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                                                                    PROSA & VERSO
    ‘Vivemos uma crise de representação’
    Filósofo italiano analisa causas de protestos populares nos EUA, na Europa e no mundo árabe
               ENTREVISTA      Recebidos em seu                              (2004) — ambos publicados no Brasil pela Re-                         Barbosa, na quarta-feira, Negri falou ao GLOBO
                               tempo como “manifes-                          cord — são citados com frequência por partici-                       sobre as motivações e perspectivas desses pro-
          Antonio Negri
                               tos antiglobalização”,                        pantes das manifestações populares recentes                          testos e apontou o italiano Silvio Berlusconi,
    os livros escritos nos últimos anos pelo filósofo                        nos Estados Unidos e na Europa. De passagem                          que anunciou esta semana sua renúncia ao car-
    italiano Antonio Negri com o americano Michael                           pelo Rio, onde participou do seminário “Crise e                      go de primeiro-ministro, como exemplo da “cri-
    Hardt, como “Império” (2000) e “Multidão”                                revoluções possíveis” na Fundação Casa de Rui                        se de representação política” atual.
                                                                                                                                                                 Carlos Ivan
               Guilherme Freitas                                                                                                                                               não é um presente dos ricos aos po-
           guilherme.freitas@oglobo.com.br                                                                                                                                     bres, é uma condição da riqueza de
                                                                                                                                                                               um país. Seja por programas como o
    O GLOBO: Em um artigo recente, vo-                                                                                                                                         Bolsa Família ou pelos suplementos
    cê e Michael Hardt argumentam que                                                                                                                                          salariais europeus, o Bem Estar Social
    os protestos populares dos últimos                                                                                                                                         deve ser uma condição.
    meses nos países árabes, na Europa e
    nos Estados Unidos, embora de natu-                                                                                                                                        ●  “Império” foi publicado em 2000,
    rezas diferentes, estão relacionados                                                                                                                                       num momento de hegemonia ame-
    com “a falta — ou o fracasso — da                                                                                                                                          ricana. Uma década depois, em um
    representação política”. Que falhas                                                                                                                                        cenário diferente, quanto daquelas
    nas formas atuais de representação                                                                                                                                         teses ainda é válido?
    política esses protestos apontam?                                                                                                                                             Recebemos muitas críticas por “Im-
    ANTONIO NEGRI: A questão é com-                                                                                                                                            pério”, mas hoje vemos que a globa-
    preender os pontos em torno dos                                                                                                                                            lização exige uma organização. Em
    quais os protestos se desenrolam. Te-                                                                                                                                      2005, publicamos um livro que dizia
    mos uma crise econômica e social que                                                                                                                                       que a dependência [em relação aos Es-
    é, cada vez mais, uma crise política.                                                                                                                                      tados Unidos] tinha acabado. Víamos
    Começamos a ter a impressão de que                                                                                                                                         essa tendência na economia mundial.
    as democracias ocidentais têm dificul-                                                                                                                                     O Brasil, por exemplo, já havia ultra-
    dade de superar essa crise e não têm                                                                                                                                       passado essa dependência. Antes a di-
    meios para responder a ela. Os jovens                                                                                                                                      reita e a esquerda brasileiras discu-
    hoje protestam apaixonadamente con-                                                                                                                                        tiam os Estados Unidos, hoje não é um
    tra as regulações financeiras, a falta de                                                                                                                                  tema tão central. O tema hoje é como
    moradia, a dificuldade de entrar no                                                                                                                                        se relacionar com Estados Unidos, Eu-
    mercado de trabalho. Na Europa e nos                                                                                                                                       ropa, América Latina, China, Índia.
