1. 6 Sábado, 12 de novembro de 2011
PROSA & VERSO
‘Vivemos uma crise de representação’
Filósofo italiano analisa causas de protestos populares nos EUA, na Europa e no mundo árabe
ENTREVISTA Recebidos em seu (2004) — ambos publicados no Brasil pela Re- Barbosa, na quarta-feira, Negri falou ao GLOBO
tempo como “manifes- cord — são citados com frequência por partici- sobre as motivações e perspectivas desses pro-
Antonio Negri
tos antiglobalização”, pantes das manifestações populares recentes testos e apontou o italiano Silvio Berlusconi,
os livros escritos nos últimos anos pelo filósofo nos Estados Unidos e na Europa. De passagem que anunciou esta semana sua renúncia ao car-
italiano Antonio Negri com o americano Michael pelo Rio, onde participou do seminário “Crise e go de primeiro-ministro, como exemplo da “cri-
Hardt, como “Império” (2000) e “Multidão” revoluções possíveis” na Fundação Casa de Rui se de representação política” atual.
Carlos Ivan
Guilherme Freitas não é um presente dos ricos aos po-
guilherme.freitas@oglobo.com.br bres, é uma condição da riqueza de
um país. Seja por programas como o
O GLOBO: Em um artigo recente, vo- Bolsa Família ou pelos suplementos
cê e Michael Hardt argumentam que salariais europeus, o Bem Estar Social
os protestos populares dos últimos deve ser uma condição.
meses nos países árabes, na Europa e
nos Estados Unidos, embora de natu- ● “Império” foi publicado em 2000,
rezas diferentes, estão relacionados num momento de hegemonia ame-
com “a falta — ou o fracasso — da ricana. Uma década depois, em um
representação política”. Que falhas cenário diferente, quanto daquelas
nas formas atuais de representação teses ainda é válido?
política esses protestos apontam? Recebemos muitas críticas por “Im-
ANTONIO NEGRI: A questão é com- pério”, mas hoje vemos que a globa-
preender os pontos em torno dos lização exige uma organização. Em
quais os protestos se desenrolam. Te- 2005, publicamos um livro que dizia
mos uma crise econômica e social que que a dependência [em relação aos Es-
é, cada vez mais, uma crise política. tados Unidos] tinha acabado. Víamos
Começamos a ter a impressão de que essa tendência na economia mundial.
as democracias ocidentais têm dificul- O Brasil, por exemplo, já havia ultra-
dade de superar essa crise e não têm passado essa dependência. Antes a di-
meios para responder a ela. Os jovens reita e a esquerda brasileiras discu-
hoje protestam apaixonadamente con- tiam os Estados Unidos, hoje não é um
tra as regulações financeiras, a falta de tema tão central. O tema hoje é como
moradia, a dificuldade de entrar no se relacionar com Estados Unidos, Eu-
mercado de trabalho. Na Europa e nos ropa, América Latina, China, Índia.
Estados Unidos, onde o desemprego Cinco ou seis potências vão determi-
cresce significativamente, não vemos nar o equilíbrio político, monetário,
perspectiva de normalização da eco- energético, social do mundo. Essas
nomia. E com normalização quero di- são as coisas sérias hoje. Além disso,
zer uma situação em que os jovens com a globalização, o problema não é
possam estudar e trabalhar. A crise mais o Estado-Nação, são os grandes
real de hoje toca na questão da repre- espaços continentais. A situação na
“
sentação política, que está muito atra- Grécia pode causar a crise do euro e
sada, por assim dizer, e se constitui ANTONIO NEGRI: em passagem pelo Rio esta semana, filósofo italiano visitou acampamento de manifestantes na Cinelândia da União Europeia, seria um desastre
através de eleições cada vez mais ca- para todos. Há o risco de uma crise
ras, que só podem ser bancadas por ● Naquele artigo, você e Hardt afir- nisiana. O movimento dos Indignados, definitiva, que talvez não venha da
ricos ou corruptos. mam que esses movimentos “precisa- na Espanha, também não foi previsto. Grécia, mas da Itália, da França...
riam se desenvolver muito mais antes E o que eles exigem transcende as
● Você já disse considerar os protestos de poder articular modelos efetivos eleições. A primeira demanda é justa- ● Como o senhor recebeu a notícia da
como fenômenos “multitudinários”, de alternativa social”. Como um mo- mente uma lei eleitoral proporcional, renúncia de Silvio Berlusconi? A saí-
um termo derivado de Spinoza que vimento “multitudinário” pode tradu- que ultrapasse o dualismo partidário. da dele parece ter sido provocada
aparece muito em seus livros com zir suas demandas em transforma- É uma questão de representação. O Berlusconi se tornou não pelas acusações que enfrentava
Hardt. Como esses eventos se relacio- ções reais na esfera política? movimento nos Estados Unidos come- no país, mas pela pressão econômica
nam com o conceito de “multidão”? Os movimentos sociais às vezes çou com muitas dificuldades, a um a caricatura de e política da União Europeia. O que
Esse termo parte de uma crítica à dão a impressão de que têm um gran- certo ponto foi interpretado como “o uma crise geral da isso sugere para o futuro da Itália?
