principalmente, os pareceres jurídicos
do BB em relação à Visanet e o Regulamento do Fundo de Marketing, da própria
Visanet (de 2001), que derrubam a tese de que os recursos eram do BB; e o Laudo
2828, que inocenta Pizzolato.
Se falássemos de uma comarca do interior, sempre poderíamos esperar que
Pizzolato, que não tem direito a fóro privilegiado, poderia apelar para uma segunda
instância, ou seja, para o Supremo. Mas não. Ele foi lançado diretamente para o
último círculo do inferno, sem esperança de redenção!
Temos, portanto, uma situação de absoluta ironia. O julgamento vendido à
sociedade como uma vitória da ética sobre a política foi, na verdade, um espetáculo
grotesco de desonestidade, tanto por parte da procuradoria quanto por parte de
ministros do STF.
Joaquim Barbosa, pintado pela revista Veja como o “menino que mudou o Brasil”,
entrará para história como um dos mais incompetentes e desonestos juízes que já
passaram pelo Supremo Tribunal Federal. A responsabilidade de Barbosa é
particularmente grave porque ele acompanhou os inquéritos desde o início, antes
mesmo de se tornarem a Ação Penal 470. Foi dele a decisão de manter toda a
documentação fora do alcance dos próprios ministros do STF, até pouco antes do
julgamento, de maneira que estes, sem tempo hábil para estudar a contento o
processo, inclinaram-se a seguir a orientação do relator, ou seja, o próprio Joaquim
Barbosa.
E agora, que os embargos trazem à tôna um oceano de inconsistências, mentiras e
arbitrariedades, o próprio STF se vê numa sinuca de bico. Assistimos a uma
interessante mudança nos ventos. O barquinho dos réus, que se dirigia
aceleradamente na direção da cascata, onde se despedaçaria nas pedras lá embaixo,
prendeu-se a um galho na margem e pode vir a ganhar proteção de uma rocha logo à
frente.
O que eu temo, contudo, é que a sociedade se contente com uma migalha: que os
embargos façam os ministros reverem as penas de Dirceu e Genoíno, que os dois não
sejam encarcerados em regime fechado ou mesmo semi-aberto; mas os outros réus
sejam lançados aos leões para satisfazer o circo romano da opinião publicada. Não
penso apenas em Pizzolato, mas naquelas secretárias, algumas condenadas a penas
superiores a conferidas a homicidas confessos. O que elas têm a ver com as
negociatas políticas dos partidos ou, pior, com a trama ficcional inventada pela
acusação e aceita pelo STF?
Estamos na Roma Antiga ou no Brasil do Século XXI?
A luta da sociedade, hoje, não é apenas evitar o dano político causado pela prisão,
absurda e injusta, de José Dirceu, mas para salvar a honra do Supremo Tribunal
Federal (STF) da vergonha histórica de pactuar com um golpe. Nos colégios e
universidades, os professores já estão tendo que oferecer uma versão do que foi o
mensalão. O Ministério da Educação terá que patrocinar livros de história que tratam
do assunto. O que ensinaremos?
Lembro de Gilmar Mendes, com sua boca mole, vociferando em frente às câmeras
da TV Justiça: “O que fizeram com o Banco do Brasil?” Pois é, melhor seria se
perguntar: “Meu Deus, o que fizeram com o STF?”
O governo federal se manteve até agora intimidado, assistindo a tudo de camarote,
mas não poderá fugir da luta final. Tem de investir pesado na disseminação das
reportagens de Raimundo Pereira. Tem obrigação moral, educativa, de oferecer o
outro lado dessa história. Sabemos, no entanto, que o mensalão teve como objetivo
justamente pôr um cabresto no governo. Conseguiu. Jamais nenhum ministro de
Estado protestou, de maneira clara, contra o desequilíbrio na cobertura do mensalão.
Alguns, ao contrário, inicialmente até tentaram fazer do caso “uma página virada”,
como se fosse natural, em pleno século XXI, cometermos sacrifícios humanos em
prol de um projeto político.
O que, aliás, nem é o caso. O principal partido de oposição, o PSDB, incorporou de
vez todas as características do antigo udenismo. Diante de um cenário econômico
estável, com pleno emprego e salários em alta, o presidenciável Aécio Neves tem
aparecido na TV se promovendo como o legítimo representante da ética na política.
Em 2012, vimos José Serra atacar seu adversário mostrando imagens de Dirceu na
televisão.
A desconstrução da farsa, portanto, deve ser feita não apenas em nome da verdade
e da justiça; também cumpre um objetivo político. O povo brasileiro rechaçou um
projeto que fracassou; não é justo que seja ludibriado a abraçá-lo novamente induzido
por uma mentira disfarçada de “ética”. Não há nada de ético na condenação de
inocentes. Ao contrário, se a corrupção política é um mal que corrói o
desenvolvimento, a desonestidade judiciária desequilibra a democracia e mina o
próprio Estado de Direito.
Com base nos documentos que temos à nossa disposição, estamos tranquilos que a
história julgará os fatos com imparcialidade, e virá à tôna a iniquidade e covardia dos
procuradores gerais e de alguns ministros do STF. O que nos preocupa, no entanto, é
algo relativo à brevidade da vida humana. Por quanto tempo o STF, por submissão a
interesses políticos e midiáticos, inflingirá sofrimento a réus inocentes? Por quanto
tempo os juízes pretendem interferir na vida política do país mantendo acesa a chama
de uma mentira?
‘
Concordo com Paulo Moreira Leite, autor de um excelente livro sobre o tema, de
que é uma ilusão achar que teremos “a volta do cipó de aroeira sobre o lombo de
quem mandou dar”, no caso do mensalão tucano. Até porque não interessa ao Brasil
que as arbitrariedades contra os réus do mensalão sejam chanceladas através de uma
repetição da mesma injustiça com réus ligados ao tucanato. Isso não deveria
acontecer, e não acontecerá. Os réus tucanos serão julgados em duas instâncias, e o
julgamento foi devidamente desmembrado. Serão julgados com calma e objetividade,
sem nenhum clima de linchamento.
A volta do cipó não será contra os tucanos. Será contra as arbitrariedades,
leviandade, incompetência e desonestidade dos ministros do STF, caso não façam
uma revisão total da Ação Penal 470. Joaquim Barbosa se tornou herói dos saguões
de aeroporto, mas a História não precisa viajar de avião. A História viaja a pé,
descalça, sentindo a terra e contemplando sem pressa a paisagem. Demora mais a ir
onde quer, mas chega conhecendo minuciosamente os detalhes, desmascarando
hipócritas, desnudando interesses, derrubando farsas.
Esperarei ansiosamente por esse encontro, que assistirei comendo pipocas, entre
Joaquim Barbosa e a História…
O maior fiasco da história
A pedrinha de David
Desde o início, o processo do mensalão ofereceu um triste espetáculo de mentiras,
traições, covardia. O julgamento no STF não foi diferente. Os ministros mais famosos
por seu respeito ao garantismo e à letra da Constituição mancharam sua própria
história ao capitularem à infame pressão de uma mídia notoriamente engajada politica
e partidariamente.
Entretanto, a história registrará ao menos um exemplo de heroísmo. Um heroísmo
prosaico, delicado, feminino, composto apenas de inteligência, amor, lealdade e
desejo de justiça.
Falo da gentil e doce Andrea Haas, arquiteta e esposa de Henrique Pizzolato.
Quando a história definitiva do julgamento for escrita, seu nome não poderá ser
esquecido como aquela que lançou a pedrinha que ajudou a derrubar um dos homens
mais poderosos do país, o atual presidente do Supremo Tribunal Federal, Joaquim
Barbosa.
A ironia é que diversos réus contrataram os escritórios de direito mais competentes
da America Latina, incluindo Marcio Thomaz Bastos, um dos maiores criminalistas
brasileiros, mas ao cabo foi Pizzolato, o réu mais frágil financeiramente (seus
advogados, embora bons, trabalham praticamente de graça), quem teve a defensora
mais combativa e mais astuta. Sua própria esposa.
Quando o mundo inteiro parecia desabar sobre a cabeça do casal, Andrea Haas
começou a estudar o caso por conta própria. Sozinha, elaborou para seu marido a
mais contundente defesa que um réu jamais sonhou ter. Quase todas as reportagens,
documentos e raciocínios lógicos que hoje comprovam, definitivamente, a inocência
de Pizzolato, ex-diretor de marketing do Banco do Brasil, e derrubam os pilares de
toda a absurda trama criada pela Procuradoria Geral da República, nasceram da luta
de uma mulher indignada pela condenação injusta do seu companheiro de toda uma
vida, de um homem cujos anseios por justiça social, integridade e coragem,
acompanhou e admirou desde a mocidade. (Leia a emocionante carta de Andrea a seu
marido: http://www.ocafezinho.com/2013/06/02/carta-de-andrea-a-pizzolato/).
A última pedrinha com que este David de saias derrubou o Golias – esse estamento
híbrido formado por mídia, oposição conservadora e figuras desqualificadas da
procuradoria e STF – talvez tenha sido lançada esta semana, com a divulgação em
larga escala de uma denúncia gravíssima. Na verdade, essa denúncia apenas completa
(ou chega bem perto de completar) um quebra-cabeça, cujo desenho Andrea Haas já
conhece há tempos.
A denúncia consta de recente artigo de Maria Inês Nassif
(http://www.ocafezinho.com/2013/06/03/mensalao-barbosa-e-procurador-
esconderam-provas/). A jornalista do site Carta Maior denuncia, com base em
documentos coletados e ordenados logicamente por Andrea, o então procurador geral
da república, Antônio Fernando de Souza, e o relator do processo antes do mesmo se
tornar a Ação Penal 470, Joaquim Barbosa: eles sabiam da inocência de Pizzolato e,
portanto, da inconsistência da tese de acusação, bem antes da denúncia ser discutida e
aceita pelo Supremo Tribunal Federal. Não apenas sabiam da existência desses
documentos, como os esconderam deliberadamente.
Os leitores então me perguntam: e agora, Miguel? O que acontece? É possível
anular Ação Penal 470? Dê sua opinião, por favor!
Diante de inépcia tão flagrante, acho que é possível, sim, anular a Ação Penal 470.
E se não for, agora há elementos mais consistentes para se levar o caso a uma corte
internacional.
É óbvio, no entanto, que não será fácil. Como no caso Dreyfus, na França, as
pessoas e entidades envolvidas na acusação enredaram-se tão profundamente nessa
teia de mentiras que será difícil encontrar uma saída “honrosa”. Nada melhor do que
um divertido ditado popular para definir a situação em que se encontra o STF: um
mato sem cachorro.
Quem será o cachorro a tirar o STF da enrascada em que se meteu, ao se submeter
covardemente ao clima de linchamento criado pela mídia?
Como explicar à nação que o tipo de prevaricação cometido pelo Procurador, por
Joaquim Barbosa e por alguns outros ministros foi bem pior do que os crimes
eventualmente cometidos pelos réus? Muito pior, porque se houve crime (e não posso
saber se os réus são inocentes em tudo), com certeza não foi aquele da tese da
acusação, enquanto o procurador e Joaquim Barbosa pactuaram com um golpe
branco. Os quarenta réus acusados pela denúncia da Procuradoria foram escolhidos
da forma mais odiosamente arbitrária e tendenciosa entre os 126 relacionados na
CPMI dos Correios. A trama foi discutida e escrita primeiro; depois foram colhendo
somente os réus, testemunhas e documentos que podiam corroborá-la. Até mesmo a
dona lógica foi posta de lado quando se interpunha no caminho da acusação.
Agora temos provas de que, antes da aceitação da denúncia pelo plenário do STF, o
procurador geral da república e Joaquim Barbosa conheciam o Laudo 2828 e outros
documentos que inocentavam Pizzolato (e, repito, derrubavam toda a Ação Penal
470), e não só os esconderam dos demais juízes e advogados de defesa, como ainda
mentiram descaradamente sobre seu conteúdo.
Vamos focar um pouco na questão das datas, porque elas são fundamentais para se
visualizar o grau de sordidez da procuradoria e do ministro Joaquim Barbosa.
O Laudo 2828 (http://www.megacidadania.com.br/laudo-28282006-instituto-
nacional-de-criminalistica-da-pf/) é fruto de uma investigação da Polícia Federal
junto ao BB e à Visanet, feita a pedido da própria Procuradoria e deferido por
Joaquim Barbosa, ao final de 2005. A PGR, no entanto, estranhamente, não aguarda a
conclusão do laudo, que acontece em dezembro de 2006, para apresentar a denúncia,
em março de 2006. O laudo foi mantido em segredo, inclusive dos próprios ministros
do STF (à exceção de Barbosa), antes e durante a aceitação da denúncia, que ocorreu
em agosto de 2007. Só foi anexado à Ação Penal em novembro de 2007, meses
depois do STF aceitar (com a faca no pescoço, conforme disse Lewandowski) uma
denúncia inepta, e dois dias depois da publicação do seu acórdão. Os ministros,
quando julgaram a validez da denúncia, não tiveram acesso a um dos documentos
mais esclarecedores da Ação Penal.
Hoje temos à nossa disposição documentos contendo datas e carimbos que
comprovam a postura desonesta da PGR e de Barbosa, e há uma novidade. Há apenas
algumas semanas, ficamos sabendo que os mesmos atores (PGR e Barbosa) usaram
de um artifício maquiavélico para esconder os documentos que “atrapalhavam” a
sustentação da tese do mensalão, entre eles o laudo 2828. Não só isso. Tudo aquilo
que negaram aos réus petistas, concederam aos “tucanos”. E nem falo dos tucanos do
mensalão mineiro, e sim dos servidores do BB, nomeados na gestão FHC, arrolados
nas mesmas acusações que se imputaram a Pizzolato, réus num inquérito em separado
conduzido na 12ª Vara de Brasília: desmembramento (não entraram na Ação Penal
470), julgamento em primeira instância, e direito a uma investigação sigilosa, sem
exposição pública.
Quando se descobriu a existência desse inquérito, soube-se também de outra
investigação em andamento no STF, de número 2474, para a qual desde o início
foram encaminhados documentos, entre eles o Laudo 2828, que poderiam criar um
estorvo para a Ação Penal 470. O diálogo entre o PGR e Barbosa (registrado nos
autos), tentando explicar porque documentos e réus, referentes aos mesmos crimes
que se imputavam a réus da Ação Penal 470, deveriam figurar em inquéritos em
separado, entrará para a história como exemplo “supremo” de cinismo judiciário.
Diz Barbosa, em resposta ao pedido do PGR para “desmembrar” o inquérito
envolvendo não-petistas e documentos incômodos, no dia 10 de outubro de 2006:
“(…) defiro o pedido para que os (novos) documentos sejam autuados em
separado, como (novo) inquérito. …Por razões de ordem prática, (para não) gerar
confusão…”
Não gerar confusão… Ou seja, não atrapalhar os planos de dar consistência a uma
tese caduca desde a origem, e acusar inocentes.
Outros réus do BB, arrolados na mesma acusação que Pizzolato, ficaram a salvo do
linchamento público promovido pela mídia. E os documentos que poderiam trazer
obstáculos à condenação dos réus da Ação Penal 470 foram guardados sob o tapete de
inquéritos secretos.
Em termos de cinismo e inépcia, contudo, nada pode superar a própria denúncia de
Antônio Fernando de Souza, encaminhada ao STF, e aceita pela maioria dos
ministros. O PGR afirma que “Pizzolato em atuação orquestrada, desviou vultosas
quantias do Fundo de Investimento Visanet, constituído com recursos do Banco do
Brasil” e apresenta como principal prova documental uma auditoria feita pelo Banco
do Brasil.
A acusação é do tipo barbosiano: contém tantos erros numa só frase que mereceria
se tornar um editorial do Globo.