    Estados Unidos, onde o desemprego                                                                                                                                          Cinco ou seis potências vão determi-
    cresce significativamente, não vemos                                                                                                                                       nar o equilíbrio político, monetário,
    perspectiva de normalização da eco-                                                                                                                                        energético, social do mundo. Essas
    nomia. E com normalização quero di-                                                                                                                                        são as coisas sérias hoje. Além disso,
    zer uma situação em que os jovens                                                                                                                                          com a globalização, o problema não é
    possam estudar e trabalhar. A crise                                                                                                                                        mais o Estado-Nação, são os grandes
    real de hoje toca na questão da repre-                                                                                                                                     espaços continentais. A situação na




                                                                                                                                    “
    sentação política, que está muito atra-                                                                                                                                    Grécia pode causar a crise do euro e
    sada, por assim dizer, e se constitui        ANTONIO NEGRI: em passagem pelo Rio esta semana, filósofo italiano visitou acampamento de manifestantes na Cinelândia         da União Europeia, seria um desastre
    através de eleições cada vez mais ca-                                                                                                                                      para todos. Há o risco de uma crise
    ras, que só podem ser bancadas por           ● Naquele artigo, você e Hardt afir-     nisiana. O movimento dos Indignados,                                                 definitiva, que talvez não venha da
    ricos ou corruptos.                          mam que esses movimentos “precisa-       na Espanha, também não foi previsto.                                                 Grécia, mas da Itália, da França...
                                                 riam se desenvolver muito mais antes     E o que eles exigem transcende as
    ●  Você já disse considerar os protestos     de poder articular modelos efetivos      eleições. A primeira demanda é justa-                                                ● Como o senhor recebeu a notícia da
    como fenômenos “multitudinários”,            de alternativa social”. Como um mo-      mente uma lei eleitoral proporcional,                                                renúncia de Silvio Berlusconi? A saí-
    um termo derivado de Spinoza que             vimento “multitudinário” pode tradu-     que ultrapasse o dualismo partidário.                                                da dele parece ter sido provocada
    aparece muito em seus livros com             zir suas demandas em transforma-         É uma questão de representação. O         Berlusconi se tornou                       não pelas acusações que enfrentava
    Hardt. Como esses eventos se relacio-        ções reais na esfera política?           movimento nos Estados Unidos come-                                                   no país, mas pela pressão econômica
    nam com o conceito de “multidão”?               Os movimentos sociais às vezes        çou com muitas dificuldades, a um         a caricatura de                            e política da União Europeia. O que
       Esse termo parte de uma crítica à         dão a impressão de que têm um gran-      certo ponto foi interpretado como “o      uma crise geral da                         isso sugere para o futuro da Itália?
    palavra “povo”, que é uma construção         de caminho a percorrer, mas muitas       Tea Party da esquerda”, mas isso não                                                    Berlusconi é um personagem inde-
    soberana. Povo. Pueblo. Popolo. Povus.       vezes há acelerações imediatas, im-      é verdade, ele é profundamente popu-      democracia e da                            cente. Mas o problema não é ele. O
    Spinoza diz que o povo é criado pelo
    Rei, é um sujeito que o Rei decide cons-
                                                 previstas. Ninguém poderia imaginar
                                                 a Primavera Árabe, por exemplo. Na
                                                                                          lar e reflete a tensão social do país.    respresentação. É                          problema é que ele dominou a Itália
                                                                                                                                                                               por 20 anos e, nesse período, o país
    tituir. A soberania é do povo, mas é o       Tunísia, o movimento já começa a re-     ●  Você esteve nas ocupações nos          preciso encontrar novas                    não conseguiu criar alternativas a ele.
    Rei que a representa. O Rei, a aristocra-
    cia, as oligarquias, os partidos políticos
                                                 nascer porque a nova classe dirigente
                                                 não é capaz de interpretar a substân-
                                                                                          Estados Unidos?
                                                                                             Tenho notícias de Nova York por
                                                                                                                                    formas de participação                     Agora a Itália vai acertar suas contas.
