SlideShare uma empresa Scribd logo
1 de 41
Baixar para ler offline
ano
6
–
setembro/2021
Nº 50
Chegamos até aqui porque não caminhamos
sozinhos. Em cada passo do caminho, havia um
parceiro. Pessoas e instituições que nos
ajudaram a colocar no lugar cada peça
deste projeto social chamado Revista
Traços. Chegamos até aqui porque muitos
acreditaram e vieram conosco. E é assim
que queremos continuar, juntos!
Foram
50 edicoes!
Souza Cruz
BAT Brasil
Griô Produções
Bancorbrás Cultural
Digital SIGN
MNS Soluções Gráficas
SASSE Produtos Promocionais
Coronário Gráfica
Associação Cultural Namastê
Storica
Na Calçada
Studio Brava
Kabe Agência
Rockin’hood
Ribon
Cotidiano Aceleradora de Startups
Halegoria Cultural
Barba na Rua
Fermento
Cláudio Abrantes
Arlete Sampaio
Leandro Grass
Fábio Félix
Júlia Lucy
Rafael Prudente
Roberio Negreiros
Fundação Oswaldo Cruz
Universidade de Brasília
Secretaria de Estado de Cultura e
Economia Criativa do Distrito Federal
Secretaria de Estado de Trabalho do
Distrito Federal
Secretaria de Estado de Desenvolvimento
Social do Distrito Federal
Secretaria de Estado de Turismo do
Distrito Federal
André Clemente (Secretário de Economia)
Hamilton Pereira, Guilherme Reis e Bartolomeu Rodrigues (Secretários de Cultura)
Jaime Recena (ex-secretário de Turismo)
Vanessa Chaves de Mendonça (Secretária de Turismo)
Rodrigo Rollemberg (ex-governador do Distrito Federal)
Fundo de População das Nações Unidas
UNICEUB Educação Superior
Vamos
pra
mais
50?
A todos os que participaram da construção
desta história, o nosso MUITO OBRIGADO!
50//21
CANVAS
//
24
MORDA
//
8
HOLOFOTE
//
9
BUTECO
//
74
POUCAS
E
BOAS
//
7
UNFPA
//
72
RASCUNHO
//
38
CÓDIGO
DE
CONDUTA
//
6
Diretora Geral: Michelle Cano
Diretor Executivo: Reinaldo Gomes
Diretor de Redação: André Noblat
Diretor Institucional: Rogério Barba
Editora-chefe: Juliana Valentim
Redator-chefe: José Rezende Jr.
Editora de fotografia: Thaís Mallon
Fotógrafo especial: Marcos André Pinto
Fotógrafo convidado: Fábio Setti
Repórter: Maíra Valério
Colunista: Nelson Fernando Inocencio da Silva
Freelancers: Marianna França e devana babu
Projeto Gráfico e Direção de Criação: Chica Magalhães
e Tiago Palma (Fora da caixa)
Revisora de textos: Jaqueline Fernandes
Estagiárias: Giovanna Figueiredo, Shyrlem Barbosa
e Ana Noronha
Coordenadora de Comunicação: Juliana Cury
Social Mídia e Redatora de Mídias Sociais: Katia Aguiar
Web designer: Camila Koproski
Coordenadora Social: Hellen Cris de Carvalho Vaz
Coordenação Administrativa e Financeira: Associação
Traços de Comunicação e Cultura
Gerente administrativa e financeira: Nayara Souza
Assistente de produção (financeiro): Juliana Fagundes
Gerente de Recursos Humanos: Graciete dos
Santos Malta
Supervisores de pessoal: Raissa Falcão, Matheus Rocha Lago,
Rosilda Flor e Stefano Felipe Silva Borges
Coordenador Corporativo Responsável pela Publicação:
Fora da Caixa Ltda-ME
Periodicidade: Mensal
Tiragem: 2.000 exemplares
Endereço: CLN 208 Bloco D Sala 211 – Asa Norte
CEP 70853-540 – Brasília-DF
Contatos
Redação: redacaotracos@revistatracos.com
Institucional: tracos@revistatracos.com
Comunicação:comunicacao@revistatracos.com
Telefone: (61) 3033 4541
Siga nas Mídias Sociais: @RevistaTracos
Visite a página: revistatracos.com
ISSN: 2763-8502
// 40
3X4
Priscila acumula várias jornadas:
além de porta-voz da cultura,
futura advogada e mãe e pai
de Samuel, ainda faz um curso
técnico de redação, com vistas
a outro sonho: escrever livros
de Direito, sobre injustiças que
conhece na própria carne.
// 69/76
TOCA RAUL
Carioca de nascimento e
brasiliense de coração, Marlene
Souza Lima passeia pelo jazz
com sua paixão: a guitarra. Já o
Culto da Malditas passeia entre
o sacro e o profano com sua
arte híbrida e transversal.
// 10
MOVIMENTE-SE
Houve um tempo em que, em
qualquer canto de Brasília,
ouvia-se rock. Foram tantas
bandas e espaços que fizeram
parte desta história, que a
Setur-DF fez um mapeamento
e criou a icônica Rota do Rock.
Ah, se a cidade falasse...
// 46
MIQUÉIAS PAZ
O primeiro mímico da Capital
Federal acaba de completar
quatro décadas de trajetória.
De uma trajetória que passou por
diferentes fases, sempre usando
a arte como instrumento de
resistência e conexão.
// 26
MANUELA KOROSSY
Aos 19 anos, dona de uma voz considerada surreal, a soprano
brasiliense Manuela Korossy conquista uma vaga na disputadíssima
Juilliard School, melhor escola de artes performáticas do mundo, e vai
em busca da carreira internacional.
// 12
ENTREVISTA
“Está tudo nas canções”. É assim que Dado Villa-Lobos
sintetiza sua extensa carreira. Neste bate papo com a Traços,
ora idílico, ora pesado, o artista fala sobre a cidade, o
presidente, o selo Rockit!, trilhas sonoras e várias outras coisas.
// 56
INSTANTES
Mila Petrillo é um patrimônio cultural de Brasília. Ao longo
de sua carreira, as lentes da fotógrafa capturaram a alma da
cidade em diferentes períodos, como momentos da ditadura,
o início da efervescência cultural da capital, além de inúmeros
espetáculos e iniciativas sociais.
Revista TRAÇOS
Ano 6  setembro 2021
4 5
P O U CA S
E B OA S
O Código de Conduta estabelece algumas diretrizes que
têm como objetivo orientar o trabalho dos Porta-Vozes
da Cultura e dos colaboradores da Traços. Ao reportar
casos que fujam das políticas de atuação, você colabora
com o desempenho e o aperfeiçoamento do projeto.
A Traços é uma
publicação sobre arte
e cultura, vendida
nos espaços culturais
e gastronômicos de
Brasília pelas mãos dos
Porta-Vozes da Cultura
– pessoas que estavam
em situação de rua ou em
extrema vulnerabilidade
financeira. Por meio
da revista, o projeto
contribui com a geração
de renda e o ganho de
autonomia dos Porta-
Vozes, que ficam com
70% do valor de cada
exemplar.
6 7
Fone: 3033-4541
André Noblat
andre@revistatracos.com
O uso de linguagem
racista, sexista, lgbtfóbica
ou ofensiva não é aceito
no projeto Traços.
Reportar comportamentos
preconceituosos é dever de
todos.
Respeitar o público ou
qualquer colaborador da
traços e seus parceiros é
essencial, sem jamais agir
de forma agressiva ou
violenta.
Em hipótese alguma o
Porta-Voz da Cultura
poderá oferecer a revista
após ingerir bebida
alcoólica ou estar sob efeito
de qualquer droga.
Os Porta-Vozes da Cultura
não devem comercializar
a revista no território de
venda de outros Porta-
Vozes.
Ao se identificar como
Porta-Voz da Cultura, com
colete e crachá da Traços, o
Porta-Voz se compromete
a não pedir qualquer tipo
de doação aos clientes, seja
em seu nome ou em nome
da Traços.
É responsabilidade do
Porta-Voz da Cultura
informar aos clientes sobre
a data de publicação das
edições que estão sendo
oferecidas para a venda.
1
2
3
4
5
6
Os exemplares da revista
somente podem ser
vendidos pelo valor
estipulado na capa, não
importando o número da
edição.
Em nenhuma hipótese será
permitido trabalhar com a
venda da revista estando
acompanhado por crianças.
Apenas os exemplares da
Revista Traços podem ser
vendidos pelos Porta-Vozes
da Cultura. Nenhum outro
produto ou serviço deve ser
oferecido.
O Porta-Voz da Cultura deve
se apresentar com uniforme
e crachá de identificação
em todas as atividades
vinculadas ao projeto.
Os Porta-Vozes da Cultura
não estão autorizados a
utilizar a marca Traços de
maneira desrespeitosa,
trazendo prejuízo ao projeto
e/ou seus colaboradores.
Ao abordar o público, o
Porta-Voz da Cultura deverá
usar máscara cobrindo
nariz e boca, mantendo o
distanciamento seguro e as
mãos sempre higienizadas,
conforme recomendado
pelas autoridades sanitárias.
7
8
9
10
11
12
Meia centena de publicações que
tentaram retratar um pouco da
riqueza da cultura produzida em
nossa cidade. Uma cidade jovem,
mas incrivelmente rica em artistas
e projetos das mais diversas
linguagens. Uma cidade precoce,
que já na década de 80 se destacava
no país pelas bandas de rock n’roll
que aqui nasciam. Uma cidade que
precisará de pelo menos mil edições
da Traços para contar as histórias
lindas que compõem o DNA do
nosso quadradinho.
Justamente por isso, nesse número
marcante em que chegamos,
fazemos questão de reafirmar
o compromisso editorial dessa
publicação com a cultura de
Brasília. Ainda temos muito o que
mostrar e sabemos que sempre
surgirão novos artistas e projetos.
Temos um trabalho lindo e quase
infinito para fazer, e continuaremos
fazendo com todo o carinho e
paixão que colocamos em cada uma
das 50 primeiras edições.
Para homenagear as histórias que
já contamos e as que ainda estão
por vir, trouxemos Dado
Villa-Lobos para a capa desta
edição especial. O guitarrista da
Legião Urbana, compositor e dono
de selo musical, abriu as portas
da sua casa e o seu coração para a
Traços, em uma entrevista sobre
passado, presente e futuro.
A quinquagésima edição
também nos fez arriscar: pela
primeira vez a Traços será
preto e branco. Todos os meses,
quando produzimos uma edição
da revista, também gostamos
de fazer arte. Isso aparece no
formato dos textos, fotos e
diagramação. Sempre tentamos
inovar e, dessa vez, resolvemos
tentar algo que nunca tínhamos
feito. Tivemos que repensar
fotos e diagramação. Esperamos
que vocês gostem do resultado.
Por fim, é um orgulho muito
grande para nós, equipe da
Traços, dividir o resultado de
cada edição com vocês, nossos
leitores. É uma honra fazer parte
da história da cultura de Brasília
e poder amplificá-la.
E CHEGAMOS A
TRACOS NUMERO 50
QUE VENHAM
AS PROXIMAS
50 EDICOES.
8 9
H O LO
F OT E
M
orda
MÚSICA
Vaga Carne
2019 – GRACE PASSÔ E RICARDO ALVES JR.
O filme Vaga Carne (2019) é uma transcrição
da peça, de mesmo nome, da atriz e
dramaturga Grace Passô. Ela dirige o filme
junto com o também diretor Ricardo Alves
Jr. Em 45 minutos de tela, podemos ver
recursos precisos de som, luz e cena. Esses
elementos compõem a experiência radical
de uma voz que toma o corpo de uma
mulher. Nessa tensão entre fala e gesto,
ambas travam uma busca entre identidades
e papéis sociais. Esse, que é um dos
trabalhos mais instigantes do cinema brasileiro recente,
está disponível para locação na plataforma de vídeo
Embaúba Filmes, distribuidora especializada em cinema
brasileiro: embaubafilmes.com.br.
Pedro B. Garcia é realizador audiovisual e faz parte do duo
Casadearroz (casadearroz.com)
LIVRO
Almanaque
do Teatro
LEÔNIX
O Almanaque do Teatro é uma revista didática
divertida, com passatempos e design super atual.
Destinado à alfabetização estética, passa longe
do conteudismo. De forma lúdica, valoriza o
saber teatral e a cultura local, gerando suporte
para o arte-educador em sala de aula e oficinas.
O Almanaque do Teatro foi elaborado com
recursos do FAC, de acordo com o Currículo
em Movimento, referencial teórico da área, e
sugestões de mais de 25 arte-educadores e
150 estudantes das Escolas Parques. É possível acessar
gratuitamente pelo Instagram @euleônix ou pelo site www.
almanaquedoteatro.com
Leônix é atriz, dramaturga, arte-educadora e autora do Almanaque
do Teatro, entre outras obras.
FILME
KAÊ GUAJAJARA
Último single da
rapper Kaê Guajajara,
Por Dentro da Terra,
foi lançado em 2021
pelo Coletivo Azuruhu,
e segue traçando
a linha política e
poética de seus
trabalhos anteriores: a
cantora, compositora,
escritora, atriz e arte-
educadora utiliza suas
composições para
falar sobre a diáspora
dos povos indígenas.
Unindo ancestralidade
e futurismo indígena, é
um grito de resistência
decolonial e uma
busca por reparação
histórica através do
aprofundamento
político e da ocupação
dos espaços. Azuruhu,
fundado pela Kaê, é
Thaís Mallon é fotógrafa e editora de fotografia
da Traços.
A BSB Comidinhas é uma empresa
familiar que produz seus alimentos
sob encomenda, de forma
personalizada para cada cliente.
Segundo Patrícia Gribel, uma das
idealizadoras do negócio, o objetivo
é fazer comida com memória
afetiva: “Se o cliente fala para mim
‘estou com saudade de comer um
doce que eu comia na infância’, nós
vamos tentar fazer”, afirma.
O empreendimento surgiu em
2020, após uma das filhas de
Patrícia pedir para que a tia,
Daniella Gribel, preparasse
Saiba mais: @bsbcomidinhas
um selo dedicado
a impulsionar
artistas indígenas
na música, literatura
e audiovisual.
Seu primeiro EP
é de 2019. Vale a
pena ouvir toda a
discografia, uma
aula urgente de
decolonialidade.
Por
Dentro
da
Terra
o cardápio. Atualmente, os
mais pedidos da marca são a
Cheesecake, o famoso Quindão,
e a queridinha dos clientes, a
deliciosa Banoffee, uma torta
feita com bananas, creme e um
molho espesso de caramelo.
A relação de Patrícia com os
consumidores é algo muito
importante para ela e vai
muito além de uma simples
relação cliente e fornecedor:
“Tenho muito cuidado com
meus clientes, por exemplo,
quando algum me faz uma
encomenda, penso nesse cliente
enquanto estou cozinhando
o pedido. Cada entrega eu
faço pessoalmente e, se não
puder, quem vai é alguém
da família. E vai sempre um
cartão personalizado, eu faço
questão. Porque, se a proposta
do BSB Comidinhas é afeto e
memória, começa com afeto. Eu
acredito muito na gentileza e
no agradecimento, sabe? E está
faltando isso no mundo”.
Os pedidos podem ser feitos
pelo WhatsApp, através de um
link disponibilizado no Instagram
da empresa.
BSB
COMIDINHAS
Farinha
de trigo,
leite,
ovos e o
elemento mais
importante:
afeto
algumas rabanadas (recheadas
de leite ninho), para uma
confraternização de final de ano
no trabalho. Não deu outra!
Após os colegas experimentarem
as rabanadas, começaram a
surgir vários pedidos de pessoas
que também queriam o prato em
suas ceias.
Porém, Daniella ficou
preocupada, pois tem um
problema nas articulações e
temia não conseguir atender a
demanda. Foi então que Patrícia
se dispôs a ajudar a irmã com as
encomendas. “Natal e ano novo,
a gente não teve sossego”,
relembra Patrícia.
Patrícia conta que, no início,
foi sua filha mais nova quem
anunciou o negócio em um
grupo de WhatsApp dos
moradores da quadra onde
residiam, no Lago Sul. Depois
disso, os pedidos não pararam
mais de chegar. Começaram,
então, a pensar em outras
receitas para incrementar
Por Shyrlem Barbosa
Fotos Thaís Mallon
10 11
Eu sempre digo que nasci de
cesariana. Não foi de parto
normal como as outras cidades.
Vim ao mundo com dia marcado
e, sem falsa modéstia, uma
plateia já me esperava. Um país
inteiro aguardava ansiosamente a
minha chegada.
No começo,bem no começo,aqui
não havia nada.Só a poeira da
terra vermelha dançava alegre pelas
ruas recém-formadas.Foi nessa
época que os candangos vieram.
Traziam na mala a esperança de
dias melhores,muitos sonhos e
saudades.Com o passar do tempo,
tiveram filhos.E esses filhos,com
seus amigos,me deram a alegria
de ver nascer um sotaque só
meu.Ainda misturadinho,é bem
verdade,mas só meu.
E não foi apenas o sotaque
que aqueles jovens me deram.
Lembro-me, como se fosse
hoje, daquelas almas inquietas,
movidas pelas paixões e
rebeldias da juventude, com pés
que caminhavam firmes sobre
mim, a Capital do Brasil.
Talvez tenha sido em uma
garagem o primeiro acorde.
Ou debaixo de um dos prédios
da asa norte. A verdade é que
depois do primeiro, veio outro, e
outro, e outro, e outro. Até que
todas as coisas que precisavam
ser ditas viraram música. Era ali
que o nosso rock nascia.
Foi na Colina, na Universidade
de Brasília, que a coisa começou
a se incendiar de verdade. De
lá, ganhou a cidade. Em 1978,
veio o Aborto Elétrico, e aí já
estava certo: a gente entraria
para a história como a Capital
do Rock. De um rock que se
apropriou deste chão, gritando
protestos e ocupando espaços.
Rota brasilia
capital do rock
Por Juliana Valentim
Fotos Thaís Mallon
Guardo na memória alguns
momentos marcantes, como
o primeiro show da Legião
Urbana no Cave, Guará. Feliz
de quem estava lá! E tinha a
Plebe Rude que a gente amava,
Capital Inicial, Raimundos,
Cássia Eller, Natiruts. E o Mel
da Terra que abriu caminho
para todo mundo.
Sempre tive um orgulho danado
de ser tão musical. Houve um
tempo em que, em qualquer
um dos meus cantos, ouvia-se
um som – Na UnB, no Teatro
Garagem, no Nilson Nelson,
na Torre de TV, na Concha
Acústica, no Rádio Center e
nas velhas e conhecidas quadras
– como na 407 norte, onde o
Aborto Elétrico e a Blix 64
tocavam. E tinham também os
subsolos da 207 que abrigavam
diversas salas de ensaio. Foi lá
que o Porão do Rock surgiu.
Quanta coisa acontecia naqueles
mundos.
É fácil a gente se perder nessas
memórias. São tantas bandas e
espaços que fizeram parte desta
história, que sempre imaginei
como seria se todos fossem
organizados em uma única rota.
Pois foi isso que aconteceu.
Acabo de ganhar a Rota do
Rock! A Secretaria de Turismo
do Distrito Federal (Setur
DF) mapeou 37 pontos que
fazem parte da história do rock
brasiliense, em um trabalho
conjunto com a Secretaria de
Estado de Economia, com a
faculdade União Pioneira de
Integração Social (Upis), além
da idealização e curadoria de
Philippe Seabra, vocalista da
Plebe Rude, e a produção de
Tata Cavalcante.
A Secretária da Setur DF,
Vanessa Mendonça, disse: “O
segmento musical do rock como
destino turístico será tratado
como atração principal e com
as luzes que realmente merece.
Considerar esse estilo tão
importante para a história da
nossa capital sob a perspectiva
da consolidação de um destino
é uma conquista inédita e
de valor estratégico para o
desenvolvimento de todos
os setores, em especial, o do
turismo”.
Agora, você imagina a alegria
desta jovem cidade aqui, que
vai poder proporcionar, aos
moradores e turistas, uma
experiência única e afetiva, ao
percorrer os pontos onde tudo
aconteceu? Aliás, você sabia
que o rock foi tombado como
Patrimônio Cultural Imaterial
do DF?
“Com milhões de discos
vendidos, filmes e
documentários com milhões de
espectadores, teses e doutorados
dedicados às letras dessas
bandas, o Rock de Brasília é
um alicerce da contestação e
liberdade de expressão no Brasil,
e isso tem que ser celebrado”,
afirma Philipe Seabra.
Eu não poderia concordar
mais contigo, caro Philipe. E
recomendo ao leitor que ainda
não fez a Rota, que faça. Porque,
em cada canto mapeado, eu vou
desvendando os meus segredos,
segredos de um tempo que
ainda vive.
*Para conhecer os pontos da
Rota Brasília Capital do Rock,
acesse: www.setur.df.gov.br
EN T RE
V I S TA
12 13
Villa-Lobos
Está tudo
nas canções
“Está tudo nas canções.” A cidade,
o presidente, as favelas, o senado, os
uniformes, os cartazes, os cinemas
e os lares. O ônibus de ida ou volta
pro Planalto Central. A travessia
do Eixão. Os pegas da Asa Sul. A
Asa Norte, Taguatinga, Planaltina,
Ceilândia e Sobradinho. O Caseb,
o Lago Norte e a UnB. A curva
do Diabo, o Parque da Cidade, os
opalas, as motos e os “camelos”. Além
do tédio (com um T bem grande
pra você) embaixo dos blocos. Ah! E
muitas outras coisas.
Quando Eduardo Dutra
Villa-Lobos – que nasceu na Bélgica
e passou parte da infância em países
como Uruguai e França – chegou
a Brasília, ele ficou bestificado
com a cidade: pareceu-lhe um
autorama gigante. Morou
na 104 e na 213 Sul. Foi
alfabetizado na escola parque
307/308 e educado na Escola
Classe da 204 Sul. Andava de
skate com amigos como Herbert
Vianna e Bi Ribeiro, garotos do
bloco ao lado. Brincava na lama
quando chovia e a cidade ainda não
era asfaltada nem arborizada.
Por André Noblat, devana babu,
Maíra Valério e Shyrlem Barbosa
Fotos Marcos André Pinto
14 15
Roubava gasolina para ir com os
amigos nas festinhas. Trombava
com Oswaldo Montenegro pelas
entrequadras e seguia o Liga Tripa
no Beirute. Tem uma mãe que se
casou com o pai de Dinho Ouro-
Preto e conheceu, no Uruguai, o
diretor teatral Hugo Rodas, que
frequentava a casa da família. É
também sobrinho-neto de Heitor
Villa-Lobos, que dá nome à sala do
Teatro Nacional.
Na adolescência, conheceu os
carinhas da cidade que tocavam
punk rock na calçada de lanchonetes
como a Food’s e começou a segui-los
por aí.
Eventualmente, acabaria se
tornando o guitarrista da banda
mais icônica e famosa de Brasília, e
talvez a maior do Brasil: a Legião
Urbana.
No dia do aniversário de Dado, 29
de junho, ele e o parceiro Marcelo
Bonfá, baterista da Legião,
recuperaram, enfim, o direito de uso
do nome da banda que construíram,
em uma decisão histórica do
Superior Tribunal de Justiça, após
uma longuíssima batalha judicial.
Nesta edição especial da Traços,
a nossa 50ª edição, não nos
furtamos ao prazer de bater um
papo ora idílico, ora pesado, sobre a
cidade, o presidente, o selo Rockit!,
trilhas sonoras e várias outras
coisas. Embora Dado sintetize
corretamente: “Está tudo nas
canções.” “Ponto.”
Naquela música, Leila [do sétimo
álbum da Legião Urbana, A
tempestade] tem um verso que
diz assim: “E domingo/ cachorro-
quente com as crianças na
Fernanda.” Essa Fernanda é a sua
esposa?
É ela mesmo. É que a gente
tinha o costume, nesses anos,
1994, 1995, de todo domingo se
juntar com Renato [Russo], já na
condição de HIV positivo. E ali,
na música Leila, justamente, ele
cita que todo domingo a gente se
encontrava, Fernanda fazia um
cachorro-quente e a gente ficava
ouvindo música, conversando e
jogando jogos de tabuleiro, tipo
Imagem e Ação, sabe? Coisas
assim.
A Fernanda foi a primeira
empresária da banda, né?
O que aconteceu foi que a
Fernanda era relações públicas
de uma casa lá em São Paulo,
a Napalm, que durou pouco
tempo. Era uma casa de punk
rock e a gente, em 1983, estava
começando. A gente gravou umas
demos e o Renato começou a
distribuí-las. Fernanda recebeu
essa demo e o Renato ficou três
horas com ela no telefone. Ele
consegue convencê-la a agendar
uma data lá no Napalm com a
Legião. Lá fomos eu, Renato
e Bonfá. Pegamos um busão e
fomos até São Paulo, e aí a gente
conhece Fernanda. E, aí, eu e
Fernanda temos um... Como se
chama isso hoje? Um crush. Uma
coisa, assim, imediata, e a gente
está casado até hoje.
Aí ela vira a nossa primeira
empresária, realmente. E ela é
também designer gráfica, fazia
as capas dos discos e tal. Mas
chegou um momento em que
começou a ficar complicada a
relação dela ser minha mulher
e ter que lidar com os outros
rapazes da banda, que começaram
a virar estrelas do rock. Então eu
falei para ela, no segundo disco:
“Chega. Vamos arranjar outro
empresário.” O papel dela foi
determinante para levar a gente
até onde a gente chegou, em
termos empresariais e estruturais.
Hoje em dia é ela quem administra
sua carreira?
Total. Por exemplo, nessa fase
em que a gente começou a fazer
eventos comemorando trinta
anos dos álbuns – claro que
tudo isso com muitas questões
jurídicas com herdeiros e coisa e
tal –, foi ela que chegou um dia
para mim e falou assim: “Cara, a
gente vai fazer.” Eu falei “Cara,
esquece isso, pra quê? A minha
vida não gira mais em torno da
Legião Urbana.”
O cara da gravadora veio com
essa ideia de fazer uma edição
comemorativa do primeiro disco,
com outtakes, demos e tal.Tanto
que saiu o disco remasterizado,
um disco duplo. Aí Fernanda
fala: “Cara, vamos fazer uma
excursão disso, vamos juntar
uma banda, junta a sua banda”,
os meus parceiros. E vamos
chamar o André [Frateschi,
vocalista da banda durante as
turnês comemorativas], com quem
já tínhamos uma relação de trinta
anos. Justamente quando a gente
estava lançando esse primeiro
disco, a gente estava tocando na
festa da peça Feliz Ano velho,
[baseada no romance homônimo]
do Marcelo Rubens Paiva, que é
um grande parceiro também.
Foto:
Marcos
André
Pinto
16 17
André é filho de Denise Del
Vecchio, que atuava na peça, era
uma criança que a gente ficava
tomando conta dele no camarim
enquanto a peça acontecia, e
depois a gente ia pro palco tocar.
Eu tinha reencontrado o André
num projeto do Banco do Brasil
de covers dos Beatles.Tocamos
eu, Liminha, João Barone, um
monte de convidados, e o André
era um deles. Quando a gente
estava ensaiando lá no estúdio
do Liminha, e eu vi ele cantando,
meu deus! Ele cantou as músicas
de modo surreal. Oh! Darling
e I am the walrus.. Era, tipo,
impressionante. A Fernanda
insistiu para que chamássemos
ele para essa turnê comemorativa.
Ela falou com umas produtoras
aqui do Rio, eu liguei para o
André e ele topou.
Só que ele estava fazendo uma
minissérie chamada Magnífica
70, da HBO. O diretor geral
da série era um grande amigo,
Cláudio Torres, irmão de
Fernanda Torres. Ele que tinha
feito os cenários da excursão do
V, e ele ama a Legião Urbana,
também. A gente virou e
falou pra ele: “Cara, a gente tá
precisando do André pra ensaiar
aqui com a gente e fazer essa
excursão.” Aí o Cláudio virou
e falou assim: “Sem problema.
Vou matar o André no próximo
episódio.” Foi lá e matou.
Isso tudo para falar da Fernanda,
que articulou essa coisa toda e
que, se dependesse de mim, nada
disso teria acontecido. Eu ia ter