palavra “povo”, que é uma construção de caminho a percorrer, mas muitas Tea Party da esquerda”, mas isso não Berlusconi é um personagem inde-
soberana. Povo. Pueblo. Popolo. Povus. vezes há acelerações imediatas, im- é verdade, ele é profundamente popu- democracia e da cente. Mas o problema não é ele. O
Spinoza diz que o povo é criado pelo
Rei, é um sujeito que o Rei decide cons-
previstas. Ninguém poderia imaginar
a Primavera Árabe, por exemplo. Na
lar e reflete a tensão social do país. respresentação. É problema é que ele dominou a Itália
por 20 anos e, nesse período, o país
tituir. A soberania é do povo, mas é o Tunísia, o movimento já começa a re- ● Você esteve nas ocupações nos preciso encontrar novas não conseguiu criar alternativas a ele.
Rei que a representa. O Rei, a aristocra-
cia, as oligarquias, os partidos políticos
nascer porque a nova classe dirigente
não é capaz de interpretar a substân-
Estados Unidos?
Tenho notícias de Nova York por
formas de participação Agora a Itália vai acertar suas contas.
[Pega a edição do dia do jornal “Cor-
da democracia. O “povo” é a base de cia dos protestos, que não eram só Michael [Hardt], mas não estive lá. Es- riere della Sera” e aponta a manchete
“
toda soberania. Mas Spinoza diz que o contra Ben Ali, eram contra a miséria, tive nos protestos na Espanha, eu es- nos alguns aspectos do Estado do que diz que o ex-comissário europeu
problema não é a unidade do povo, contra a organização da sociedade tu- tava dando aula em Sevilha no 15 de Bem-Estar Social. Você acredita que Mario Monti é o favorito para o cargo
mas sua diferença, suas singularidades. maio [primeiro dia de protestos]. Pou- isso é possível ou mesmo desejável? de primeiro-ministro.] Vamos entrar
Ele diz que é através dessas singulari- co depois fui a Madri lançar um livro e Creio que não voltaremos ao Esta- no governo de Monti, que vai fazer o
dades que devemos criar uma unidade, participei de reuniões com eles. Desde do do Bem-Estar Social, pelo menos que a Europa decidir, com o apoio de
mesmo que tendencial, porque nunca 1968 não vejo nada igual. Estive tam- não na forma que tivemos com Roo- todos os partidos. Berlusconi talvez
se chegará a uma unidade orgânica. Pa- bém na ocupação aqui do Rio, onde sevelt e o New Deal. A primeira res- desapareça. Ainda tem pendências
ra Spinoza é essa multidão que pode há umas 20 tendas, é bem simpática. posta contra a crise foi justamente com a Justiça, mas provavelmente
criar a democracia, porque a democra- Gostei de ver a relação dos jovens “Vamos fazer um novo New Deal!”, não enfrentará consequências mais
cia não é algo que os soberanos im- Os movimentos sociais com os pobres, que é extremamente mas acredito que isso é impossível. O graves. O problema de Berlusconi é o
põem. Já nós dizemos que a estrutura importante. A revolução possível está New Deal, no fim das contas, foi um problema da representação. O dinhei-
da produção se transformou profunda- às vezes dão a em reconhecer nos pobres o poten- contrato constitucional entre o Esta- ro e a comunicação dominam a de-
mente. A unidade capitalista de produ- impressão de que têm cial. Não é a riqueza que conta, mas do e o capital privado, de um lado, e mocracia e as possibilidades de ex-
ção está em crise de fragmentação sim a liberação dessa energia que os sindicatos e trabalhadores, de ou- pressão. Não é um problema só da
diante de singularidades sociais que se um grande caminho a existe entre os pobres. tro. Hoje, como isso vai ser feito? O Itália. Berlusconi se tornou a carica-
tornaram produtivas. Isso quer dizer
que cada um de nós, através de seus
percorrer, mas muitas ● Alguns observadores dizem que
“Estado” são as finanças globais, os
mercados são os autores do contrato.
tura de uma crise geral da democra-
cia e da representação. É preciso en-
saberes e de sua capacidade de coope- vezes há acelerações uma “vitória” possível para os protes- Acima de tudo, acredito que o Bem contrar novas formas de participa-
rar com os outros, pode construir a
verdadeira base comum da produção.
imediatas, imprevistas tos nos Estados Unidos e na Europa
seria um restabelecimento de ao me-
Estar Social não deve ser uma meta, e
sim uma condição. O Bem Estar Social
ção. Enquanto não resolvermos isso,
teremos crises continuamente. ■
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Maria de Lourdes Varanda &
132 páginas – 2011 Maria Manuela Santos
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