                                                                                                                                                                               [Pega a edição do dia do jornal “Cor-
    da democracia. O “povo” é a base de          cia dos protestos, que não eram só       Michael [Hardt], mas não estive lá. Es-                                              riere della Sera” e aponta a manchete




                                                 “
    toda soberania. Mas Spinoza diz que o        contra Ben Ali, eram contra a miséria,   tive nos protestos na Espanha, eu es-     nos alguns aspectos do Estado do           que diz que o ex-comissário europeu
    problema não é a unidade do povo,            contra a organização da sociedade tu-    tava dando aula em Sevilha no 15 de       Bem-Estar Social. Você acredita que        Mario Monti é o favorito para o cargo
    mas sua diferença, suas singularidades.                                               maio [primeiro dia de protestos]. Pou-    isso é possível ou mesmo desejável?        de primeiro-ministro.] Vamos entrar
    Ele diz que é através dessas singulari-                                               co depois fui a Madri lançar um livro e      Creio que não voltaremos ao Esta-       no governo de Monti, que vai fazer o
    dades que devemos criar uma unidade,                                                  participei de reuniões com eles. Desde    do do Bem-Estar Social, pelo menos         que a Europa decidir, com o apoio de
    mesmo que tendencial, porque nunca                                                    1968 não vejo nada igual. Estive tam-     não na forma que tivemos com Roo-          todos os partidos. Berlusconi talvez
    se chegará a uma unidade orgânica. Pa-                                                bém na ocupação aqui do Rio, onde         sevelt e o New Deal. A primeira res-       desapareça. Ainda tem pendências
    ra Spinoza é essa multidão que pode                                                   há umas 20 tendas, é bem simpática.       posta contra a crise foi justamente        com a Justiça, mas provavelmente
    criar a democracia, porque a democra-                                                 Gostei de ver a relação dos jovens        “Vamos fazer um novo New Deal!”,           não enfrentará consequências mais
    cia não é algo que os soberanos im-          Os movimentos sociais                    com os pobres, que é extremamente         mas acredito que isso é impossível. O      graves. O problema de Berlusconi é o
    põem. Já nós dizemos que a estrutura                                                  importante. A revolução possível está     New Deal, no fim das contas, foi um        problema da representação. O dinhei-
    da produção se transformou profunda-         às vezes dão a                           em reconhecer nos pobres o poten-         contrato constitucional entre o Esta-      ro e a comunicação dominam a de-
    mente. A unidade capitalista de produ-       impressão de que têm                     cial. Não é a riqueza que conta, mas      do e o capital privado, de um lado, e      mocracia e as possibilidades de ex-
    ção está em crise de fragmentação                                                     sim a liberação dessa energia que         os sindicatos e trabalhadores, de ou-      pressão. Não é um problema só da
    diante de singularidades sociais que se      um grande caminho a                      existe entre os pobres.                   tro. Hoje, como isso vai ser feito? O      Itália. Berlusconi se tornou a carica-
    tornaram produtivas. Isso quer dizer
    que cada um de nós, através de seus
                                                 percorrer, mas muitas                    ● Alguns observadores dizem que
                                                                                                                                    “Estado” são as finanças globais, os
                                                                                                                                    mercados são os autores do contrato.
                                                                                                                                                                               tura de uma crise geral da democra-
                                                                                                                                                                               cia e da representação. É preciso en-
    saberes e de sua capacidade de coope-        vezes há acelerações                     uma “vitória” possível para os protes-    Acima de tudo, acredito que o Bem          contrar novas formas de participa-
    rar com os outros, pode construir a
    verdadeira base comum da produção.
                                                 imediatas, imprevistas                   tos nos Estados Unidos e na Europa
                                                                                          seria um restabelecimento de ao me-
                                                                                                                                    Estar Social não deve ser uma meta, e