ficado no meu canto fazendo
as minhas coisas com os meus
parceiros, e botando de lado a
questão da Legião. Mas foi tão
fabuloso voltar ao palco e tocar
com esses caras, e com o Bonfá,
ter um encontro de novo com
essa energia incrível que é a
Legião Urbana e o que nossas
músicas despertam no público.
E aí vocês fizeram a turnê, que foi
super bem-sucedida, pelo que a
gente viu. Vai haver um segundo
momento? Vocês vão celebrar
outros discos?
A ideia original era chegar até
o Quatro estações. Aí, veio a
pandemia e a gente saiu de cena.
Veio toda a questão judicial, que
a gente ganhou lá no STJ, e está
tudo tranquilo nesse sentido.
Agora, é esperar o momento pós-
pandêmico para pensar em botar
de novo no bloco na rua.
Aproveitando que agora vocês
têm a posse legal do nome, né?
Quais serão os desdobramentos
disso, agora vocês podem fazer
várias coisas?
Hoje, Brasília passa por esse
momento bizarro.Tem esse
maluco aí no planalto, que,
caramba! Nunca vi isso. Antes de
mais nada, é esperar as coisas se
normalizarem. A gente não sabe
exatamente quando.
Vem aí uma variante delta [da
Covid-19] com tudo. Aqui no
Rio de Janeiro já tá rolando,
apesar das pessoas estarem, ao
mesmo tempo, vacinando-se,
que é uma coisa muito boa. Mas
vamos lá. Vamos aguardar.
Por falar na situação política
atual, que paralelos você traçaria
entre este momento e aquele em
que vocês começaram, no final
da ditadura?
São paralelos bem estranhos.
Então,traçando esse paralelo,ali
era uma coisa realmente séria.A
gente estava querendo a volta da
democracia,a volta do voto.E
agora ficam com essa cortina de
fumaça,voltando com uns tanques
esfumaçados passando pela rua,
pelo planalto,acabando com o
que seria a República do Brasil e
transformando isso aqui,realmente,
em uma República de Bananas.
E quando eu ouvi que eles
foram lá pra Formosa, pra Lagoa
Formosa, eu lembrei de um
show da Legião que a gente fez
lá, da rádio Transamérica. Isso
antes da Legião gravar disco e
tudo. Lembrei daquele lugar, que
realmente é uma lagoa.
É lá que que esses milicos vão
treinar. E aí tudo veio e se
misturou na minha cabeça, e eu
fiquei realmente confuso. Bem
confuso.
Você ainda mantém relações com
Brasília?
Sim, claro. A minha formação
passa por Brasília. Ponto. Se as
pessoas me perguntam, onde quer
que seja, “de onde você é?” Eu
falo assim: “Eu venho de Brasília.
É de lá que eu venho.” Eu estou
aqui no Rio de Janeiro há trinta
e tantos anos, mas de onde eu
sou? Sou de Brasília, cara. Foi ali
que eu me criei durante parte da
infância e da minha adolescência.
São momentos marcantes na
formação de qualquer pessoa. E
Brasília, cara, esse lugar é louco.
Foto:
Fernando
Schlaepfer
Quando eu vi essa cena patética do
desfile de tanques [na Esplanada
dos Ministérios, no dia da votação
da PEC do voto impresso],o
“fumacê”,um negócio grotesco,eu
só me lembrei de um momento
em 1984,na votação das Diretas
Já,da Dante de Oliveira [PEC
que instituiria o voto direto].Eu
estava no salão ali do Congresso,
que dá para a praça,sabe? Estava
ali embaixo.E estavam lá vários
deputados,como o Juruna e o
próprio Dante de Oliveira.Já
eram cinco da tarde quando eu vi
os tanques,caminhões e soldados,
todos,cercando o Congresso.
Aquilo sim era de verdade.Depois,
era o Newton Cruz,a cavalo,
chicoteando os carros nos sinais
quando teve,ao mesmo tempo,um
buzinaço ali.Eu vi isso também.
18 19
Em 1971, 1972, eu morava na
104 Sul, quadra de diplomatas
e militares. A cidade ainda não
tinha a arborização que tem,
não tinha os gramados, e a gente
brincava de polícia e ladrão,
andava pelo Eixão correndo, não
tinha carro. Se chovia, formavam
poças incríveis de lama em que a
gente mergulhava. Eu estudava
ali na Escola Parque da 308 Sul,
me alfabetizei naquela escola, e
também na Escola
Classe 204 Sul.
Eu tenho muito
orgulho de ter sido
alfabetizado em
Brasília, em escola
pública. Depois, a
gente mudou para
o Lago Sul, o pai e
a mãe construíram
uma casa, e eu
fui estudar no
Nossa Senhora do
Perpétuo Socorro,
em 1975, 1976.
Eu tinha morado em
Montevidéu [Uruguai], Belgrado
[Sérvia], aí chego em Brasília,
esse lugar que é um autorama
gigante, ainda em construção.
Os amigos ali de quadra, naquele
gueto de diplomatas.
A partir desse momento, em
1980, 1981, a gente começou a
seguir esses malucos, que eram
o Renato, o Fê, o Gerusa, o
André Mueller, esses caras aí. E
ali tudo começou, e hoje, onde
foi parar, né? A gente faz parte
da identidade cultural desse
lugar, Brasília. Ponto.
Quem imaginaria, naquela
época, ainda crianças, que
isso fosse acontecer com essa
representatividade tão grande
e tão importante pro Brasil, de
botar uma cara para Brasília. Na
nossa época, tinha o Oswaldo
Montenegro, que a gente via
passar na minha quadra. Ele, o
Mongol, a rapaziada do Liga
Tripa. Então muitas coisas foram
muito importantes na minha
formação em Brasília. E isso
tudo se reverte no fato de eu ter
participado dessa formação da
cultura e identidade por meio da
música, do rock.
Ele adora isso, tipo, fazia parte
do mito. Mas eu não, eu sempre
fui muito pragmático e falei
assim: “Cara, aconteceu porque
a gente deixou acontecer. A
gente não estava preparado para
isso. Que sirva de lição. Deu
ruim”. A gente estava muito
feliz de estar de volta a Brasília,
no Mané Garrincha, mas deu
ruim. Claro que a gente nunca
mais voltou a Brasília. Mas isso
não comprometeu em momento
algum a minha relação com
a cidade, essa relação afetiva,
emocional, e que eu tenho muito
dentro do meu coração, dentro
da minha formação como pessoa,
como músico, como um cara
que enxerga como eu enxergo o
mundo hoje. Então eu consegui
separar uma coisa da outra, mas é
fato que foi um momento crítico
e complicado.
Mas vocês pensaram em voltar?
Não. Com o Renato não. O
Renato era impossível. Ele falou:
“Brasília nunca mais, quero que
se foda.” Renato realmente falou
assim: “Brasília nem fudendo.”
Mas eu já toquei aí em carreira
solo, em alguns lugares, no
festival do Giraffas, enfim. Sem
problema nenhum. Eu acho
que o Renato era tinhoso nesse
sentido, mas passou a infância, a
adolescência, a vida inteira dele
lá. É a formação dele. E ele tinha
uma lealdade com Brasília muito
forte, muito grande.
Como era o processo criativo da
banda?
Oitenta por cento das vezes,
um processo coletivo, quando
se juntavam os caras – eu,
Renato, Bonfá e, quando estava
o Negrete, o Negrete. Assim foi
com o primeiro disco inteiro.
Quando voltei, em 1979, a
cidade já tinha crescido um
pouco mais, se estruturado. Foi
quando eu conheço os caras do
punk rock. O Aborto Elétrico,
a Blitx. Eles passam pela minha
quadra, a 213 Sul, e picham o
muro lá da garagem AE [Aborto
Elétrico], e tal.
Quando entrevistamos o Gabriel
Thomaz, do Autoramas, ele
falou de como esse momento foi
importante, porque era a primeira
vez que eles começaram a ter
orgulho de Brasília, porque havia
ícones para falar, lugares e coisas
de que, antes, ninguém falava.
São tantos espaços identitários
que vão além dessa formação de
espaço de poder, né?
É, incrível. O projeto Cabeças, o
Parque da Cidade. A gente usava
Brasília e circulava por Brasília
no Grande Circular, a pé, de
bicicleta. Alguns caras já tinham
carro, a gente bancava a gasolina,
roubava gasolina no prédio, enfim
(risos). A gente fez muita coisa. E
está tudo nas canções.
Em algum momento, porém, há
uma espécie de desquite, né?
A história do Mané Garrincha,
aquela confusão toda e “nunca
mais vou voltar pra Brasília.”
[Em 1988, o show de retorno da
Legião Urbana a Brasília, já como
grandes ídolos, transformou-se
em uma confusão generalizada.
Eles nunca mais voltaram a tocar
na cidade]. Você também se
desquitou da cidade, também
ficou muito magoado? E, se isso
aconteceu, como conseguiu
reconstruir essa relação?
O Renato ficou muito sentido.
Ele ficou um tempo aí em
Brasília, num hotel. Ah, as
pessoas queimando disco, e tal.
Na “Casinha do Parkway”, onde a banda
ensaiava antes de se mudar p/ o RJ .Brasília, 1984
No Museu da Cidade. Brasília, 1983
Foto:
Daniel
P
Foto:
Daniel
P A passagem dos músicos do Projeto LUXXXanos
pelo Congresso Nacional. Brasília, 2017
Foto:
Fernanda
Villa-Lobos
Show na sala Villa-Lobos do Teatro Nacional. Brasília, 1987
20 21
O primeiro disco foi feito no
estúdio de ensaio no Rádio
Center, [e] no quarto do Renato.
Músicas tipo Petróleo do futuro,
Teorema, O reggae, Soldados,
Será. As pessoas concentradas e
sempre num processo coletivo,
no sentido de que, até o Renato
sendo o cara, digamos assim, um
mentor da coisa, cobrava muito
de todo mundo para que todos
participassem e criassem aquele
negócio. Aí depois o Renato
ficava ouvindo aquilo lá, aquela
base, e acabava escrevendo algo
ali dentro da base. Foi como eu
aprendi a fazer música, e até hoje
é assim. É assim que eu faço
música e temas pro cinema, pra
seriados de TV, pros meus discos.
A gente dava duro mesmo. E ali,
naquele momento, sobriedade
total. Sobriedade, concentração
e “vamo fazer música”, “vamo
gravar”, “vamo criar”.
E aí o Renato dava uns nomes,
“Ah, Pais e filhos.”“Ah, por quê?”
Porque, cara, neguinho estava
virando pai, né? O
Bonfá havia tido
o João Pedro, o
Nicolau [filho do
Dado] estava nascendo, e
a gente ficava no estúdio lendo
aquela revista Pais e Filhos, para
ver como é que é o negócio.
Eles cederam o estúdio, a gente
gravava, e eu tinha a distribuição
da multinacional, que, no caso,
era a EMI, Virgin. E aquilo foi
isso, a gente pegando bandas
novas e botando no estúdio pra
fazer acontecer uma cena. A cena
do rock estava acabando.Tava,
tipo, desmilinguindo. Era um
momento que era basicamente
muito sertanejo, e que o Brasil era
isso, o que me incomodava muito
– o Brasil era 8 ou 80, não tinha
um meio-termo. Então a ideia de
você ter um selo é criar um meio-
termo dentro do mercado.
Duas bandas icônicas de Brasília
foram lançadas pelo seu selo, a
Low Dream e a Dungeon. Como
você conheceu a Low Dream
e como era a relação com [o
guitarrista] Fejão e a galera da
Dungeon?
Foi surreal. Acho que partiu
mais do André Mueller, o
André X. Mas, é claro, porra,
Dungeon, Fejão, a gente circulava
junto. A gente estava sempre
juntos. Aliás, ele partiu de uma
forma dramática. Mas o disco
do Dungeon é incrível, metal
pesado, e ele tocando naquela
guitarra.Tem um estilo, tem
uma sonoridade. Me lembra Jimi
Hendrix.Tem algo diferente
aí, algo que, para quem curte
guitarra e entende daquele
negócio... eu sempre senti isso.
O Fejão era a mesma coisa,
só que no metal pesado.
A gente falou: “Bom, os
caras querem lançar um
disco, então vamos prensar
o disco aqui. Vinil. E assim
foi. Foi maravilhoso. Na
medida do possível que a gente
pode fazer com o Dungeon.
E aí, o Low Dream era essa
coisa post-punk, aquela onda
do Loveless, do My Blood
Valentine, aquela coisa shoegaze.
A ideia era essa, ser proativos e
dar oportunidade pra conseguir
fazer acontecer de algum jeito.
É claro que era uma estrutura
pequena, a gente não tinha
dinheiro de Marketing. Sempre
essa é uma grande treta. 
Já que estamos falando de
guitarras, que tipo de equipamento
você usa hoje em dia?
Eu comecei com a Dadocaster
[apelido da primeira guitarra dele],
que o Loro chamava de guitarra-
boi, porque ela não tinha agudo,
era difícil.
Existe essa mitologia do rock de
que é todo mundo muito doido
o tempo todo, mas a maioria
das bandas, por trás, têm uma
trajetória de muito trabalho e
estúdio, mesmo que quebre tudo
na frente dos outros, né?
É verdade. É muito suor. Eu
lembro quando a gente estava
gravando o Quatro estações, que a
gente saiu do zero, praticamente,
e acabou um ano no estúdio.
Foram realmente quatro estações
para fazer aquele disco.
E a gente batia o ponto. Era de
três da tarde às nove da noite,
porque a gente parava para
assistir a novela Vale tudo.Todo
mundo ia para casa assistir
a novela. Mas estávamos lá
trabalhando de, sei lá, meio-dia,
uma hora da tarde, até a hora da
novela, lá no estúdio do Mayrton.
“Ah, não, mas é por causa do
Turguêniev [escritor russo, autor do
romance Pais e Filhos]...” Não. Era
só a revista.
Você está fazendo alguma trilha,
no momento?
Viu um seriado chamado Bom
dia, Verônica? Na Netflix? Então.
Essa trilha é minha. E agora vai
começar a segunda temporada.
Eles vão começar a gravar, então
eu estou fazendo. E, ao mesmo
tempo, eu estou fazendo um
filme sensacional que é a história
da Rádio Fluminense, que vai se
chamar Aumenta que é rock’n’roll.
É a história de uma turma que
fez aquela rádio.
Tocar em rádios alternativas,
estar em veículos alternativos,
para, ali, se o cara for bom, ele vai
adiante. A ideia do selo foi essa.
A gente aproveitou o momento,
em que a cena musical estava
realmente caída, para tentar
dar uma sacudida na poeira. A
gente conseguiu alguma coisa.
Aí, vieram vários selos também,
como o Banguela, que lançou o
Raimundos, do Miranda e dos
Titãs, em São Paulo. Então foi
esse momento. Cá entre nós, a
gente foi precursor dessa ideia.
E é sempre a fim de trabalhar e
descobrir novas linguagens.
É mais ou menos a mesma coisa
que aconteceu em Brasília, com
as bandas. Aconteceu em Niterói,
ali do outro lado da poça, com
esses malucos que chegaram
numa rádio podre e virou a Rádio
Fluminense. Aliás, que toca a
nossa primeira demo no dial
brasileiro.Tô fazendo a trilha
disso aí.Vai ser bem bacana, os
atores são maravilhosos. Uma
história bem legal do Luís
Antonio Mello, o cara que criou
a rádio. 
Em relação à Rockit!, como é o
processo de curadoria para definir
quem vai ser apoiado pelo selo?
Hoje em dia, a rapaziada é
carioca, porque é mais fácil, né.
Os caras estão aqui, o estúdio
é aqui, enfim. Mas isso tudo
aconteceu em 1992, quando o
Collor acabou com a indústria
fonográfica no país, com aquele
Plano Collor, sei lá. Os estúdios
fecharam, foi uma crise bem
grande. E, aí, eu estava lançando
selo na época. Eu me associei a
alguns estúdios, aqui do Rio, para
ter o apoio e gravar.
Foto:
Marcos
André
Pinto
22 23
E aí enfim, em 1983, eu consegui
viajar e comprei uma Ibanez
Roadstar III. Mas, na época, meu
amplificador era o Checkmate.
Tinha trocado o falante por um
Novik, que é daqueles que você
botava em carro. Pô, era muito
ruim. Quando a gente chegou
na gravadora, os caras tinham lá
uns Fender Twin, velho. E tinha
uns pedais – eu sempre gostei
muito de pedal. Eu sou um freak
de pedal. Eu coleciono, digamos
assim. E, aí, claro, quando foi
possível viajar, comprar, e tal, eu
comecei a comprar. Eu tenho
tudo – o mínimo. Eu não tenho
essa quantidade absurda, mas
tenho o que me serve. Então eu
tenho desde Telecasters, Stratos
e Les Pauls até uma sitar e umas
coisas velhas: uma Harmony, uma
Epiphone Coronet.
Virava uma festa, aquilo ali, com
aquelas violas, enfim. Nicolas
Behr. Aliás, eu fiz a trilha sonora
de um documentário chamado
Braxília, maravilhoso. Do
Nicolas. A real é que a gente
não lidava muito bem com essa
coisa de falsetes e das pessoas
falando da “harmonia da terra”,
da “natureza”, não sei. Mas,
independentemente disso, era
aquilo, naquele momento. Mas
você imagina que dali saiu o
Milton Guedes, por exemplo.
Eram grandes músicos, surreais,
que estavam ali. 
Mas, na época, você é
adolescente, tem aquela turma.
A gente ouvia Gang of Four, Joy
Division, essas coisas. Não batia
com o Mel da Terra. E, um dia,
eu lembro de um show que a
gente fez, tinha uns festivais do
GDF em que você ia tocar nos
coretos das satélites, e aí, um dia,
estamos lá tocando numa praça
dessas, 1983, coisa assim.
Quando eu olho pro lado,
o maluco fazendo a luz,
enlouquecidamente, era o cantor
do Mel da Terra, aquele louro
cabeludo. Aí, quando eu olhei, eu
falei: “Caramba, o cara do Mel da
Terra, fazendo a luz aqui!”
A gente costuma falar que o
objetivo da nossa revista, em
Brasília, é apresentar Brasília
para Brasília, porque a gente
sabe que os nossos artistas, às
vezes, têm que sair para voltar
famoso. E vocês fazem esse
percurso. Vocês sentiram isso?
Que tiveram que sair para voltar?
Não, claro. É um clássico. Santo
de casa não faz milagre. É
difícil. Isso a gente ouve desde
sempre. Mas a gente teve que
sair, na verdade, porque o eixo
cultural das gravadoras era o
Rio de Janeiro.Tinha São Paulo,
mas o forte era basicamente
Rio de Janeiro, onde todas as
gravadoras estavam sediadas, a
EMI, CBS, Warner. E Brasília
era muito longe. Mil e duzentos
quilômetros daqui do Rio, uma
hora e meia de avião. E a gente
acreditava que, para a parada dar
certo, tinha que estar ali do lado
todos os dias, falando praqueles
caras, lá naquela companhia,
naquele prédio.Tinha que
estar presente, perturbando
os caras. E todas as redes de
televisão eram aqui, Rede
Globo, Manchete. Mas a gente
certamente teve esse impulso
de sair de Brasília porque sabia
que em Brasília não ia acontecer
nada muito assim, entende?
Hoje, no Brasil, claro, é tudo
mais conectado.
Você também curte pedalar e
jogar futebol. Você tem mantido
essas atividades na pandemia?
Endorfina, né, cara.Você tem que
produzir endorfina. Aqui no Rio,
são seis dias na semana. Domingo
eu descanso, mas segunda, quarta
e sexta eu corro aqui na Lagoa,
dá 10km, depois terça, quinta e
sábado, bike. O Rio de Janeiro é
o lugar mais lindo, realmente, pra
você andar de bicicleta.Você tem
praia, montanha. Então eu saio
daqui da minha casa na Gávea,
subo a Mesa do Imperador, na
Floresta da Tijuca, e vai embora,
Paineiras, e sobe o Cristo. Quando
você vê, está no Cristo, ali embaixo
do filho do homem, tranquilo,
tira uma foto, com os amigos, ou
sozinho, não importa.Vai e desce,
e aí o dia já está ganho.
O esporte é isso que agrega.Você
conhece pessoas.O futebol,que
eu jogava,agora parei,machuquei.
É um negócio pra jovem,né.Eu
não posso mais machucar.Mas no
futebol eu conheci muita gente,de
trocar ideia,grandes amigos tipo o
Toni Platão [da banda Hojerizah].
A gente tinha uma pelada aqui
nos anos 1980,na PUC,todo
sábado.Depois,a gente foi jogar
lá no campo do Chico Buarque.
Jogava no time contra ele,Chico
e todos os outros artistas que lá
estavam,também.De,tipo,chamar
o Chico pra cantar no meu disco,
entendeu? Foi surreal.Isso,para
mim,foi o maior dos benefícios,
digamos assim.Claro que jogar
futebol é maravilhoso,e tal,mas
eu ter conhecido desde,sei lá,
Sócrates,Zico,Chico Buarque,
Júnior,e ter jogado com esses caras,
entendeu.Então,pra mim,isso é
uma oportunidade impossível de
não aceitar que é bom.
Quando minha mãe morava na
China, em Pequim, em 2002, eu
fui pra lá e trouxe um Guzheng,
que é aquela harpa chinesa, que
eu toquei em vários lugares, em
várias trilhas.Toquei até num
disco do Caetano e do Mautner
[Eu não peço desculpa], na música
O namorado/Urge Dracon.
Eu falei “vou tocar o meu
instrumento chinês aqui”, então
tem lá o solo desse negócio. 
Quando começaram a surgir
as bandas punks em Brasília,
já havia algumas bandas de
rock anteriores, como a Mel da
Terra, que faziam um lance mais
progressivo. E a gente sabe que o
punk surgiu, também, como uma
resposta ao rock progressivo,
que estava se tornando muito
elaborado. Como era a relação
de vocês com essas bandas?
Vocês as viam com reverência
ou como inimigas do que vocês
propunham na época?
Eu acho que eles eram diferentes.
Definitivamente,a gente não
estava na sintonia deles.Era
o Mel da Terra,Sol Maior,
né? Mas,em compensação,o
Liga Tripa era aquela banda
que a gente via aqueles oito,
dez malucos descendo a 109
Sul,parava no Beirute,a gente
tomando uma cerveja.
E eu adoro instrumentos
diferentes. Então estou sempre
viajando para fazer as trilhas
sonoras incríveis. Pra você ter
ideias sempre, um instrumento
diferente, um pedal diferente,
uma coisa que vai te trazer uma
atmosfera diferente, uma ideia
musical diferente. Eu tô sempre
atrás. Eu tenho um Seize, um
violão, um lance turco, que é
elétrico e tem uma escala com
quartos de tom, e tem aquele som
bem oriental.
Foto:
Marcos
André
Pinto
C
A
N
V
A
S
aqui você
encontra novos
e consagrados
talentos das artes
visuais da cidade
siga a artista
@diana.salu
24 25
Diana Salu é artista, escritora,
publicadora e produtora, travesti e
lésbica. Graduada em Artes Plásticas
pela Universidade de Brasília, tem
em sua trajetória uma profunda
conexão com o fazer artístico autoral,
independente, dissidente. Trabalha
fanzines, poemas e eventos como
espaços de experiência de liberdade:
“onde o encontro pode acontecer,
consigo e com as outras. Onde
possamos nos inventar sem a rigidez
das estruturas estabelecidas”, conta.
Publicou diversos trabalhos autorais
em histórias em quadrinhos, incluindo
Então você quer escrever personagens
trans e Cartas para ninguém, que foi
publicado em 2019 e republicado de
forma independente em 2021. Com
ele, ganhou o troféu HQMIX 2020
na categoria Projeto Gráfico. O livro
trabalha o hibridismo de linguagens
e gêneros, com olhar para poesia,
desenho, paisagem e memória.
“Cartas para Ninguém é o meu
último livro publicado e um marco
importante na minha trajetória
enquanto quadrinista, sendo também
minha estreia enquanto poeta. O
livro habita esse lugar entre as coisas,
entre os gêneros literários, misturando
cartas em quadrinhos, poemas e
desenhos soltos enquanto caminha por
paisagens reais, imaginárias e memórias
- revisitando-as, recontando-as e
inventando-as. Um exercício de narrar-
se e, assim, criar-se”, diz a artista.
Diana foi co-fundadora da MÊS,
editora independente de Brasília com
foco em quadrinhos, artes visuais
e literatura, em atividade de 2013
a 2017. Também foi a idealizadora
da Dente - feira de publicações,
trabalhando na produção até a quinta
edição, em 2019.
DIANA
SALU
27
26
NASCE
UMA
ESTRELA
Aos 19 anos, dona de uma voz
considerada surreal, a soprano
brasiliense Manuela Korossy dá alma
às mulheres trágicas da ópera,
conquista uma vaga na lendária
Juilliard School, a melhor escola
de artes performáticas do
mundo, e vai em busca da
carreira internacional
Por José Rezende Jr.
Fotos Thaís Mallon
28 29
Era uma menina que amava
os dinossauros e queria ser
paleontóloga. Ou então diretora
de cinema, porque gostava tanto
dos filmes que chorava quando
eles chegavam ao fim. Mas
um dia, quando tinha 6 anos
de idade, seus pais a levaram
para assistir pela primeira vez a
uma ópera ao vivo. A ópera era
Carmen, de Bizet, encenada na
Torre de Tevê. Ela bem que podia
ter achado tudo muito chato.
Afinal, se tanta gente grande
ainda torce o nariz para a ópera,
imagina uma criança de 6 anos.
Só que Manuela não achou nada
chato. Muito pelo contrário. O
encantamento foi tamanho que,
aos 12 anos de idade, lá estava
ela estreando nos palcos como
integrante do coro infantil de
outra montagem de Carmen,
desta vez no Teatro Nacional.
E hoje, aos 19, apenas 13 anos
depois daquele dia na Torre,
quando fechou os olhos para
não ver Don José assassinar a
cigana que o rejeitara, a soprano
brasiliense Manuela Korossy
realizou o sonho de nove entre
dez jovens talentos de música,
dança e artes cênicas do mundo
inteiro: ser aceita na Juilliard
School, em Nova York.
Com mais de um século de
tradição e considerada a melhor
escola de artes performáticas
do planeta, a Juilliard é para
poucos, muito poucos. A começar
pela concorrência: de cada 100
candidatos apenas sete são
aceitos, depois de passarem por
exames duríssimos de admissão.
Se o primeiro funil é o da
excelência artística, o segundo é
o financeiro: estudar na Juilliard
custa em torno de US$ 50
mil por ano (cerca de R$ 260
mil reais), fora os custos de
hospedagem numa das cidades
mais caras do mundo.
Algo totalmente fora da realidade
para uma jovem de classe média,
filha de pais assalariados. Pois a
menina brasiliense que amava o
cinema e os dinossauros não se
contentou “só” em ser aprovada
com louvor: ela conquistou uma
bolsa de estudos de 90%, a mais
alta concedida pela Juilliard em
muitos anos. Vale ressaltar que
as cobiçadas bolsas da escola são
concedidas por critérios sociais,
mas também pelos méritos
artísticos – e pelo grau de desejo
da escola em ter determinado
talento entre seus alunos.
“Eu sonhava com a Juilliard
desde os meus 15 anos. Mas ela
é uma escola ridiculamente cara,
com um percentual de admissão
impraticável. Pelo menos eu
pensava assim. Pra você ser
admitida e ganhar uma bolsa tão
alta, a sua audição tem que ser
muito, muito, muito boa”, afirma
Manuela.
Perfeccionista ao extremo – e ela
não teria chegado aonde chegou
se não fosse extremamente
perfeccionista – Manuela
não achou sua audição assim
muito, muito, muito boa. Mas
a rigorosa banca examinadora
da Juilliard decidiu o contrário.
Depois de ser aprovada nas
duas primeiras fases de testes,
que consistia na avaliação de
vídeos com repertório operístico
gravados pelos candidatos,