O nome do Fundo não é Fundo de Investimento Visanet. Fundo de Investimento
supõe um cabedal com sócios-proprietários. O nome verdadeiro é Fundo de Incentivo
Visanet, e os documentos comprovam que pertence exclusivamente à empresa
Visanet. A auditoria mencionada cobre o período de 2001 a 2005. Pizzolato foi
nomeado apenas em fevereiro de 2003; o petista é também culpabilizado, portanto,
por um período (2001 e 2002) no qual sequer trabalhava na diretoria de marketing.
Não há nenhuma prova de “ação orquestrada”. Pizzolato não tinha nenhum poder de
ingerência sobre os recursos em questão. O cargo de diretor de marketing, na
hierarquia do Banco do Brasil, era secundário; e os que tinham alguma influência
sobre a gestão do fundo Visanet, que era dinheiro privado, eram outros servidores,
não Pizzolato, conforme atesta o laudo 2828, pedido pelo próprio procurador e
deferido por Joaquim Barbosa.
Quando encaminha o Laudo 2828 ao STF, já depois que a denúncia havia sido
aceita, o procurador mente deslavadamente:
“Em que pese seu teor ser de leitura obrigatória…, alguns trechos do Laudo
2828/2006 merecem destaque, pois confirmam a imputação feita na denúncia de que
Pizzolato e Gushiken beneficiaram a empresa de Marcos Valério.”
Mentira. O Laudo 2828 sequer menciona o nome de Pizzolato ou Gushiken.
Como se não bastasse, hoje sabemos que Barbosa, durante o julgamento, cometeu
um erro crasso sobre a data da morte de um dos réus. Mais uma prova de sua
incompetência e desonestidade. Em sua ânsia de impor a pena mais severa possível a
José Dirceu, uma ansiedade indigna de um juiz, Barbosa informou ao plenário que
José Martinez, então presidente do PTB, ainda estava vivo em dezembro de 2003;
ele havia falecido em setembro. A informação foi aceita e usada para que as penas
impostas a Dirceu fossem mais pesadas, visto que, em dezembro de 2003, a
legislação brasileira, por orientação de Lula, se tornara mais severa contra a
corrupção. E olha que o ministro Marco Aurélio Mello observou, enfaticamente, que
a data era importante justamente por causa disso.
http://youtu.be/fzsYd5g-k7U
Curioso notar que nenhum meio de comunicação, apesar das centenas de repórteres
e especialistas diuturnamente analisando e acompanhando o julgamento, que
acontecia ao vivo na TV Justiça, identificou o vexame de Barbosa.
Agora, mais que nunca, cresce a convicção de que a população brasileira foi mais
uma vez vítima. Promoveu-se, em canais de tv que são concessão pública e que
recebem bilhões de reais de publicidade pública, uma mentira ao povo, de que o
julgamento seria uma vitória “histórica” contra a corrupção. Foi o contrário.
Testemunhamos o maior fiasco da história do STF, uma capitulação vergonhosa ao
poder da mídia, ao conservadorismo e a todos os setores derrotados pelo sufrágio
popular. O processo conhecido por mensalão foi a oportunidade para se obter uma
revanche à vitória eleitoral de Lula em 2002, e para isso arrolaram-se todos os
truques, todas as mentiras, todas as armas ainda à disposição do conservadorismo.
Derrotar essa mentira, ou este “mentirão”, conforme bem denominou a corajosa
jornalista Hildegard Angel, é uma tarefa coletiva de todos os que lutam por justiça.
A corrupção tem de ser combatida duramente, e temos que aprimorar
constantemente nossos hábitos políticos, mas jamais conseguiremos isso condenando
inocentes e chancelando farsas.
A conspiração
O papel da mídia
Uma das virtudes fundamentais no espírito de um jornalista é a ojeriza a teorias de
conspiração. É uma virtude, no entanto, que beira um vício, porque o mesmo
pensamento racional, a mesma objetividade, que nos aconselha a manter distância de
discursos paranóicos e teorias de conspiração, nos obriga a aceitá-los quando estamos
diante de documentos e provas irrefutáveis.
A divulgação de milhares de documentos secretos da diplomacia norte-americana,
pelo Wikileaks, consistiu, por exemplo, numa inesquecível vitória moral para
milhares de pessoas que acusavam, há décadas, os EUA de promoverem golpes de
Estado em países do terceiro mundo. Na época, um divertido argumento fez sucesso
nas redes sociais: “sabe aqueles malucos que viviam culpando a CIA por tudo?
Estavam certos.”
A bem da verdade, não foi apenas o Wikileaks. Algumas leis que obrigam a
divulgação de documentos do governo americano com mais de trinta ou quarenta
anos, também ajudaram.
Mas ser jornalista não é dizer a verdade. Essa é a função, talvez, de filósofos.
Jornalistas divulgam documentos e fatos concretos, e a verdade que buscam é apenas
aquela que podem comprovar com base neles. O uso da lógica, porém, não é vetado
aos jornalistas. Nem a imaginação, desde que usada com parcimônia.
No processo do mensalão, todavia, a imaginação se tornou a virtude fundamental
do jornalismo político. Reportagens, colunas, análises, passaram a se descolar cada
vez mais de qualquer prurido factual e inagurou-se uma nova era quase psicodélica na
imprensa brasileira. Teorias eram montadas e desmontadas sem qualquer escrúpulo.
O fato de inúmeras denúncias serem desmentidas no dia seguinte não tinha mais
importância. Um clima de total liberdade de expressão enfim se instalara nas
redações nacionais.
Quando os historiadores se debruçarem, daqui a alguns anos, sobre o mensalão, o
tradicional rigor acadêmico possivelmente lhes obrigue a dividir o tema em várias
seções: política, midiática, partidária, jurídica.
Em meu modesto esforço para escrever sobre um caso ainda em curso, e portanto
ainda influenciado pelo clima barra pesada, sufocante, de tribunal, eu vou tateando
em todas as áreas, mas a corda que uso para não cair são documentos. Por isso tenho
sido repetitivo quanto ao caso Pizzolato. É que me parece o caso mais surreal,
kafkiano e… documentado. A sua inocência é documentada.
Se a grande mídia fizesse uma ampla reportagem sobre os erros na condenação de
Pizzolato, mostrando os documentos, apresentando-os a juristas conceituados e
pedindo sua opinião, testemunharíamos uma sumária desmoralização da Ação Penal
470. Aliás nota-se hoje um barulhentíssimo silêncio nos grandes jornais e nas redes
de TV sobre o debate tão aceso nas redes sociais e blogs, sobre os erros do STF. A
ruptura da mídia com a sociedade se tornou completa. O artigo da Inês Nassif, por
exemplo, abordando a suja história do Laudo 2828, que inocenta Pizzolato, tornou-se
imediatamente o mais lido em todos os principais blogs políticos no país, mas o
assunto é virtualmente proibido na grande imprensa. A mesma coisa vale para o erro
crasso de Barbosa quanto a data da morte de José Martinez.
A nossa presidenta gosta de repetir o clichê supostamente pró-democrático, sobre
preferir o barulho da imprensa ao silêncio da ditadura. É uma frase bonita, mas a
verdade é que o único barulho que a imprensa quer ouvir, no caso do mensalão, é o
da tampa de um caixão se fechando. A nossa mídia não é boba. O espaço à
divergência se dá apenas em questões não estratégicas. E o mensalão é um assunto
absolutamente estratégico para os grandes grupos de mídia, que se tornaram,
assumidamente, o grande partido do conservadorismo brasileiro.
Entretanto, mesmo durante o julgamento, quando o assunto ocupava, diariamente,
várias páginas de jornal, e hegemonizava o noticiário televisivo, havia muitos mais
fogos de artifício do que conteúdo. Não havia um debate sério sobre o tema. O tal
“barulho da imprensa”, tão ao gosto da nossa chefe de Estado, era apenas um ruflar
histérico dos tambores da oposição. Os réus, porém, não eram só aqueles perfilados
na denúncia da Ação Penal 470, mas toda a sociedade, incluindo os elementos
raivosos que pagavam anúncios no Facebook para promover páginas repletas de
indizível rancor. Todos são vítimas do maior processo de manipulação da informação
de que temos notícia.
O mensalão foi o canto do cisne da grande mídia brasileira. O escândalo é
deflagrado exatamente no momento em que a internet ainda não havia sido
“apropriada” pela sociedade. Os únicos blogs políticos estavam em mãos da grande
mídia de oposição: Noblat e Reinaldo Azevedo. A imensa ágora pública, caótica e
democrática em que se tornou a internet brasileira não havia se constituído nos anos
de 2005 e 2006. A imprensa reinava sozinha. Se hoje ela ainda tem um poder
descomunal para influenciar o espírito nacional, naquela época esse poder era quase
absoluto.
Uma das seções mais importantes no estudo do processo do mensalão, portanto, é o
papel da mídia. É um papel que ainda está sendo desempenhado. Hoje, sexta-feira 07
de junho, uma notícia deixou inteiramente perplexa a grande nação de internautas: o
único jornalista convidado pelo ministro Luiz Fux para dar uma “aula pública” aos
ministros do STF sobre financiamento de campanha será Merval Pereira, colunista e
membro do conselho editorial do jornal O Globo.
A promiscuidade entre a grande mídia, em particular a Rede Globo, e o STF,
parece não encontrar limites. Até mesmo os juízes mais resistentes à pressão da
mídia, como Lewandowski, ligavam para Merval, no dia seguinte a sessões, para
“explicar” seus votos. Joaquim Barbosa, por sua vez, liga regularmente para Merval
para justificar seus destemperos.
E Ayres Britto escreveu o prefácio do livro de Merval Pereira sobre o mensalão
enquanto ainda era presidente do Supremo Tribunal Federal (STF)!
Se a mídia é um poder terrível em qualquer parte do mundo, uma concentração
absoluta numa só empresa empresta-lhe um ar perigosamente antidemocrático.
A maior parte da “pressão social” alardeada pela grande mídia, e usada pelos
próprios ministros do STF como justificativa para a incrível criatividade com que se
portaram no julgamento da Ação Penal 470, a ponto de ser qualificado, de maneira
promissoramente corajosa pelo mais novo ministro, Luís Roberto Barroso, de “um
ponto fora da curva”, veio da Rede Globo. Com toda certeza, os ministros se
portavam no tribunal com um olho não na população brasileira, não na História, mas
em como seriam caricaturizados no Globo no dia seguinte. As notinhas de Ancelmo
Gois sobre Joaquim Barbosa, alardeando sessões de aplauso no metrô de Ipanema e
shows da Marisa Monte, e mencionando, orgulhosamente, a criação de um site para
lançar sua candidatura presidencial, parecem ter surtido um efeito narcótico poderoso
no espírito de todos os juízes. Da mesma maneira, a mídia incitava agressões verbais
ou mesmo físicas contra Lewandowvki, único ministro que ousou se contrapor, e
mesmo assim timidamente, à agressividade inacreditável do relator.
No início do texto, eu falava na ojeriza à teorias de conspiração como importante
virtude jornalística. Mencionei também que esta virtude pode se tornar um vício se
nos recusamos, mesmo diante de evidências, em aceitar a existência de uma
conspiração. O que vimos no processo do mensalão nos traz esse dilema. Todos os
fatos, documentos, ações, discursos e posturas, apontam para uma conspirata política.
Uma conspirata da qual participaram os dois procuradores gerais da república,
Joaquim Barbosa, a oposição, a mídia. O próprio governo, vergado, intimidado,
aterrorizado com a possibilidade de um golpe, talvez tenha pactuado, em parte, com
tudo isso, sacrificando seus próprios companheiros em prol da sobrevivência. Enfim,
estamos diante de um jogo político extremamente barra-pesada.
Mesmo com evidências, porém, este é um terreno que devemos trilhar com
cuidado. Não podemos largar a corda que nos impede de cair no abismo. O mensalão
ainda é uma história cheia de segredos, desagradáveis para todos os lados. É um
processo e um julgamento ainda em curso. No próximo capítulo, faremos algumas
incursões na seara propriamente política da nossa história, comentando seus
desdobramentos presentes e futuros.
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O Supremo Mentirão: a história de uma farsa contada através do caso Henrique Pizzolato

  • 1. O Supremo Mentirão A história de uma farsa, contada a partir do caso de Henrique Pizzolato Por Miguel do Rosário
  • 2. A fuga Três e quinze da manhã do dia 10 de setembro de 2013. A barulhenta Copacabana dorme em silêncio, cortado intermitentemente por carros esparsos cruzando as avenidas, latidos de cães mimados e gritos misteriosos, não se sabe de medo, loucura ou prazer. À porta de um grande apartamento na Domingos Ferreira, situado no último andar de um edifício neoclássico, um casal se despede às lágrimas. Andrea Pizzolato, enfim, empurra o marido com as mãos. “Vai, vai, vai!” Henrique Pizzolato entra no elevador, junto com um amigo, a que darei o nome fictício de Leo, segurando apenas uma sacola de plástico, dessas de supermercado, com três garrafas de água, de dois litros cada. A mochila, com algumas cuecas e meias, e uma camisa sobressalente, já estava no carro, onde também já haviam guardado um cacho de bananas e cereais. Quando as portas pantográficas do elevador se abrem, os dois saem e caminham até o portão. Não há zelador na portaria a esta hora. Henrique contempla o saguão do edifício por alguns segundos, como quem lança o último olhar para um lugar que talvez nunca mais voltará a ver. A mesa do zelador, as pinturas nas paredes, os tapetes. Era uma bela entrada, austera e elegante. Atravessam o portão como quem se esgueira para fora de uma prisão de segurança máxima. A situação era um tanto ridícula, conta Leo, rindo. Agiam como dois espiões atrapalhados de um filme de comédia. Não tinham noção nenhuma de como agir. Então segue para o lado contrário de onde estava o carro, pensando vagamente em “despistar” possíveis agentes da polícia. Dão a volta no quarteirão e chegam ao carro pelo outro lado. Leo estacionara na Avenida Atlântica. Entram no carro, sempre em silêncio, dão partida e iniciam uma viagem que só terminaria em Dionisio Cerqueira, 1.408 quilômetros depois. Segundo Leo, não havia exatamente um “plano de fuga”. Ele explica que Pizzolato decidiu fugir do país exatamente um dia antes, na madrugada do dia 9. Andrea e Henrique haviam recebido quatro ou cinco amigos em casa, para uma reunião sobre a situação política e jurídica de Pizzolato. O Supremo Tribunal Federal agendara para o dia 10 de setembro o debate sobre a admissibilidade dos embargos infringentes. Seja qual fosse o resultado, havia expectativa de que a prisão de Henrique aconteceria imediatamente após a votação. Se aceitassem que os
  • 3. infringentes ainda existiam, Joaquim Barbosa poderia determinar que os réus que não tivessem este direito, como Pizzolato, fossem presos logo. Se os infringentes caíssem, seriam todos presos. O dia 7 de setembro, dia da independência, já havia transcorrido sob intensa expectativa de uma ordem de prisão para Pizzolato, pois ele já entendera que Barbosa queria usar uma data simbólica para mandar prender os réus do mensalão. Não era a primeira vez que experimentava essa tensão. Ao fim de 2012, Pizzolato chegara a fazer uma mochila, esperando a chegada da Polícia Federal. “Foi um trauma terrível”, relata Leo. Houve ainda outro “prende / não prende” em julho de 2013, pouco antes do recesso de inverno do STF. Após a tensão do 7 de setembro, portanto, o casal Pizzolato tinha tomar uma decisão sobre o que fazer. Desde alguns meses que eles encaravam tudo relacionado ao mensalão e a sua condenação como uma grande operação política, onde o principal adversário não era exatamente o Judiciário, mas a mídia. Era das principais empresas de mídia que vinham os ataques que então se materializavam em decisões da Procuradoria Geral da República e de ministros do STF. O casal recebia, regularmente, amigos e militantes que vinham discutir a conjuntura política, e de que maneira se poderia reagir aos ataques da mídia. Naquela noite de 8 para 9 de setembro, o clima ficou pesado. Os amigos que chegavam só falavam em prisão, e sugeriam que Pizzolato pedisse asilo político em alguma embaixada, de preferência de uma república latino-americana governada pela esquerda, como Bolívia ou Equador. Politicamente, contudo, a decisão não tinha sentido. Pizzolato e esposa estavam desesperados. Despedem os amigos e decidem fazer uma outra reunião para determinar o que fazer. “Eles perguntaram minha opinião”, diz Leo, e eu respondi que, fosse eu, me entregaria. Pizzolato chorava. Então Andrea interveio: “Vou fazer igual vocês, homens, fazem. Vou botar o pau na mesa”. E deu um tapa bem forte na mesa. “Ele não vai se entregar!” A decisão estava tomada. Quem dava as ordens era Andrea. E ela havia decidido. Andrea voltou-se para Leo e perguntou: “Então você não vai nem ajudar?” Leo rebateu rapidamente: “Absolutamente! Uma coisa não tem nada a ver com a outra. Sou contra fugir, mas já que a decisão é esta, eu vou ajudar sim. E digo o
  • 4. seguinte: isso tem de ser feito já!” “Já quando?”, indagou Andrea. “Amanhã”. “Mas ele tem que ligar para alguém antes, para ajudá-lo a atravessar a fronteira”. “Vamos fazer isso agora. Vamos até o centro, ligar de um orelhão”. E foram. No dia seguinte, Leo voltou à casa de Pizzolato para darem início à operação. Voltando à noite da fuga, Henrique e Leo, com este último ao volante, zanzaram por mais de uma hora pela zona sul, sempre procurando despistar um eventual seguidor. Parecia mais a fuga de Mr.Been. Por fim, pegaram o túnel velho, passaram pelo centro da cidade, chegaram ao Maracanã, e seguiram junto à linha do trem, pela avenida 24 de maio. Penetraram no sertão profundo do subúrbio carioca, passando por Madureira e outros bairros, até chegarem a São João de Meriti, de onde alcançaram a Dutra. Pizzolato vestia calça jeans, tênis, uma camisa de manga curta e tinha um casaco pendurado no ombro. Mantinha-se em silêncio absoluto. A tensão era total. Leo fumava um cigarro atrás do outro. Ambos só relaxaram quando chegaram à Dutra. Daí começaram a conversar. Fizeram uma parada rápida num posto de gasolina obscuro, na altura de Itatiaia. Nem saíram do carro. Não compraram nada para comer, nem foram ao banheiro. Apenas encheram o tanque e prosseguiram. A segunda parada seria apenas no Paraná, depois de terem passado por São Paulo. Ainda no Paraná, pegaram trânsito pesado, motivo pelo qual chegariam uma hora atrasado ao encontro combinado com um amigo de Pizzolato, em Dionisio Cerqueira, que iria lhe ajudar a atravessar a fronteira com a Argentina. Já na Argentina, Pizzolato seguiria para Buenos Aires, onde compraria um bilhete aéreo usando o cartão de crédito de sua mulher. Desembarcaria em Barcelona, Espanha, de onde seguiria de trem até o norte da Itália, onde iria se estabelecer. Essa é a história da fuga de Pizzolato. Uma aventura e tanto para um burocrata que jamais correu grandes riscos na vida.
