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Álvaro de Campos, a experiência de existir
Álvaro de Campos transpira emoção. A vida pulsa nas suas palavras, o poeta sente e quer sentir
de todas as maneiras. Existe e quer ser tudo e todos.
Ah, não ser eu toda a gente, toda a parte!
Querendo viver a totalidade, encontra um mundo fragmentado; como um vaso partido, parte
em busca do mistério e entusiasma-se e deprime-se. Dionisíaco, entrega-se à orgia das
sensações, crava as suas garras na terra e, embebido em feminilidade, funde-se com a noite
sagrada, ancestral, com o mar, de cujo cais partimos. Prometeico, saúda o novo mundo, uma
nova humanidade, seduzido pela tecnologia, pelas máquinas, pelo progresso que aproxima os
homens dos deuses. Hermesiano, lança-se à vida como uma viagem, está sempre de partida ou
de chegada, mesmo que nunca chegue, mesmo que nunca parta, mesmo que adie
indefinidamente a arrumação das malas. Deslizando pelo labirinto ou perdendo-se nele,
concilia os contrários, a razão e a emoção, a infância e a vida adulta, sonho e técnica, grandes
propósitos e nenhuma ação. Álvaro de Campos foi, de todos, o que mais desejou a pluralidade,
o que mais a sentiu, mas foi também o que se esqueceu de agir, o que viveu frequentemente
deprimido, enfim, o grande fracassado.
Álvaro de Campos nasceu em Tavira, no dia 15 de outubro de 1890. É
engenheiro naval mas agora está aqui em Lisboa em inatividade. É alto, magro,
e um pouco tendente a curvar-se, teve uma educação vulgar de liceu. Depois foi
mandado para a Escócia estudar engenharia, primeiro mecânica, depois naval.
Numas férias, fez a viagem ao oriente, de onde resultou o Opiário. Ensinou-lhe
latim um tio beirão que era padre.
A poesia de Campos retrata o universo do homem moderno, tanto no seu quotidiano, como
nas suas inquietações metafísicas; nega a racionalidade, que convoca para a ação objetivada e
recolhe-se nos seus sonhos, onde e quando tudo se torna possível, como o seu desejo de
abarcar a totalidade da existência.
Afinal, a melhor maneira de viajar é sentir.
Sentir tudo de todas as maneiras.
Sentir tudo excessivamente
Porque todas as coisas são, em verdade excessivas
E toda a realidade é um excesso, uma violência,
Uma alucinação extraordinariamente nítida
Que vivemos todos em comum com a fúria das almas,
O centro para onde tendem as estranhas forças centrífugas
Que são as psiques humanas no seu acordo de sentidos.
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Quanto mais eu sinta, quanto mais eu sinta como várias pessoas,
Quanto mais personalidades eu tiver,
Quanto mais intensamente, estridentemente as tiver,
Quanto mais simultaneamente sentir com todas elas,
Quanto mais unificadamente diverso, dispersadamente atento,
Estiver, sentir, viver, for,
Mais possuirei a existência total do universo,
Mais completo serei pelo espaço inteiro fora,
Mais análogo serei a Deus, seja ele quem for,
Porque, seja ele quem for, com certeza que é Tudo,
E fora d'EIe há só EIe, e Tudo para Ele é pouco.
Campos oscila entre a plenitude do sentido e o esvaziamento do mundo moderno. Em certos
momentos, irascível, noutros, dócil, irónico ou cético, capaz de sonhar tudo e sentir-se nada,
deixar-se abandonar ou saber-se lúcido. Atado à vontade de conhecer, reconhece que o
conhecimento é impossível e faz dessa impossibilidade o seu conhecimento. Álvaro de Campos
é o arquétipo do homem moderno, a voz que fala do inefável. Há sangue, suor e sémen nas
suas palavras.
Não: não quero nada
Já disse que não quero nada.
Não me venham com conclusões!
A única conclusão é morrer.
Não me tragam estéticas!
Não me falem em moral!
Tirem-me daqui a metafísica!
Não me apregoem sistemas completos, não me enfileirem conquistas
Das ciências (das ciências, Deus meu, das ciências!) —
Das ciências, das artes, da civilização moderna!
Que mal fiz eu aos deuses todos?
Se têm a verdade, guardem-na!
Sou um técnico, mas tenho técnica só dentro da técnica.
Fora disso sou doido, com todo o direito a sê-lo.
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Com todo o direito a sê-lo, ouviram?
Não me macem, por amor de Deus!
Queriam-me casado, fútil, quotidiano e tributável?
Queriam-me o contrário disto, o contrário de qualquer coisa?
Se eu fosse outra pessoa, fazia-lhes, a todos, a vontade.
Assim, como sou, tenham paciência!
Vão para o diabo sem mim,
Ou deixem-me ir sozinho para o diabo!
Para que havemos de ir juntos?
Não me peguem no braço!
Não gosto que me peguem no braço. Quero ser sozinho.
Já disse que sou sozinho!
Ah, que maçada quererem que eu seja de companhia!
Ó céu azul — o mesmo da minha infância —
Eterna verdade vazia e perfeita!
Ó macio Tejo ancestral e mudo,
Pequena verdade onde o céu se reflete!
Ó mágoa revisitada, Lisboa de outrora de hoje!
Nada me dais, nada me tirais, nada sois que eu me sinta.
Deixem-me em paz! Não tardo, que eu nunca tardo...
E enquanto tarda o Abismo e o Silêncio quero estar sozinho!