ela foi para a terceira e última
fase, uma audição on-line com
os professores da escola pelo
aplicativo Zoom.
No meio desse exame final,
um dos professores perguntou:
“Você que é a cantora do
Brasil?”. Depois de ouvir a
confirmação de Manuela, o
professor emendou: “Parabéns,
você é muito talentosa, viu?”.
Detalhe: poucos dias antes dessa
terceira e última fase, ela havia
testado positivo para Covid. O
vírus não chegou a comprometer
o pulmão. Manuela começou
tratamento com corticoides
e passou por um tratamento
fonoaudiológico no HRAN.
Mesmo assim, foi para a audição
final com a garganta ainda
irritada e as vias aéreas inchadas.
Felizmente, o que estava em jogo
na audição decisiva era menos a
voz e mais a diretibilidade, que é
a capacidade de ser dirigida em
cena. Fosse como fosse, o elogio
daquele professor era um spoiler:
a “cantora do Brasil”já havia
conquistado o coração da Juilliard.
Foto:
Thaís
Mallon
30 31
Antes do
começo
Para entender como em tão
pouco tempo Manuela Korossy
chegou aonde tão poucos talentos
conseguem, é preciso voltar ao
começo. Ou melhor, ao antes do
começo.
A futura história de amor de
Manuela com o canto erudito
começou na barriga da mãe,
Gabriela, que cantava trechinhos
de músicas clássicas para a filha
que ia nascer. Gabriela nunca se
apresentou profissionalmente,
mas estudou canto inspirada pelo
pai, o imigrante húngaro Miguel
Korossy, que, segundo ela, tinha
uma voz divina. Manuela não
chegou a conhecer o avô, mas a
genética...
Manuela nasceu e cresceu numa
casa que respira música. Desde
cedo a mãe, Gabriela, e o pai,
Laycer, despertaram na filha o
gosto por jazz, MPB, rock dos
anos 70 e, é claro, música clássica.
Aos 3 anos de idade, ela revelou
aos pais o seu pedido pra Papai
Noel. “Eu quero um negócio que
faz assim”, explicou, repetindo o
gesto de abrir e fechar os braços.
O pai e a mãe custaram a decifrar
o enigma. Até que mataram a
charada: não seria um acordeon?
“É, igual o do Piazolla”, explicou
a menina. O genial músico
argentino era o preferido do
avô Miguel, que, é bom lembrar,
Manuela não chegou a conhecer.
Mas a genética...
A surpresa maior ainda estava
por vir. Os pais rodaram a cidade
à procura de um acordeon
em miniatura, que servisse de
brinquedo para uma criança de 3
anos. Pois mal desembrulhou o
presente de Papai Noel, Manuela
colocou o instrumento no colo,
esticou o fole um pouquinho,
fechou, esticou de novo, fechou...
“E na terceira vez ela começou
a produzir os sons originais
de Asa Branca”, lembra a mãe.
“Claro que ela não tocou com
as harmonias e tudo, mas era a
Asa Branca! A partir daí a gente
começou a ficar mais atento a
essa ligação da Manu com a
música.”
Mas o canto estava longe de
fazer parte da vida de Manuela,
embora ainda bem pequenininha
ela cultivasse o hábito de
cantarolar enquanto mastigava
a comida. Esse hábito persiste
até hoje, mas só quando ela
está distraída. Outro costume,
à primeira vista estranho, mas
que os amantes da música e dos
animais hão de entender, é o que
ela tem de conversar cantando
com a gata da família, a Musetta,
que ganhou esse nome em
homenagem à cortesã da ópera
La Bohème, de Puccini, uma das
preferidas de Manuela.
Aos 7 anos, Manuela foi
matriculada num projeto de
musicalização para crianças
da UnB. Daquele, que era um
projeto de extensão dos alunos
da universidade, migrou para a
Escola de Música de Brasília,
inicialmente para estudar piano
erudito. Mas ela não gostava
nem um pouco das aulas. Faltava-
lhe disciplina para estudar o
instrumento.
O que ela gostava mesmo era de
cantar no coral infantil Primo
Canto,formado por alunos
da Escola de Música que se
destacavam nas disciplinas teóricas.
Apesar de não ser uma aluna muito
boa em piano,aprendia muito
rápido todas as outras matérias
relacionadas à música.
O futuro profissional de Manuela
seria traçado pelas professoras do
Primo Canto. Elas chegaram à
conclusão que Manuela não tinha
problemas de aprendizagem. O
fato é que ela estava sendo mal
direcionada para o piano, quando
na verdade tinha um talento
extraordinário para o canto.
Manuela passou então a ser
acompanhada pelo departamento
da Escola de Música voltado para
alunos com altas habilidades.
O passo seguinte seria,
naturalmente, a mudança para o
curso de canto. Mas, pelas regras
da Escola, esse curso só estava
disponível para jovens a partir
de 16 anos de idade, e Manuela
tinha 15. A solução foi mudar a
regra, e receber como aluna de
canto aquela que, apenas quatro
anos depois, conquistaria uma
vaga na Juilliard.
Duas
Carmens
No meio do caminho, entre a
menina que tocou Asa Branca
num acordeon “igual do Piazolla”
e a adolescente que provocou a
mudança na regra de admissão
do curso do canto da Escola
de Música de Brasília, houve
uma cigana chamada Carmen,
fundamental para as escolhas
futuras de Manuela. Ou melhor:
houve duas Carmens. A primeira
Carmen, recordemos, foi a da
Torre de Tevê, aos 6 anos de
idade, que ela descreveu assim:
“A sensação que eu tive era a de
estar numa sala de cinema muito
grande, com uma tela enorme.
Só que estava tudo acontecendo
ao vivo. O grande diferencial do
teatro, do balé e da ópera é que
você não tem uma câmera fechada
em cima de você. Então toda a
movimentação, todo o figurino,
é tudo muito maior do que uma
montagem para a câmera, e aquilo
tudo acontecendo ao vivo foi
muito intenso pra mim. Carmen
é uma história que culmina num
feminicídio, mas eu lembro que
achei tudo muito bonito, porque
o cenário era todo colorido e todo
mundo cantava o tempo todo.
Lembro também que fiquei triste
porque a Carmen morria no final.”
Foto:
Thaís
Mallon
32 33
Amor x
Sacrifício
Manuela sempre soube o
tamanho do desafio que tinha
pela frente. Afinal, o canto
erudito exige muito mais que
uma bela voz.
“A ópera é uma linguagem que
mistura tudo. Você tem que
ser cantora, tem que ser atriz,
tem que ser uma excelente
musicista, porque são peças muito
complexas. Você tem que ter
muito discernimento de quais
são as suas prioridades, porque é
uma demanda de estudos muito
grande “, ela afirma.
Mas será que toda essa demanda
significa fazer enormes sacrifícios?
“Desperdiçar”a juventude?
Deixar de ter vida própria para se
entregar à arte? Manuela diz que
com ela não é assim.
“Eu amo o que faço. Por isso,
acredito que o meu sacrifício seria
muito maior caso eu optasse por
uma outra carreira tradicional,
mesmo que a demanda de
trabalho fosse bem menor. Cantar,
para mim, não é um martírio.
É só uma questão de eleger
prioridades”, Manuela afirma.
Fora a dedicação férrea aos
estudos da música, Manuela é
uma jovem normal, que troca sem
pestanejar uma balada cheia de
gente por um barzinho com as
pessoas mais queridas. As amigas
e os amigos não são tantos assim,
mas ela os considera seus irmãos,
para rir e chorar juntos. São a
família que ela teve a sorte de
escolher, como costuma dizer.
Não está namorando no
momento, porque a prioridade
é a música. Gosta de cozinhar, e
nas horas vagas estuda história
da moda e desenha figurinos
vintage, meio anos 50, que têm
tudo a ver com o seu estilo de
vestir. Se não fosse cantora
erudita, talvez fosse estilista.
Na música, entre outros, curte
Pink Floyd, Caetano Veloso,
Puccini, Verdi e Bizet, e se
espelha nas sopranos italianas
Gabriella Tucci e Renata Tebaldi,
duas das maiores cantoras
eruditas de todos os tempos.
Ama de paixão o cinema, e
se divide entre a doçura de
Tornatore (de Cinema Paradiso,
seu filme preferido), o humor
ácido de Tarantino e a melancolia
de Lars von Trier.
Na literatura, prefere as obras
densas. Entre seus amores
literários estão o bardo
Shakespeare, o poeta T.S Eliot e
o Victor Hugo de O último dia de
um condenado, que ela considera
“uma das obras pró-democracia
mais geniais do mundo”. Dos
brasileiros, Carlos Drummond de
Andrade e Jorge Amado.
Seu projeto de leitura é algum
dia terminar Trópico de Câncer,
de Henry Miller. “É um livro de
uma acidez intragável, que eu
nunca termino de ler porque o
jeito que ele descreve as misérias
humanas me deixa numa bad
muito grande. Mas no dia que eu
tiver uma vida completamente
tranquila, eu termino”, promete a
soprano que interpreta mulheres
trágicas, vítimas dessas mesmas
misérias humanas.
Manuela vai muito além de
“apenas” interpretar essas
personagens. Ela faz um
mergulho na alma de Carmen,
Manon, Mimi, Violetta e tantas
outras, para tentar entender o
que as levou a um desfecho tão
trágico – destino de 90% das
mulheres de seu repertório.
“Quando a Manu se apaixona por
alguma coisa ela se entrega tão
absolutamente que se torna quase
uma obstinação. Ela acorda e
dorme ouvindo a música. Lê tudo
sobre as personagens, estuda a
fundo os papéis”, conta sua mãe,
Gabriela.
Para interpretar, por exemplo,
Manon Lescaut, da ópera de
mesmo nome, ela foi atrás da
novela L’Histoire du Chevalier
des Grieux et de Manon Lescaut,
do Abade Prévost, que serviu
de inspiração para Puccini. Para
dar voz à vendedora de flores
Violetta Valéry, de La Traviata,
de Verdi, mergulhou numa
edição do romance A Dama das
Camélias, de Alexandre Dumas
Filho, com prefácio de Otto
Maria Carpeaux.
A segunda Carmen entrou
em cena seis anos depois da
primeira. Manuela tinha 12
anos quando foi indicada para
participar do coro infantil da
montagem da ópera de Bizet,
no Teatro Nacional. Foi outro
encantamento, que selaria de vez
o seu futuro profissional.
Manuela ficou fascinada com a
oportunidade de ver uma ópera
sendo construída por dentro,com
todas as engrenagens expostas.O
coro infantil participava apenas de
duas cenas bem pequenas,mas ela
e as outras crianças acompanharam
todas as etapas de montagem,
estavam lá durante os ensaios,e
eram ensaios muito intensos e
longos,durante meses,até chegar à
récita com tudo pronto.
“Essa visão de backstage
[bastidores] mudou
completamente a minha
percepção sobre a ópera. Eu
entendi que o canto era uma
profissão, que eu poderia fazer
aquilo pro resto da vida. Uma
profissão criativa, que te bota
o tempo inteiro em atividade,
que te bota pra estudar o
tempo inteiro. Era um universo
extremamente estimulante, e
pra minha sorte eu tive essa
percepção muito cedo. Foi ali que
eu decidi: isso é o que eu quero
fazer da minha vida.”
Foto:
Thaís
Mallon
34 35
“A Manu vive, dá alma a essas
personagens. Eu acho que isso é
o mais importante no trabalho
dela”, diz Gabriela. “A obstinação
da Manu não é só pela perfeição.
A obstinação dela é dar voz a
essas personagens. Nas religiões
afro-brasileiras, as pessoas que
emprestam o corpo para as
divindades se manifestarem são
chamadas de ‘cavalos’. Acho que a
Manu é isso: um cavalo da arte.”
Sensibilidade
e coragem
– O que você quer com o canto
erudito, Manu?
– Quero ser uma cantora de
carreira internacional.
O diálogo entre a professora
Vilma Bittencourt, da Escola
Música de Brasília, e a jovem
aluna de 15 anos, no primeiro dia
de aula, foi uma amostra do que
viria quatro anos depois.
“Já na primeira aula a Manu
apresentou um material vocal
maravilhoso, uma inteligência
musical bem acima do normal.
A principal dificuldade da jovem
aluna, logo diagnosticada pela
professora, era o fato de que por
ser muito jovem ela ainda não
estava pronta para cantar peças
mais complicadas. A musculatura
precisava ganhar tônus. Só que
Manuela, muito ávida, queria
cantar tudo de uma vez.
“A gente precisava colocar um
freiozinho na Manu, pra ela
desenvolver a musculatura sem
se machucar. Só que ela queria
cantar o tempo inteiro. Eu dizia:
‘Querida, calma, senão você
vai estressar a sua musculatura,
você tem que ter um descanso’.
Ela respondia: ‘Ah, eu descanso
quando for dormir’. E vivia
cantarolando pelos corredores da
escola”, conta a professora.
Manuela amadureceu e
aprendeu a não machucar o seu
instrumento, que é a voz. Não
há de ter sido missão das mais
fáceis para uma artista que, a
exemplo dela, procura sempre ir
além. “Eu nunca trabalho aquém
do esforço que eu deveria estar
empreendendo”, diz ela.
Franklin Segredo, professor
particular de canto de Manuela,
diz que além de qualidades
técnicas excepcionais, a aluna
tem duas característica que
fazem com que ela se destaque
no universo do canto erudito:
sensibilidade para entender suas
personagens e coragem para
superar qualquer obstáculo.
Eu me encantava cada vez
mais porque ela aprendia e se
desenvolvia muito rápido, e logo
estava cantando quase como uma
profissional. Um aluno comum
levaria de quatro a cinco anos
para ficar com a voz do jeito
que a Manu ficou. Mas ela só
precisou de metade desse tempo”,
lembra a professora.
Vilma Bittencourt explica que
inteligência musical é mais do
que apenas ler o que está escrito,é
entender a teoria daquilo,entender
por que tal coisa está acontecendo
musicalmente,qualidades que
Manuela tem de sobra.
“A voz da Manu é surreal. Mas
isso não basta.Tivemos outros
alunos com uma voz igualmente
rara, difícil de encontrar, e a gente
pensava: ‘Meus Deus, esse vai
bombar’. Mas eles não foram
adiante, porque não tinham a
cabeça de músico, não tinham o
raciocínio lógico de músico.
A Manu, ao contrário, tem
uma intuição musical que é só
dela”, lembra a professora, que
voltou a dar aulas particulares
para Manuela nos meses que
antecederam o teste de admissão
para Juilliard.
Foto:
Thaís
Mallon
36 37
“O aprendizado da Manuela é
absurdamente rápido. Ela tem uma
vontade incrível, um desejo enorme de
cantar e de atuar. Porque a ópera não
é canto apenas, ela é teatro cantado,
as personagens são seres humanos
vivendo aquela emoção, aquela dor,
aquela paixão, e a Manuela consegue
viver o momento dessas personagens.
E ela não tem medo, enfrenta o
problema de frente, seja ele qual for.
Isso é essencial pra um artista.”
A boa notícia
Mesmo consciente do seu talento e da
sua enorme dedicação, Manuela não
estava certa de que conseguiria realizar
o sonho. Antes de tudo porque, como
ela já disse, a Juilliard “é uma escola
ridiculamente cara, com um percentual
de admissão impraticável”. Mas havia
também outro fator subjetivo.
“É meio que aquele complexo de
vira-lata da maioria dos estudantes
brasileiros de música. O Brasil já
exportou alunos fantásticos pra
conservatórios enormes do mundo
inteiro, e já formou artistas incríveis
em conservatórios aqui mesmo no
Brasil. Mas infelizmente a gente ainda
tem essa cultura de ‘Ah, você nasceu
no Brasil, você não vai conseguir fazer
carreira’”, afirma.
E foi assim, entre a autoconfiança e
a insegurança, que Manuela esperou
o resultado do exame de admissão da
Juilliard. Na conversa com a Traços, às
vésperas de embarcar para Nova York,
ela relembrou os momentos de angústia
que antecederam à boa notícia.
“Foi muito engraçado, porque eles
atrasaram em dois dias a divulgação
do resultado. Então, foram dois dias de
agonia, eu olhava o e-mail de cinco em
cinco minutos e não chegava nada, e eu
comecei a passar mal. E aí, um dia, já
assim tomando litros de chá de camomila,
eu estava na academia esperando meus
pais quando vi a notificação descendo na
tela do celular: Juilliard. ‘Ai, meu Deus,
fui reprovada’, pensei, até por causa da
Covid, né? E quando eu abri não era
mais o e-mail falando da aprovação, era
já o e-mail informando que eu tinha
conseguido a bolsa. Porque a aprovação
já estava no site desde o dia anterior, mas
eu, de tão tensa, esqueci de olhar. Fiquei
absurdamente atônita. Eu reli o e-mail
umas cinco vezes e não entendi nada.
Parecia que eu tinha me desalfabetizado
do inglês, eu fiquei lendo, relendo e
tentando entender. Foram umas duas
semanas até cair a ficha.”
Uma vez caída a ficha, era hora de fazer
as contas. Mesmo com a bolsa de estudo
recorde de 90%, ainda assim era muito
caro, ainda mais considerando os custos
de uma hospedagem em Nova York.
A solução foi abrir uma vaquinha na
internet. Com as doações dos internautas
e ajuda dos parentes, Manuela conseguiu
o suficiente para bancar o primeiro ano na
Juilliard. Mas ainda faltam os outros três
anos, por isso a vaquinha continua aberta.
Enquanto isso, no duplo papel de mãe
e de fã, Gabriela sofre com a ausência
da filha, mas vibra com cada passo de
Manuela rumo ao sonho de seguir carreira
internacional no canto erudito.
“A música é a paixão, é a vida da Manu”,
afirma a mãe. “Por isso, quando me
perguntam se cantar exige muitos
sacrifícios da Manu, eu respondo que não.
Pra ela, o sacrifício seria não cantar.”
Para colaborar com a
jornada da Manuela na Juilliard
https://campanhadobem.com.br/
campanhas/jornada-rumo-a-juilliard
ou PIX: 61 99187-7777
Saiba mais pelo Instagram:
@manuelakorossy
Foto:
Thaís
Mallon
39
38
RA S
C U
N H O
JULIANA VALENTIM
Juliana Valentim é jornalista e escritora,
autora de 3 livros - de crônicas,
poemas e romance. É uma apaixonada
pela literatura brasileira e gerencia
o perfil literário no Instagram @
palavrasquedancam. É também editora-
chefe da Revista Traços.
Levo dentro de mim uma estrada muito longa
Por onde não passam carros
Ando a pé por ela, eu mesma
Levantando poeira
Com meus passos desencontrados
Levo no peito um lampião antigo
Para espantar medos
E clarear memórias
Que se apagam como vagalumes
Abraço o silêncio que me ronda
E ele sorri
Levo dentro de mim uma estrada muito longa
Onde ecoam todo os passos que já percorri
Na pele que habito
Pareço tão calma
Cuidando das flores do meu jardim
E quem me vê assim
Não sabe da confusão
Não sabe da rebelião
Que mora dentro de mim
Sou feito um caos se instalando
Disfarço-me de ser humano
Mas sou motim!
MOTIM SEI
LA
Tá todo mundo meio assim...
Sei lá
No desmantelo
Nem lá, nem cá
De cabeça pra baixo
Do jeito que dá
Tá todo mundo meio assim
Com a roupa do lado avesso
Sei lá
BEM-FEITO
Tivesse casado comigo teríamos um jardim
Com girassóis e petúnias que são minhas favoritas
Tomaríamos vinho, dia sim, dia não
E faríamos amor nos intervalos
Tivesse casado comigo
Contemplaríamos as noites de lua
Nus e embriagados
Sob os olhos repressores dos vizinhos solitários
POETAS
Eu me apaixono por intelectos
Namoro poetas que nunca conheci
Alguns já partiram há séculos
Outros estão por aqui
Apaixono-me pelo que não existe
Mas isso não me causa dor
Fernando Pessoa sabia das coisas
O poeta é um fingidor
E eu me deixo enganar, todos os dias
Porque amor é amor
TAPETE
Há quem escreva difícil
Quem use o verso rebuscado
Que apesar de tão bonito
Não alcança o coração
Eu gosto é da rima fácil
Daquela que rasga por dentro
Depois retorna em remendo
E se espalha pelo chão
Que se despe de vaidade
É o tapete do mendigo
Mas também da majestade
Palavra bendita do povo
Que canta o uníssono coro
Da sua brasilidade
LEVEZA
Abri o dicionário da alma
Buscando o sentido das coisas
Entre as palavras que lá dançavam
Estava ela: leveza!
Tão colorida
Escrita com giz de cera
Pelas mãos da criança faceira
Que, em nós, nunca envelhece
A gente apenas se esquece
Como é que se flutua
Leveza é palavra pluma
Nas bocas de quem se atreve
A
ESTRADA
DE
DENTRO
41
3X4
A história da porta-voz da cultura
40
É possível
fotografar
o futuro?
Sorriso largo e braços bem
abertos, pronta para abraçar o
mundo. Foi assim que a porta-
voz da cultura Priscila do Carmo
Limoeiro se apresentou pela
primeira vez aos leitores e leitoras
da Traços, nas fotos da seção 3x4
da nossa edição nº 11. Feitas em
setembro de 2016, as fotografias,
no entanto, parecem registrar não
aquele tempo presente de cinco
anos atrás, mas antecipar este
futuro que é hoje, setembro de
2021, quando Priscila – agora sim
– tem motivos bem fortes para
sorrir e abraçar o mundo.
Não que a Priscila de cinco anos
atrás fosse uma pessoa o tempo
todo triste. Era, na verdade,
uma mulher que precisava
enfrentar a insegurança e a
depressão, e que não dispunha da
autoconfiança e da autoestima
que fazem com que ela hoje em
dia se apresente assim: “Muito
prazer. Sou Priscila, mulher preta
empoderada.”
Priscila
Por José Rezende Jr.
Fotos Thaís Mallon
Tenta em vão matar a saudade
de ver o filho olhando as muitas
fotos que consomem boa parte da
memória do seu celular. Quando a
saudade aperta além da conta, assiste
às poucas imagens de Samuel em
movimento. São só dois vídeos: no
primeiro, Samuel imita o som de um
liquidificador; no segundo, Samuel
pedala o velotrol que ganhou da mãe.
Sim: Priscila, que a vida inteira só
ganhou bonecas de segunda mão,
que já não serviam às filhas das
patroas de sua mãe, conseguiu juntar
dinheiro para comprar um velotrol
novinho para o filho.
Uma juíza
preta
Importante reconhecer que o
embrião da futura Priscila de
2021 já estava contido na Priscila
de 2016. A principal prova é que
aquela Priscila de cinco anos
atrás, mesmo ainda distante
da mulher preta empoderada
de hoje, havia acabado de
derrotar dois inimigos ferozes:
o machismo e o Estado. Depois
de lutar com unhas e dentes, ela
finalmente conseguiu dar ao filho
o que ela mesma, Priscila, nunca
teve: um sobrenome de pai na
certidão de nascimento.
Priscila engravidou do ex-
namorado, que não quis
reconhecer – nem conhecer – o
filho. Logo ela, que até hoje
carrega na carteira de identidade
um vazio enorme no lugar onde
deveria existir um nome de pai.
Esse vazio tem peso, e Priscila
não queria ver também o filho
obrigado a arrastá-lo pela vida
afora. Foi contra esse vazio que
ela começou a sua luta, quando
Samuel ainda estava dentro de
sua barriga, e só terminou quando
Samuel tinha cinco meses de
vida e, enfim, um nome de pai na
certidão de nascimento – ainda
que o de um pai ausente.
A guerra de Priscila parecia não
ter fim.Foi várias vezes grávida ao
fórum,voltou várias vezes ao fórum
já com o filho nos braços,como ela
contou à Traços em 2016:
“Minha mãe teve dois filhos sem
pai. Eu tive o Samuel. Mas a
semelhança acaba aí. Quero mudar
o rumo da minha história. Quero
ser um exemplo vivo para o Samuel,
quero que ele cresça e possa dizer:
Minha mãe quebrou a maldição.
Tive que lutar muito, e essa luta
acabou com o meu psicológico, com
o meu emocional. Eu chegava no
fórum e me mandavam voltar outro
dia, e no outro dia era a mesma
coisa, e no outro dia também. Fui
pra audiência recém-parida, toda
costurada da cesariana”.
Cansada da guerra, com o
psicológico e o emocional
abalados, morrendo de saudade
do filho, o peito ainda cheio de
leite, Priscila chegou em Brasília
no dia 14 de março de 2016,
e logo se tornou porta-voz da
cultura da Traços. Já naquela
época alimentava o sonho de
entrar na faculdade, conquistar
o diploma de Direito e atuar
na vara de família, para ajudar
outras Priscilas e outros Samuels.
E, mais adiante, tornar-se juíza,
para evitar que outras mulheres
passassem o que ela passou
quando precisou do Judiciário.
“Enfrentei muito descaso dentro
do fórum Rui Barbosa [em
Salvador], mesmo estando com
uma barriga de oito meses. E sei
que tem muita mulher precisando
ser acolhida como eu precisei,
precisando ser ajudada por uma
juíza preta que passou fome como
eu passei, uma juíza preta que
pega ônibus debaixo de sol quente
na parada como eu pego. Quero
ser essa juíza”, diz Priscila hoje.
O sonho, que na época podia
parecer inalcançável a quem
olhasse de fora, está bem mais
próximo. A Priscila de 2021
cursa o 4º semestre de Direito
na faculdade JK. (Tem até uma
vaquinha na internet, pra ajudar
a pagar as mensalidades.) Os
passos seguintes são conquistar o
diploma, passar na prova da OAB,
atuar primeiro como advogada,
depois como promotora, ser
aprovada no concurso público e
tornar-se a juíza preta que não vai
deixar mulher nenhuma sofrer o
que ela sofreu.
Recém-chegada à capital do país,
a Priscila de 2016 enfrentava
sobretudo a dor da separação do
filho pequeno, Samuel, que ela
havia deixado em Salvador aos
cuidados da mãe, dona Carminha,
quando veio tentar a sorte em
Brasília. Hoje, setembro de 2021,
Priscila e Samuel estão juntos e
felizes, mas em setembro de 2016,
quando estampou pela primeira
vez as páginas da seção 3x4,
Priscila amargava seis meses sem
ver o filho, que ela não teve tempo
nem de desmamar direito, como
relatou o texto da edição nº 11:
Nestes seis meses de distância, Samuel
aprendeu a engatinhar, e Priscila
não viu. Samuel aprendeu a andar,
e Priscila não abriu os braços para
ampará-lo nas quedas. Samuel
aprendeu a falar, e Priscila não estava
por perto para ouvir suas primeiras
palavras. Não é a mesma coisa, mas
ela pelo menos ouve a voz do filho
quando telefona para Salvador.“Alô.
Mamãe. Amo”, Samuel diz.
42 43
“Muito
prazer.
Sou Priscila,
mulher preta
empoderada.”
Foto:
Thaís
Mallon
44 45
De Priscila
pra Priscila
Priscila acumula várias jornadas:
além de porta-voz da cultura,
estudante de Direito e mãe e
pai de Samuel, ela ainda faz um
curso técnico de redação, com
vistas a outro sonho: escrever
livros de Direito, sobre temas