  • 5. A história de uma farsa Alguns livros já foram escritos sobre o mensalão enquanto processo político, outros tantos sobre o julgamento. Entramos agora, porém, numa outra fase bibliográfica, muito mais decisiva. Junto com as últimas defesas dos réus (os embargos), vieram à luz uma série de documentos até então subtraídos à consulta pública. Estes documentos vieram se somar à perplexidade, até hoje não superada, em relação ao sinistro circo que assistimos em 2012, quando juízes da mais alta corte rasgaram os princípios básicos do direito moderno, do bom senso e da própria jurisprudência para chancelarem um justiçamento que interessava a poderosos agentes do conservadorismo político nacional. A mentira segue o padrão de uma doença. Ela fere o corpo com enorme virulência num primeiro momento; em seguida, o uso dos remédios certos e, sobretudo, a entrada em ação de anticorpos, gera um período de convalescença; por último, o corpo humano pode sair fortalecido. Digo “pode sair”, porque é preciso que tenha, efetivamente, vencido a doença; em caso contrário, poderá sofrer uma reincidência muito mais lesiva, ou mesmo fatal. O processo do mensalão caminha por duas vias, que às vezes se tocam, em outras se afastam, mas desde o início interagindo intensamente. Numa, há o julgamento nas instituições. Noutra, na opinião pública. Nas instituições (STF e, eventualmente, alguma corte internacional), o julgamento se aproxima do fim de um ciclo. Na opinião pública, a última palavra não é dada por nenhum ajuntamento burocrata, doméstico ou estrangeiro, e sim por esta vetusta, calma e irônica senhora chamada História. Neste campo, o julgamento ainda está só começando. Agora sim, as pessoas têm acesso aos documentos. Não documentos periféricos, referentes a detalhes do processo, mas documentos estratégicos, centrais, que determinam e embasam todas as acusações e todas as defesas. Agora sim, terminado o ruflar histérico de tambores que testemunhamos em 2012, num julgamento realizado em paralelo a um processo eleitoral, podemos analisar o processo do mensalão com serenidade. Podemos escutar as versões dos réus, ler os documentos, conversar francamente sobre o que realmente aconteceu naquele período. Temos ainda um mínimo de distanciamento histórico para entender uma série de coisas. Mais importante que tudo: entendemos hoje os resultados profundamente danosos à democracia se não levarmos esse debate às últimas consequências. É aí voltamos a nos encontrar com o que existe de mais sólido em nós mesmos. Não apenas queremos saber a verdade, a verdade nua e crua: nesse ponto, queremos agir com a seriedade que faltou aos juízes. Queremos ler, reler e analisar os documentos, alguns deles só há pouco disponibilizados ao público. São estes
  • 6. documentos que nos dão base para assumir uma postura bem diferente a partir de agora. Não mais na defensiva. Queremos encetar um contra-ataque político que vise cobrar uma parte, ao menos, do profundo dano moral que as arbitrariedades causaram a milhões de brasileiros e à democracia. Não temos interesse de eximir o PT dos erros e dos crimes que tenha cometido. Mas a questão já não é o PT. A questão, hoje, é a discussão da verdade, a denúncia do arbítrio, da mentira, e do insuportável risco à democracia que é a conversão do Supremo Tribunal Federal num instrumento político e partidário manipulado por interesses econômicos obscuros. Os documentos provam que a teoria do mensalão não se sustenta. Podemos admitir, com profunda tristeza, que um STF corrompido pela vaidade e pela chantagem, possa enveredar pelo arbítrio e agir na contramão da ética e da legalidade. Isso nos deixa consternados e preocupados, mas um processo político ainda é algo maior que tudo isso. O que não deixaremos passar, jamais, é a manipulação da história. Os ministros do STF, a mídia, a procuradoria geral da república serão denunciados às futuras gerações como protagonistas de uma vergonhosa página da política brasileira. A Constituição Brasileira não é apenas um punhado de leis. Ela encarna um espírito, uma visão de mundo, um destino. E nisto houve uma traição imperdoável dos juízes aos valores encorpados na Carta Magna. O PT não é santo. Houve caixa 2 nas campanhas de 2002, 2004, 2006, possivelmente em todas as campanhas petistas. O PT foi o único partido que assumiu francamente a culpa de fazer o que todos faziam: caixa 2. Mas o STF fez de tudo justamente para derrubar a teoria do caixa 2 e, contra todas as evidências documentais, produziu uma tese fictícia, sustentada sobre declarações vazias, testemunhos contraditórios e ilações descabidas. As maiores lideranças políticas de uma geração foram condenadas sem apresentação de nenhuma prova. A mídia conseguiu derrubar líderes eleitos para glorificar heróis no Ministério Público e no Judiciário – o que não seria exatamente um problema não fosse a quantidade constrangedora de erros crassos, contradições, injustiças, que caracterizaram o julgamento. Lembrando o ditado popular, é hora da onça beber água. Contra o arbítrio, vamos contrapor o debate democrático, à luz do dia, transparente, feito com serenidade, amparados em documentos. Eu farei a parte que me cabe como jornalista, blogueiro e intelectual: trabalhar duro, escrever, ponderar, analisar. O Paulo Moreira Leite escreveu um excelente livro sobre o tema, mas há um manancial de informações ainda não explorado e, sobretudo, não concatenado num conjunto.
  • 7. Acusações contra Pizzolato lembram Dreyfus e Kafka Pizzolato, o único “judeu” na diretoria do BB Para melhor entender um acontecimento que envolve pessoas, façamo-lo a partir do ponto-de-vista individual. Talvez possamos nos comunicar mais produtivamente se começarmos nossa história a partir de um personagem menos visado, como Henrique Pizzolato, ex-diretor de marketing do Banco do Brasil. Iniciar uma abordagem sobre os erros no julgamento do mensalão a partir de Pizzolato tem a vantagem de evitarmos, por enquanto, a furiosa politização provocada pelos nomes de Dirceu e Genoíno, os mais graduados na hierarquia petista. E as falhas inúmeras encontradas na denúncia contra Pizzolato tem o potencial de fazer ruir um edifício acusatorio cada vez mais condenado por suas deficiências estruturais. A história de Pizzolato lembra a saga do tenente francês Albert Dreyfus, pintada com tintas kafkianas. Dreyfus era o único judeu entre os oficiais suspeitos de uma traição a um governo estrangeiro, e por isso foi apontado, com base em provas falsas e ilações enviesadas, como culpado de espionagem. Era inocente, mas virou um símbolo máximo do ambiente de guerra midiática que tomara conta da França ao final do século XIX, quando políticos e donos de jornais disputavam a primazia de quem melhor manipulava a opinião pública. O ódio profundo nascido das lides entre dryfusards e antidreyfusards, e o proselitismo político que se fazia em torno da questão, nos remete à deliberada campanha udenista deflagrada por setores da mídia e da oposição quando se percebeu o uso político que se poderia dar aos escândalos de caixa 2 protagonizados por Marcos Valério e PT. O nosso Dreyfus é Henrique Pizzolato. Era o único petista numa diretoria só de tucanos, todos indicados para seus cargos na era FHC, numa instituição antes e hoje controlada e presidida por executivos identificados com o PSDB. Foi capturado a dedo. Era o único “judeu” no grupo. A maneira como tudo acontece, por sua vez, lembra uma trama de Kafka: um suceder frenético, galopante, ininterrupto de acusações vagas, mal formuladas, confusas, embora invariavelmente pesadíssimas porque expostas com grande sensacionalismo midiático. Como se um procurador e um juiz tivessem o poder de dizer que você é chinês, e provar isso, independentemente de seu passaporte ser brasileiro, você ter cara de brasileiro e falar português fluentemente como só um brasileiro poderia fazer. Não importa, você é chinês e pronto, decreta o juiz, batendo o martelo. Os jornais todos divulgam no dia seguinte, em manchetes garrafais, que ficou provada sua origem chinesa. E ai de você se quiser protestar. A acusação contra Pizzolato é simplesmente surreal. Diferentemente de Dirceu e Genoíno, que ao menos incorporam fantasmagóricas responsabilidades políticas pelo “esquema” de compra de apoio político, contra Pizzolato há uma acusação bem direta: de ter sido o responsável pelo desvio dos R$ 73,8 milhões que a Visanet pagou
  • 8. a DNA Propaganda. A denúncia serviria para caracterizar os recursos que Marcos Valério, um dos sócio da DNA, distribuiu a parlamentares, como dinheiro público, com isso enfraquecendo a tese de caixa 2 defendida pelos réus. Entretanto, os documentos comprovam quatro erros crassos na denúncia. A Visanet é privada; Pizzolato não tinha qualquer ingerência no contrato entre a empresa e a DNA Propaganda; ele nunca foi o responsável pela relação entre o banco e o fundo de publicidade da Visanet; os serviços de publicidade foram realizados. A DNA Propaganda, hoje praticamente destruída, não era uma agência fictícia. Era a maior agência de publicidade de Minas Gerais, detendo praticamente todas as contas das estatais mineiras, da Telemig (então controlada por Daniel Dantas); havia crescido à sombra do tucanato. Vinha ganhando mercado, obtendo prêmios locais e internacionais, incomodando grandes firmas de São Paulo. O contrato entre a Visanet e a DNA era perfeitamente legal. Uma empresa que opera no mercado de cartões de crédito contrata uma das maiores agências do país para realizar campanhas publicitárias. As campanhas são realizadas. As auditorias não encontraram nenhuma irregularidade nas campanhas. Há gravações e documentos que comprovam a sua realização. Quanto aos bônus de volume pagos pelos meios de comunicação à DNA Propaganda, os quais foram considerados, irresponsavelmente, por Joaquim Barbosa, como uma transferência indevida de recursos pertencentes ao BB, também não houve irregularidade. O pagamento de bônus de volume, apesar de eticamente questionável, é uma prática regulamentada no país, e configura uma relação totalmente privada entre meio e agência. Ou seja, entre uma empresa como a Globo, por exemplo, e a DNA. O BB ou o Visanet sequer são informados sobre seus valores. “Eles estatizaram a Visanet”, ironiza Pizzolato, que vive hoje um período de recuperação moral e emocional. O lendário jornalista Raimundo Pereira comprou a briga de Pizzolato e vem usando a sua revista Retrato do Brasil para fazer uma denúncia duríssima, embasada em documentos, contra os erros flagrantes de Joaquim Barbosa quando analisa o caso Visanet. Alexandre Teixeira, combativo blogueiro carioca, faz o mesmo através do blog MegaCidadania. O acordo entre a Visanet e os bancos parceiros sugeria que estes indicassem um gestor com responsabilidade para propor campanhas publicitárias da Visanet e apontar nomes de agências. Aí temos outro intolerável erro de Joaquim Barbosa, porque ele sempre teve em suas mãos, e o ignorou, um laudo com os nomes dos gestores do fundo de 2001 a 2005. Todos “tucanos”. Pizzolato não estava entre eles. Durante o período em que se celebra contrato com a DNA, o gestor era Léo Batista, que assumiu o cargo em 2002, ainda no governo FHC, e ficou até abril de 2005.
  • 9. Trata-se do laudo 2828, mais um entre inúmeros documentos que, apesar de comprovarem a inocência de Pizzolato, foram sistematicamente ignorados, omitidos e até mesmo ocultos pela acusação. Por onde se olhe a denúncia de Barbosa contra Pizzolato no caso Visanet, se vê apenas um despudorado falseamento da realidade, e a única explicação para isso seria a tentativa de ajustar a realidade à teoria. Pizzolato, que há mais de sete anos vive um terrível pesadelo moral, acusado por um crime do qual não apenas é inocente, mas que seria impossível de cometer, procura transparecer serenidade e até um pouco de bom humor quando analisa os primeiros trovões que anunciaram a tempestade. Para a oposição udenista, Pizzolato foi uma vítima útil, uma peça importante no jogo para derrubar o governo. Mesmo no campo da esquerda, as preocupações sempre se voltaram apenas para Dirceu e Genoíno. Mas Pizzolato também era um quadro importante no partido, com uma bela história no processo de luta que culminou na vitória de Lula em 2002. Um dos fundadores do PT no Paraná, Pizzolato foi presidente do sindicato de bancários, da CUT e candidato a governador em seu estado. Pizzolato testemunhou muita coisa em 2002, e seu depoimento ajuda a esclarecer uma série de pontos obscuros quando se procura entender o aparecimento de Marcos Valério.