                                                                                                                                    sim uma condição. O Bem Estar Social
                                                                                                                                                                               ção. Enquanto não resolvermos isso,
                                                                                                                                                                               teremos crises continuamente. ■




                                                                                                                                                                                                              R$ 54,90




                                                                                                                                                                                     Maria de Lourdes Varanda &
                                                                                                                                                        132 páginas – 2011                 Maria Manuela Santos

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Entrevista antonio negri

  • 1. 6 Sábado, 12 de novembro de 2011 PROSA & VERSO ‘Vivemos uma crise de representação’ Filósofo italiano analisa causas de protestos populares nos EUA, na Europa e no mundo árabe ENTREVISTA Recebidos em seu (2004) — ambos publicados no Brasil pela Re- Barbosa, na quarta-feira, Negri falou ao GLOBO tempo como “manifes- cord — são citados com frequência por partici- sobre as motivações e perspectivas desses pro- Antonio Negri tos antiglobalização”, pantes das manifestações populares recentes testos e apontou o italiano Silvio Berlusconi, os livros escritos nos últimos anos pelo filósofo nos Estados Unidos e na Europa. De passagem que anunciou esta semana sua renúncia ao car- italiano Antonio Negri com o americano Michael pelo Rio, onde participou do seminário “Crise e go de primeiro-ministro, como exemplo da “cri- Hardt, como “Império” (2000) e “Multidão” revoluções possíveis” na Fundação Casa de Rui se de representação política” atual. Carlos Ivan Guilherme Freitas não é um presente dos ricos aos po- guilherme.freitas@oglobo.com.br bres, é uma condição da riqueza de um país. Seja por programas como o O GLOBO: Em um artigo recente, vo- Bolsa Família ou pelos suplementos cê e Michael Hardt argumentam que salariais europeus, o Bem Estar Social os protestos populares dos últimos deve ser uma condição. meses nos países árabes, na Europa e nos Estados Unidos, embora de natu- ● “Império” foi publicado em 2000, rezas diferentes, estão relacionados num momento de hegemonia ame- com “a falta — ou o fracasso — da ricana. Uma década depois, em um representação política”. Que falhas cenário diferente, quanto daquelas nas formas atuais de representação teses ainda é válido? política esses protestos apontam? Recebemos muitas críticas por “Im- ANTONIO NEGRI: A questão é com- pério”, mas hoje vemos que a globa- preender os pontos em torno dos lização exige uma organização. Em quais os protestos se desenrolam. Te- 2005, publicamos um livro que dizia mos uma crise econômica e social que que a dependência [em relação aos Es- é, cada vez mais, uma crise política. tados Unidos] tinha acabado. Víamos Começamos a ter a impressão de que essa tendência na economia mundial. as democracias ocidentais têm dificul- O Brasil, por exemplo, já havia ultra- dade de superar essa crise e não têm passado essa dependência. Antes a di- meios para responder a ela. Os jovens reita e a esquerda brasileiras discu- hoje protestam apaixonadamente con- tiam os Estados Unidos, hoje não é um tra as regulações financeiras, a falta de tema tão central. O tema hoje é como moradia, a dificuldade de entrar no se relacionar com Estados Unidos, Eu- mercado de trabalho. Na Europa e nos ropa, América Latina, China, Índia. Estados Unidos, onde o desemprego Cinco ou seis potências vão determi- cresce significativamente, não vemos nar o equilíbrio político, monetário, perspectiva de normalização da eco- energético, social do mundo. Essas nomia. E com normalização quero di- são as coisas sérias hoje. Além disso, zer uma situação em que os jovens com a globalização, o problema não é possam estudar e trabalhar. A crise mais o Estado-Nação, são os grandes real de hoje toca na questão da repre- espaços continentais. A situação na “ sentação política, que está muito atra- Grécia pode causar a crise do euro e sada, por assim dizer, e se constitui ANTONIO NEGRI: em passagem pelo Rio esta semana, filósofo italiano visitou acampamento de manifestantes na Cinelândia da União Europeia, seria um desastre através de eleições cada vez mais ca- para todos. Há o risco de uma crise ras, que só podem ser bancadas por ● Naquele artigo, você e Hardt afir- nisiana. O movimento dos Indignados, definitiva, que talvez não venha da ricos ou corruptos. mam que esses movimentos “precisa- na Espanha, também não foi previsto. Grécia, mas da Itália, da França... riam se desenvolver muito mais antes E o que eles exigem transcende as ● Você já disse considerar os protestos de poder articular modelos efetivos eleições. A primeira demanda é justa- ● Como o senhor recebeu a notícia da como fenômenos “multitudinários”, de alternativa social”. Como um mo- mente uma lei eleitoral proporcional, renúncia de Silvio Berlusconi? A saí- um termo derivado de Spinoza que vimento “multitudinário” pode tradu- que ultrapasse o dualismo partidário. da dele parece ter sido provocada aparece muito em seus livros com zir suas demandas em transforma- É uma questão de representação. O Berlusconi se tornou não pelas acusações que enfrentava Hardt. Como esses eventos se relacio- ções reais na esfera política? movimento nos Estados Unidos come- no país, mas pela pressão econômica nam com o conceito de “multidão”? Os movimentos sociais às vezes çou com muitas dificuldades, a um a caricatura de e política da União Europeia. O que Esse termo parte de uma crítica à dão a impressão de que têm um gran- certo ponto foi interpretado como “o uma crise geral da isso sugere para o futuro da Itália? palavra “povo”, que é uma construção de caminho a percorrer, mas muitas Tea Party da esquerda”, mas isso não Berlusconi é um personagem inde- soberana. Povo. Pueblo. Popolo. Povus. vezes há acelerações imediatas, im- é verdade, ele é profundamente popu- democracia e da cente. Mas o problema não é ele. O Spinoza diz que o povo é criado pelo Rei, é um sujeito que o Rei decide cons- previstas. Ninguém poderia imaginar a Primavera Árabe, por exemplo. Na lar e reflete a tensão social do país. respresentação. É problema é que ele dominou a Itália por 20 anos e, nesse período, o país tituir. A soberania é do povo, mas é o Tunísia, o movimento já começa a re- ● Você esteve nas ocupações nos preciso encontrar novas não conseguiu criar alternativas a ele. Rei que a representa. O Rei, a aristocra- cia, as oligarquias, os partidos políticos nascer porque a nova classe dirigente não é capaz de interpretar a substân- Estados Unidos? Tenho notícias de Nova York por formas de participação Agora a Itália vai acertar suas contas. [Pega a edição do dia do jornal “Cor- da democracia. O “povo” é a base de cia dos protestos, que não eram só Michael [Hardt], mas não estive lá. Es- riere della Sera” e aponta a manchete “ toda soberania. Mas Spinoza diz que o contra Ben Ali, eram contra a miséria, tive nos protestos na Espanha, eu es- nos alguns aspectos do Estado do que diz que o ex-comissário europeu problema não é a unidade do povo, contra a organização da sociedade tu- tava dando aula em Sevilha no 15 de Bem-Estar Social. Você acredita que Mario Monti é o favorito para o cargo mas sua diferença, suas singularidades. maio [primeiro dia de protestos]. Pou- isso é possível ou mesmo desejável? de primeiro-ministro.] Vamos entrar Ele diz que é através dessas singulari- co depois fui a Madri lançar um livro e Creio que não voltaremos ao Esta- no governo de Monti, que vai fazer o dades que devemos criar uma unidade, participei de reuniões com eles. Desde do do Bem-Estar Social, pelo menos que a Europa decidir, com o apoio de mesmo que tendencial, porque nunca 1968 não vejo nada igual. Estive tam- não na forma que tivemos com Roo- todos os partidos. Berlusconi talvez se chegará a uma unidade orgânica. Pa- bém na ocupação aqui do Rio, onde sevelt e o New Deal. A primeira res- desapareça. Ainda tem pendências ra Spinoza é essa multidão que pode há umas 20 tendas, é bem simpática. posta contra a crise foi justamente com a Justiça, mas provavelmente criar a democracia, porque a democra- Gostei de ver a relação dos jovens “Vamos fazer um novo New Deal!”, não enfrentará consequências mais cia não é algo que os soberanos im- Os movimentos sociais com os pobres, que é extremamente mas acredito que isso é impossível. O graves. O problema de Berlusconi é o põem. Já nós dizemos que a estrutura importante. A revolução possível está New Deal, no fim das contas, foi um problema da representação. O dinhei- da produção se transformou profunda- às vezes dão a em reconhecer nos pobres o poten- contrato constitucional entre o Esta- ro e a comunicação dominam a de- mente. A unidade capitalista de produ- impressão de que têm cial. Não é a riqueza que conta, mas do e o capital privado, de um lado, e mocracia e as possibilidades de ex- ção está em crise de fragmentação sim a liberação dessa energia que os sindicatos e trabalhadores, de ou- pressão. Não é um problema só da diante de singularidades sociais que se um grande caminho a existe entre os pobres. tro. Hoje, como isso vai ser feito? O Itália. Berlusconi se tornou a carica- tornaram produtivas. Isso quer dizer que cada um de nós, através de seus percorrer, mas muitas ● Alguns observadores dizem que “Estado” são as finanças globais, os mercados são os autores do contrato. tura de uma crise geral da democra- cia e da representação. É preciso en- saberes e de sua capacidade de coope- vezes há acelerações uma “vitória” possível para os protes- Acima de tudo, acredito que o Bem contrar novas formas de participa- rar com os outros, pode construir a verdadeira base comum da produção. imediatas, imprevistas tos nos Estados Unidos e na Europa seria um restabelecimento de ao me- Estar Social não deve ser uma meta, e sim uma condição. O Bem Estar Social ção. Enquanto não resolvermos isso, teremos crises continuamente. ■ R$ 54,90 Maria de Lourdes Varanda & 132 páginas – 2011 Maria Manuela Santos Rua Dias Ferreira, 135 Loja A 22431-050 – Leblon – RJ Tel.: (21) 2221-2823 www.martinsmartinsfontes.com.br