que ela conhece na carne. Os
dois primeiros já estão na sua
cabeça. Um sobre o direito à
paternidade, com base na guerra
que travou contra o machismo
e o Estado, e o outro sobre o
direito das mães-solo à moradia,
essa que ela ainda espera
conquistar.
As duas Priscilas, a de 2016 e
a de 2021, são muito gratas à
Traços. Pela acolhida carinhosa,
pelo apoio psicológico, pela
melhoria da qualidade de
vida. São apenas cinco anos de
diferença entre uma e outra, mas
é como se fosse uma vida inteira.
“Quantas vezes eu deixei de
comer pra que meu filho e
minha mãe comessem... Eu só
pensava neles, só via os dois na
minha frente, só pensava em
como ia fazer pra comprar a
fralda, pra comprar o leite. Hoje
faço uma limpeza de pele, faço
as unhas, boto uma roupinha
mais arrumada no corpo. Hoje
eu consigo cuidar de mim.”
E antes de terminarmos
(provisoriamente) a história das
duas Priscilas – que, é claro,
continua depois que fecharmos
esta edição nº 50 da Traços –
cabe aqui uma pergunta:
– Priscila, se fosse possível
voltar no tempo, o que a Priscila
empoderada de 2021 diria pra
aquela Priscila insegura e triste
de 2016?
– Eu diria pra ela o que hoje
eu sei. Que às vezes é dia de
sol, mas que o tempo também
pode fechar, e que mesmo assim
a gente não pode esmorecer.
Aprendi que duas coisas movem
o ser humano: o sonho e a
esperança.
As cicatrizes
A Priscila de 2021 tem muito
carinho pela Priscila de 2016.Mas
gosta muito mais da versão atual
de si mesma.Diz que não esperava
mudar tanto,nem chegar aonde
chegou em apenas cinco anos.
“É até emocionante pensar no
quanto mudei. Eu realmente dei
um up na minha vida. A Priscila
de hoje sabe dizer ‘não’ e sabe
dizer ‘sim’ também, sempre de
uma forma assertiva. Há cinco
anos, eu não imaginava que
teria a qualidade de vida que eu
tenho hoje. A Traços me deu
essa oportunidade e eu agarrei
pelos cabelos. Se hoje eu sou
a mulher que sou é também
porque tive acompanhamento
psicológico, e isso mexeu muito
com a minha cabeça, me ajudou
muito a curar as cicatrizes.
Porque se a gente não cura nossas
cicatrizes, a gente tende a gerar
outras e mais outras. A gente
precisa se curar internamente.
Nosso psicológico é nosso HD,
se ele estiver estragado nada mais
funciona direito.”
Priscila sabe que a luta das
mulheres pretas,sobretudo pobres,
mesmo quando empoderadas,
é sem fim.Mas sabe também
que já avançou muito.É uma
das porta-vozes da cultura mais
bem-sucedidas da Traços,tanto
em volume de vendas quanto
em afeto recebido dos leitores e
leitoras da revista.Mora de aluguel
no Paranoá,enquanto espera na
fila da Codhab (Companhia de
Desenvolvimento Habitacional
do Distrito Federal) por uma
moradia destinada à população em
vulnerabilidade social,para realizar
enfim o sonho da casa própria.
Mas nenhuma dessas conquistas
– nem a melhoria da qualidade
de vida, nem a faculdade de
Direito, nem a futura casa
própria – faria sentido se ela já
não tivesse conseguido realizar
o sonho maior: trazer o filho e a
mãe pra morarem com ela.
“O Samuel tem 6 aninhos. É
um companheiro pra mim.
Tudo ele quer fazer comigo:
passear, andar de bicicleta, fazer
as atividades de casa... Ele acha
que eu sou muito amiga, muito
parceira dele. A verdade é que
eu sou a mãe e o pai do Samuel.
Sou eu que ensino pra ele o que
é certo e o que é errado.Tenho
que criar meu filho direito, não
posso deixar ao encargo do
mundo.”
O filho aprendeu a admirar o
trabalho da mãe. Outro dia,
feliz da vida, mostrou pra ela o
desenho que fez. Nele, Priscila
aparece vendendo a Traços.
Samuel vai bem na escola.
Priscila se orgulha da letra bonita
do filho. Não esconde o alívio de
saber que ele tem direito a um
sobrenome de pai, mesmo não
tendo direito um pai.
“Pelo menos na escolinha
ele não passa vergonha, nem
frustração. No Dia dos Pais a
escola mandou um convite aqui
pra casa. E o convite tinha o
nome do pai escrito. Eu disse
pro Samuel: ‘Filho, eu vou
guardar esse papel, porque tem
o nome do seu pai. Se um dia
vocês se encontrarem, você
mostra pra ele’. O Samuel pode
nunca conhecer o pai, mas é
importante saber que ele existe.’’
Para ajudar a Priscila a se formar:
www.vakinha.com.br/vaquinha/ajude-priscila-a-se-formar
Foto:
Thaís
Mallon
mímico e
muito mais
MIQUEIAS
PAZ
Por Maíra Valério e Marianna França
Fotos Fábio Setti
Direção de arte: Tamara dos Santos
46 47
Ato I: o
artista em
descoberta
Miquéias Paz, o primeiro
mímico do Distrito Federal,
recebeu a Revista Traços para
uma conversa íntima durante
uma ligação de vídeo. Enquanto
passava um café fresco, começou
o compartilhamento das
diferentes fases de suas mais de
quatro décadas de trajetória.
Primeiro mímico da capital federal, pai, avô,
mestre da cultura popular brasileira,
ex-deputado distrital, conhecedor dos milagres
da arte como forma de resistência…
Abram alas: com vocês, Miquéias Paz!
Haja café!
O início de tudo se deu em uma
Brasília povoada por jovens
artistas que queriam deixar marcas
na cultura local, ainda incipiente,
e lutar a favor da democracia.
Concentrado no bate-papo, cada
detalhe era minuciosamente
lembrado por ele – nomes,
datas, lugares – como se tivesse
acontecido ontem.
Em um ensaio tímido, a arte
chegou na vida do mímico
quando ele era ainda criança e
quase foi embora para nunca
mais voltar. Nas palavras dele, a
primeira experiência com o teatro
não foi “das mais interessantes”.
Durante uma gincana de escola,
quando tinha uns nove anos de
idade, Miquéias decidiu fazer
uma imitação do esplendoroso
Ney Matogrosso e acabou sendo
severamente repreendido pelo
pai. “Isso não era pra mim, né?
Não era ‘coisa de homem’ imitar
o Ney Matogrosso. E aí, nessa
história, perdi qualquer vontade
de estar no palco, né?”, relembra.
Porém, no início dos anos oitenta,
a arte bateu novamente na porta
de Miquéias. Isso foi quando,
ainda no ensino médio, um amigo
falou para ele sobre um curso de
teatro que estava com inscrições
abertas e tentou incentivá-lo a
fazer parte. “Marcinho o nome
dele [Márcio Rodrigues]. Foi
criador de um espaço aqui muito
importante em Taguatinga, o
Botequim Blues [um dos pubs
mais longevos e conhecidos da
região]. E eu disse ‘não’. Se eu
tinha alguma intenção, ela tava
muito reprimida”, conta. “Mas aí,
nessa época, ele já com esse olhar
dele aí, de produtor, que já devia
estar na veia…E eu ‘não, não sei
fazer isso não’ e, tá bom, passou
essa conversa…”, acrescenta.
48 49
Será que tinha passado mesmo?
Era o que o mímico queria
acreditar. Contudo, Marcinho
foi insistente e, apesar de todas
as negativas, realizou por conta
própria a inscrição de Miquéias
no curso oferecido pelo Projeto
Plateia, iniciativa da extinta
Fundação Educacional.“E teve
uma lábia suficientemente firme
pra poder me convencer”, ri o ator.
Órfão de mãe desde os quatro
anos de idade, o artista, que veio
do Paraná para Brasília aos cinco,
precisou tornar-se independente
muito cedo. O pai não tinha
muitos recursos e, dessa maneira,
Miquéias acabou “pingando aqui
e ali”, por casas de parentes. Aos
doze anos, já estava inserido
no mercado de trabalho
informal; aos catorze, já
tinha carteira assinada
como empacotador de
supermercado e, aos
quinze, já morava
sozinho, após uma
temporada com a
irmã.
Portanto, dono de si e
sem a necessidade de
dar satisfação para
outras pessoas, o
mímico decidiu
arriscar a arte
novamente – e,
dessa vez, agarrou firme
e nunca mais largou.
Desse curso inicial, muitos
quiseram continuar na área,
incluindo Miquéias. A partir
daí, o modo com que o artista
enxergava o mundo passou a ter
uma perspectiva mais versátil,
divertida e empolgante, com um
viés de militância. “Fazer teatro
era um movimento libertário,
a gente não imaginava o teatro
como profissão, mas como algo
que a gente pudesse ser diferente,
não fizesse parte da mesmice que
estava acontecendo”, conta.
Seguindo o fluxo de descobertas
de uma nova paixão, ele decidiu
ingressar no Grupo Retalhos, de
teatro amador, berço de vários
artistas locais. O grupo surgiu
quando alguns integrantes do
Projeto Plateia decidiram se
unir. Composto por artistas de
localidades como Taguatinga e
Ceilândia, a iniciativa instigou
Miquéias a participar de muitas
intervenções de resistência ao
longo da década de oitenta.
“Pra minha felicidade. Até
porque a gente era um grupo
mais de periferia, então a gente
acabou que conviveu com
algumas pessoas que já vinham
na militância”, relembra. “Foi
quando comecei a conhecer o
que era o processo político, não
necessariamente partidário”,
acrescenta. As performances
estavam sempre conectadas com
alguma questão de caráter social.
O grupo realizava passeatas em
busca de espaços para a cultura
na cidade e apresentava, ainda,
muitos espetáculos pelas ruas do
DF – o que incluía até mesmo
o Areal “quando era apenas um
areal mesmo”, enfatiza o mímico.
DA POLÍTICA
INFORMAL A
DEPUTADO
DISTRITAL 	
O trabalho de Miquéias sempre
o levou para a mídia, como é
o caso, neste momento. Certa
vez, ao ser entrevistado pelo
jornalista e poeta Luis Turiba,
o mímico foi indagado se já
tinha cogitado ser candidato
a deputado. Até então, tal
ideia nunca havia passado pela
cabeça de Miquéias mas, depois
da reportagem, foram várias
as pessoas que começaram a
sondá-lo. “Eu nem levava aquilo
muito a sério”, conta. Política
institucionalizada não era uma
vontade e ele sabia que o intuito
era funcionar principalmente
como um agregador de votos
dentro de uma legenda.
Para surpresa geral, ele acabou
aceitando entrar na corrida
eleitoral. No entanto, a surpresa
maior foi ter sido, de fato, eleito.
O artista fez parte do Partido
Comunista do Brasil (PC do B)
e, por divergências (“não sabia
ainda convencer as pessoas da
importância da cultura como
transformação”, diz), migrou
para o Partido dos Trabalhadores
(PT). Sua atuação na área foi
da metade até o final dos anos
noventa e é um período que
ele não relembra com tom
de saudade. Mas ele segue,
“amadurecendo, aprendendo e
se reconstruindo”, nas próprias
palavras. “Posso ter aberto uma
porta do respeito à arte enquanto
instrumento de transformação da
sociedade”, reflete.
não sei o quê e aí eu fui entender
que nada daquilo [das roupas] era
muito importante, era importante
com quem eu estivesse”, afirma.
De acordo com o artista, esse foi
um momento de virada pois foi
quando ele entendeu a diferença
entre o ser e o ter. Para ele, a
sociedade da época – e de hoje
também – estimula uma vida de
aparências e incentiva as pessoas
a trabalharem o dia inteiro apenas
para adquirirem um bem ou uma
roupa que as faça serem aceitas
por um determinado grupo. No
entanto, o mímico percebeu, ao
se reunir com aquelas pessoas em
prol da cultura, que estava mais
interessado em fazer a diferença
no mundo, de alguma forma, e
não em tentar se encaixar em
redomas sociais.	
A maneira que ele encontrou
de se libertar foi essa: se
conectando com o teatro e
com as questões políticas que
podem vir junto com essa
forma de expressão artística.
“Era um momento em que
o Brasil tinha uma história
meio que… Começava,
né? Foi oitenta e…
Oitenta para oitenta
e um, então tinha um
movimento que eu não tinha
consciência, porque eu vivia
dentro de uma redoma, né, mais
religiosa, né, familiar”, rememora.
“Eu não era muito voltado para o
que estava acontecendo no país.
Mas alguns dos que estavam
no grupo já eram de alguma
organização estudantil, alguma
coisa… E aí a gente começava a
conversar essas coisas”, diz.
O tal curso de teatro aconteceu
em uma escola no final de
Taguatinga Norte e reuniu uma
turma de aproximadamente
sessenta alunos em uma
semana de “muita diversão e
aprendizado”, segundo Miquéias.
“Eu era o garotinho que tinha
saído da religião há pouco tempo.
Todo alinhadinho, sapatinho
brilhando e tal. No final do
primeiro dia [de curso], meu
sapato já tinha virado figurino de
alguém, minha blusa tinha virado
Ato II:
“Ó, você está
fazendo
mímica, né?”
O Miquéias mímico começou
a nascer, de fato, em um evento
em Paracatu (MG) junto ao seu
grupo de teatro. “Lá já tinha
um movimento de resistência
política”, comenta. Entre as
dinâmicas do evento, uma das
atividades culturais envolvia criar
personagens e realizar um cortejo
pela cidade. Empolgado, o artista
vestiu uma malha preta, fez uma
maquiagem meio borrada e
começou a brincar.
Pelas ruas da cidade, ele se
divertia com esse figurino
enquanto interpretava um
personagem ainda em formação,
que parecia um boneco. A
brincadeira foi contagiando a
meninada, que o acompanhou
pelo cortejo durante horas.
De repente, uma das crianças
perguntou para o colega de
Miquéias se, quando voltassem
para casa, o “boneco” seria
guardado inteiro ou era preciso
desmontá-lo. “Essa pergunta,
para mim, foi fundamental.
Tinha alguma magia no ar,
alguma coisa forte aí”, fala.
Foto:
Fábio
Setti
50 51
Foi então que o artista começou
a desenvolver mais o “boneco”
e, a partir daí, a criar um
personagem que, mais tarde, ele
foi entender como a figura de
um mímico.“Nesse momento,
esse personagem que faz essa
transição do que eu fazia com
teatro falado, convencional, para
a mímica. No momento que
eu faço essa experimentação é
que algumas pessoas [falam]:
‘Ó, você está fazendo mímica,
né?’E eu nem sabia que estava
fazendo mímica... E aí comecei a
entender o que era, fui conversar
com algumas pessoas, comecei
a assistir coisas”, explica.“Tinha
o grupo EnDança, com Luiz
Mendonça [dançarino, coreógrafo
e professor] que dirigia, e era
uma coisa bem corporal, muito
forte, aí comecei a conversar
com eles, conversar com
outros atores, o que achavam,
comecei a fazer tudo quanto é
oficina, tudo quanto é workshop
que tinha, qualquer coisa de
movimento eu ia fazer. A gente
teve uma efervescência de ações,
né? Projeto Cabeças, Jogo de
Cena, várias coisas estavam
acontecendo”, relembra. Isso foi
em meados dos anos oitenta.
Miquéias, que era também
um dos poucos homens na
Escola Normal de Taguatinga,
aproveitou um concurso na
instituição para inscrever o
personagem. “Ele não tinha um
nome, né? Lembro que, indo
pra apresentação, aí [pensei]:
‘Gente, mas ele é só um
boneco, né? Não fala, não conta
nada, só se movimenta, isso tá
me incomodando’. E aí surgiu
a ideia de contar uma pequena
historinha com esse boneco,
sem palavra”, diz.
“E aí contei a história de um
trabalhador que ia trabalhar,
com todos os percalços de
sair cedo, com sonhos… Bom,
resumindo, esse personagem
que surgiu aí acabou ganhando
o festival da escola. Depois,
acabou indo se apresentar
em outras escolas, em vários
lugares”, relembra, com carinho.
Esse foi, como define o artista,
um boom na carreira dele.
Quanto mais escolas ele visitava,
mais escolas queriam recebê-
lo. Após uma apresentação
para um auditório lotado de
crianças atentas, ele passou a
se dizer oficialmente mímico.
E, após mais de trezentas
apresentações por escolas
de todo o DF, em que teve
a oportunidade de colher
feedbacks importantíssimos de
adolescentes “sem perdão, que
falam tudo mesmo”, ele passou
a ser reconhecido como uma
personalidade local. “Tudo isso
sem rede social”, diverte-se.
Esse processo permitiu que ele
aperfeiçoasse o próprio trabalho
e começasse a percorrer por
festivais teatrais diversos.
De festival em festival, ele
foi se conectando também
com entidades, sindicatos e
associações que começaram
a escrever uma nova história
na vida dele.“O olhar do meu
trabalho tinha muito essa coisa
do personagem brasileiro,
histórias de luta”, diz.“Eu virei o
artista dos sindicatos”,acrescenta.
Uma parceria frutífera aconteceu
especialmente com o Sindicato
dos Bancários de Brasília que,
para Miquéias, era uma “potência
cultural”entre os anos oitenta
e noventa, por conta do apoio
disponibilizado aos artistas.
Foto:
Fábio
Setti
52 53
No evento, quando fez uma
apresentação de seu trabalho, foi
aplaudido de pé e tudo mudou
da água para o vinho. “Imagina,
você vai como aprendiz e de
repente é aceito, né?”, comenta.
Pra completar, descobriu que
a tal carta que havia recebido
dizia que ele teria todos os
custos cobertos pelo evento. “E
eu comendo batata todo dia”,
ri. Então, acabou ganhando
mais uma semana de viagem,
com ingressos para espetáculos
e museus. “Foi uma semana
de desfrute”, relembra. E essa
semana de desfrute, alguns
meses após o evento, acabou
virando uma fértil parceria:
Miquéias foi convidado para
voltar para a Inglaterra, para
participar de experimentações
artísticas com um dos
instrutores do festival.
Ele foi, claro. E acabou
entrando em um ciclo de
passar quase dois anos indo
e voltando, dentro de um
projeto da companhia Ralf
Ralf, junto com atores de locais
como Estados Unidos, França,
Escócia e Porto Rico. Com
o grupo, viajou por países da
Europa e pelos Estados Unidos,
conheceu novas culturas e
enriqueceu o próprio repertório
prático-teórico. Além disso,
o carimbo internacional pode
sempre dar uma ajudinha no
impulsionamento de artistas
brasileiros, principalmente
quando eles estão fora de eixos
tradicionais (o que deveria fazer
as pessoas pensarem sobre o
porquê disso).
O trabalho do mímico era
requisitado por esse nicho
não apenas pela facilidade de
encaixar uma atividade com
um homem só em qualquer
programação (Miquéias
já chegou a realizar uma
performance em um pequeno
cubo 1x1 metro na Câmara dos
Deputados), mas também pela
capacidade que a arte realizada
por ele possuía de adentrar
lugares que outras expressões
artísticas não conseguiam. Sem
a “agressividade da palavra”,
segundo o artista, muito pode
ser dito no silêncio.
Ato III:
partitura
corporal
ritmada
mentalmente
Ainda “pingando aqui e ali”,como
na infância e adolescência,mas
dessa vez por bons motivos – para
apresentar o próprio trabalho,
afinal –,Miquéias descobriu
um festival de mímica que iria
acontecer na Inglaterra.Isso foi
já chegando nos anos noventa,
o que significa que o artista
precisou realizar uma intensa
mobilização presencial para
levantar fundos para viajar.Após
muito esforço,conseguiu,mas
os desafios persistiam.A língua
inglesa,que ele não dominava,
era uma barreira – “Me deram
uma carta que eu não sabia o
que estava escrito”,relembra.
Ele não encontrava onde era
o evento.As pessoas não eram
muito solícitas.Mil coisas.Mas
ele conseguiu superar também
essas adversidades e se instalou no
festival,realizou cursos e fez tudo
o que tinha direito.
Fotos:
Fábio
Setti
54 55
O processo de conhecer outras
localidades do Brasil e do mundo
caminhou junto ao processo de
autoconhecimento do artista:
quanto mais ele olhava para o
outro, mais ele olhava, também,
para dentro de si próprio.
Miquéias já sabia, há tempos,
que um mímico poderia ir muito
além da cara branca e roupa
listrada de Marcel Marceau,
famoso mímico francês que
viveu entre 1923 e 2007.“Desde
a máscara até nudez, existem
várias formas de fazer mímica,
não é a máscara branca e roupa
listrada que te definem”, conta.
Contudo, o aprendizado
estava sempre presente. O
próximo paradigma foi o
do som: acostumado ao
silêncio absoluto como regra,
representado por filmes como
O Boulevard do Crime (1945),
do também francês Marcel
Carné, o primeiro mímico
do DF passou a introduzir a
sonoridade em seu trabalho,
de maneira onomatopeica.
“Sonorizar gestos sem que isso
fosse exatamente uma palavra”,
explica. Desse modo, ele passou
a trabalhar com ritmo, a ter o
movimento ritmado a partir de
uma sonoridade criada dentro
da própria cabeça. “É como se
tivesse uma partitura corporal
ritmada a partir de um trabalho
que se cria mentalmente”, diz.
Tais descobertas, de acordo
com o artista, ganharam força
nas trocas internacionais visto
que, antes da popularização da
internet, a informação sobre
determinados temas era escassa
no Brasil, principalmente de algo
tão específico quanto a mímica.
Hoje, o trabalho de Miquéias
engloba questões sociais em um
mix de técnicas de mímica que
abrangem a rua, a brasilidade
e a latinidade.“Talvez seja essa
característica… O meu trabalho
mistura o que a gente é”, define.
E essa mistura dá muita liga.
Neste governo, o mímico foi
reconhecido como mestre
da cultura popular brasileira
da região Centro-Oeste pelo
Ministério da Cultura. E,
pouco antes da pandemia da
COVID-19 começar, Miquéias
recebeu, em Cuba, uma
homenagem à representatividade
da identidade latino-americana
de seu trabalho, em festival
organizado pela Escola Nacional
de Mímica de Cuba.
“Lá em Cuba, me deram
esse reconhecimento, fizeram
esse festival em que eu era
homenageado com essa
lógica. Meu trabalho tem essa
característica: não me ausentar
de minha realidade”, afirma,
orgulhoso.“A arte é um caminho
de trabalho, de reconhecimento
como um ser humano
participante na sociedade. Arte
é instrumento de conexão,
senão é uma coisa muito
individualizada”, acrescenta.
PERDA DE PESSOAS
IMPORTANTES
Embora Miquéias tenha
conquistas recentes para
celebrar, os infortúnios de uma
crise sanitária, econômica e
social que assolam o país e
tiraram a vida de mais de meio
milhão de brasileiros também
atingiram o círculo íntimo dele.
Durante a pandemia, ele perdeu
a esposa Ivete Mangueira,
companheira há mais de
uma década e professora da
Secretaria de Educação do DF.
“Era uma pessoa muito linda,
que nesse processo artístico
foi muito importante, esses
últimos catorze anos foram ao
lado dela”, lamenta. Eles já eram
amigos há cerca de trinta anos
e, segundo o mímico, foram
parceiros de inúmeras histórias.
“Dói muito. Infelizmente tive que
aprender muito cedo a perder
pessoas importantes”, afirma,
relembrando a morte da mãe.
CONVIVÊNCIA
CULTURAL
O mímico vive, há algumas
décadas, em uma chácara em
Vicente Pires, que era só um
retângulo de terra quando ele
chegou, aos vinte e dois anos.
Hoje, o local tem plantações,
um palco na varanda e está
virando uma área que o artista
tem o objetivo de transformar
em um espaço de convivência
cultural, com cursos, oficinas,
encontros – coisas que já vinham
acontecendo, de modo não
sistemático, e ele quer consolidar
mais organizadamente.
No espaço, ele quer também
realizar encontros de música
caribenha durante a semana, e
preparar feijoadas com samba
de quintal e galinhada aos fins de
semana. “Gosto muito de cozinhar
e nem imagino estar no fogão de
forma comercial, mas quero dar
meus pitacos”, brinca. “Enquanto
essa coisa [o coronavírus] não
nos deixa, eu tô preparando o
espaço”, diz. Na casa, ele pinta,
sobe na parede, faz reparos e
resgata tudo o que aprendeu
no período em que atuou com
construção civil, antes do teatro.
SAIBA MAIS
@miqueias.paz
Foto:
Fábio
Setti
MILA PETRILLO
Por Marianna França e Shyrlem Barbosa
I N S
TA N
T ES
56 57
Mila Petrillo é uma mulher
distraída, mas quando uma
câmera encosta em seu rosto
e encaixa entre as mãos, ela se
torna completamente presente:
fotografar é como se fosse um
estado meditativo. Guiada pelas
emoções da cena, ela se conecta
e encontra o enquadramento
perfeito. Mila diz que é um
processo emocional difícil de
descrever. Por isso, as imagens
contam histórias por si só, suaves
e impactantes.
Em 1987, com apenas 18
anos, ela começou a fotografar.
O enquadramento do olhar,
necessário para a fotografia, foi
algo sempre presente devido a sua
criação. Mila é filha de artistas
socialistas nada convencionais
para o século passado: o pai,
José Petrillo, publicitário com
aspirações voltadas para o cinema,
já a mãe, Dalel Achkar Petrillo,
desenhista de animação.
SUAS LENTES REGISTRARAM
MAIS DO QUE É POSSÍVEL
IMAGINAR, MOMENTOS
DA DITADURA, O INÍCIO DA
EFERVESCÊNCIA CULTURAL
DE BRASÍLIA, INÚMEROS
ESPETÁCULOS, INICIATIVAS
SOCIAIS DIVERSAS COMO O
PROJETO AXÉ, O RIO 92 E A RIO
+ 20. CONHEÇA A FOTÓGRAFA
MILA PETRILLO, PATRIMÔNIO
CULTURAL DE BRASÍLIA.
“Para mim, é muito melhor
ver uma peça de teatro ou
um espetáculo de dança
fotografando porque eu tô
dentro, é como se eu tivesse
no palco junto. Então, é muito
engraçado porque todo meu ser
responde àquilo, sabe? Todo o
meu ser responde ao ápice da
música, dos movimentos, das
expressões. As coisas que eu
fotografei eu não esqueço mais,
assim, elas ficam impressas
de alguma maneira” explica a
fotógrafa com mais de 40 anos
de carreira.
Luciano Porto em Hexgram,
Histórias do Velho e do Mundo
(1996). Direção Mark Hopkins
Projeto Axé (2010)
Eliana Carneiro em Anada
(1986). Direção Eliana Carneiro
Janguruçú/Edisca (1998)
58 59
Quarup. Aldeia Kamayurá. Xingu (1986)
revista_tracos_edicao_50_final.pdf
revista_tracos_edicao_50_final.pdf
revista_tracos_edicao_50_final.pdf
revista_tracos_edicao_50_final.pdf
revista_tracos_edicao_50_final.pdf
revista_tracos_edicao_50_final.pdf
revista_tracos_edicao_50_final.pdf
revista_tracos_edicao_50_final.pdf
revista_tracos_edicao_50_final.pdf
revista_tracos_edicao_50_final.pdf
revista_tracos_edicao_50_final.pdf