  • 10. O caso Visanet Um petista no lugar certo, na hora certa Trazer o questionamento sobre a lisura no julgamento do mensalão para esta grande ágora pública, a internet, nos permite provocar um debate instantâneo, que nos ajuda a desenvolver nosso trabalho. Os dois primeiros textos já publicados geraram algumas reações negativas curiosas. Um internauta fez uma declaração emocionante: “O PT me fez desacreditar na política, e agora quer me fazer também descrer na Justiça”. Outro se pergunta, perplexo, como pode ser que alguém “não entender que partido político e seus governos, no Brasil, não passam de quadrilhas que vivem meramente de dinheiro público? Assim, o Executivo é o poder que estrutura a corrupção no Brasil. Resta ao Judiciário moralizar e colocar a política em seus trilhos”. Sem se dar conta, essas críticas apenas reforçam a argumentação central que procurarei expor aqui: a acusação usou e abusou de uma lógica de “linchamento”, que serviu para desqualificar o processo político e as entranhas da nossa jovem democracia. E tudo em prol de soluções de força a serem tomadas pelo Ministério Público e pelo Judiciário, tidos aqui na conta de instâncias “não políticas”. Só que não é verdade. Onde existe poder, existe política. É claro que existe política no MP e no Judiciário, só que de maneira mais obscura do que nas esferas do Estado vinculadas ao sufrágio. Como nasce um linchamento político? Pega-se uma comunidade revoltada com séculos de corrupção, aponta-se-lhe um culpado, de preferência uma figura pública. Que graça tem pegar um promotor corrupto ou um juiz incompetente. Como não votamos, não nos sentimos culpados por seus crimes. Já um político corrupto gera um sentimento de culpa coletiva. Como fomos idiotas em votar nesse calhorda! Daí para a catarse do linchamento, é o passo seguinte. Não vamos negar que existam políticos corruptos aos borbotões. E a missão republicana do Ministério Público, do Judiciário, da Polícia Federal, e das próprias institiuições políticas, é combatê-los. O que fazer, contudo, quando os próprios corruptos, numa jogada brilhante, assumem a responsabilidade pelo combate à corrupção e, ao invés de pegar os verdadeiros vilões, miram apenas em seus adversários políticos; e, no lugar de uma investigação séria, se aliam aos meios de comunicação para encetarem inquéritos fajutos, sensacionalistas e tendenciosos? Pois é, meu inocente amigo, se queres fazer alguma coisa concreta para combater a corrupção no Brasil, terás que se desvencilhar de toda ingenuidade. Existe luta de poder, política e corrupção em todas as instituições da República, incluindo MP e Judiciário. Não digo isso para sufocar a esperança do cidadão comum numa solução ética para o problema político brasileiro. Claro que há! Mas certamente não é linchando inocentes, nem manipulando inquéritos. A busca pela ética na política
  • 11. passa também pela exigência de investigações rigorosas e imparciais, e julgamentos justos, além do fortalecimento da consciência crítica do cidadão, que precisa estar devidamente vacinado contra a demagogia de setores corruptos do MP e do judiciário. Temos que pegar os corruptos, mas temos que pegar também os corruptos que simulam e manipulam investigações para desviarem a atenção da opinião pública. E aí voltamos para o caso Visanet e para o indiciamento de Henrique Pizzolato. Todos os laudos, auditorias e documentos à disposição do procurador geral da República, Antônio Fernando de Souza, e do relator da ação junto ao STF, Joaquim Barbosa, provavam a inocência de Pizzolato e, no entanto, ele foi indiciado e depois condenado. Por quê? Bem, o porque requer uma resposta mais complexa, pois trata de interesses políticos, e vamos discuti-la mais adiante. Por enquanto, podemos analisar outra questão: como? Como a procuradoria e o STF conseguiram a proeza de indiciar e condenar um inocente, à revelia de tantos documentos que provavam o contrário? Para isso, há uma resposta dura e direta: omissão e má-fé. Quando apareceu o nome da Visanet na CPI e no noticiário, o Ministério Público mandou a Polícia Federal investigar quem eram os responsáveis, dentro do Banco do Brasil, pela relação com a Visanet, sobretudo quem fiscalizava, no BB, as campanhas patrocinadas pelo Fundo de Publicidade da Visanet, nos anos de 2001 a 2005. A investigação foi rápida e fácil. A parceria entre Banco do Brasil e Visanet data de 1999. A partir de 2001, a Visanet cria um fundo de publicidade, alimentado por seus bancos parceiros. Esse fundo continuava sendo propriedade da Visanet, conforme provam todas as auditorias já realizadas. Mas os parceiros tinham direito de orientar campanhas, escolher as agências que as fariam e propor o pagamento das mesmas. Executivos do Banco do Brasil integravam o Conselho de Administração da Visanet, e havia um funcionário do BB com a função de “gestor” do Fundo de Publicidade Visanet. O nome de Pizzolato sequer aparece no laudo 2828, que reúne as informações coletadas pela Polícia Federal a pedido do Ministério Publico, sobre a relação da Visanet com o Banco do Brasil. Por uma razão simples: como diretor de marketing do BB, Pizzolato não tinha nenhum controle sobre o fundo da Visanet, cuja relação com o BB se dava através da diretoria de Varejo (que lida com cartões de crédito). Pizzolato nunca foi gestor do fundo Visanet. A investigação descobrira ainda que a Visanet mantinha relações com a DNA Propaganda ao menos desde 2001. Todos os funcionários do BB que mantinham relações com a Visanet (funcionários do BB que integravam o conselho de administração da Visanet, gestores do fundo Visanet, diretores de Varejo, vice-presidente de Varejo, e o próprio presidente do banco) eram remanescentes da era tucana. Todos haviam chegado aos respectivos
  • 12. postos através de nomeações feitas antes da eleição de Lula, e todos se alinhavam ideologicamente ao PSDB. Entretanto, o laudo2828, mesmo contendo informações vitais à defesa e à compreensão do processo, foi mantido em sigilo para os advogados de Pizzolato e para a opinião pública. O documento foi varrido para debaixo dos espessos tapetes da procuradoria e do STF. Quando a denúncia da Procuradoria foi encaminhada ao STF e começou a ser debatida pelos ministros, o laudo 2828 jamais foi mencionado. O relator da Ação, Joaquim Barbosa, ao arrepio das informações contidas num documento que ele mesmo havia deferido, declara em seu voto: “Assim, Henrique Pizzolato agiu com o dolo de beneficiar a agência representada por Marcos Valério, que não havia prestado qualquer serviço em prol dos cartões do Banco do Brasil de bandeira Visa, tampouco tinha respaldo contratual para fazê-lo. De fato o contrato entre a DNA Propaganda e o Banco do Brasil não fazia qualquer alusão à Visanet. “ O voto de Barbosa merece um prêmio: conseguiu reunir num pequeno trecho uma quantidade tão grande de inverdades que pode arrumar um emprego fácil como editorialista do jornal O Globo: 1 – Pizzolato não poderia ter agido “com dolo de beneficiar Marcos Valério” porque nunca teve o poder de propor pagamentos para a DNA Propaganda. Essa função era do gestor apontado pela diretoria de Varejo; na época de que trata a acusação, esse gestor era Léo Batista dos Santos. 2 – A DNA Propaganda prestou, sim, serviços “em prol dos cartões do Banco do Brasil de bandeira Visa”, e tinha total respaldo contratual para fazê-l0, desde 2001. 3 – Havia diversos pareceres à disposição de Barbosa comprovando a relação entre a DNA, BB e Visanet. Todas essas informações constavam em documentos vários; no caso do Laudo 2828, serviria sobretudo para provar a inocência de Pizzolato, mas o laudo foi oculto. Os advogados de Pizzolato afirmam que, na denúncia da Procuradoria para o STF, o laudo sequer foi anexado. Meses depois, após a denúncia ser aceita pelo STF, o laudo é reintroduzido no banco de dados da acusação. Pizzolato surge nessa história da seguinte forma. Como diretor de marketing, seu nome aparece em três “notas técnicas”, que eram de circulação interna, sem nenhum poder autorizativo, tratando de questões laterais referentes aos pagamentos a serem emitidos à DNA com recursos do fundo da Visanet. O BB sugeria o pagamento, mas quem o fazia era a Visanet, mediante a apresentação de notas fiscais e comprovantes de realização de serviços por parte da DNA. E a pessoa responsável pela solicitação do pagamento, através de um documento efetivamente autorizativo, era o gestor
  • 13. indicado para essa função, não o diretor de marketing. Eram pareceres internos, e o nome de Pizzolato aparece, no mesmo grau de hierarquia, junto a outros três diretores. No total, são quatro notas técnicas, um das quais Pizzolato sequer aparece. Porque apenas Pizzolato foi indiciado? A explicação talvez esteja em sua história: tinha sido o primeiro diretor sindical eleito pelos próprios funcionários do banco, ainda antes da redemocratização. Mesmo sendo funcionário de carreira, e tendo ingressado via concurso, o talentoso sindicalista e combativo militante político do Partido dos Trabalhadores seguramente não era benvindo numa instituição dominada por tucanos de alta plumagem. Mais tarde, contaremos porque o PT entregou o Banco do Brasil ao PSDB. Ao menos um alto executivo do BB, um dos mais poderosos, também ligado aos tucanos, trabalhou ativamente para incriminar Pizzolato. É Antônio Luiz Rios da Silva, que havia sido vice-presidente de Varejo do Banco do Brasil em 2003, e responsável pela nomeação de todos os funcionários que tinham relação com a Visanet. Este cidadão, simplesmente, saiu do BB para se tornar presidente da… Visanet, função que exerceu no auge das comissões de inquérito que investigavam o mensalão! Um acaso não tão casual, que foi extremamente oportuno para a oposição e trágico para Pizzolato, porque Rios, como presidente da Visanet e ex vice- presidente de Varejo no BB, se recusou a fornecer os documentos que provariam a inocência do petista, nem fez qualquer declaração neste sentido. Descobriu-se também mais tarde mensagens do presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Nelson Jobim, avisando Rios de que a Polícia Federal faria investigações nos escritórios da Visanet. Ou seja, todos os tucanos, em todas as altas funções da república, estavam se dando as mãos, solidariamente. (Documentos neste link) São artimanhas como essas que explicam o indiciamento de Pizzolato. Possivelmente, em meio às turbulentas conspirações que aconteciam nos bastidores das CPIs que investigavam o mensalão, houve um decisão política sobre a trama e os personagens. O nome de Pizzolato aparece quando se projetam os holofotes sobre a relação do Banco do Brasil com a DNA Propaganda. Era o petista no lugar certo e na hora certa. Mas tudo começa com a figura de Marcos Valério. A oposição tinha que ligar Marcos Valério, suposto “operador financeiro” do mensalão, ao desvio de dinheiro público, e como a DNA Propaganda respondia por contas milionárias junto à Visanet, que por sua vez mantinha contratos com o BB, iniciou-se o esforço para encontrar um petista no BB que pudesse “fechar” a trama já armada por oposição e mídia. No próximo capítulo, falaremos deste personagem até hoje explosivo: Marcos Valério. De onde ele vem? Porque se torna de repente tão íntimo do PT? Pizzolato participou de reuniões com o alto comando da campanha petista de 2002, e me contou algumas histórias interessantes sobre a situação financeira do partido, e como Valério aparece como “salvador da pátria”.
  • 14. As bombas lá fora As dívidas de campanha Em algum momento lá trás, eu mencionei o “mínimo distanciamento histórico” em relação aos fatos que produziram o escândalo do mensalão. Preciso agora enfatizar o termo “mínimo”, ou mesmo me contradizer. Não há distanciamento histórico. As bombas ainda explodem lá fora. O editorial do Globo hoje, 15 de maio de 2013, é: “Mensalão recoloca STF em risco”, onde o jornalão assevera que o tribunal “precisa ter consciência de que, ao decidir sobre novo julgamento, pode pôr a perder a credibilidade obtida com sua atuação no caso até agora”. É uma ameaça. O Globo, pela enésima vez, põe uma faca no pescoço dos ministros do STF e diz: vão em frente. A grande ironia é que o Globo está certo. Só que ao contrário. O STF está, de fato, em risco de se desmoralizar, mas se se curvar mais uma vez aos interesses políticos e às chantagens da família Marinho. Eu falei nas bombas que estouram lá fora porque me lembrei de um comentário de alguém sobre Jules Michelet, talvez o mais querido historiador francês. Em 1848, Michelet escrevia sobre a revolução francesa enquanto ouvia, do lado de fora de sua casa, as bombas de uma outra revolução acontecendo. Os mesmos princípios estavam em jogo: a república, a democracia, a igualdade social. Michelet era um ardente republicano e defensor dos legados da revolução francesa, mas não podia negar os erros trágicos e brutais das lideranças que assumiram o poder no auge do “terror” jacobino. Michelet, todavia, era inteligente demais para publicar uma denúncia contra a revolução que pudesse ser instrumentalizada por seus adversários políticos para atacar os princípios que ele, Michelet, acreditava. Michelet era o que, mais tarde, os marxistas chamariam de “intelectual orgânico”. Hoje em dia, a historiografia oficial francesa lê Michelet com muita cautela, tentando separar seu engajamento ideológico e seus inegáveis talentos literários dos acontecimentos históricos em si. Após um certo tempo, a academia tende a analisar os fatos com a frieza de um dissecador de cadáveres. Mas todos admitem que, se você quiser sentir um pouco do calor revolucionário que emanava das ruas parisienses, naqueles cinquenta anos a partir da queda da Bastilha; se quiser entender o que aconteceu não apenas de maneira cerebral ou acadêmica, mas apreender sobretudo suas reverberações espirituais, então você precisa ler a História da Revolução Francesa de Jules Michelet. Ao abordar a aparição de Marcos Valério no palco da história política brasileira, começaremos a falar dos grandes erros do PT. O erro fundamental, naturalmente, foi ganhar as eleições. Um parente meu, alguns meses após a posse de Lula, quando a onda de cobranças deflagrou mais uma fornada “desencantados com a política”, me disse assim mesmo: “O PT não deveria ter ganho”. Não era ironia. Havia muita gente, na própria esquerda, que entendia que o PT não deveria ter ganho, para evitar o processo de corrosão ética e ideológica provocado pelo poder.