Mais conteúdo relacionado

Mais procurados

Boletim ARAL Julho 2014
Boletim ARAL Julho 2014Boletim ARAL Julho 2014
Boletim ARAL Julho 2014ARALumiar
 
AGRISSÊNIOR NOTÍCIAS Nº 602 an 14 dezembro_2016.ok (1)
AGRISSÊNIOR NOTÍCIAS Nº 602 an 14 dezembro_2016.ok (1)AGRISSÊNIOR NOTÍCIAS Nº 602 an 14 dezembro_2016.ok (1)
AGRISSÊNIOR NOTÍCIAS Nº 602 an 14 dezembro_2016.ok (1)Roberto Rabat Chame
 
Boletim ARAL Julho 2014
Boletim ARAL Julho 2014Boletim ARAL Julho 2014
Boletim ARAL Julho 2014ARALumiar
 
Revista Crioula n° 1 - Ed. Nação
Revista Crioula n° 1 - Ed. NaçãoRevista Crioula n° 1 - Ed. Nação
Revista Crioula n° 1 - Ed. NaçãoFlavio Estaiano
 
AGRISSÊNIOR NOTÍCIAS Nº 598 an 16 novembro_2016.ok
AGRISSÊNIOR NOTÍCIAS Nº 598 an 16 novembro_2016.okAGRISSÊNIOR NOTÍCIAS Nº 598 an 16 novembro_2016.ok
AGRISSÊNIOR NOTÍCIAS Nº 598 an 16 novembro_2016.okRoberto Rabat Chame
 
2011 cartagena diarios Paulo oliveira massa
2011 cartagena diarios Paulo oliveira   massa2011 cartagena diarios Paulo oliveira   massa
2011 cartagena diarios Paulo oliveira massaSip Sipiapa
 
CULTURARTEEN 178 - edição extra - 12 de setembro de 2017
CULTURARTEEN 178 - edição extra - 12 de setembro de 2017CULTURARTEEN 178 - edição extra - 12 de setembro de 2017
CULTURARTEEN 178 - edição extra - 12 de setembro de 2017Pery Salgado
 
AGRISSÊNIOR NOTÍCIAS Nº 601 an 07 dezembro_2016.
AGRISSÊNIOR NOTÍCIAS Nº 601 an 07 dezembro_2016.AGRISSÊNIOR NOTÍCIAS Nº 601 an 07 dezembro_2016.
AGRISSÊNIOR NOTÍCIAS Nº 601 an 07 dezembro_2016.Roberto Rabat Chame
 
Arte, Cultura e Transformação nas vilas e favelas: Um olhar a partir do Grupo...
Arte, Cultura e Transformação nas vilas e favelas: Um olhar a partir do Grupo...Arte, Cultura e Transformação nas vilas e favelas: Um olhar a partir do Grupo...
Arte, Cultura e Transformação nas vilas e favelas: Um olhar a partir do Grupo...Favela é isso aí
 
Divulgação Culturais - O caminho das pedras | Bia Morais
Divulgação Culturais - O caminho das pedras | Bia MoraisDivulgação Culturais - O caminho das pedras | Bia Morais
Divulgação Culturais - O caminho das pedras | Bia MoraisMais Por Arte
 
Revista SINESTESIAS n° 1
Revista SINESTESIAS n° 1Revista SINESTESIAS n° 1
Revista SINESTESIAS n° 1oficinativa
 
A arte a serviço da transformação social
A arte a serviço da transformação socialA arte a serviço da transformação social
A arte a serviço da transformação socialFavela é isso aí
 
E-book "O Negro nos Espaços Publicitários Brasileiros" - BATISTA e LEITE (Org...
E-book "O Negro nos Espaços Publicitários Brasileiros" - BATISTA e LEITE (Org...E-book "O Negro nos Espaços Publicitários Brasileiros" - BATISTA e LEITE (Org...
E-book "O Negro nos Espaços Publicitários Brasileiros" - BATISTA e LEITE (Org...leitefco
 
Roteiro de estudos Ciclo Autoral 01 a 05 de junho de 2020.
Roteiro de estudos Ciclo Autoral 01 a 05 de junho de 2020.Roteiro de estudos Ciclo Autoral 01 a 05 de junho de 2020.
Roteiro de estudos Ciclo Autoral 01 a 05 de junho de 2020.escolacaiosergio
 

Mais procurados (19)

Boletim ARAL Julho 2014
Boletim ARAL Julho 2014Boletim ARAL Julho 2014
Boletim ARAL Julho 2014
 
AGRISSÊNIOR NOTÍCIAS Nº 602 an 14 dezembro_2016.ok (1)
AGRISSÊNIOR NOTÍCIAS Nº 602 an 14 dezembro_2016.ok (1)AGRISSÊNIOR NOTÍCIAS Nº 602 an 14 dezembro_2016.ok (1)
AGRISSÊNIOR NOTÍCIAS Nº 602 an 14 dezembro_2016.ok (1)
 
Boletim ARAL Julho 2014
Boletim ARAL Julho 2014Boletim ARAL Julho 2014
Boletim ARAL Julho 2014
 
Voce quer um bom conselho?
Voce quer um bom conselho?Voce quer um bom conselho?
Voce quer um bom conselho?
 
Revista Crioula n° 1 - Ed. Nação
Revista Crioula n° 1 - Ed. NaçãoRevista Crioula n° 1 - Ed. Nação
Revista Crioula n° 1 - Ed. Nação
 
AGRISSÊNIOR NOTÍCIAS Nº 598 an 16 novembro_2016.ok
AGRISSÊNIOR NOTÍCIAS Nº 598 an 16 novembro_2016.okAGRISSÊNIOR NOTÍCIAS Nº 598 an 16 novembro_2016.ok
AGRISSÊNIOR NOTÍCIAS Nº 598 an 16 novembro_2016.ok
 
Rio Pardo 200 anos
Rio Pardo 200 anosRio Pardo 200 anos
Rio Pardo 200 anos
 
Jornal digital 4755 qua-16092015
Jornal digital 4755 qua-16092015Jornal digital 4755 qua-16092015
Jornal digital 4755 qua-16092015
 
2011 cartagena diarios Paulo oliveira massa
2011 cartagena diarios Paulo oliveira   massa2011 cartagena diarios Paulo oliveira   massa
2011 cartagena diarios Paulo oliveira massa
 
CULTURARTEEN 178 - edição extra - 12 de setembro de 2017
CULTURARTEEN 178 - edição extra - 12 de setembro de 2017CULTURARTEEN 178 - edição extra - 12 de setembro de 2017
CULTURARTEEN 178 - edição extra - 12 de setembro de 2017
 
AGRISSÊNIOR NOTÍCIAS Nº 601 an 07 dezembro_2016.
AGRISSÊNIOR NOTÍCIAS Nº 601 an 07 dezembro_2016.AGRISSÊNIOR NOTÍCIAS Nº 601 an 07 dezembro_2016.
AGRISSÊNIOR NOTÍCIAS Nº 601 an 07 dezembro_2016.
 
Cariacica noticias jornal
Cariacica noticias   jornalCariacica noticias   jornal
Cariacica noticias jornal
 
O Bandeirante 122006
O Bandeirante 122006O Bandeirante 122006
O Bandeirante 122006
 
Arte, Cultura e Transformação nas vilas e favelas: Um olhar a partir do Grupo...
Arte, Cultura e Transformação nas vilas e favelas: Um olhar a partir do Grupo...Arte, Cultura e Transformação nas vilas e favelas: Um olhar a partir do Grupo...
Arte, Cultura e Transformação nas vilas e favelas: Um olhar a partir do Grupo...
 
Divulgação Culturais - O caminho das pedras | Bia Morais
Divulgação Culturais - O caminho das pedras | Bia MoraisDivulgação Culturais - O caminho das pedras | Bia Morais
Divulgação Culturais - O caminho das pedras | Bia Morais
 
Revista SINESTESIAS n° 1
Revista SINESTESIAS n° 1Revista SINESTESIAS n° 1
Revista SINESTESIAS n° 1
 
A arte a serviço da transformação social
A arte a serviço da transformação socialA arte a serviço da transformação social
A arte a serviço da transformação social
 
E-book "O Negro nos Espaços Publicitários Brasileiros" - BATISTA e LEITE (Org...
E-book "O Negro nos Espaços Publicitários Brasileiros" - BATISTA e LEITE (Org...E-book "O Negro nos Espaços Publicitários Brasileiros" - BATISTA e LEITE (Org...
E-book "O Negro nos Espaços Publicitários Brasileiros" - BATISTA e LEITE (Org...
 
Roteiro de estudos Ciclo Autoral 01 a 05 de junho de 2020.
Roteiro de estudos Ciclo Autoral 01 a 05 de junho de 2020.Roteiro de estudos Ciclo Autoral 01 a 05 de junho de 2020.
Roteiro de estudos Ciclo Autoral 01 a 05 de junho de 2020.
 

Semelhante a revista_tracos_edicao_50_final.pdf

Guia Cultural de Governador Valadares - Volume I - Favela é Isso Aí
Guia Cultural de Governador Valadares - Volume I - Favela é Isso AíGuia Cultural de Governador Valadares - Volume I - Favela é Isso Aí
Guia Cultural de Governador Valadares - Volume I - Favela é Isso AíFavela é isso aí
 
Apresentação camará sepa
Apresentação camará sepaApresentação camará sepa
Apresentação camará sepaBia Saffi
 
Apresentação resvita culturando sp
Apresentação resvita culturando spApresentação resvita culturando sp
Apresentação resvita culturando spLuana Beda
 
Apresentação culturando sp
Apresentação culturando spApresentação culturando sp
Apresentação culturando spLuana Beda
 
Apresnetação culturando sp
Apresnetação culturando spApresnetação culturando sp
Apresnetação culturando spLuana Beda
 
Revista Estação Brasil - Ed. 17
Revista Estação Brasil - Ed. 17Revista Estação Brasil - Ed. 17
Revista Estação Brasil - Ed. 17Michael Yoo
 
Guia de manifestações culturais do ABC, jun 2016
Guia de manifestações culturais do ABC, jun 2016Guia de manifestações culturais do ABC, jun 2016
Guia de manifestações culturais do ABC, jun 2016oficinativa
 
Revista Boa Vontade, edição 214
Revista Boa Vontade, edição 214Revista Boa Vontade, edição 214
Revista Boa Vontade, edição 214Boa Vontade
 
Revista Acontece Leste 27
Revista Acontece Leste 27 Revista Acontece Leste 27
Revista Acontece Leste 27 cocopequeno007
 
Revista Boa Vontade, edição 220
Revista Boa Vontade, edição 220Revista Boa Vontade, edição 220
Revista Boa Vontade, edição 220Boa Vontade
 
Guia de Manifestacões Culturais do ABC, jul 2018
Guia de Manifestacões Culturais do ABC, jul 2018Guia de Manifestacões Culturais do ABC, jul 2018
Guia de Manifestacões Culturais do ABC, jul 2018oficinativa
 
Revista Estação Edição 17
Revista Estação Edição 17Revista Estação Edição 17
Revista Estação Edição 17Revistaestacao
 
Apresentação Alô Cultural
Apresentação Alô CulturalApresentação Alô Cultural
Apresentação Alô CulturalCarolineGrego
 
Case matracas colunistas
Case matracas colunistasCase matracas colunistas
Case matracas colunistasRogério Rocha
 
Colunista Cesar de Castro rev mktg coluna 360 graus Pioneirismo Arco Iris Pot...
Colunista Cesar de Castro rev mktg coluna 360 graus Pioneirismo Arco Iris Pot...Colunista Cesar de Castro rev mktg coluna 360 graus Pioneirismo Arco Iris Pot...
Colunista Cesar de Castro rev mktg coluna 360 graus Pioneirismo Arco Iris Pot...Cesar de Castro
 

Semelhante a revista_tracos_edicao_50_final.pdf (20)

Catalogo premio2010
Catalogo premio2010Catalogo premio2010
Catalogo premio2010
 
Guia Cultural de Governador Valadares - Volume I - Favela é Isso Aí
Guia Cultural de Governador Valadares - Volume I - Favela é Isso AíGuia Cultural de Governador Valadares - Volume I - Favela é Isso Aí
Guia Cultural de Governador Valadares - Volume I - Favela é Isso Aí
 
Apresentação camará sepa
Apresentação camará sepaApresentação camará sepa
Apresentação camará sepa
 
Apresentação resvita culturando sp
Apresentação resvita culturando spApresentação resvita culturando sp
Apresentação resvita culturando sp
 
Apresentação culturando sp
Apresentação culturando spApresentação culturando sp
Apresentação culturando sp
 
Apresnetação culturando sp
Apresnetação culturando spApresnetação culturando sp
Apresnetação culturando sp
 
Revista versao
Revista versaoRevista versao
Revista versao
 
Revista Estação Brasil - Ed. 17
Revista Estação Brasil - Ed. 17Revista Estação Brasil - Ed. 17
Revista Estação Brasil - Ed. 17
 
Guia de manifestações culturais do ABC, jun 2016
Guia de manifestações culturais do ABC, jun 2016Guia de manifestações culturais do ABC, jun 2016
Guia de manifestações culturais do ABC, jun 2016
 
Revista Boa Vontade, edição 214
Revista Boa Vontade, edição 214Revista Boa Vontade, edição 214
Revista Boa Vontade, edição 214
 
Revista Acontece Leste 27
Revista Acontece Leste 27 Revista Acontece Leste 27
Revista Acontece Leste 27
 
Revista Boa Vontade, edição 220
Revista Boa Vontade, edição 220Revista Boa Vontade, edição 220
Revista Boa Vontade, edição 220
 
Guia de Manifestacões Culturais do ABC, jul 2018
Guia de Manifestacões Culturais do ABC, jul 2018Guia de Manifestacões Culturais do ABC, jul 2018
Guia de Manifestacões Culturais do ABC, jul 2018
 
Revista Estação Edição 17
Revista Estação Edição 17Revista Estação Edição 17
Revista Estação Edição 17
 
Apresentação Alô Cultural
Apresentação Alô CulturalApresentação Alô Cultural
Apresentação Alô Cultural
 
Raleste 20
Raleste 20Raleste 20
Raleste 20
 
Raleste20
Raleste20Raleste20
Raleste20
 
Case matracas colunistas
Case matracas colunistasCase matracas colunistas
Case matracas colunistas
 
Colunista Cesar de Castro rev mktg coluna 360 graus Pioneirismo Arco Iris Pot...
Colunista Cesar de Castro rev mktg coluna 360 graus Pioneirismo Arco Iris Pot...Colunista Cesar de Castro rev mktg coluna 360 graus Pioneirismo Arco Iris Pot...
Colunista Cesar de Castro rev mktg coluna 360 graus Pioneirismo Arco Iris Pot...
 
Newsletter nº3
Newsletter nº3Newsletter nº3
Newsletter nº3
 

revista_tracos_edicao_50_final.pdf

  • 2. Chegamos até aqui porque não caminhamos sozinhos. Em cada passo do caminho, havia um parceiro. Pessoas e instituições que nos ajudaram a colocar no lugar cada peça deste projeto social chamado Revista Traços. Chegamos até aqui porque muitos acreditaram e vieram conosco. E é assim que queremos continuar, juntos! Foram 50 edicoes! Souza Cruz BAT Brasil Griô Produções Bancorbrás Cultural Digital SIGN MNS Soluções Gráficas SASSE Produtos Promocionais Coronário Gráfica Associação Cultural Namastê Storica Na Calçada Studio Brava Kabe Agência Rockin’hood Ribon Cotidiano Aceleradora de Startups Halegoria Cultural Barba na Rua Fermento Cláudio Abrantes Arlete Sampaio Leandro Grass Fábio Félix Júlia Lucy Rafael Prudente Roberio Negreiros Fundação Oswaldo Cruz Universidade de Brasília Secretaria de Estado de Cultura e Economia Criativa do Distrito Federal Secretaria de Estado de Trabalho do Distrito Federal Secretaria de Estado de Desenvolvimento Social do Distrito Federal Secretaria de Estado de Turismo do Distrito Federal André Clemente (Secretário de Economia) Hamilton Pereira, Guilherme Reis e Bartolomeu Rodrigues (Secretários de Cultura) Jaime Recena (ex-secretário de Turismo) Vanessa Chaves de Mendonça (Secretária de Turismo) Rodrigo Rollemberg (ex-governador do Distrito Federal) Fundo de População das Nações Unidas UNICEUB Educação Superior Vamos pra mais 50? A todos os que participaram da construção desta história, o nosso MUITO OBRIGADO!
  • 3. 50//21 CANVAS // 24 MORDA // 8 HOLOFOTE // 9 BUTECO // 74 POUCAS E BOAS // 7 UNFPA // 72 RASCUNHO // 38 CÓDIGO DE CONDUTA // 6 Diretora Geral: Michelle Cano Diretor Executivo: Reinaldo Gomes Diretor de Redação: André Noblat Diretor Institucional: Rogério Barba Editora-chefe: Juliana Valentim Redator-chefe: José Rezende Jr. Editora de fotografia: Thaís Mallon Fotógrafo especial: Marcos André Pinto Fotógrafo convidado: Fábio Setti Repórter: Maíra Valério Colunista: Nelson Fernando Inocencio da Silva Freelancers: Marianna França e devana babu Projeto Gráfico e Direção de Criação: Chica Magalhães e Tiago Palma (Fora da caixa) Revisora de textos: Jaqueline Fernandes Estagiárias: Giovanna Figueiredo, Shyrlem Barbosa e Ana Noronha Coordenadora de Comunicação: Juliana Cury Social Mídia e Redatora de Mídias Sociais: Katia Aguiar Web designer: Camila Koproski Coordenadora Social: Hellen Cris de Carvalho Vaz Coordenação Administrativa e Financeira: Associação Traços de Comunicação e Cultura Gerente administrativa e financeira: Nayara Souza Assistente de produção (financeiro): Juliana Fagundes Gerente de Recursos Humanos: Graciete dos Santos Malta Supervisores de pessoal: Raissa Falcão, Matheus Rocha Lago, Rosilda Flor e Stefano Felipe Silva Borges Coordenador Corporativo Responsável pela Publicação: Fora da Caixa Ltda-ME Periodicidade: Mensal Tiragem: 2.000 exemplares Endereço: CLN 208 Bloco D Sala 211 – Asa Norte CEP 70853-540 – Brasília-DF Contatos Redação: redacaotracos@revistatracos.com Institucional: tracos@revistatracos.com Comunicação:comunicacao@revistatracos.com Telefone: (61) 3033 4541 Siga nas Mídias Sociais: @RevistaTracos Visite a página: revistatracos.com ISSN: 2763-8502 // 40 3X4 Priscila acumula várias jornadas: além de porta-voz da cultura, futura advogada e mãe e pai de Samuel, ainda faz um curso técnico de redação, com vistas a outro sonho: escrever livros de Direito, sobre injustiças que conhece na própria carne. // 69/76 TOCA RAUL Carioca de nascimento e brasiliense de coração, Marlene Souza Lima passeia pelo jazz com sua paixão: a guitarra. Já o Culto da Malditas passeia entre o sacro e o profano com sua arte híbrida e transversal. // 10 MOVIMENTE-SE Houve um tempo em que, em qualquer canto de Brasília, ouvia-se rock. Foram tantas bandas e espaços que fizeram parte desta história, que a Setur-DF fez um mapeamento e criou a icônica Rota do Rock. Ah, se a cidade falasse... // 46 MIQUÉIAS PAZ O primeiro mímico da Capital Federal acaba de completar quatro décadas de trajetória. De uma trajetória que passou por diferentes fases, sempre usando a arte como instrumento de resistência e conexão. // 26 MANUELA KOROSSY Aos 19 anos, dona de uma voz considerada surreal, a soprano brasiliense Manuela Korossy conquista uma vaga na disputadíssima Juilliard School, melhor escola de artes performáticas do mundo, e vai em busca da carreira internacional. // 12 ENTREVISTA “Está tudo nas canções”. É assim que Dado Villa-Lobos sintetiza sua extensa carreira. Neste bate papo com a Traços, ora idílico, ora pesado, o artista fala sobre a cidade, o presidente, o selo Rockit!, trilhas sonoras e várias outras coisas. // 56 INSTANTES Mila Petrillo é um patrimônio cultural de Brasília. Ao longo de sua carreira, as lentes da fotógrafa capturaram a alma da cidade em diferentes períodos, como momentos da ditadura, o início da efervescência cultural da capital, além de inúmeros espetáculos e iniciativas sociais. Revista TRAÇOS Ano 6 setembro 2021 4 5
  • 4. P O U CA S E B OA S O Código de Conduta estabelece algumas diretrizes que têm como objetivo orientar o trabalho dos Porta-Vozes da Cultura e dos colaboradores da Traços. Ao reportar casos que fujam das políticas de atuação, você colabora com o desempenho e o aperfeiçoamento do projeto. A Traços é uma publicação sobre arte e cultura, vendida nos espaços culturais e gastronômicos de Brasília pelas mãos dos Porta-Vozes da Cultura – pessoas que estavam em situação de rua ou em extrema vulnerabilidade financeira. Por meio da revista, o projeto contribui com a geração de renda e o ganho de autonomia dos Porta- Vozes, que ficam com 70% do valor de cada exemplar. 6 7 Fone: 3033-4541 André Noblat andre@revistatracos.com O uso de linguagem racista, sexista, lgbtfóbica ou ofensiva não é aceito no projeto Traços. Reportar comportamentos preconceituosos é dever de todos. Respeitar o público ou qualquer colaborador da traços e seus parceiros é essencial, sem jamais agir de forma agressiva ou violenta. Em hipótese alguma o Porta-Voz da Cultura poderá oferecer a revista após ingerir bebida alcoólica ou estar sob efeito de qualquer droga. Os Porta-Vozes da Cultura não devem comercializar a revista no território de venda de outros Porta- Vozes. Ao se identificar como Porta-Voz da Cultura, com colete e crachá da Traços, o Porta-Voz se compromete a não pedir qualquer tipo de doação aos clientes, seja em seu nome ou em nome da Traços. É responsabilidade do Porta-Voz da Cultura informar aos clientes sobre a data de publicação das edições que estão sendo oferecidas para a venda. 1 2 3 4 5 6 Os exemplares da revista somente podem ser vendidos pelo valor estipulado na capa, não importando o número da edição. Em nenhuma hipótese será permitido trabalhar com a venda da revista estando acompanhado por crianças. Apenas os exemplares da Revista Traços podem ser vendidos pelos Porta-Vozes da Cultura. Nenhum outro produto ou serviço deve ser oferecido. O Porta-Voz da Cultura deve se apresentar com uniforme e crachá de identificação em todas as atividades vinculadas ao projeto. Os Porta-Vozes da Cultura não estão autorizados a utilizar a marca Traços de maneira desrespeitosa, trazendo prejuízo ao projeto e/ou seus colaboradores. Ao abordar o público, o Porta-Voz da Cultura deverá usar máscara cobrindo nariz e boca, mantendo o distanciamento seguro e as mãos sempre higienizadas, conforme recomendado pelas autoridades sanitárias. 7 8 9 10 11 12 Meia centena de publicações que tentaram retratar um pouco da riqueza da cultura produzida em nossa cidade. Uma cidade jovem, mas incrivelmente rica em artistas e projetos das mais diversas linguagens. Uma cidade precoce, que já na década de 80 se destacava no país pelas bandas de rock n’roll que aqui nasciam. Uma cidade que precisará de pelo menos mil edições da Traços para contar as histórias lindas que compõem o DNA do nosso quadradinho. Justamente por isso, nesse número marcante em que chegamos, fazemos questão de reafirmar o compromisso editorial dessa publicação com a cultura de Brasília. Ainda temos muito o que mostrar e sabemos que sempre surgirão novos artistas e projetos. Temos um trabalho lindo e quase infinito para fazer, e continuaremos fazendo com todo o carinho e paixão que colocamos em cada uma das 50 primeiras edições. Para homenagear as histórias que já contamos e as que ainda estão por vir, trouxemos Dado Villa-Lobos para a capa desta edição especial. O guitarrista da Legião Urbana, compositor e dono de selo musical, abriu as portas da sua casa e o seu coração para a Traços, em uma entrevista sobre passado, presente e futuro. A quinquagésima edição também nos fez arriscar: pela primeira vez a Traços será preto e branco. Todos os meses, quando produzimos uma edição da revista, também gostamos de fazer arte. Isso aparece no formato dos textos, fotos e diagramação. Sempre tentamos inovar e, dessa vez, resolvemos tentar algo que nunca tínhamos feito. Tivemos que repensar fotos e diagramação. Esperamos que vocês gostem do resultado. Por fim, é um orgulho muito grande para nós, equipe da Traços, dividir o resultado de cada edição com vocês, nossos leitores. É uma honra fazer parte da história da cultura de Brasília e poder amplificá-la. E CHEGAMOS A TRACOS NUMERO 50 QUE VENHAM AS PROXIMAS 50 EDICOES.
  • 5. 8 9 H O LO F OT E M orda MÚSICA Vaga Carne 2019 – GRACE PASSÔ E RICARDO ALVES JR. O filme Vaga Carne (2019) é uma transcrição da peça, de mesmo nome, da atriz e dramaturga Grace Passô. Ela dirige o filme junto com o também diretor Ricardo Alves Jr. Em 45 minutos de tela, podemos ver recursos precisos de som, luz e cena. Esses elementos compõem a experiência radical de uma voz que toma o corpo de uma mulher. Nessa tensão entre fala e gesto, ambas travam uma busca entre identidades e papéis sociais. Esse, que é um dos trabalhos mais instigantes do cinema brasileiro recente, está disponível para locação na plataforma de vídeo Embaúba Filmes, distribuidora especializada em cinema brasileiro: embaubafilmes.com.br. Pedro B. Garcia é realizador audiovisual e faz parte do duo Casadearroz (casadearroz.com) LIVRO Almanaque do Teatro LEÔNIX O Almanaque do Teatro é uma revista didática divertida, com passatempos e design super atual. Destinado à alfabetização estética, passa longe do conteudismo. De forma lúdica, valoriza o saber teatral e a cultura local, gerando suporte para o arte-educador em sala de aula e oficinas. O Almanaque do Teatro foi elaborado com recursos do FAC, de acordo com o Currículo em Movimento, referencial teórico da área, e sugestões de mais de 25 arte-educadores e 150 estudantes das Escolas Parques. É possível acessar gratuitamente pelo Instagram @euleônix ou pelo site www. almanaquedoteatro.com Leônix é atriz, dramaturga, arte-educadora e autora do Almanaque do Teatro, entre outras obras. FILME KAÊ GUAJAJARA Último single da rapper Kaê Guajajara, Por Dentro da Terra, foi lançado em 2021 pelo Coletivo Azuruhu, e segue traçando a linha política e poética de seus trabalhos anteriores: a cantora, compositora, escritora, atriz e arte- educadora utiliza suas composições para falar sobre a diáspora dos povos indígenas. Unindo ancestralidade e futurismo indígena, é um grito de resistência decolonial e uma busca por reparação histórica através do aprofundamento político e da ocupação dos espaços. Azuruhu, fundado pela Kaê, é Thaís Mallon é fotógrafa e editora de fotografia da Traços. A BSB Comidinhas é uma empresa familiar que produz seus alimentos sob encomenda, de forma personalizada para cada cliente. Segundo Patrícia Gribel, uma das idealizadoras do negócio, o objetivo é fazer comida com memória afetiva: “Se o cliente fala para mim ‘estou com saudade de comer um doce que eu comia na infância’, nós vamos tentar fazer”, afirma. O empreendimento surgiu em 2020, após uma das filhas de Patrícia pedir para que a tia, Daniella Gribel, preparasse Saiba mais: @bsbcomidinhas um selo dedicado a impulsionar artistas indígenas na música, literatura e audiovisual. Seu primeiro EP é de 2019. Vale a pena ouvir toda a discografia, uma aula urgente de decolonialidade. Por Dentro da Terra o cardápio. Atualmente, os mais pedidos da marca são a Cheesecake, o famoso Quindão, e a queridinha dos clientes, a deliciosa Banoffee, uma torta feita com bananas, creme e um molho espesso de caramelo. A relação de Patrícia com os consumidores é algo muito importante para ela e vai muito além de uma simples relação cliente e fornecedor: “Tenho muito cuidado com meus clientes, por exemplo, quando algum me faz uma encomenda, penso nesse cliente enquanto estou cozinhando o pedido. Cada entrega eu faço pessoalmente e, se não puder, quem vai é alguém da família. E vai sempre um cartão personalizado, eu faço questão. Porque, se a proposta do BSB Comidinhas é afeto e memória, começa com afeto. Eu acredito muito na gentileza e no agradecimento, sabe? E está faltando isso no mundo”. Os pedidos podem ser feitos pelo WhatsApp, através de um link disponibilizado no Instagram da empresa. BSB COMIDINHAS Farinha de trigo, leite, ovos e o elemento mais importante: afeto algumas rabanadas (recheadas de leite ninho), para uma confraternização de final de ano no trabalho. Não deu outra! Após os colegas experimentarem as rabanadas, começaram a surgir vários pedidos de pessoas que também queriam o prato em suas ceias. Porém, Daniella ficou preocupada, pois tem um problema nas articulações e temia não conseguir atender a demanda. Foi então que Patrícia se dispôs a ajudar a irmã com as encomendas. “Natal e ano novo, a gente não teve sossego”, relembra Patrícia. Patrícia conta que, no início, foi sua filha mais nova quem anunciou o negócio em um grupo de WhatsApp dos moradores da quadra onde residiam, no Lago Sul. Depois disso, os pedidos não pararam mais de chegar. Começaram, então, a pensar em outras receitas para incrementar Por Shyrlem Barbosa Fotos Thaís Mallon
  • 6. 10 11 Eu sempre digo que nasci de cesariana. Não foi de parto normal como as outras cidades. Vim ao mundo com dia marcado e, sem falsa modéstia, uma plateia já me esperava. Um país inteiro aguardava ansiosamente a minha chegada. No começo,bem no começo,aqui não havia nada.Só a poeira da terra vermelha dançava alegre pelas ruas recém-formadas.Foi nessa época que os candangos vieram. Traziam na mala a esperança de dias melhores,muitos sonhos e saudades.Com o passar do tempo, tiveram filhos.E esses filhos,com seus amigos,me deram a alegria de ver nascer um sotaque só meu.Ainda misturadinho,é bem verdade,mas só meu. E não foi apenas o sotaque que aqueles jovens me deram. Lembro-me, como se fosse hoje, daquelas almas inquietas, movidas pelas paixões e rebeldias da juventude, com pés que caminhavam firmes sobre mim, a Capital do Brasil. Talvez tenha sido em uma garagem o primeiro acorde. Ou debaixo de um dos prédios da asa norte. A verdade é que depois do primeiro, veio outro, e outro, e outro, e outro. Até que todas as coisas que precisavam ser ditas viraram música. Era ali que o nosso rock nascia. Foi na Colina, na Universidade de Brasília, que a coisa começou a se incendiar de verdade. De lá, ganhou a cidade. Em 1978, veio o Aborto Elétrico, e aí já estava certo: a gente entraria para a história como a Capital do Rock. De um rock que se apropriou deste chão, gritando protestos e ocupando espaços. Rota brasilia capital do rock Por Juliana Valentim Fotos Thaís Mallon Guardo na memória alguns momentos marcantes, como o primeiro show da Legião Urbana no Cave, Guará. Feliz de quem estava lá! E tinha a Plebe Rude que a gente amava, Capital Inicial, Raimundos, Cássia Eller, Natiruts. E o Mel da Terra que abriu caminho para todo mundo. Sempre tive um orgulho danado de ser tão musical. Houve um tempo em que, em qualquer um dos meus cantos, ouvia-se um som – Na UnB, no Teatro Garagem, no Nilson Nelson, na Torre de TV, na Concha Acústica, no Rádio Center e nas velhas e conhecidas quadras – como na 407 norte, onde o Aborto Elétrico e a Blix 64 tocavam. E tinham também os subsolos da 207 que abrigavam diversas salas de ensaio. Foi lá que o Porão do Rock surgiu. Quanta coisa acontecia naqueles mundos. É fácil a gente se perder nessas memórias. São tantas bandas e espaços que fizeram parte desta história, que sempre imaginei como seria se todos fossem organizados em uma única rota. Pois foi isso que aconteceu. Acabo de ganhar a Rota do Rock! A Secretaria de Turismo do Distrito Federal (Setur DF) mapeou 37 pontos que fazem parte da história do rock brasiliense, em um trabalho conjunto com a Secretaria de Estado de Economia, com a faculdade União Pioneira de Integração Social (Upis), além da idealização e curadoria de Philippe Seabra, vocalista da Plebe Rude, e a produção de Tata Cavalcante. A Secretária da Setur DF, Vanessa Mendonça, disse: “O segmento musical do rock como destino turístico será tratado como atração principal e com as luzes que realmente merece. Considerar esse estilo tão importante para a história da nossa capital sob a perspectiva da consolidação de um destino é uma conquista inédita e de valor estratégico para o desenvolvimento de todos os setores, em especial, o do turismo”. Agora, você imagina a alegria desta jovem cidade aqui, que vai poder proporcionar, aos moradores e turistas, uma experiência única e afetiva, ao percorrer os pontos onde tudo aconteceu? Aliás, você sabia que o rock foi tombado como Patrimônio Cultural Imaterial do DF? “Com milhões de discos vendidos, filmes e documentários com milhões de espectadores, teses e doutorados dedicados às letras dessas bandas, o Rock de Brasília é um alicerce da contestação e liberdade de expressão no Brasil, e isso tem que ser celebrado”, afirma Philipe Seabra. Eu não poderia concordar mais contigo, caro Philipe. E recomendo ao leitor que ainda não fez a Rota, que faça. Porque, em cada canto mapeado, eu vou desvendando os meus segredos, segredos de um tempo que ainda vive. *Para conhecer os pontos da Rota Brasília Capital do Rock, acesse: www.setur.df.gov.br
  • 7. EN T RE V I S TA 12 13 Villa-Lobos Está tudo nas canções “Está tudo nas canções.” A cidade, o presidente, as favelas, o senado, os uniformes, os cartazes, os cinemas e os lares. O ônibus de ida ou volta pro Planalto Central. A travessia do Eixão. Os pegas da Asa Sul. A Asa Norte, Taguatinga, Planaltina, Ceilândia e Sobradinho. O Caseb, o Lago Norte e a UnB. A curva do Diabo, o Parque da Cidade, os opalas, as motos e os “camelos”. Além do tédio (com um T bem grande pra você) embaixo dos blocos. Ah! E muitas outras coisas. Quando Eduardo Dutra Villa-Lobos – que nasceu na Bélgica e passou parte da infância em países como Uruguai e França – chegou a Brasília, ele ficou bestificado com a cidade: pareceu-lhe um autorama gigante. Morou na 104 e na 213 Sul. Foi alfabetizado na escola parque 307/308 e educado na Escola Classe da 204 Sul. Andava de skate com amigos como Herbert Vianna e Bi Ribeiro, garotos do bloco ao lado. Brincava na lama quando chovia e a cidade ainda não era asfaltada nem arborizada. Por André Noblat, devana babu, Maíra Valério e Shyrlem Barbosa Fotos Marcos André Pinto
  • 8. 14 15 Roubava gasolina para ir com os amigos nas festinhas. Trombava com Oswaldo Montenegro pelas entrequadras e seguia o Liga Tripa no Beirute. Tem uma mãe que se casou com o pai de Dinho Ouro- Preto e conheceu, no Uruguai, o diretor teatral Hugo Rodas, que frequentava a casa da família. É também sobrinho-neto de Heitor Villa-Lobos, que dá nome à sala do Teatro Nacional. Na adolescência, conheceu os carinhas da cidade que tocavam punk rock na calçada de lanchonetes como a Food’s e começou a segui-los por aí. Eventualmente, acabaria se tornando o guitarrista da banda mais icônica e famosa de Brasília, e talvez a maior do Brasil: a Legião Urbana. No dia do aniversário de Dado, 29 de junho, ele e o parceiro Marcelo Bonfá, baterista da Legião, recuperaram, enfim, o direito de uso do nome da banda que construíram, em uma decisão histórica do Superior Tribunal de Justiça, após uma longuíssima batalha judicial. Nesta edição especial da Traços, a nossa 50ª edição, não nos furtamos ao prazer de bater um papo ora idílico, ora pesado, sobre a cidade, o presidente, o selo Rockit!, trilhas sonoras e várias outras coisas. Embora Dado sintetize corretamente: “Está tudo nas canções.” “Ponto.” Naquela música, Leila [do sétimo álbum da Legião Urbana, A tempestade] tem um verso que diz assim: “E domingo/ cachorro- quente com as crianças na Fernanda.” Essa Fernanda é a sua esposa? É ela mesmo. É que a gente tinha o costume, nesses anos, 1994, 1995, de todo domingo se juntar com Renato [Russo], já na condição de HIV positivo. E ali, na música Leila, justamente, ele cita que todo domingo a gente se encontrava, Fernanda fazia um cachorro-quente e a gente ficava ouvindo música, conversando e jogando jogos de tabuleiro, tipo Imagem e Ação, sabe? Coisas assim. A Fernanda foi a primeira empresária da banda, né? O que aconteceu foi que a Fernanda era relações públicas de uma casa lá em São Paulo, a Napalm, que durou pouco tempo. Era uma casa de punk rock e a gente, em 1983, estava começando. A gente gravou umas demos e o Renato começou a distribuí-las. Fernanda recebeu essa demo e o Renato ficou três horas com ela no telefone. Ele consegue convencê-la a agendar uma data lá no Napalm com a Legião. Lá fomos eu, Renato e Bonfá. Pegamos um busão e fomos até São Paulo, e aí a gente conhece Fernanda. E, aí, eu e Fernanda temos um... Como se chama isso hoje? Um crush. Uma coisa, assim, imediata, e a gente está casado até hoje. Aí ela vira a nossa primeira empresária, realmente. E ela é também designer gráfica, fazia as capas dos discos e tal. Mas chegou um momento em que começou a ficar complicada a relação dela ser minha mulher e ter que lidar com os outros rapazes da banda, que começaram a virar estrelas do rock. Então eu falei para ela, no segundo disco: “Chega. Vamos arranjar outro empresário.” O papel dela foi determinante para levar a gente até onde a gente chegou, em termos empresariais e estruturais. Hoje em dia é ela quem administra sua carreira? Total. Por exemplo, nessa fase em que a gente começou a fazer eventos comemorando trinta anos dos álbuns – claro que tudo isso com muitas questões jurídicas com herdeiros e coisa e tal –, foi ela que chegou um dia para mim e falou assim: “Cara, a gente vai fazer.” Eu falei “Cara, esquece isso, pra quê? A minha vida não gira mais em torno da Legião Urbana.” O cara da gravadora veio com essa ideia de fazer uma edição comemorativa do primeiro disco, com outtakes, demos e tal.Tanto que saiu o disco remasterizado, um disco duplo. Aí Fernanda fala: “Cara, vamos fazer uma excursão disso, vamos juntar uma banda, junta a sua banda”, os meus parceiros. E vamos chamar o André [Frateschi, vocalista da banda durante as turnês comemorativas], com quem já tínhamos uma relação de trinta anos. Justamente quando a gente estava lançando esse primeiro disco, a gente estava tocando na festa da peça Feliz Ano velho, [baseada no romance homônimo] do Marcelo Rubens Paiva, que é um grande parceiro também. Foto: Marcos André Pinto