  • 15. Quando escavamos as origens do mensalão, batemos em alguma coisa sólida lá embaixo, guardamos a pá e abrimos o baú encontrado, o que vemos? A vitória de Lula não representa, naturalmente, apenas a vitória pessoal do ex- metalúrgico, nem somente a ascenção do Partido dos Trabalhadores às funções máximas do Executivo. Há um corte histórico, que nem o mais raivoso inimigo do PT poderá negar. Uma coisa é o que acontece na superfície dos acontecimentos. A festa do povo nas ruas. A cantoria, o choro e as bebedeiras. Outra coisa é o movimento silencioso e profundo das placas tectônicas da história. Vamos aos fatos. Primeiro, a campanha. Todos os crimes eleitorais acontecem na campanha. A campanha eleitoral, em si, é o crime fundamental do regime democrático. Não por outra razão, quando os petistas começam a se recuperar do susto que levaram com o escândalo do mensalão, repetirão em coro: a culpa é das campanhas! Daí nasce o desejo de fazer uma reforma política para tampar o ralo por onde escorre toda a decência e toda a ética. Só que não vão conseguir. As campanhas eleitorais continuarão, para sempre, sendo um crime político. Porque é nas campanhas que se mobilizam todas as forças, todos os recursos, se amarram todos os compromissos. É nas campanhas que, invariavelmente, vemos despontar no horizonte, caminhando em nossa direção, um homem manco, de rosto estranho, com um pé deformado, semelhando um pé… de cabra. Perdoem-me a caricatura, que tentarei desfazer mais adiante, mas não posso resistir: que figura mais parecida com o diabo senão aquele risonho moço de careca luzidia chamado Marcos Valério? A única maneira de pôr fim a este grande crime político, ao crime original, é dar fim às campanhas. Ou seja, é dar fim ao regime democrático e instalar a ditadura. De preferência, uma ditadura de juízes vitalícios. Aí sim, o país poderá respirar aliviado, as classes instruídas poderão olhar, satisfeitas, para os donos do poder, que serão homens cultos e severos, e que não chegaram onde chegaram através de campanhas políticas sujas. Ah, mas não é somente um crime. As campanhas mobilizam uma grande quantidade de mão-obra. São milhares, quiçá milhões de pessoas trabalhando em todo país, em tudo que é tipo de atividade. A moeda mais valiosa em qualquer campanha é o trabalho. Qualificado, naturalmente. Se há dinheiro para pagar o trabalho, paga-se. Se não se tem, faz-se dívidas. Arrisca-se. As campanhas mobilizam as apostas mais temerárias que se pode conceber. Empresários, ativistas, políticos, donas de casa,
  • 16. todo mundo aposta alguma coisa. Após a vitória, Lula chama a equipe que coordenava a questão do financiamento de sua campanha. Obviamente, sempre fora a questão crucial para a vitória. E deixemos claro uma coisa: o PT não ganhou as eleições apenas por causa do amor dos companheiros à causa. A campanha de Lula foi rica em recursos. E falo do Caixa 1, contabilizado. O professor Wanderley Guilherme dos Santos fez um levantamento das eleições de 2002 e verificou que Lula ganhara mais dinheiro que seu adversário, José Serra. Os empresários brasileiros, apesar de toda afinidade ideológica com o PSDB, estavam traumatizados pela incompetência do governo FHC. O país quebrara várias vezes, a carga tributária quase dobrara, os juros atingiram níveis insuportáveis. Só quem ganhava dinheiro, em tese, eram os bancos. Mas até os bancos quebraram! O capitalismo brasileiro foi empurrado à força para a esquerda, porque entendeu que precisava de uma coisa básica para continuar produzindo riqueza: consumidores. Pizzolato, que já participara de várias campanhas e entendia de economia, em função de seu trabalho no Banco do Brasil, era um dos que trabalhavam no núcleo de programa de governo do comitê e descreve a reunião com Lula em tons vívidos. Os cardeais estavam todos presentes: José Dirceu, Palocci, Gushiken, etc. Lula só pediu uma coisa: quero as contas de campanha totalmente ordenadas. Quero ser diplomado sem a mínima mácula. E assim foi feito. Todos trabalharam como loucos para ordenar sabe-se lá quantos milhares de notas fiscais, preencher sabe-se lá quantas planilhas. Mas tudo foi cumprido à risca e Lula é diplomado com as contas de campanha em dia. Aí, vem uma outra reunião. A campanha nacional fora paga, mas os dirigentes regionais aparecem com enormes pendências. Dívida tem que ser paga! Ainda mais naquele Brasil em profunda crise econômica, desemprego altíssimo, como era em 2003. Ouvíamos casos de homicídios por dívidas de 15 reais. Que dizer então das milionárias dívidas de campanha? “Então Lula fez uma coisa de doido”, diz Pizzolato. Quando a gritaria dos diretórios regionais em relação às dívidas começou a ficar alta demais, Lula chamou Delúbio Soares, tesoureiro do partido e mandou: “Resolve isso, Delúbio”. O diretório nacional do PT, por orientação do recém eleito chefe de Estado, assume as milionárias dívidas dos núcleos regionais. O PT, de uma hora para outra, mesmo tendo ganhado as eleições, se tornava uma instituição completamente falida e endividada. O Delúbio era o cara com mais intimidade com Lula, conta Pizzolato. Quando Lula mandou ele assumir todas as dívidas, ele quase caiu da cadeira e rebateu de pronto: “No meu, não, né, presidente (ele agora já chamava Lula de presidente)! No meu arde!” Palocci dá um risinho, bate nas costas de Delúbio e diz alguma coisa sobre o peso
  • 17. de “ser governo”. Delúbio vai atrás do dinheiro. O fundo partidário estava mais liso que a careca de Valério: tudo havia sido gasto para que Lula se diplomasse com as contas pagas, totalmente limpo. Onde está o dinheiro? Nos bancos. Segundo Pizzolato, Delúbio gostava de fumar charutos; quem trabalhava mesmo eram os dois secretários à sua disposição. Os petistas vão ao Banco do Brasil pegar emprestado. O patrimônio do PT só permitia ao partido pegar uns 2 milhões de reais. Não dava nem para encher o buraco do dente. A dívida total era mais de 50 milhões de reais. Os bancos não queriam emprestar para o PT por uma questão burocrática básica: o partido tinha um limite baixo. Ironia quase trágica. O partido que vencera as eleições presidenciais não tinha limite. Mas o empresário Marcos Valério tinha. Ele podia pegar quanto dinheiro quisesse, porque era bem relacionado. “Hoje o pessoal fala mal do Valério, mas na época ele foi o salvador da pátria”, conta Pizzolato. Com Marcos Valério como avalista, o PT conseguiu levantar dois bons empréstimos com o BMG e o Rural. Parte do problema estava sanado. Até aí tudo bem. Mas ainda faltava dinheiro. Então Valério faz um acerto com Delúbio. Aí nasce, efetivamente, o “mensalão”. Valério faz um empréstimo em seu nome, para pagar as dívidas do PT. Delúbio fazia assim, conta Pizzolato: conforme os diretórios iam ligando para cobrar o pagamento das dívidas, ele ligava para uma secretária de Valério para fazer os pagamentos. Tudo isso acontecia em 2003. Só que o tempo foi passando; em poucos meses, haveria outra eleição. Novas dívidas começaram a surgir…
  • 18. Contrato da DNA com Banco do Brasil é de 1994 Encontrei uma informação interessante para entender as relações de Marcos Valério com o Banco do Brasil. A DNA Propaganda ganhou contrato com o BB, pela primeira vez, em 1994. É bom frisar isso porque a mídia e as algumas declarações de Joaquim Barbosa passaram a impressão que a agência de Marcos Valério era fictícia. Era real, e mantinha contatos com grandes empresas públicas desde pouco depois de sua criação. A DNA fez a campanha de Itamar Franco, de Collor e de Eduardo Azeredo. Não fosse o escândalo, possivelmente seria a agência oficial de Aécio Neves, pois um dos principais sócios da empresa era Clésio de Andrade, vice- governador na gestão de Aécio. Em 2002, o presidente era Francisco Castilho, que permanecia no comando durante os episódios do mensalão. Porque apenas Marcos Valério foi indiciado? Porque a oposição achava que Valério tinha feito com o PT o que havia feito com o PSDB mineiro. Valério usou a DNA para realizar um Enduro (evento com motos) superfaturado, mas os patrocínios serviram para quitar débitos de campanha.
  • 19. Tirem as crianças da sala “A compra de apoio político”. Na verdade, o famigerado mensalão correspondeu a duas necessidades de caixa. A primeira foram as dívidas da campanha de 2002. A segunda, a necessidade de investir nas eleições de 2004 e integrar estratégias eleitorais de legendas coligadas. Ué, “integrar estratégias”, ao supor partilhamento de recursos, não seria comprar apoio político? Então o STF está certo? Não. Não está certo porque a acusação do STF não é, exatamente, “compra” de apoio político, que é uma coisa genérica, difícil de ser mensurada. Os ministros acusaram o governo de comprar a consciência dos deputados, em votações específicas, e tal acusação só poderia ser feita mediante a existência de uma confissão. O que não houve. A única confissão de compra de voto, que eu me lembre, é do Ronivon Santiago (PFL-AC), que acusou o governo FHC de organizar pagamentos de 200 mil para que os parlamentares votassem em favor da emenda da reeleição. Consolidar apoio político não é crime. O que move os grupos políticos são os interesses econômicos. Se eu dou três ministérios para um partido, estou “comprando” seu apoio político. Se distribuo tantos cargos para os quadros daquele outro, idem. Se integro financeiramente campanhas entre partidos aliados, a mesma coisa. Algumas dessas coisas podem configurar irregularidades ou uso de recursos não-contabilizados, mas o crime não é a questão política, visto que a construção de alianças em prol da governabilidade é um pressuposto necessário para estabilidade institucional. Os R$ 6 bilhões que a Secom deu à Globo nos últimos 10 anos não configuram “compra de apoio político”? Nomear tucanos para chefiar a Procuradoria Geral da República, por exemplo, foram operações quase suicidas de Lula para “comprar” apoio político… O crime que existiu é o caixa 2. O crime é dar dinheiro ilegalmente a uma liderança partidária. Mas então que as condenações sejam para o crime de caixa 2 e para o crime de lavagem de dinheiro e corrupção. A acusação de compras em massa de consciências só seria possível se as mentes dos parlamentares “comprados” fossem dissecadas em laboratório e ficasse provado que eles votaram porque, e só porque, receberam uma quantia para isso. Essa é a grande falha da acusação, agravada pelo fato de que os que receberam dinheiro para “votar” com o governo, já pertenciam à base aliada. Alguns eram do próprio PT! Mas voltaremos mais tarde aos erros do STF, que são muitos e terríveis. Agora vamos nos alongar um pouco mais sobre realpolitik. Tirem as crianças da sala, por favor. Será que foi por isso, por exemplo, que o PT também “comprou” apoio político do
  • 20. PSDB? O grupo de Gushiken e Palocci cedeu várias estruturas importantes aos tucanos, em troca de apoio político no parlamento. O Banco do Brasil, o Banco Central, os fundos de pensão. Tudo relacionado a Palocci e a Gushiken foi entregue e/ou permaneceu com os tucanos. Esse foi um debate duro que se deu bem “no seio” do governo, diz o ex-diretor de marketing do Banco do Brasil, que observou essa disputa durante a campanha – embora jamais tenha ocupado nenhum cargo de direção no partido. A decisão contou com a oposição dura de José Dirceu. “O Zé era radicalmente contra isso, e ameaçou fazer convenção e ganhar lá. Ele argumentava que os tucanos já estavam há muito tempo no governo e tinham aparelhado tudo. Se continuassem ocupando funções- chave, seria como se continuassem no poder.” Dirceu defendia uma grande aliança com o PMDB, enquanto Lula via mais vantagem em se aliar aos pequenos partidos, mantendo parcerias pontuais com o PMDB. Delúbio chegou na primeira reunião após a vitória confiante de que seria elogiado pela vitória eleitoral e pela bem sucedida prestação das contas da campanha nacional junto ao STE. Quando recebeu a ordem de resolver um pepino de algumas dezenas de milhões de reais, referentes às dívidas dos diretórios regionais, quase pulou da janela. “Lula tentava acalmá-lo. Está tudo bem, Delúbio. Tudo bem. É melhor a gente assumir isso do que correr o risco dessa gente fazer bobagem”, conta Pizzolato, presente à reunião. “Quando eu fui para a campanha, a coordenação me disse: precisamos de um cara para plano de governo, para explicar isso e aquilo. Ainda durante a campanha, o Delúbio me chama e diz: estamos no negativo”. Delúbio diz a Pizzolato que o partido precisava de R$ 1,5 milhão para capital de giro. Quem botava a mão na massa e trabalhava pra valer era o assessor de Delúbio, Paulo Martins, que depois virou chefe de gabinete do Okamoto. O Delúbio só assinava os papeis, fumando charutos. Pizzolato procedeu ao rito normal de qualquer cliente e entrou em contato com o Banco do Brasil, para marcar uma entrevista e ver o quanto o partido podia pegar emprestado junto à instituição. As regras eram rígidas, e o PT só conseguiu pegar exatamente R$ 1,6 milhão, dando como garantia o próprio fundo partidário. Finda a campanha, todos sabiam que havia dívidas. Lula orienta o tesoureiro do partido a assumir as dívidas regionais; começa a via sacra. Cada estado apresenta a relação das dívidas. Hoje se sabe que foi naquele momento que surge Marcos Valério. Com Valério como avalista, o PT consegue um limite maior: R$ 3 milhões junto ao Banco Rural. Mas ainda faltava muita coisa. Então Valério disse que podia “quebrar o galho”, e
  • 21. pegou empréstimos mais vultosos em seu nome. Sua intenção, naturalmente, era ter o PT lhe devendo favores, e fazer com que isso representasse, no futuro, uma gorda conta estatal; essa era a a especialidade de Valério na DNA: fazer lobby junto a governos e grandes empresários, e conseguir contas. Alexandre Teixeira, autor do blog Megacidadania e pioneiro de um movimento em defesa da anulação da Ação Penal 470, observa que a Receita Federal investigou 25 anos da vida de Pizzolato, e não encontrou nada. Perguntei-lhe então sobre os 326.660,67 reais que foram sacados num escritório do banco rural, no Rio. A versão de Pizzolato é que não sabia que se tratava de dinheiro. Disse que atendeu um telefonema de uma pessoa que se identificou como secretária da DNA e solicitou-lhe que fosse buscar documentos em um determinado endereço. Pizzolato solicitou à secretária da PREVI que um contínuo fosse buscá-los. Eram dois envelopes, que foram entregues, segundo ele, algumas horas depois a um emissário do PT. Ele disse que achava que deveria ser material de campanha, porque já tinha informação que DNA abrira uma empresa de marketing político, e queria trabalhar na campanha do PT. Em depoimento judicial, Valério disse que o diretório do PT do estado do Rio de Janeiro, de acordo com o então tesoureiro do PT, Delúbio Soares, tinha débitos de campanha de 2002, estava se preparando para as eleições municipais de 2004. O tesoureiro do PT, então, solicitou a ele (Valério) que remetesse um total de R$ 2.676.660,67 ao PT do Rio de Janeiro. As pessoas indicadas para o recebimento foram Manuel Severino, Carlos Manuel e Pizzolato, disse Valério. Os R$ 326.660,67 repassados via Pizzolato seriam parte desse total. Importante recordar que um notório tucano, o publicitário Nizan Guanaes, estava em tratativas para fazer a campanha petista na capital do Rio. Pizzolato, condenado por supostamente “desviar” recursos da Visanet (ainda voltaremos uma última vez a este caso), explica que a CPMI dos Correios, que investigava o mensalão, não tinha incluído a questão da Visanet. As investigações vinham descobrindo, segundo consta no relatório final da CPMI, casos bem maiores de caixa 2, pegando todos os partidos. “Aquilo ia revirar a república pelo avesso. A Visanet era uma coisa mais neutra”. A oposição pensou que Valério estava fazendo para os petistas o mesmo que havia feito para eles, que era receber uma quantia superfaturada para realizar um evento. O que explicaria a mira afiada em Valério e nos contratos de publicidade da DNA com a Visanet e Banco do Brasil. Só que as campanhas da DNA junto à Visanet/BB foram realizadas. O “mensalão” não passou pela Visanet, nem pelo BB, e sim pelo esquema de empréstimos tomados por Valério junto a alguns bancos para sanar os problemas financeiros do PT. Hoje há confirmação que Daniel Dantas, o jovem prodígio que ficou bilionário na
  • 22. era FHC, era um dos principais clientes de Marcos Valério. Sua eventual participação no abastecimento do valerioduto, no entanto, jamais foi explorada pela grande imprensa. Ele até chegou a depor numa CPI, mas numa audiência a portas fechadas; a acusação contra Pizzolato e Visanet foi seu biombo perfeito. Detalhe: Pizzolato é o único dirigente do BB processado por Daniel Dantas, porque enquanto representante dos funcionários do BB na Previ, e como tal membro do Conselho da Brasil Telecom (empresa controlada por Dantas), Pizzolato proferiu um voto que desagradou o poderoso banqueiro, que imediatamente ordenou sua exclusão do Conselho.