  • 9. 16 17 André é filho de Denise Del Vecchio, que atuava na peça, era uma criança que a gente ficava tomando conta dele no camarim enquanto a peça acontecia, e depois a gente ia pro palco tocar. Eu tinha reencontrado o André num projeto do Banco do Brasil de covers dos Beatles.Tocamos eu, Liminha, João Barone, um monte de convidados, e o André era um deles. Quando a gente estava ensaiando lá no estúdio do Liminha, e eu vi ele cantando, meu deus! Ele cantou as músicas de modo surreal. Oh! Darling e I am the walrus.. Era, tipo, impressionante. A Fernanda insistiu para que chamássemos ele para essa turnê comemorativa. Ela falou com umas produtoras aqui do Rio, eu liguei para o André e ele topou. Só que ele estava fazendo uma minissérie chamada Magnífica 70, da HBO. O diretor geral da série era um grande amigo, Cláudio Torres, irmão de Fernanda Torres. Ele que tinha feito os cenários da excursão do V, e ele ama a Legião Urbana, também. A gente virou e falou pra ele: “Cara, a gente tá precisando do André pra ensaiar aqui com a gente e fazer essa excursão.” Aí o Cláudio virou e falou assim: “Sem problema. Vou matar o André no próximo episódio.” Foi lá e matou. Isso tudo para falar da Fernanda, que articulou essa coisa toda e que, se dependesse de mim, nada disso teria acontecido. Eu ia ter ficado no meu canto fazendo as minhas coisas com os meus parceiros, e botando de lado a questão da Legião. Mas foi tão fabuloso voltar ao palco e tocar com esses caras, e com o Bonfá, ter um encontro de novo com essa energia incrível que é a Legião Urbana e o que nossas músicas despertam no público. E aí vocês fizeram a turnê, que foi super bem-sucedida, pelo que a gente viu. Vai haver um segundo momento? Vocês vão celebrar outros discos? A ideia original era chegar até o Quatro estações. Aí, veio a pandemia e a gente saiu de cena. Veio toda a questão judicial, que a gente ganhou lá no STJ, e está tudo tranquilo nesse sentido. Agora, é esperar o momento pós- pandêmico para pensar em botar de novo no bloco na rua. Aproveitando que agora vocês têm a posse legal do nome, né? Quais serão os desdobramentos disso, agora vocês podem fazer várias coisas? Hoje, Brasília passa por esse momento bizarro.Tem esse maluco aí no planalto, que, caramba! Nunca vi isso. Antes de mais nada, é esperar as coisas se normalizarem. A gente não sabe exatamente quando. Vem aí uma variante delta [da Covid-19] com tudo. Aqui no Rio de Janeiro já tá rolando, apesar das pessoas estarem, ao mesmo tempo, vacinando-se, que é uma coisa muito boa. Mas vamos lá. Vamos aguardar. Por falar na situação política atual, que paralelos você traçaria entre este momento e aquele em que vocês começaram, no final da ditadura? São paralelos bem estranhos. Então,traçando esse paralelo,ali era uma coisa realmente séria.A gente estava querendo a volta da democracia,a volta do voto.E agora ficam com essa cortina de fumaça,voltando com uns tanques esfumaçados passando pela rua, pelo planalto,acabando com o que seria a República do Brasil e transformando isso aqui,realmente, em uma República de Bananas. E quando eu ouvi que eles foram lá pra Formosa, pra Lagoa Formosa, eu lembrei de um show da Legião que a gente fez lá, da rádio Transamérica. Isso antes da Legião gravar disco e tudo. Lembrei daquele lugar, que realmente é uma lagoa. É lá que que esses milicos vão treinar. E aí tudo veio e se misturou na minha cabeça, e eu fiquei realmente confuso. Bem confuso. Você ainda mantém relações com Brasília? Sim, claro. A minha formação passa por Brasília. Ponto. Se as pessoas me perguntam, onde quer que seja, “de onde você é?” Eu falo assim: “Eu venho de Brasília. É de lá que eu venho.” Eu estou aqui no Rio de Janeiro há trinta e tantos anos, mas de onde eu sou? Sou de Brasília, cara. Foi ali que eu me criei durante parte da infância e da minha adolescência. São momentos marcantes na formação de qualquer pessoa. E Brasília, cara, esse lugar é louco. Foto: Fernando Schlaepfer Quando eu vi essa cena patética do desfile de tanques [na Esplanada dos Ministérios, no dia da votação da PEC do voto impresso],o “fumacê”,um negócio grotesco,eu só me lembrei de um momento em 1984,na votação das Diretas Já,da Dante de Oliveira [PEC que instituiria o voto direto].Eu estava no salão ali do Congresso, que dá para a praça,sabe? Estava ali embaixo.E estavam lá vários deputados,como o Juruna e o próprio Dante de Oliveira.Já eram cinco da tarde quando eu vi os tanques,caminhões e soldados, todos,cercando o Congresso. Aquilo sim era de verdade.Depois, era o Newton Cruz,a cavalo, chicoteando os carros nos sinais quando teve,ao mesmo tempo,um buzinaço ali.Eu vi isso também.
  • 10. 18 19 Em 1971, 1972, eu morava na 104 Sul, quadra de diplomatas e militares. A cidade ainda não tinha a arborização que tem, não tinha os gramados, e a gente brincava de polícia e ladrão, andava pelo Eixão correndo, não tinha carro. Se chovia, formavam poças incríveis de lama em que a gente mergulhava. Eu estudava ali na Escola Parque da 308 Sul, me alfabetizei naquela escola, e também na Escola Classe 204 Sul. Eu tenho muito orgulho de ter sido alfabetizado em Brasília, em escola pública. Depois, a gente mudou para o Lago Sul, o pai e a mãe construíram uma casa, e eu fui estudar no Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, em 1975, 1976. Eu tinha morado em Montevidéu [Uruguai], Belgrado [Sérvia], aí chego em Brasília, esse lugar que é um autorama gigante, ainda em construção. Os amigos ali de quadra, naquele gueto de diplomatas. A partir desse momento, em 1980, 1981, a gente começou a seguir esses malucos, que eram o Renato, o Fê, o Gerusa, o André Mueller, esses caras aí. E ali tudo começou, e hoje, onde foi parar, né? A gente faz parte da identidade cultural desse lugar, Brasília. Ponto. Quem imaginaria, naquela época, ainda crianças, que isso fosse acontecer com essa representatividade tão grande e tão importante pro Brasil, de botar uma cara para Brasília. Na nossa época, tinha o Oswaldo Montenegro, que a gente via passar na minha quadra. Ele, o Mongol, a rapaziada do Liga Tripa. Então muitas coisas foram muito importantes na minha formação em Brasília. E isso tudo se reverte no fato de eu ter participado dessa formação da cultura e identidade por meio da música, do rock. Ele adora isso, tipo, fazia parte do mito. Mas eu não, eu sempre fui muito pragmático e falei assim: “Cara, aconteceu porque a gente deixou acontecer. A gente não estava preparado para isso. Que sirva de lição. Deu ruim”. A gente estava muito feliz de estar de volta a Brasília, no Mané Garrincha, mas deu ruim. Claro que a gente nunca mais voltou a Brasília. Mas isso não comprometeu em momento algum a minha relação com a cidade, essa relação afetiva, emocional, e que eu tenho muito dentro do meu coração, dentro da minha formação como pessoa, como músico, como um cara que enxerga como eu enxergo o mundo hoje. Então eu consegui separar uma coisa da outra, mas é fato que foi um momento crítico e complicado. Mas vocês pensaram em voltar? Não. Com o Renato não. O Renato era impossível. Ele falou: “Brasília nunca mais, quero que se foda.” Renato realmente falou assim: “Brasília nem fudendo.” Mas eu já toquei aí em carreira solo, em alguns lugares, no festival do Giraffas, enfim. Sem problema nenhum. Eu acho que o Renato era tinhoso nesse sentido, mas passou a infância, a adolescência, a vida inteira dele lá. É a formação dele. E ele tinha uma lealdade com Brasília muito forte, muito grande. Como era o processo criativo da banda? Oitenta por cento das vezes, um processo coletivo, quando se juntavam os caras – eu, Renato, Bonfá e, quando estava o Negrete, o Negrete. Assim foi com o primeiro disco inteiro. Quando voltei, em 1979, a cidade já tinha crescido um pouco mais, se estruturado. Foi quando eu conheço os caras do punk rock. O Aborto Elétrico, a Blitx. Eles passam pela minha quadra, a 213 Sul, e picham o muro lá da garagem AE [Aborto Elétrico], e tal. Quando entrevistamos o Gabriel Thomaz, do Autoramas, ele falou de como esse momento foi importante, porque era a primeira vez que eles começaram a ter orgulho de Brasília, porque havia ícones para falar, lugares e coisas de que, antes, ninguém falava. São tantos espaços identitários que vão além dessa formação de espaço de poder, né? É, incrível. O projeto Cabeças, o Parque da Cidade. A gente usava Brasília e circulava por Brasília no Grande Circular, a pé, de bicicleta. Alguns caras já tinham carro, a gente bancava a gasolina, roubava gasolina no prédio, enfim (risos). A gente fez muita coisa. E está tudo nas canções. Em algum momento, porém, há uma espécie de desquite, né? A história do Mané Garrincha, aquela confusão toda e “nunca mais vou voltar pra Brasília.” [Em 1988, o show de retorno da Legião Urbana a Brasília, já como grandes ídolos, transformou-se em uma confusão generalizada. Eles nunca mais voltaram a tocar na cidade]. Você também se desquitou da cidade, também ficou muito magoado? E, se isso aconteceu, como conseguiu reconstruir essa relação? O Renato ficou muito sentido. Ele ficou um tempo aí em Brasília, num hotel. Ah, as pessoas queimando disco, e tal. Na “Casinha do Parkway”, onde a banda ensaiava antes de se mudar p/ o RJ .Brasília, 1984 No Museu da Cidade. Brasília, 1983 Foto: Daniel P Foto: Daniel P A passagem dos músicos do Projeto LUXXXanos pelo Congresso Nacional. Brasília, 2017 Foto: Fernanda Villa-Lobos Show na sala Villa-Lobos do Teatro Nacional. Brasília, 1987
  • 11. 20 21 O primeiro disco foi feito no estúdio de ensaio no Rádio Center, [e] no quarto do Renato. Músicas tipo Petróleo do futuro, Teorema, O reggae, Soldados, Será. As pessoas concentradas e sempre num processo coletivo, no sentido de que, até o Renato sendo o cara, digamos assim, um mentor da coisa, cobrava muito de todo mundo para que todos participassem e criassem aquele negócio. Aí depois o Renato ficava ouvindo aquilo lá, aquela base, e acabava escrevendo algo ali dentro da base. Foi como eu aprendi a fazer música, e até hoje é assim. É assim que eu faço música e temas pro cinema, pra seriados de TV, pros meus discos. A gente dava duro mesmo. E ali, naquele momento, sobriedade total. Sobriedade, concentração e “vamo fazer música”, “vamo gravar”, “vamo criar”. E aí o Renato dava uns nomes, “Ah, Pais e filhos.”“Ah, por quê?” Porque, cara, neguinho estava virando pai, né? O Bonfá havia tido o João Pedro, o Nicolau [filho do Dado] estava nascendo, e a gente ficava no estúdio lendo aquela revista Pais e Filhos, para ver como é que é o negócio. Eles cederam o estúdio, a gente gravava, e eu tinha a distribuição da multinacional, que, no caso, era a EMI, Virgin. E aquilo foi isso, a gente pegando bandas novas e botando no estúdio pra fazer acontecer uma cena. A cena do rock estava acabando.Tava, tipo, desmilinguindo. Era um momento que era basicamente muito sertanejo, e que o Brasil era isso, o que me incomodava muito – o Brasil era 8 ou 80, não tinha um meio-termo. Então a ideia de você ter um selo é criar um meio- termo dentro do mercado. Duas bandas icônicas de Brasília foram lançadas pelo seu selo, a Low Dream e a Dungeon. Como você conheceu a Low Dream e como era a relação com [o guitarrista] Fejão e a galera da Dungeon? Foi surreal. Acho que partiu mais do André Mueller, o André X. Mas, é claro, porra, Dungeon, Fejão, a gente circulava junto. A gente estava sempre juntos. Aliás, ele partiu de uma forma dramática. Mas o disco do Dungeon é incrível, metal pesado, e ele tocando naquela guitarra.Tem um estilo, tem uma sonoridade. Me lembra Jimi Hendrix.Tem algo diferente aí, algo que, para quem curte guitarra e entende daquele negócio... eu sempre senti isso. O Fejão era a mesma coisa, só que no metal pesado. A gente falou: “Bom, os caras querem lançar um disco, então vamos prensar o disco aqui. Vinil. E assim foi. Foi maravilhoso. Na medida do possível que a gente pode fazer com o Dungeon. E aí, o Low Dream era essa coisa post-punk, aquela onda do Loveless, do My Blood Valentine, aquela coisa shoegaze. A ideia era essa, ser proativos e dar oportunidade pra conseguir fazer acontecer de algum jeito. É claro que era uma estrutura pequena, a gente não tinha dinheiro de Marketing. Sempre essa é uma grande treta.  Já que estamos falando de guitarras, que tipo de equipamento você usa hoje em dia? Eu comecei com a Dadocaster [apelido da primeira guitarra dele], que o Loro chamava de guitarra- boi, porque ela não tinha agudo, era difícil. Existe essa mitologia do rock de que é todo mundo muito doido o tempo todo, mas a maioria das bandas, por trás, têm uma trajetória de muito trabalho e estúdio, mesmo que quebre tudo na frente dos outros, né? É verdade. É muito suor. Eu lembro quando a gente estava gravando o Quatro estações, que a gente saiu do zero, praticamente, e acabou um ano no estúdio. Foram realmente quatro estações para fazer aquele disco. E a gente batia o ponto. Era de três da tarde às nove da noite, porque a gente parava para assistir a novela Vale tudo.Todo mundo ia para casa assistir a novela. Mas estávamos lá trabalhando de, sei lá, meio-dia, uma hora da tarde, até a hora da novela, lá no estúdio do Mayrton. “Ah, não, mas é por causa do Turguêniev [escritor russo, autor do romance Pais e Filhos]...” Não. Era só a revista. Você está fazendo alguma trilha, no momento? Viu um seriado chamado Bom dia, Verônica? Na Netflix? Então. Essa trilha é minha. E agora vai começar a segunda temporada. Eles vão começar a gravar, então eu estou fazendo. E, ao mesmo tempo, eu estou fazendo um filme sensacional que é a história da Rádio Fluminense, que vai se chamar Aumenta que é rock’n’roll. É a história de uma turma que fez aquela rádio. Tocar em rádios alternativas, estar em veículos alternativos, para, ali, se o cara for bom, ele vai adiante. A ideia do selo foi essa. A gente aproveitou o momento, em que a cena musical estava realmente caída, para tentar dar uma sacudida na poeira. A gente conseguiu alguma coisa. Aí, vieram vários selos também, como o Banguela, que lançou o Raimundos, do Miranda e dos Titãs, em São Paulo. Então foi esse momento. Cá entre nós, a gente foi precursor dessa ideia. E é sempre a fim de trabalhar e descobrir novas linguagens. É mais ou menos a mesma coisa que aconteceu em Brasília, com as bandas. Aconteceu em Niterói, ali do outro lado da poça, com esses malucos que chegaram numa rádio podre e virou a Rádio Fluminense. Aliás, que toca a nossa primeira demo no dial brasileiro.Tô fazendo a trilha disso aí.Vai ser bem bacana, os atores são maravilhosos. Uma história bem legal do Luís Antonio Mello, o cara que criou a rádio.  Em relação à Rockit!, como é o processo de curadoria para definir quem vai ser apoiado pelo selo? Hoje em dia, a rapaziada é carioca, porque é mais fácil, né. Os caras estão aqui, o estúdio é aqui, enfim. Mas isso tudo aconteceu em 1992, quando o Collor acabou com a indústria fonográfica no país, com aquele Plano Collor, sei lá. Os estúdios fecharam, foi uma crise bem grande. E, aí, eu estava lançando selo na época. Eu me associei a alguns estúdios, aqui do Rio, para ter o apoio e gravar. Foto: Marcos André Pinto
  • 12. 22 23 E aí enfim, em 1983, eu consegui viajar e comprei uma Ibanez Roadstar III. Mas, na época, meu amplificador era o Checkmate. Tinha trocado o falante por um Novik, que é daqueles que você botava em carro. Pô, era muito ruim. Quando a gente chegou na gravadora, os caras tinham lá uns Fender Twin, velho. E tinha uns pedais – eu sempre gostei muito de pedal. Eu sou um freak de pedal. Eu coleciono, digamos assim. E, aí, claro, quando foi possível viajar, comprar, e tal, eu comecei a comprar. Eu tenho tudo – o mínimo. Eu não tenho essa quantidade absurda, mas tenho o que me serve. Então eu tenho desde Telecasters, Stratos e Les Pauls até uma sitar e umas coisas velhas: uma Harmony, uma Epiphone Coronet. Virava uma festa, aquilo ali, com aquelas violas, enfim. Nicolas Behr. Aliás, eu fiz a trilha sonora de um documentário chamado Braxília, maravilhoso. Do Nicolas. A real é que a gente não lidava muito bem com essa coisa de falsetes e das pessoas falando da “harmonia da terra”, da “natureza”, não sei. Mas, independentemente disso, era aquilo, naquele momento. Mas você imagina que dali saiu o Milton Guedes, por exemplo. Eram grandes músicos, surreais, que estavam ali.  Mas, na época, você é adolescente, tem aquela turma. A gente ouvia Gang of Four, Joy Division, essas coisas. Não batia com o Mel da Terra. E, um dia, eu lembro de um show que a gente fez, tinha uns festivais do GDF em que você ia tocar nos coretos das satélites, e aí, um dia, estamos lá tocando numa praça dessas, 1983, coisa assim. Quando eu olho pro lado, o maluco fazendo a luz, enlouquecidamente, era o cantor do Mel da Terra, aquele louro cabeludo. Aí, quando eu olhei, eu falei: “Caramba, o cara do Mel da Terra, fazendo a luz aqui!” A gente costuma falar que o objetivo da nossa revista, em Brasília, é apresentar Brasília para Brasília, porque a gente sabe que os nossos artistas, às vezes, têm que sair para voltar famoso. E vocês fazem esse percurso. Vocês sentiram isso? Que tiveram que sair para voltar? Não, claro. É um clássico. Santo de casa não faz milagre. É difícil. Isso a gente ouve desde sempre. Mas a gente teve que sair, na verdade, porque o eixo cultural das gravadoras era o Rio de Janeiro.Tinha São Paulo, mas o forte era basicamente Rio de Janeiro, onde todas as gravadoras estavam sediadas, a EMI, CBS, Warner. E Brasília era muito longe. Mil e duzentos quilômetros daqui do Rio, uma hora e meia de avião. E a gente acreditava que, para a parada dar certo, tinha que estar ali do lado todos os dias, falando praqueles caras, lá naquela companhia, naquele prédio.Tinha que estar presente, perturbando os caras. E todas as redes de televisão eram aqui, Rede Globo, Manchete. Mas a gente certamente teve esse impulso de sair de Brasília porque sabia que em Brasília não ia acontecer nada muito assim, entende? Hoje, no Brasil, claro, é tudo mais conectado. Você também curte pedalar e jogar futebol. Você tem mantido essas atividades na pandemia? Endorfina, né, cara.Você tem que produzir endorfina. Aqui no Rio, são seis dias na semana. Domingo eu descanso, mas segunda, quarta e sexta eu corro aqui na Lagoa, dá 10km, depois terça, quinta e sábado, bike. O Rio de Janeiro é o lugar mais lindo, realmente, pra você andar de bicicleta.Você tem praia, montanha. Então eu saio daqui da minha casa na Gávea, subo a Mesa do Imperador, na Floresta da Tijuca, e vai embora, Paineiras, e sobe o Cristo. Quando você vê, está no Cristo, ali embaixo do filho do homem, tranquilo, tira uma foto, com os amigos, ou sozinho, não importa.Vai e desce, e aí o dia já está ganho. O esporte é isso que agrega.Você conhece pessoas.O futebol,que eu jogava,agora parei,machuquei. É um negócio pra jovem,né.Eu não posso mais machucar.Mas no futebol eu conheci muita gente,de trocar ideia,grandes amigos tipo o Toni Platão [da banda Hojerizah]. A gente tinha uma pelada aqui nos anos 1980,na PUC,todo sábado.Depois,a gente foi jogar lá no campo do Chico Buarque. Jogava no time contra ele,Chico e todos os outros artistas que lá estavam,também.De,tipo,chamar o Chico pra cantar no meu disco, entendeu? Foi surreal.Isso,para mim,foi o maior dos benefícios, digamos assim.Claro que jogar futebol é maravilhoso,e tal,mas eu ter conhecido desde,sei lá, Sócrates,Zico,Chico Buarque, Júnior,e ter jogado com esses caras, entendeu.Então,pra mim,isso é uma oportunidade impossível de não aceitar que é bom. Quando minha mãe morava na China, em Pequim, em 2002, eu fui pra lá e trouxe um Guzheng, que é aquela harpa chinesa, que eu toquei em vários lugares, em várias trilhas.Toquei até num disco do Caetano e do Mautner [Eu não peço desculpa], na música O namorado/Urge Dracon. Eu falei “vou tocar o meu instrumento chinês aqui”, então tem lá o solo desse negócio.  Quando começaram a surgir as bandas punks em Brasília, já havia algumas bandas de rock anteriores, como a Mel da Terra, que faziam um lance mais progressivo. E a gente sabe que o punk surgiu, também, como uma resposta ao rock progressivo, que estava se tornando muito elaborado. Como era a relação de vocês com essas bandas? Vocês as viam com reverência ou como inimigas do que vocês propunham na época? Eu acho que eles eram diferentes. Definitivamente,a gente não estava na sintonia deles.Era o Mel da Terra,Sol Maior, né? Mas,em compensação,o Liga Tripa era aquela banda que a gente via aqueles oito, dez malucos descendo a 109 Sul,parava no Beirute,a gente tomando uma cerveja. E eu adoro instrumentos diferentes. Então estou sempre viajando para fazer as trilhas sonoras incríveis. Pra você ter ideias sempre, um instrumento diferente, um pedal diferente, uma coisa que vai te trazer uma atmosfera diferente, uma ideia musical diferente. Eu tô sempre atrás. Eu tenho um Seize, um violão, um lance turco, que é elétrico e tem uma escala com quartos de tom, e tem aquele som bem oriental. Foto: Marcos André Pinto
  • 13. C A N V A S aqui você encontra novos e consagrados talentos das artes visuais da cidade siga a artista @diana.salu 24 25 Diana Salu é artista, escritora, publicadora e produtora, travesti e lésbica. Graduada em Artes Plásticas pela Universidade de Brasília, tem em sua trajetória uma profunda conexão com o fazer artístico autoral, independente, dissidente. Trabalha fanzines, poemas e eventos como espaços de experiência de liberdade: “onde o encontro pode acontecer, consigo e com as outras. Onde possamos nos inventar sem a rigidez das estruturas estabelecidas”, conta. Publicou diversos trabalhos autorais em histórias em quadrinhos, incluindo Então você quer escrever personagens trans e Cartas para ninguém, que foi publicado em 2019 e republicado de forma independente em 2021. Com ele, ganhou o troféu HQMIX 2020 na categoria Projeto Gráfico. O livro trabalha o hibridismo de linguagens e gêneros, com olhar para poesia, desenho, paisagem e memória. “Cartas para Ninguém é o meu último livro publicado e um marco importante na minha trajetória enquanto quadrinista, sendo também minha estreia enquanto poeta. O livro habita esse lugar entre as coisas, entre os gêneros literários, misturando cartas em quadrinhos, poemas e desenhos soltos enquanto caminha por paisagens reais, imaginárias e memórias - revisitando-as, recontando-as e inventando-as. Um exercício de narrar- se e, assim, criar-se”, diz a artista. Diana foi co-fundadora da MÊS, editora independente de Brasília com foco em quadrinhos, artes visuais e literatura, em atividade de 2013 a 2017. Também foi a idealizadora da Dente - feira de publicações, trabalhando na produção até a quinta edição, em 2019. DIANA SALU
  • 14. 27 26 NASCE UMA ESTRELA Aos 19 anos, dona de uma voz considerada surreal, a soprano brasiliense Manuela Korossy dá alma às mulheres trágicas da ópera, conquista uma vaga na lendária Juilliard School, a melhor escola de artes performáticas do mundo, e vai em busca da carreira internacional Por José Rezende Jr. Fotos Thaís Mallon