  • 23. As bombas aqui dentro Reflexões sobre a Bastilha mental Dessa vez eu senti a vertigem. Escrever sobre um tema tão explosivo, aproximar-se de pessoas que vivem até hoje dentro de uma usina nuclear cheia de vazamentos, me deu a sensação de estar no topo de um edifício em chamas, olhando o abismo lá embaixo. Ou então parece que adentramos um ambiente altamente inflamável, mas escuro e acendemos um fósforo para poder olhar ao redor. A intenção é boa, mas o risco, altíssimo. As bombas não explodem apenas lá fora, como eu disse; há estilhaços que entram pela janela e podem nos atingir. A Procuradoria Geral, alguns ministros do STF e setores da imprensa tornaram-se, definitivamente, agentes políticos sem qualquer escrúpulo, e provaram desfrutar de um poder sinistro: podem colher qualquer história, inclusive textos nossos, e transformá-la em qualquer coisa. Daí o perigo, eles tem o poder de criar a mentira e condenar com base naquela mentira. Sobretudo ainda vivemos aquele clima pesado de tribunal, em que tudo que dissermos pode se voltar contra nós. Agora sim entendi porque se precisa de distanciamento histórico para se analisar uma situação com serenidade. Vamos esclarecer algumas coisas sobre o texto anterior. Tragam as crianças de volta para sala; eu errei ao pedir que elas saíssem. Elas têm que aprender desde cedo algumas lições de vida. O julgamento do mensalão foi viciado e condenou inocentes. A denúncia da procuradoria foi inepta. Disso eu já sabia, porque acompanhei todo o processo, escrevi sobre ele. Não digo que os réus são inocentes de qualquer coisa. O direito moderno, desde o Iluminismo, após séculos de trevas jurídicas, entende que um processo legal deve condenar ou absolver as pessoas em relação aos crimes que estão sendo julgados. Senão vira, como virou, um linchamento. Insufla-se um ódio tão grande nas pessoas contra a política, contra o governo, contra o partido dos trabalhadores, que a culpabilidade ou não dos réus passa a ser um mero detalhe. É como se eles tivessem que expiar a culpa por toda a podridão da política brasileira dos últimos duzentos anos. A minha experiência nova, meio que assustadora, foi conhecer pessoalmente algumas vítimas desse linchamento. Em Vigiar e Punir, Foucault descreve as torturas físicas da idade média e analisa o desenvolvimento dessa tara inominável, que é o prazer pelo sofrimento do outro. Logo no início do livro, há uma descrição pavorosamente minuciosa do esquartejamento vivo de um condenado. É uma coisa absurda; perguntamo-nos o tempo inteiro qual o objetivo daquilo? Hoje a mesma técnica é utilizada, mas no campo psicológico. A tortura moral que a
  • 24. mídia pode inflingir a um indivíduo e à sua família, ao envolvê-lo num processo político, é algo terrivelmente chocante. É chocante inclusive se ele for culpado, porque inventa-se uma forma de punição que não está prevista no código penal. Existe o mundo das leis, onde as pessoas são condenadas estritamente pelo que fizeram, e a punição vem rigorosamente prevista em acordo com a Constituição. As punições morais operam num outro universo, não regido pelos códigos escritos, mas por leis às vezes muito mais severas, porque milenares. Recentemente, um pai “esqueceu” o filho recém-nascido dentro do carro por algumas horas, e o menino morreu. O pai é culpado. Ninguém nega sua imperdoável irresponsabilidade. Mas o juiz entendeu que a culpa que esse pai teria que carregar por toda a vida já era tão terrível que não precisava sequer ir preso. O homem estava internado há dias, em estado de choque, depois de tentar o suicídio. Não imagino nenhum sofrimento maior do que o remorso de matar, sem querer, o próprio filho! Mesmo sabendo que ele é culpado, mesmo tendo raiva do homem, não consigo deixar de sentir um pouco de compaixão. Imagine então aplicar o mesmo tipo de punição moral a um inocente? Com a transformação do mundo num espaço totalmente midiatizado, o poder da punição moral, via exposição pública, atingiu um ponto crítico. A expressão “assassinato de reputação”, muito usada nos últimos anos para descrever o processo de denúncias, muitas vezes sem substância, contra adversários políticos, não diz tudo. Não apenas se mata a reputação. Faz-se uma coisa tremendamente pior. Tortura-se, lentamente, cruelmente, sadicamente. É isso o que Genoíno tem repetido, sempre que há um movimento como que de abutres a seu redor, tentando bicar mais um pedacinho de seu fígado: fui barbaramente torturado na ditadura, mas o que têm feito comigo agora ainda é pior. Se a coisa é chocante quando se trata de culpados por algum crime, obviamente é muito mais quando estamos diante de um inocente. Quando é alguém distante de seu universo, você simplesmente se afasta, como quem decide não assistir a determinado filme de terror. Mas acontece às vezes de você topar com uma vítima. Falar com ela. Comer uma pizza e tomar um guaraná com ela. Então todo o esforço que você fazia para afastar a sua imaginação do tipo de tortura mental que a mídia pode inflingir a uma pessoa inocente vai por água abaixo. Isso foi o que mais me marcou. Eu sempre fiz uma defesa do Lula e do PT porque entendia um e outro como agentes do nosso desenvolvimento e da nossa libertação social. Se defendi ambos no momento mais crítico, quando simplesmente não sabíamos o que havia acontecido, agora que temos uma noção melhor das coisas, minha defesa é ainda mais tranquila e mais enfática. No capítulo anterior, eu descrevi de maneira superficial o processo de construção da governabilidade. Não dá para fazer um tratado sobre poder, democracia, governabilidade, ética, moral e compromisso social em dois parágrafos. Estes são temas que espero desenvolver melhor mais tarde.
  • 25. O novo grau de circulação das informações está nos levando a um outro estágio: estamos saindo de um tempo em que havia as coisas que podiam ser ditas, e as coisas que não podiam ser ditas. Wikileaks, leis de transparência pública, internet, o mundo político hoje está um bocado perplexo com a nova situação, em todos os países. Há uma aflição constante no ar. No Brasil, em particular, a situação chegou onde chegou porque a chamada opinião pública, a verdadeira, não a de meia dúzia de colunistas, é refém de um processo que começou lá em 1964. Começou até antes, na década de 50, mas somente em 1964 a mídia, esta mídia, conseguiu se tornar hegemônica. Qualquer outra opinião era criminalizada e, literalmente, morta. Durante mais de 20 anos, somente os barões pontificavam sobre política, e roubou-se da sociedade brasileira não apenas o que ela tinha de mais precioso, o direito de se expressar livremente, mas as consequências positivas dessa liberdade: entender melhor a nós mesmos e a maneira de nos governarmos; entender melhor a democracia, suas contradições e problemas. Após a ditadura, a situação perdurou porque os desdobramentos iniciados no regime militar continuaram acontecendo. O ambiente de profunda crise econômica, por si só, mata a liberdade, de uma outra forma, pelo bolso. Assistimos a uma ou duas gerações de jornalistas, cineastas, escritores, intelectuais, que tinham algum pendor pela independência, e que podiam efetivamente contribuir com uma voz diferente, para termos no Brasil um debate político mais plural e mais avançado, assistimos a estas gerações se perderem na miséria econômica, na desesperança, na adversidade. Com o PSDB no poder, atingimos o apogeu da corrupção moral. O Brasil jamais debateu suficientemente o problema político causado pela decisão de FHC de aprovar uma emenda para reeleger a si mesmo. A gente discutiu por anos a reeleição de Chávez, jamais a de nosso próprio presidente. Jamais discutimos as implicações morais disso, nem o obscuro processo para construir a maioria parlamentar naquela votação. Chávez fez um plesbicisto popular. Consultou diretamente o povo. O governo FHC aprovou a reeleição através de uma suja negociata palaciana. Daí a sociedade brasileira nunca teve uma noção aproximada de como funciona o processo político. De repente, com o escândalo do mensalão, há um esforço massivo, deliberado, maquiavélico, covarde, de pegar uma sociedade fragilizada por décadas de desinformação e manipular todos os seus preconceitos em relação a política e a democracia, em prol de derrotar um projeto. Quando se abriram as cortinas dos bastidores da democracia, e vimos as lideranças partidárias fazendo acordos para se eleger, governar, pagar enormes dívidas de campanha, setores políticos viram a oportunidade de ludibriar a população com um discurso hipócrita: vejam só, que vergonha! nós nunca fizemos isso! Não é verdade. Fizeram muito pior. E fazem algo infinitamente mais podre, repetindo exatamente o que fizeram durante as campanhas udenistas: criminalizam a
  • 26. política e desqualificam a democracia. Pintaram Vargas como um bandido porque o Banco do Brasil emprestou dinheiro para Samuel Wainer criar a Última Hora, quando todos os presidentes anteriores haviam emprestado quantias ainda maiores para O Globo, para o Correio da Manhã e para os jornais de São Paulo. E agora criminalizam o PT. Não ficaram satisfeitos com o mea culpa do partido por ter feito caixa 2. Inventaram uma trama diabólica, sem base em nenhuma prova, para causar o maior dano político e humano possível no partido e em tudo que ele representa. Eu já tinha compreendido essa questão política. Mas agora, conhecendo Genoíno e Pizzolato, eu passei a ver as coisas por um outro ângulo. Passei a ver as coisas numa perspectiva humanista. De repente, tudo o mais se apagou, e eu vi uma figura humana com braços e pernas em xis, como naquele desenho de Da Vinci. Há tanta injustiça no mundo, no país, crianças drogadas na rua, o sistema de saúde pública é precário, mas de repente o que mais nos choca é a injustiça contra o ser humano à nossa frente. Esquecemos a política, a ideologia, os partidos, a democracia, tudo é posto de lado quando se está diante de uma arbitrariedade. Justamente por isso, essa pode ser a chave para a gente reverter essa tremenda injustiça. O caso Pizzolato, em particular, detêm a chave para se anular a Ação Penal 470. Não sou apenas eu que enxergou isso. Raimundo Pereira, editor da Retrato do Brasil, farejou algo semelhante. Não à tôa dedicou edições inteiras de sua revista aos erros da procuradoria e do STF no caso Pizzolato. Outros jornalistas agora estão abrindo o olho. Num dos capítulos atrás, eu mencionei a obra-prima de Jules Michelet sobre a revolução francesa. Lembrei-me agora de outro fato que nos faz pensar naquele mito do eterno retorno. As coisas vão se repetindo o tempo inteiro, o que é bom, porque nos dá chance de aprendermos e lidarmos com os monstros de maneira mais experiente. Algumas da páginas mais belas que já li em minha vida são aquelas em que Michelet descreve o processo que culminou na Tomada da Bastilha, esse evento que marca o início de uma nova era no mundo. A Tomada da Bastilha não nasceu da estratégia de lideranças políticas. Segundo Michelet, foi um explosão espontânea, desorganizada, popular. A multidão acorreu, furiosa, desesperada, na direção daquela fortaleza que simbolizava os aspectos mais tenebrosos do regime monárquico. Como prova da espontaneidade da rebelião, Michelet descreve a enorme quantidade de mulheres, velhos e crianças que participavam. Qualquer pessoa podia ser presa e encarcerada na Bastilha. Até burgueses e aristocratas podiam ser vítimas. Um caso comum, por exemplo, era uma mulher, mancomunada com um amante, denunciar o próprio marido, para poder usufruir livremente de seus bens. O marido apodrecia incomunicável na Bastilha pelo resto da vida.
  • 27. Michelet descreve como tudo começou. Entre os fatos que levaram ao desenvolvimento de um ódio tão intenso dos franceses à Bastilha está justamente uma mulher. Uma mulher simples, do povo, que achou uma carta de um homem que jazia há muitos anos na prisão, por um crime que, segundo ele, não havia cometido. Por trás dos grandes acontecimentos da revolução francesa, escreve Michelet, jamais poderemos esquecer este caso, que ajudou a derribar os pilares morais nos quais se assentava o regime. Ao conhecer Pizzolato e estudar seu caso, eu me senti um pouco como aquela senhora do livro de Michelet. A senhora não tinha pretensões de derrubar o regime. Ela sentiu-se tomada por uma compaixão profunda por aquele homem, e passou a procurar as autoridades para que avaliassem o caso. Acabou ganhando notoriedade. Foi ameaçada, ridicularizada, agredida. Mas prosseguiu. Michelet não sabe o que aconteceu a esta mulher, nem ao prisioneiro. Nas semanas seguintes, o Antigo Regime ruiu. Quando o povo tomou a Bastilha e abriu os portões, libertando todos os prisioneiros, houve um momento de grande júbilo. O povo abraçava, chorando, aqueles homens que permaneceram anos esquecidos do mundo, largados numa masmorra, incomunicáveis. Havia centenas de bastilhas em toda França. Elas representavam o absolutismo, o poder que o Estado tinha para inflingir o pior de todos os sofrimentos a um indivíduo: acusá-lo das piores barbaridades, sem lhe dar a chance de se defender. Quando eu conheci Pizzolato e sua esposa, eu pensei: temos um cidadão brasileiro e sua família sendo torturados numa bastilha ainda pior que aquela do Antigo Regime, porque é uma bastilha mental. Ao mesmo tempo entendi que o caso Pizzolato pode ser a chave para deflagrar uma reviravolta definitiva na farsa que setores políticos e mídia armaram para aplicar um golpe 2.0 na sociedade brasileira. Essa farsa vai se voltar contra os que a praticaram. Vamos tomar essa Bastilha.
  • 28. A História não anda de avião Homenagem a um jornalista Outrora se falava que “ainda existem juízes em Berlim”, referindo-se aos derradeiros magistrados que resistiram à sanha nazista e defenderam princípios constitucionais numa Alemanha mergulhada em profunda crise. Que grande ironia assistir, num Brasil que vive o apogeu de sua democracia e goza de sólida estabilidade econômica, a inversão dessa frase. Não existem mais juízes em Brasília? Essa pergunta ainda está no ar, visto que há um fiapo de esperança de vermos o STF evitar a desmoralização de se render às forças do atraso e à arbitrariedade. Mas a frase vale para uma outra atividade crucial quando se discute este processo político e judiciário conhecido por “mensalão”. Ainda existem jornalistas no Brasil? Felizmente, sim. Endereço a frase especialmente para o editor da revista Retrato do Brasil, Raimundo Pereira, que realizou um trabalho criterioso e completo para descontruir as mentiras contidas na denúncia da Ação Penal 470. Se durante o julgamento, as matérias de Pereira fossem publicadas num jornal de grande circulação e seu conteúdo fosse adaptado para a televisão, outro seria o destino dos réus, e poderíamos testemunhar um outro debate, bem mais consequente. Estaríamos agora discutindo, de maneira mais objetiva, um fato gravíssimo: a construção de uma conspirata política para derrubar um governo eleito, ao arrepio de inúmeros direitos constitucionais consagrados. A procuradoria e alguns ministros lançaram cidadãos na fogueira da vergonha pública apenas para provar uma tese pré- montada. Relendo a Edição Especial da Retrato do Brasil, cuja manchete é “A Construção do Mensalão”, e a edição número 65, intitulada “A Prova do erro do STF”, senti o alívio de constatar que parte do trabalho que eu me dispunha a fazer, já está pronto, o que me deixa um caminho aberto para passar à etapa seguinte, a análise das consequências. O material coletado por Pereira derruba as teorias centrais da denúncia da Procuradoria. A demolição que faz no caso Visanet, inclusive publicando os documentos que os juízes se recusaram a ver, é particularmente arrasadora. Não sobra pedra sobre pedra. Consulte o site www.retratodobrasil.com.br, ou ligue para 11-3814 9030 para solicitar as edições que tratam da Ação Penal 470. Pereira faz o serviço que caberia a um juiz honrado: inocenta Henrique Pizzolato consultando os documentos apresentados pelo próprio réu à acusação. E ainda envereda por um caminho que eu também procurei trilhar nessa história: o aspecto humano. É um aspecto essencial porque nos faz pôr de lado, por um momento, as paixões políticas. Perdoem-me insistir tanto na figura de Pizzolato. Não sou advogado dele, não
  • 29. temos nenhum acordo pecuniário. Minha insistência se dá por várias razões. Primeiro, por praticidade. Ele mora perto da minha casa, é uma figura de fácil acesso, e sua vida familiar hoje tem apenas um objetivo: provar sua inocência; com toda a calma e convicção, conta o que aconteceu, mostra os documentos, esclarece e procura nos olhos do interlocutor uma explicação plausível para a arbitrariedade terrível que lhe esmagou. Segundo, por razões de afinidade: Pizzolato não é uma celebridade, como José Dirceu, cercado de fãs e frenesi militante. É um indivíduo pacato, de hábitos extremamente simples. Seria um pouco inexato chamá-lo de “um homem comum”, porque não é fácil encontrar gente com uma história tão bonita. Uma história de conquistas, luta política, grandes sonhos. Foi o primeiro diretor sindical eleito para cargo de representação funcional na administração do Banco do Brasil. Foi um dos articuladores, junto ao Banco, da campanha contra a fome idealizada por Betinho, junto do qual viajou todo o país, iniciativa que abriria caminho para Lula mais tarde fazer suas caravanas da cidadania. Na campanha de 2002, idealizou os kits de apoio a Lula para a Classe A, as famosas estrelinhas douradas, que tanto ajudaram a quebrar o preconceito das elites contra o PT. Como diretor de marketing do BB, levou a cabo várias inovações, muitas das quais hoje passaram por retrocesso; e tinha planos de fazer inúmeras outras, que poderiam trazer benefícios à instituição e ao país. Terceiro, porque derrubando a acusação contra Pizzolato, desmonta-se um dos suportes cruciais da Ação Penal 470, o uso de dinheiro público no mensalão, que serviu à Procuradoria e ao STF para rechaçar a tese da defesa, de que os volumes movimentados corresponderiam a um caixa 2 de campanha eleitoral. A principal razão, sobretudo, do meu interesse na figura de Pizzolato é que sua condenação (e o linchamento moral que sofreu, ainda mais severo) simboliza o caso mais chocante de arbitrariedade que já testemunhei. Me fez pensar inclusive na diferença entre injustiça e arbitrariedade. Uma coisa é a injustiça, para o qual sempre concorrem as agruras do destino e cujas responsabilidades se diluem por todo o corpo social e pelo tempo histórico. Uma criança famélica vagando nas ruas da nossa cidade é culpa de todos nós, é culpa da nossa história, mas justamente por essa culpa distribuir-se tanto, ela perde força em nossa consciência. Viramos o rosto e seguimos em frente. Não podemos consertar tudo. Uma arbitrariedade é diferente. Não é, como a injustiça, uma consequência de vícios históricos; ela tem um rosto ou vários rostos, e emerge de um ambiente de violência extrema, no caso a violência covarde dos estamentos conservadores da sociedade (mídia corporativa, certa elite aristocrática do funcionalismo, setores raivosos da classe média) contra um ou mais indivíduos, sem lhe dar chance de se defender.
  • 30. Eu me recuso a aceitar ser responsável pela arbitrariedade cometida contra Pizzolato; sinto-me, ao contrário, também uma vítima. Sinto-me vulnerável. O que aconteceu a ele poderia acontecer a qualquer um. Claro, o fato de ser petista e ter lutado, a vida inteira, por justiça social, ajuda a virar alvo. Não é uma arbitrariedade que se poderia atribuir a uma confusão judiciária. Tanto os procuradores quanto Joaquim Barbosa, que desde o início tinham acesso aos documentos, dispunham de provas que o inocentavam completamente. Não só ignoraram essas provas. Ocultaram-nas! Isso é o mais chocante. Documentos fundamentais para se esclarecer a relação entre BB, Visanet e DNA foram simplesmente escondidos embaixo do tapete pela procuradoria – e igualmente ignorados por Joaquim Barbosa. Destacamos, principalmente, os pareceres jurídicos do BB em relação à Visanet e o Regulamento do Fundo de Marketing, da própria Visanet (de 2001), que derrubam a tese de que os recursos eram do BB; e o Laudo 2828, que inocenta Pizzolato. Se falássemos de uma comarca do interior, sempre poderíamos esperar que Pizzolato, que não tem direito a fóro privilegiado, poderia apelar para uma segunda instância, ou seja, para o Supremo. Mas não. Ele foi lançado diretamente para o último círculo do inferno, sem esperança de redenção! Temos, portanto, uma situação de absoluta ironia. O julgamento vendido à sociedade como uma vitória da ética sobre a política foi, na verdade, um espetáculo grotesco de desonestidade, tanto por parte da procuradoria quanto por parte de ministros do STF. Joaquim Barbosa, pintado pela revista Veja como o “menino que mudou o Brasil”, entrará para história como um dos mais incompetentes e desonestos juízes que já passaram pelo Supremo Tribunal Federal. A responsabilidade de Barbosa é particularmente grave porque ele acompanhou os inquéritos desde o início, antes mesmo de se tornarem a Ação Penal 470. Foi dele a decisão de manter toda a documentação fora do alcance dos próprios ministros do STF, até pouco antes do julgamento, de maneira que estes, sem tempo hábil para estudar a contento o processo, inclinaram-se a seguir a orientação do relator, ou seja, o próprio Joaquim Barbosa. E agora, que os embargos trazem à tôna um oceano de inconsistências, mentiras e arbitrariedades, o próprio STF se vê numa sinuca de bico. Assistimos a uma interessante mudança nos ventos. O barquinho dos réus, que se dirigia aceleradamente na direção da cascata, onde se despedaçaria nas pedras lá embaixo, prendeu-se a um galho na margem e pode vir a ganhar proteção de uma rocha logo à frente. O que eu temo, contudo, é que a sociedade se contente com uma migalha: que os embargos façam os ministros reverem as penas de Dirceu e Genoíno, que os dois não
  • 31. sejam encarcerados em regime fechado ou mesmo semi-aberto; mas os outros réus sejam lançados aos leões para satisfazer o circo romano da opinião publicada. Não penso apenas em Pizzolato, mas naquelas secretárias, algumas condenadas a penas superiores a conferidas a homicidas confessos. O que elas têm a ver com as negociatas políticas dos partidos ou, pior, com a trama ficcional inventada pela acusação e aceita pelo STF? Estamos na Roma Antiga ou no Brasil do Século XXI? A luta da sociedade, hoje, não é apenas evitar o dano político causado pela prisão, absurda e injusta, de José Dirceu, mas para salvar a honra do Supremo Tribunal Federal (STF) da vergonha histórica de pactuar com um golpe. Nos colégios e universidades, os professores já estão tendo que oferecer uma versão do que foi o mensalão. O Ministério da Educação terá que patrocinar livros de história que tratam do assunto. O que ensinaremos? Lembro de Gilmar Mendes, com sua boca mole, vociferando em frente às câmeras da TV Justiça: “O que fizeram com o Banco do Brasil?” Pois é, melhor seria se perguntar: “Meu Deus, o que fizeram com o STF?” O governo federal se manteve até agora intimidado, assistindo a tudo de camarote, mas não poderá fugir da luta final. Tem de investir pesado na disseminação das reportagens de Raimundo Pereira. Tem obrigação moral, educativa, de oferecer o outro lado dessa história. Sabemos, no entanto, que o mensalão teve como objetivo justamente pôr um cabresto no governo. Conseguiu. Jamais nenhum ministro de Estado protestou, de maneira clara, contra o desequilíbrio na cobertura do mensalão. Alguns, ao contrário, inicialmente até tentaram fazer do caso “uma página virada”, como se fosse natural, em pleno século XXI, cometermos sacrifícios humanos em prol de um projeto político. O que, aliás, nem é o caso. O principal partido de oposição, o PSDB, incorporou de vez todas as características do antigo udenismo. Diante de um cenário econômico estável, com pleno emprego e salários em alta, o presidenciável Aécio Neves tem aparecido na TV se promovendo como o legítimo representante da ética na política. Em 2012, vimos José Serra atacar seu adversário mostrando imagens de Dirceu na televisão. A desconstrução da farsa, portanto, deve ser feita não apenas em nome da verdade e da justiça; também cumpre um objetivo político. O povo brasileiro rechaçou um projeto que fracassou; não é justo que seja ludibriado a abraçá-lo novamente induzido por uma mentira disfarçada de “ética”. Não há nada de ético na condenação de inocentes. Ao contrário, se a corrupção política é um mal que corrói o desenvolvimento, a desonestidade judiciária desequilibra a democracia e mina o próprio Estado de Direito.
  • 32. Com base nos documentos que temos à nossa disposição, estamos tranquilos que a história julgará os fatos com imparcialidade, e virá à tôna a iniquidade e covardia dos procuradores gerais e de alguns ministros do STF. O que nos preocupa, no entanto, é algo relativo à brevidade da vida humana. Por quanto tempo o STF, por submissão a interesses políticos e midiáticos, inflingirá sofrimento a réus inocentes? Por quanto tempo os juízes pretendem interferir na vida política do país mantendo acesa a chama de uma mentira? ‘ Concordo com Paulo Moreira Leite, autor de um excelente livro sobre o tema, de que é uma ilusão achar que teremos “a volta do cipó de aroeira sobre o lombo de quem mandou dar”, no caso do mensalão tucano. Até porque não interessa ao Brasil que as arbitrariedades contra os réus do mensalão sejam chanceladas através de uma repetição da mesma injustiça com réus ligados ao tucanato. Isso não deveria acontecer, e não acontecerá. Os réus tucanos serão julgados em duas instâncias, e o julgamento foi devidamente desmembrado. Serão julgados com calma e objetividade, sem nenhum clima de linchamento. A volta do cipó não será contra os tucanos. Será contra as arbitrariedades, leviandade, incompetência e desonestidade dos ministros do STF, caso não façam uma revisão total da Ação Penal 470. Joaquim Barbosa se tornou herói dos saguões de aeroporto, mas a História não precisa viajar de avião. A História viaja a pé, descalça, sentindo a terra e contemplando sem pressa a paisagem. Demora mais a ir onde quer, mas chega conhecendo minuciosamente os detalhes, desmascarando hipócritas, desnudando interesses, derrubando farsas. Esperarei ansiosamente por esse encontro, que assistirei comendo pipocas, entre Joaquim Barbosa e a História…
  • 33. O maior fiasco da história A pedrinha de David Desde o início, o processo do mensalão ofereceu um triste espetáculo de mentiras, traições, covardia. O julgamento no STF não foi diferente. Os ministros mais famosos por seu respeito ao garantismo e à letra da Constituição mancharam sua própria história ao capitularem à infame pressão de uma mídia notoriamente engajada politica e partidariamente. Entretanto, a história registrará ao menos um exemplo de heroísmo. Um heroísmo prosaico, delicado, feminino, composto apenas de inteligência, amor, lealdade e desejo de justiça. Falo da gentil e doce Andrea Haas, arquiteta e esposa de Henrique Pizzolato. Quando a história definitiva do julgamento for escrita, seu nome não poderá ser esquecido como aquela que lançou a pedrinha que ajudou a derrubar um dos homens mais poderosos do país, o atual presidente do Supremo Tribunal Federal, Joaquim Barbosa. A ironia é que diversos réus contrataram os escritórios de direito mais competentes da America Latina, incluindo Marcio Thomaz Bastos, um dos maiores criminalistas brasileiros, mas ao cabo foi Pizzolato, o réu mais frágil financeiramente (seus advogados, embora bons, trabalham praticamente de graça), quem teve a defensora mais combativa e mais astuta. Sua própria esposa. Quando o mundo inteiro parecia desabar sobre a cabeça do casal, Andrea Haas começou a estudar o caso por conta própria. Sozinha, elaborou para seu marido a mais contundente defesa que um réu jamais sonhou ter. Quase todas as reportagens, documentos e raciocínios lógicos que hoje comprovam, definitivamente, a inocência de Pizzolato, ex-diretor de marketing do Banco do Brasil, e derrubam os pilares de toda a absurda trama criada pela Procuradoria Geral da República, nasceram da luta de uma mulher indignada pela condenação injusta do seu companheiro de toda uma vida, de um homem cujos anseios por justiça social, integridade e coragem, acompanhou e admirou desde a mocidade. (Leia a emocionante carta de Andrea a seu marido: http://www.ocafezinho.com/2013/06/02/carta-de-andrea-a-pizzolato/). A última pedrinha com que este David de saias derrubou o Golias – esse estamento híbrido formado por mídia, oposição conservadora e figuras desqualificadas da procuradoria e STF – talvez tenha sido lançada esta semana, com a divulgação em larga escala de uma denúncia gravíssima. Na verdade, essa denúncia apenas completa (ou chega bem perto de completar) um quebra-cabeça, cujo desenho Andrea Haas já conhece há tempos. A denúncia consta de recente artigo de Maria Inês Nassif
  • 34. (http://www.ocafezinho.com/2013/06/03/mensalao-barbosa-e-procurador- esconderam-provas/). A jornalista do site Carta Maior denuncia, com base em documentos coletados e ordenados logicamente por Andrea, o então procurador geral da república, Antônio Fernando de Souza, e o relator do processo antes do mesmo se tornar a Ação Penal 470, Joaquim Barbosa: eles sabiam da inocência de Pizzolato e, portanto, da inconsistência da tese de acusação, bem antes da denúncia ser discutida e aceita pelo Supremo Tribunal Federal. Não apenas sabiam da existência desses documentos, como os esconderam deliberadamente. Os leitores então me perguntam: e agora, Miguel? O que acontece? É possível anular Ação Penal 470? Dê sua opinião, por favor! Diante de inépcia tão flagrante, acho que é possível, sim, anular a Ação Penal 470. E se não for, agora há elementos mais consistentes para se levar o caso a uma corte internacional. É óbvio, no entanto, que não será fácil. Como no caso Dreyfus, na França, as pessoas e entidades envolvidas na acusação enredaram-se tão profundamente nessa teia de mentiras que será difícil encontrar uma saída “honrosa”. Nada melhor do que um divertido ditado popular para definir a situação em que se encontra o STF: um mato sem cachorro. Quem será o cachorro a tirar o STF da enrascada em que se meteu, ao se submeter covardemente ao clima de linchamento criado pela mídia? Como explicar à nação que o tipo de prevaricação cometido pelo Procurador, por Joaquim Barbosa e por alguns outros ministros foi bem pior do que os crimes eventualmente cometidos pelos réus? Muito pior, porque se houve crime (e não posso saber se os réus são inocentes em tudo), com certeza não foi aquele da tese da acusação, enquanto o procurador e Joaquim Barbosa pactuaram com um golpe branco. Os quarenta réus acusados pela denúncia da Procuradoria foram escolhidos da forma mais odiosamente arbitrária e tendenciosa entre os 126 relacionados na CPMI dos Correios. A trama foi discutida e escrita primeiro; depois foram colhendo somente os réus, testemunhas e documentos que podiam corroborá-la. Até mesmo a dona lógica foi posta de lado quando se interpunha no caminho da acusação. Agora temos provas de que, antes da aceitação da denúncia pelo plenário do STF, o procurador geral da república e Joaquim Barbosa conheciam o Laudo 2828 e outros documentos que inocentavam Pizzolato (e, repito, derrubavam toda a Ação Penal 470), e não só os esconderam dos demais juízes e advogados de defesa, como ainda mentiram descaradamente sobre seu conteúdo. Vamos focar um pouco na questão das datas, porque elas são fundamentais para se visualizar o grau de sordidez da procuradoria e do ministro Joaquim Barbosa.
  • 35. O Laudo 2828 (http://www.megacidadania.com.br/laudo-28282006-instituto- nacional-de-criminalistica-da-pf/) é fruto de uma investigação da Polícia Federal junto ao BB e à Visanet, feita a pedido da própria Procuradoria e deferido por Joaquim Barbosa, ao final de 2005. A PGR, no entanto, estranhamente, não aguarda a conclusão do laudo, que acontece em dezembro de 2006, para apresentar a denúncia, em março de 2006. O laudo foi mantido em segredo, inclusive dos próprios ministros do STF (à exceção de Barbosa), antes e durante a aceitação da denúncia, que ocorreu em agosto de 2007. Só foi anexado à Ação Penal em novembro de 2007, meses depois do STF aceitar (com a faca no pescoço, conforme disse Lewandowski) uma denúncia inepta, e dois dias depois da publicação do seu acórdão. Os ministros, quando julgaram a validez da denúncia, não tiveram acesso a um dos documentos mais esclarecedores da Ação Penal. Hoje temos à nossa disposição documentos contendo datas e carimbos que comprovam a postura desonesta da PGR e de Barbosa, e há uma novidade. Há apenas algumas semanas, ficamos sabendo que os mesmos atores (PGR e Barbosa) usaram de um artifício maquiavélico para esconder os documentos que “atrapalhavam” a sustentação da tese do mensalão, entre eles o laudo 2828. Não só isso. Tudo aquilo que negaram aos réus petistas, concederam aos “tucanos”. E nem falo dos tucanos do mensalão mineiro, e sim dos servidores do BB, nomeados na gestão FHC, arrolados nas mesmas acusações que se imputaram a Pizzolato, réus num inquérito em separado conduzido na 12ª Vara de Brasília: desmembramento (não entraram na Ação Penal 470), julgamento em primeira instância, e direito a uma investigação sigilosa, sem exposição pública. Quando se descobriu a existência desse inquérito, soube-se também de outra investigação em andamento no STF, de número 2474, para a qual desde o início foram encaminhados documentos, entre eles o Laudo 2828, que poderiam criar um estorvo para a Ação Penal 470. O diálogo entre o PGR e Barbosa (registrado nos autos), tentando explicar porque documentos e réus, referentes aos mesmos crimes que se imputavam a réus da Ação Penal 470, deveriam figurar em inquéritos em separado, entrará para a história como exemplo “supremo” de cinismo judiciário. Diz Barbosa, em resposta ao pedido do PGR para “desmembrar” o inquérito envolvendo não-petistas e documentos incômodos, no dia 10 de outubro de 2006: “(…) defiro o pedido para que os (novos) documentos sejam autuados em separado, como (novo) inquérito. …Por razões de ordem prática, (para não) gerar confusão…” Não gerar confusão… Ou seja, não atrapalhar os planos de dar consistência a uma tese caduca desde a origem, e acusar inocentes. Outros réus do BB, arrolados na mesma acusação que Pizzolato, ficaram a salvo do linchamento público promovido pela mídia. E os documentos que poderiam trazer
  • 36. obstáculos à condenação dos réus da Ação Penal 470 foram guardados sob o tapete de inquéritos secretos. Em termos de cinismo e inépcia, contudo, nada pode superar a própria denúncia de Antônio Fernando de Souza, encaminhada ao STF, e aceita pela maioria dos ministros. O PGR afirma que “Pizzolato em atuação orquestrada, desviou vultosas quantias do Fundo de Investimento Visanet, constituído com recursos do Banco do Brasil” e apresenta como principal prova documental uma auditoria feita pelo Banco do Brasil. A acusação é do tipo barbosiano: contém tantos erros numa só frase que mereceria se tornar um editorial do Globo. O nome do Fundo não é Fundo de Investimento Visanet. Fundo de Investimento supõe um cabedal com sócios-proprietários. O nome verdadeiro é Fundo de Incentivo Visanet, e os documentos comprovam que pertence exclusivamente à empresa Visanet. A auditoria mencionada cobre o período de 2001 a 2005. Pizzolato foi nomeado apenas em fevereiro de 2003; o petista é também culpabilizado, portanto, por um período (2001 e 2002) no qual sequer trabalhava na diretoria de marketing. Não há nenhuma prova de “ação orquestrada”. Pizzolato não tinha nenhum poder de ingerência sobre os recursos em questão. O cargo de diretor de marketing, na hierarquia do Banco do Brasil, era secundário; e os que tinham alguma influência sobre a gestão do fundo Visanet, que era dinheiro privado, eram outros servidores, não Pizzolato, conforme atesta o laudo 2828, pedido pelo próprio procurador e deferido por Joaquim Barbosa. Quando encaminha o Laudo 2828 ao STF, já depois que a denúncia havia sido aceita, o procurador mente deslavadamente: “Em que pese seu teor ser de leitura obrigatória…, alguns trechos do Laudo 2828/2006 merecem destaque, pois confirmam a imputação feita na denúncia de que Pizzolato e Gushiken beneficiaram a empresa de Marcos Valério.” Mentira. O Laudo 2828 sequer menciona o nome de Pizzolato ou Gushiken. Como se não bastasse, hoje sabemos que Barbosa, durante o julgamento, cometeu um erro crasso sobre a data da morte de um dos réus. Mais uma prova de sua incompetência e desonestidade. Em sua ânsia de impor a pena mais severa possível a José Dirceu, uma ansiedade indigna de um juiz, Barbosa informou ao plenário que José Martinez, então presidente do PTB, ainda estava vivo em dezembro de 2003; ele havia falecido em setembro. A informação foi aceita e usada para que as penas impostas a Dirceu fossem mais pesadas, visto que, em dezembro de 2003, a legislação brasileira, por orientação de Lula, se tornara mais severa contra a corrupção. E olha que o ministro Marco Aurélio Mello observou, enfaticamente, que a data era importante justamente por causa disso.
  • 37. http://youtu.be/fzsYd5g-k7U Curioso notar que nenhum meio de comunicação, apesar das centenas de repórteres e especialistas diuturnamente analisando e acompanhando o julgamento, que acontecia ao vivo na TV Justiça, identificou o vexame de Barbosa. Agora, mais que nunca, cresce a convicção de que a população brasileira foi mais uma vez vítima. Promoveu-se, em canais de tv que são concessão pública e que recebem bilhões de reais de publicidade pública, uma mentira ao povo, de que o julgamento seria uma vitória “histórica” contra a corrupção. Foi o contrário. Testemunhamos o maior fiasco da história do STF, uma capitulação vergonhosa ao poder da mídia, ao conservadorismo e a todos os setores derrotados pelo sufrágio popular. O processo conhecido por mensalão foi a oportunidade para se obter uma revanche à vitória eleitoral de Lula em 2002, e para isso arrolaram-se todos os truques, todas as mentiras, todas as armas ainda à disposição do conservadorismo. Derrotar essa mentira, ou este “mentirão”, conforme bem denominou a corajosa jornalista Hildegard Angel, é uma tarefa coletiva de todos os que lutam por justiça. A corrupção tem de ser combatida duramente, e temos que aprimorar constantemente nossos hábitos políticos, mas jamais conseguiremos isso condenando inocentes e chancelando farsas.
  • 38. A conspiração O papel da mídia Uma das virtudes fundamentais no espírito de um jornalista é a ojeriza a teorias de conspiração. É uma virtude, no entanto, que beira um vício, porque o mesmo pensamento racional, a mesma objetividade, que nos aconselha a manter distância de discursos paranóicos e teorias de conspiração, nos obriga a aceitá-los quando estamos diante de documentos e provas irrefutáveis. A divulgação de milhares de documentos secretos da diplomacia norte-americana, pelo Wikileaks, consistiu, por exemplo, numa inesquecível vitória moral para milhares de pessoas que acusavam, há décadas, os EUA de promoverem golpes de Estado em países do terceiro mundo. Na época, um divertido argumento fez sucesso nas redes sociais: “sabe aqueles malucos que viviam culpando a CIA por tudo? Estavam certos.” A bem da verdade, não foi apenas o Wikileaks. Algumas leis que obrigam a divulgação de documentos do governo americano com mais de trinta ou quarenta anos, também ajudaram. Mas ser jornalista não é dizer a verdade. Essa é a função, talvez, de filósofos. Jornalistas divulgam documentos e fatos concretos, e a verdade que buscam é apenas aquela que podem comprovar com base neles. O uso da lógica, porém, não é vetado aos jornalistas. Nem a imaginação, desde que usada com parcimônia. No processo do mensalão, todavia, a imaginação se tornou a virtude fundamental do jornalismo político. Reportagens, colunas, análises, passaram a se descolar cada vez mais de qualquer prurido factual e inagurou-se uma nova era quase psicodélica na imprensa brasileira. Teorias eram montadas e desmontadas sem qualquer escrúpulo. O fato de inúmeras denúncias serem desmentidas no dia seguinte não tinha mais importância. Um clima de total liberdade de expressão enfim se instalara nas redações nacionais. Quando os historiadores se debruçarem, daqui a alguns anos, sobre o mensalão, o tradicional rigor acadêmico possivelmente lhes obrigue a dividir o tema em várias seções: política, midiática, partidária, jurídica. Em meu modesto esforço para escrever sobre um caso ainda em curso, e portanto ainda influenciado pelo clima barra pesada, sufocante, de tribunal, eu vou tateando em todas as áreas, mas a corda que uso para não cair são documentos. Por isso tenho sido repetitivo quanto ao caso Pizzolato. É que me parece o caso mais surreal, kafkiano e… documentado. A sua inocência é documentada. Se a grande mídia fizesse uma ampla reportagem sobre os erros na condenação de
  • 39. Pizzolato, mostrando os documentos, apresentando-os a juristas conceituados e pedindo sua opinião, testemunharíamos uma sumária desmoralização da Ação Penal 470. Aliás nota-se hoje um barulhentíssimo silêncio nos grandes jornais e nas redes de TV sobre o debate tão aceso nas redes sociais e blogs, sobre os erros do STF. A ruptura da mídia com a sociedade se tornou completa. O artigo da Inês Nassif, por exemplo, abordando a suja história do Laudo 2828, que inocenta Pizzolato, tornou-se imediatamente o mais lido em todos os principais blogs políticos no país, mas o assunto é virtualmente proibido na grande imprensa. A mesma coisa vale para o erro crasso de Barbosa quanto a data da morte de José Martinez. A nossa presidenta gosta de repetir o clichê supostamente pró-democrático, sobre preferir o barulho da imprensa ao silêncio da ditadura. É uma frase bonita, mas a verdade é que o único barulho que a imprensa quer ouvir, no caso do mensalão, é o da tampa de um caixão se fechando. A nossa mídia não é boba. O espaço à divergência se dá apenas em questões não estratégicas. E o mensalão é um assunto absolutamente estratégico para os grandes grupos de mídia, que se tornaram, assumidamente, o grande partido do conservadorismo brasileiro. Entretanto, mesmo durante o julgamento, quando o assunto ocupava, diariamente, várias páginas de jornal, e hegemonizava o noticiário televisivo, havia muitos mais fogos de artifício do que conteúdo. Não havia um debate sério sobre o tema. O tal “barulho da imprensa”, tão ao gosto da nossa chefe de Estado, era apenas um ruflar histérico dos tambores da oposição. Os réus, porém, não eram só aqueles perfilados na denúncia da Ação Penal 470, mas toda a sociedade, incluindo os elementos raivosos que pagavam anúncios no Facebook para promover páginas repletas de indizível rancor. Todos são vítimas do maior processo de manipulação da informação de que temos notícia. O mensalão foi o canto do cisne da grande mídia brasileira. O escândalo é deflagrado exatamente no momento em que a internet ainda não havia sido “apropriada” pela sociedade. Os únicos blogs políticos estavam em mãos da grande mídia de oposição: Noblat e Reinaldo Azevedo. A imensa ágora pública, caótica e democrática em que se tornou a internet brasileira não havia se constituído nos anos de 2005 e 2006. A imprensa reinava sozinha. Se hoje ela ainda tem um poder descomunal para influenciar o espírito nacional, naquela época esse poder era quase absoluto. Uma das seções mais importantes no estudo do processo do mensalão, portanto, é o papel da mídia. É um papel que ainda está sendo desempenhado. Hoje, sexta-feira 07 de junho, uma notícia deixou inteiramente perplexa a grande nação de internautas: o único jornalista convidado pelo ministro Luiz Fux para dar uma “aula pública” aos ministros do STF sobre financiamento de campanha será Merval Pereira, colunista e membro do conselho editorial do jornal O Globo. A promiscuidade entre a grande mídia, em particular a Rede Globo, e o STF,
  • 40. parece não encontrar limites. Até mesmo os juízes mais resistentes à pressão da mídia, como Lewandowski, ligavam para Merval, no dia seguinte a sessões, para “explicar” seus votos. Joaquim Barbosa, por sua vez, liga regularmente para Merval para justificar seus destemperos. E Ayres Britto escreveu o prefácio do livro de Merval Pereira sobre o mensalão enquanto ainda era presidente do Supremo Tribunal Federal (STF)! Se a mídia é um poder terrível em qualquer parte do mundo, uma concentração absoluta numa só empresa empresta-lhe um ar perigosamente antidemocrático. A maior parte da “pressão social” alardeada pela grande mídia, e usada pelos próprios ministros do STF como justificativa para a incrível criatividade com que se portaram no julgamento da Ação Penal 470, a ponto de ser qualificado, de maneira promissoramente corajosa pelo mais novo ministro, Luís Roberto Barroso, de “um ponto fora da curva”, veio da Rede Globo. Com toda certeza, os ministros se portavam no tribunal com um olho não na população brasileira, não na História, mas em como seriam caricaturizados no Globo no dia seguinte. As notinhas de Ancelmo Gois sobre Joaquim Barbosa, alardeando sessões de aplauso no metrô de Ipanema e shows da Marisa Monte, e mencionando, orgulhosamente, a criação de um site para lançar sua candidatura presidencial, parecem ter surtido um efeito narcótico poderoso no espírito de todos os juízes. Da mesma maneira, a mídia incitava agressões verbais ou mesmo físicas contra Lewandowvki, único ministro que ousou se contrapor, e mesmo assim timidamente, à agressividade inacreditável do relator. No início do texto, eu falava na ojeriza à teorias de conspiração como importante virtude jornalística. Mencionei também que esta virtude pode se tornar um vício se nos recusamos, mesmo diante de evidências, em aceitar a existência de uma conspiração. O que vimos no processo do mensalão nos traz esse dilema. Todos os fatos, documentos, ações, discursos e posturas, apontam para uma conspirata política. Uma conspirata da qual participaram os dois procuradores gerais da república, Joaquim Barbosa, a oposição, a mídia. O próprio governo, vergado, intimidado, aterrorizado com a possibilidade de um golpe, talvez tenha pactuado, em parte, com tudo isso, sacrificando seus próprios companheiros em prol da sobrevivência. Enfim, estamos diante de um jogo político extremamente barra-pesada. Mesmo com evidências, porém, este é um terreno que devemos trilhar com cuidado. Não podemos largar a corda que nos impede de cair no abismo. O mensalão ainda é uma história cheia de segredos, desagradáveis para todos os lados. É um processo e um julgamento ainda em curso. No próximo capítulo, faremos algumas incursões na seara propriamente política da nossa história, comentando seus desdobramentos presentes e futuros.