  • 15. 28 29 Era uma menina que amava os dinossauros e queria ser paleontóloga. Ou então diretora de cinema, porque gostava tanto dos filmes que chorava quando eles chegavam ao fim. Mas um dia, quando tinha 6 anos de idade, seus pais a levaram para assistir pela primeira vez a uma ópera ao vivo. A ópera era Carmen, de Bizet, encenada na Torre de Tevê. Ela bem que podia ter achado tudo muito chato. Afinal, se tanta gente grande ainda torce o nariz para a ópera, imagina uma criança de 6 anos. Só que Manuela não achou nada chato. Muito pelo contrário. O encantamento foi tamanho que, aos 12 anos de idade, lá estava ela estreando nos palcos como integrante do coro infantil de outra montagem de Carmen, desta vez no Teatro Nacional. E hoje, aos 19, apenas 13 anos depois daquele dia na Torre, quando fechou os olhos para não ver Don José assassinar a cigana que o rejeitara, a soprano brasiliense Manuela Korossy realizou o sonho de nove entre dez jovens talentos de música, dança e artes cênicas do mundo inteiro: ser aceita na Juilliard School, em Nova York. Com mais de um século de tradição e considerada a melhor escola de artes performáticas do planeta, a Juilliard é para poucos, muito poucos. A começar pela concorrência: de cada 100 candidatos apenas sete são aceitos, depois de passarem por exames duríssimos de admissão. Se o primeiro funil é o da excelência artística, o segundo é o financeiro: estudar na Juilliard custa em torno de US$ 50 mil por ano (cerca de R$ 260 mil reais), fora os custos de hospedagem numa das cidades mais caras do mundo. Algo totalmente fora da realidade para uma jovem de classe média, filha de pais assalariados. Pois a menina brasiliense que amava o cinema e os dinossauros não se contentou “só” em ser aprovada com louvor: ela conquistou uma bolsa de estudos de 90%, a mais alta concedida pela Juilliard em muitos anos. Vale ressaltar que as cobiçadas bolsas da escola são concedidas por critérios sociais, mas também pelos méritos artísticos – e pelo grau de desejo da escola em ter determinado talento entre seus alunos. “Eu sonhava com a Juilliard desde os meus 15 anos. Mas ela é uma escola ridiculamente cara, com um percentual de admissão impraticável. Pelo menos eu pensava assim. Pra você ser admitida e ganhar uma bolsa tão alta, a sua audição tem que ser muito, muito, muito boa”, afirma Manuela. Perfeccionista ao extremo – e ela não teria chegado aonde chegou se não fosse extremamente perfeccionista – Manuela não achou sua audição assim muito, muito, muito boa. Mas a rigorosa banca examinadora da Juilliard decidiu o contrário. Depois de ser aprovada nas duas primeiras fases de testes, que consistia na avaliação de vídeos com repertório operístico gravados pelos candidatos, ela foi para a terceira e última fase, uma audição on-line com os professores da escola pelo aplicativo Zoom. No meio desse exame final, um dos professores perguntou: “Você que é a cantora do Brasil?”. Depois de ouvir a confirmação de Manuela, o professor emendou: “Parabéns, você é muito talentosa, viu?”. Detalhe: poucos dias antes dessa terceira e última fase, ela havia testado positivo para Covid. O vírus não chegou a comprometer o pulmão. Manuela começou tratamento com corticoides e passou por um tratamento fonoaudiológico no HRAN. Mesmo assim, foi para a audição final com a garganta ainda irritada e as vias aéreas inchadas. Felizmente, o que estava em jogo na audição decisiva era menos a voz e mais a diretibilidade, que é a capacidade de ser dirigida em cena. Fosse como fosse, o elogio daquele professor era um spoiler: a “cantora do Brasil”já havia conquistado o coração da Juilliard. Foto: Thaís Mallon
  • 16. 30 31 Antes do começo Para entender como em tão pouco tempo Manuela Korossy chegou aonde tão poucos talentos conseguem, é preciso voltar ao começo. Ou melhor, ao antes do começo. A futura história de amor de Manuela com o canto erudito começou na barriga da mãe, Gabriela, que cantava trechinhos de músicas clássicas para a filha que ia nascer. Gabriela nunca se apresentou profissionalmente, mas estudou canto inspirada pelo pai, o imigrante húngaro Miguel Korossy, que, segundo ela, tinha uma voz divina. Manuela não chegou a conhecer o avô, mas a genética... Manuela nasceu e cresceu numa casa que respira música. Desde cedo a mãe, Gabriela, e o pai, Laycer, despertaram na filha o gosto por jazz, MPB, rock dos anos 70 e, é claro, música clássica. Aos 3 anos de idade, ela revelou aos pais o seu pedido pra Papai Noel. “Eu quero um negócio que faz assim”, explicou, repetindo o gesto de abrir e fechar os braços. O pai e a mãe custaram a decifrar o enigma. Até que mataram a charada: não seria um acordeon? “É, igual o do Piazolla”, explicou a menina. O genial músico argentino era o preferido do avô Miguel, que, é bom lembrar, Manuela não chegou a conhecer. Mas a genética... A surpresa maior ainda estava por vir. Os pais rodaram a cidade à procura de um acordeon em miniatura, que servisse de brinquedo para uma criança de 3 anos. Pois mal desembrulhou o presente de Papai Noel, Manuela colocou o instrumento no colo, esticou o fole um pouquinho, fechou, esticou de novo, fechou... “E na terceira vez ela começou a produzir os sons originais de Asa Branca”, lembra a mãe. “Claro que ela não tocou com as harmonias e tudo, mas era a Asa Branca! A partir daí a gente começou a ficar mais atento a essa ligação da Manu com a música.” Mas o canto estava longe de fazer parte da vida de Manuela, embora ainda bem pequenininha ela cultivasse o hábito de cantarolar enquanto mastigava a comida. Esse hábito persiste até hoje, mas só quando ela está distraída. Outro costume, à primeira vista estranho, mas que os amantes da música e dos animais hão de entender, é o que ela tem de conversar cantando com a gata da família, a Musetta, que ganhou esse nome em homenagem à cortesã da ópera La Bohème, de Puccini, uma das preferidas de Manuela. Aos 7 anos, Manuela foi matriculada num projeto de musicalização para crianças da UnB. Daquele, que era um projeto de extensão dos alunos da universidade, migrou para a Escola de Música de Brasília, inicialmente para estudar piano erudito. Mas ela não gostava nem um pouco das aulas. Faltava- lhe disciplina para estudar o instrumento. O que ela gostava mesmo era de cantar no coral infantil Primo Canto,formado por alunos da Escola de Música que se destacavam nas disciplinas teóricas. Apesar de não ser uma aluna muito boa em piano,aprendia muito rápido todas as outras matérias relacionadas à música. O futuro profissional de Manuela seria traçado pelas professoras do Primo Canto. Elas chegaram à conclusão que Manuela não tinha problemas de aprendizagem. O fato é que ela estava sendo mal direcionada para o piano, quando na verdade tinha um talento extraordinário para o canto. Manuela passou então a ser acompanhada pelo departamento da Escola de Música voltado para alunos com altas habilidades. O passo seguinte seria, naturalmente, a mudança para o curso de canto. Mas, pelas regras da Escola, esse curso só estava disponível para jovens a partir de 16 anos de idade, e Manuela tinha 15. A solução foi mudar a regra, e receber como aluna de canto aquela que, apenas quatro anos depois, conquistaria uma vaga na Juilliard. Duas Carmens No meio do caminho, entre a menina que tocou Asa Branca num acordeon “igual do Piazolla” e a adolescente que provocou a mudança na regra de admissão do curso do canto da Escola de Música de Brasília, houve uma cigana chamada Carmen, fundamental para as escolhas futuras de Manuela. Ou melhor: houve duas Carmens. A primeira Carmen, recordemos, foi a da Torre de Tevê, aos 6 anos de idade, que ela descreveu assim: “A sensação que eu tive era a de estar numa sala de cinema muito grande, com uma tela enorme. Só que estava tudo acontecendo ao vivo. O grande diferencial do teatro, do balé e da ópera é que você não tem uma câmera fechada em cima de você. Então toda a movimentação, todo o figurino, é tudo muito maior do que uma montagem para a câmera, e aquilo tudo acontecendo ao vivo foi muito intenso pra mim. Carmen é uma história que culmina num feminicídio, mas eu lembro que achei tudo muito bonito, porque o cenário era todo colorido e todo mundo cantava o tempo todo. Lembro também que fiquei triste porque a Carmen morria no final.” Foto: Thaís Mallon
  • 17. 32 33 Amor x Sacrifício Manuela sempre soube o tamanho do desafio que tinha pela frente. Afinal, o canto erudito exige muito mais que uma bela voz. “A ópera é uma linguagem que mistura tudo. Você tem que ser cantora, tem que ser atriz, tem que ser uma excelente musicista, porque são peças muito complexas. Você tem que ter muito discernimento de quais são as suas prioridades, porque é uma demanda de estudos muito grande “, ela afirma. Mas será que toda essa demanda significa fazer enormes sacrifícios? “Desperdiçar”a juventude? Deixar de ter vida própria para se entregar à arte? Manuela diz que com ela não é assim. “Eu amo o que faço. Por isso, acredito que o meu sacrifício seria muito maior caso eu optasse por uma outra carreira tradicional, mesmo que a demanda de trabalho fosse bem menor. Cantar, para mim, não é um martírio. É só uma questão de eleger prioridades”, Manuela afirma. Fora a dedicação férrea aos estudos da música, Manuela é uma jovem normal, que troca sem pestanejar uma balada cheia de gente por um barzinho com as pessoas mais queridas. As amigas e os amigos não são tantos assim, mas ela os considera seus irmãos, para rir e chorar juntos. São a família que ela teve a sorte de escolher, como costuma dizer. Não está namorando no momento, porque a prioridade é a música. Gosta de cozinhar, e nas horas vagas estuda história da moda e desenha figurinos vintage, meio anos 50, que têm tudo a ver com o seu estilo de vestir. Se não fosse cantora erudita, talvez fosse estilista. Na música, entre outros, curte Pink Floyd, Caetano Veloso, Puccini, Verdi e Bizet, e se espelha nas sopranos italianas Gabriella Tucci e Renata Tebaldi, duas das maiores cantoras eruditas de todos os tempos. Ama de paixão o cinema, e se divide entre a doçura de Tornatore (de Cinema Paradiso, seu filme preferido), o humor ácido de Tarantino e a melancolia de Lars von Trier. Na literatura, prefere as obras densas. Entre seus amores literários estão o bardo Shakespeare, o poeta T.S Eliot e o Victor Hugo de O último dia de um condenado, que ela considera “uma das obras pró-democracia mais geniais do mundo”. Dos brasileiros, Carlos Drummond de Andrade e Jorge Amado. Seu projeto de leitura é algum dia terminar Trópico de Câncer, de Henry Miller. “É um livro de uma acidez intragável, que eu nunca termino de ler porque o jeito que ele descreve as misérias humanas me deixa numa bad muito grande. Mas no dia que eu tiver uma vida completamente tranquila, eu termino”, promete a soprano que interpreta mulheres trágicas, vítimas dessas mesmas misérias humanas. Manuela vai muito além de “apenas” interpretar essas personagens. Ela faz um mergulho na alma de Carmen, Manon, Mimi, Violetta e tantas outras, para tentar entender o que as levou a um desfecho tão trágico – destino de 90% das mulheres de seu repertório. “Quando a Manu se apaixona por alguma coisa ela se entrega tão absolutamente que se torna quase uma obstinação. Ela acorda e dorme ouvindo a música. Lê tudo sobre as personagens, estuda a fundo os papéis”, conta sua mãe, Gabriela. Para interpretar, por exemplo, Manon Lescaut, da ópera de mesmo nome, ela foi atrás da novela L’Histoire du Chevalier des Grieux et de Manon Lescaut, do Abade Prévost, que serviu de inspiração para Puccini. Para dar voz à vendedora de flores Violetta Valéry, de La Traviata, de Verdi, mergulhou numa edição do romance A Dama das Camélias, de Alexandre Dumas Filho, com prefácio de Otto Maria Carpeaux. A segunda Carmen entrou em cena seis anos depois da primeira. Manuela tinha 12 anos quando foi indicada para participar do coro infantil da montagem da ópera de Bizet, no Teatro Nacional. Foi outro encantamento, que selaria de vez o seu futuro profissional. Manuela ficou fascinada com a oportunidade de ver uma ópera sendo construída por dentro,com todas as engrenagens expostas.O coro infantil participava apenas de duas cenas bem pequenas,mas ela e as outras crianças acompanharam todas as etapas de montagem, estavam lá durante os ensaios,e eram ensaios muito intensos e longos,durante meses,até chegar à récita com tudo pronto. “Essa visão de backstage [bastidores] mudou completamente a minha percepção sobre a ópera. Eu entendi que o canto era uma profissão, que eu poderia fazer aquilo pro resto da vida. Uma profissão criativa, que te bota o tempo inteiro em atividade, que te bota pra estudar o tempo inteiro. Era um universo extremamente estimulante, e pra minha sorte eu tive essa percepção muito cedo. Foi ali que eu decidi: isso é o que eu quero fazer da minha vida.” Foto: Thaís Mallon
  • 18. 34 35 “A Manu vive, dá alma a essas personagens. Eu acho que isso é o mais importante no trabalho dela”, diz Gabriela. “A obstinação da Manu não é só pela perfeição. A obstinação dela é dar voz a essas personagens. Nas religiões afro-brasileiras, as pessoas que emprestam o corpo para as divindades se manifestarem são chamadas de ‘cavalos’. Acho que a Manu é isso: um cavalo da arte.” Sensibilidade e coragem – O que você quer com o canto erudito, Manu? – Quero ser uma cantora de carreira internacional. O diálogo entre a professora Vilma Bittencourt, da Escola Música de Brasília, e a jovem aluna de 15 anos, no primeiro dia de aula, foi uma amostra do que viria quatro anos depois. “Já na primeira aula a Manu apresentou um material vocal maravilhoso, uma inteligência musical bem acima do normal. A principal dificuldade da jovem aluna, logo diagnosticada pela professora, era o fato de que por ser muito jovem ela ainda não estava pronta para cantar peças mais complicadas. A musculatura precisava ganhar tônus. Só que Manuela, muito ávida, queria cantar tudo de uma vez. “A gente precisava colocar um freiozinho na Manu, pra ela desenvolver a musculatura sem se machucar. Só que ela queria cantar o tempo inteiro. Eu dizia: ‘Querida, calma, senão você vai estressar a sua musculatura, você tem que ter um descanso’. Ela respondia: ‘Ah, eu descanso quando for dormir’. E vivia cantarolando pelos corredores da escola”, conta a professora. Manuela amadureceu e aprendeu a não machucar o seu instrumento, que é a voz. Não há de ter sido missão das mais fáceis para uma artista que, a exemplo dela, procura sempre ir além. “Eu nunca trabalho aquém do esforço que eu deveria estar empreendendo”, diz ela. Franklin Segredo, professor particular de canto de Manuela, diz que além de qualidades técnicas excepcionais, a aluna tem duas característica que fazem com que ela se destaque no universo do canto erudito: sensibilidade para entender suas personagens e coragem para superar qualquer obstáculo. Eu me encantava cada vez mais porque ela aprendia e se desenvolvia muito rápido, e logo estava cantando quase como uma profissional. Um aluno comum levaria de quatro a cinco anos para ficar com a voz do jeito que a Manu ficou. Mas ela só precisou de metade desse tempo”, lembra a professora. Vilma Bittencourt explica que inteligência musical é mais do que apenas ler o que está escrito,é entender a teoria daquilo,entender por que tal coisa está acontecendo musicalmente,qualidades que Manuela tem de sobra. “A voz da Manu é surreal. Mas isso não basta.Tivemos outros alunos com uma voz igualmente rara, difícil de encontrar, e a gente pensava: ‘Meus Deus, esse vai bombar’. Mas eles não foram adiante, porque não tinham a cabeça de músico, não tinham o raciocínio lógico de músico. A Manu, ao contrário, tem uma intuição musical que é só dela”, lembra a professora, que voltou a dar aulas particulares para Manuela nos meses que antecederam o teste de admissão para Juilliard. Foto: Thaís Mallon
  • 19. 36 37 “O aprendizado da Manuela é absurdamente rápido. Ela tem uma vontade incrível, um desejo enorme de cantar e de atuar. Porque a ópera não é canto apenas, ela é teatro cantado, as personagens são seres humanos vivendo aquela emoção, aquela dor, aquela paixão, e a Manuela consegue viver o momento dessas personagens. E ela não tem medo, enfrenta o problema de frente, seja ele qual for. Isso é essencial pra um artista.” A boa notícia Mesmo consciente do seu talento e da sua enorme dedicação, Manuela não estava certa de que conseguiria realizar o sonho. Antes de tudo porque, como ela já disse, a Juilliard “é uma escola ridiculamente cara, com um percentual de admissão impraticável”. Mas havia também outro fator subjetivo. “É meio que aquele complexo de vira-lata da maioria dos estudantes brasileiros de música. O Brasil já exportou alunos fantásticos pra conservatórios enormes do mundo inteiro, e já formou artistas incríveis em conservatórios aqui mesmo no Brasil. Mas infelizmente a gente ainda tem essa cultura de ‘Ah, você nasceu no Brasil, você não vai conseguir fazer carreira’”, afirma. E foi assim, entre a autoconfiança e a insegurança, que Manuela esperou o resultado do exame de admissão da Juilliard. Na conversa com a Traços, às vésperas de embarcar para Nova York, ela relembrou os momentos de angústia que antecederam à boa notícia. “Foi muito engraçado, porque eles atrasaram em dois dias a divulgação do resultado. Então, foram dois dias de agonia, eu olhava o e-mail de cinco em cinco minutos e não chegava nada, e eu comecei a passar mal. E aí, um dia, já assim tomando litros de chá de camomila, eu estava na academia esperando meus pais quando vi a notificação descendo na tela do celular: Juilliard. ‘Ai, meu Deus, fui reprovada’, pensei, até por causa da Covid, né? E quando eu abri não era mais o e-mail falando da aprovação, era já o e-mail informando que eu tinha conseguido a bolsa. Porque a aprovação já estava no site desde o dia anterior, mas eu, de tão tensa, esqueci de olhar. Fiquei absurdamente atônita. Eu reli o e-mail umas cinco vezes e não entendi nada. Parecia que eu tinha me desalfabetizado do inglês, eu fiquei lendo, relendo e tentando entender. Foram umas duas semanas até cair a ficha.” Uma vez caída a ficha, era hora de fazer as contas. Mesmo com a bolsa de estudo recorde de 90%, ainda assim era muito caro, ainda mais considerando os custos de uma hospedagem em Nova York. A solução foi abrir uma vaquinha na internet. Com as doações dos internautas e ajuda dos parentes, Manuela conseguiu o suficiente para bancar o primeiro ano na Juilliard. Mas ainda faltam os outros três anos, por isso a vaquinha continua aberta. Enquanto isso, no duplo papel de mãe e de fã, Gabriela sofre com a ausência da filha, mas vibra com cada passo de Manuela rumo ao sonho de seguir carreira internacional no canto erudito. “A música é a paixão, é a vida da Manu”, afirma a mãe. “Por isso, quando me perguntam se cantar exige muitos sacrifícios da Manu, eu respondo que não. Pra ela, o sacrifício seria não cantar.” Para colaborar com a jornada da Manuela na Juilliard https://campanhadobem.com.br/ campanhas/jornada-rumo-a-juilliard ou PIX: 61 99187-7777 Saiba mais pelo Instagram: @manuelakorossy Foto: Thaís Mallon
  • 20. 39 38 RA S C U N H O JULIANA VALENTIM Juliana Valentim é jornalista e escritora, autora de 3 livros - de crônicas, poemas e romance. É uma apaixonada pela literatura brasileira e gerencia o perfil literário no Instagram @ palavrasquedancam. É também editora- chefe da Revista Traços. Levo dentro de mim uma estrada muito longa Por onde não passam carros Ando a pé por ela, eu mesma Levantando poeira Com meus passos desencontrados Levo no peito um lampião antigo Para espantar medos E clarear memórias Que se apagam como vagalumes Abraço o silêncio que me ronda E ele sorri Levo dentro de mim uma estrada muito longa Onde ecoam todo os passos que já percorri Na pele que habito Pareço tão calma Cuidando das flores do meu jardim E quem me vê assim Não sabe da confusão Não sabe da rebelião Que mora dentro de mim Sou feito um caos se instalando Disfarço-me de ser humano Mas sou motim! MOTIM SEI LA Tá todo mundo meio assim... Sei lá No desmantelo Nem lá, nem cá De cabeça pra baixo Do jeito que dá Tá todo mundo meio assim Com a roupa do lado avesso Sei lá BEM-FEITO Tivesse casado comigo teríamos um jardim Com girassóis e petúnias que são minhas favoritas Tomaríamos vinho, dia sim, dia não E faríamos amor nos intervalos Tivesse casado comigo Contemplaríamos as noites de lua Nus e embriagados Sob os olhos repressores dos vizinhos solitários POETAS Eu me apaixono por intelectos Namoro poetas que nunca conheci Alguns já partiram há séculos Outros estão por aqui Apaixono-me pelo que não existe Mas isso não me causa dor Fernando Pessoa sabia das coisas O poeta é um fingidor E eu me deixo enganar, todos os dias Porque amor é amor TAPETE Há quem escreva difícil Quem use o verso rebuscado Que apesar de tão bonito Não alcança o coração Eu gosto é da rima fácil Daquela que rasga por dentro Depois retorna em remendo E se espalha pelo chão Que se despe de vaidade É o tapete do mendigo Mas também da majestade Palavra bendita do povo Que canta o uníssono coro Da sua brasilidade LEVEZA Abri o dicionário da alma Buscando o sentido das coisas Entre as palavras que lá dançavam Estava ela: leveza! Tão colorida Escrita com giz de cera Pelas mãos da criança faceira Que, em nós, nunca envelhece A gente apenas se esquece Como é que se flutua Leveza é palavra pluma Nas bocas de quem se atreve A ESTRADA DE DENTRO
  • 21. 41 3X4 A história da porta-voz da cultura 40 É possível fotografar o futuro? Sorriso largo e braços bem abertos, pronta para abraçar o mundo. Foi assim que a porta- voz da cultura Priscila do Carmo Limoeiro se apresentou pela primeira vez aos leitores e leitoras da Traços, nas fotos da seção 3x4 da nossa edição nº 11. Feitas em setembro de 2016, as fotografias, no entanto, parecem registrar não aquele tempo presente de cinco anos atrás, mas antecipar este futuro que é hoje, setembro de 2021, quando Priscila – agora sim – tem motivos bem fortes para sorrir e abraçar o mundo. Não que a Priscila de cinco anos atrás fosse uma pessoa o tempo todo triste. Era, na verdade, uma mulher que precisava enfrentar a insegurança e a depressão, e que não dispunha da autoconfiança e da autoestima que fazem com que ela hoje em dia se apresente assim: “Muito prazer. Sou Priscila, mulher preta empoderada.” Priscila Por José Rezende Jr. Fotos Thaís Mallon
  • 22. Tenta em vão matar a saudade de ver o filho olhando as muitas fotos que consomem boa parte da memória do seu celular. Quando a saudade aperta além da conta, assiste às poucas imagens de Samuel em movimento. São só dois vídeos: no primeiro, Samuel imita o som de um liquidificador; no segundo, Samuel pedala o velotrol que ganhou da mãe. Sim: Priscila, que a vida inteira só ganhou bonecas de segunda mão, que já não serviam às filhas das patroas de sua mãe, conseguiu juntar dinheiro para comprar um velotrol novinho para o filho. Uma juíza preta Importante reconhecer que o embrião da futura Priscila de 2021 já estava contido na Priscila de 2016. A principal prova é que aquela Priscila de cinco anos atrás, mesmo ainda distante da mulher preta empoderada de hoje, havia acabado de derrotar dois inimigos ferozes: o machismo e o Estado. Depois de lutar com unhas e dentes, ela finalmente conseguiu dar ao filho o que ela mesma, Priscila, nunca teve: um sobrenome de pai na certidão de nascimento. Priscila engravidou do ex- namorado, que não quis reconhecer – nem conhecer – o filho. Logo ela, que até hoje carrega na carteira de identidade um vazio enorme no lugar onde deveria existir um nome de pai. Esse vazio tem peso, e Priscila não queria ver também o filho obrigado a arrastá-lo pela vida afora. Foi contra esse vazio que ela começou a sua luta, quando Samuel ainda estava dentro de sua barriga, e só terminou quando Samuel tinha cinco meses de vida e, enfim, um nome de pai na certidão de nascimento – ainda que o de um pai ausente. A guerra de Priscila parecia não ter fim.Foi várias vezes grávida ao fórum,voltou várias vezes ao fórum já com o filho nos braços,como ela contou à Traços em 2016: “Minha mãe teve dois filhos sem pai. Eu tive o Samuel. Mas a semelhança acaba aí. Quero mudar o rumo da minha história. Quero ser um exemplo vivo para o Samuel, quero que ele cresça e possa dizer: Minha mãe quebrou a maldição. Tive que lutar muito, e essa luta acabou com o meu psicológico, com o meu emocional. Eu chegava no fórum e me mandavam voltar outro dia, e no outro dia era a mesma coisa, e no outro dia também. Fui pra audiência recém-parida, toda costurada da cesariana”. Cansada da guerra, com o psicológico e o emocional abalados, morrendo de saudade do filho, o peito ainda cheio de leite, Priscila chegou em Brasília no dia 14 de março de 2016, e logo se tornou porta-voz da cultura da Traços. Já naquela época alimentava o sonho de entrar na faculdade, conquistar o diploma de Direito e atuar na vara de família, para ajudar outras Priscilas e outros Samuels. E, mais adiante, tornar-se juíza, para evitar que outras mulheres passassem o que ela passou quando precisou do Judiciário. “Enfrentei muito descaso dentro do fórum Rui Barbosa [em Salvador], mesmo estando com uma barriga de oito meses. E sei que tem muita mulher precisando ser acolhida como eu precisei, precisando ser ajudada por uma juíza preta que passou fome como eu passei, uma juíza preta que pega ônibus debaixo de sol quente na parada como eu pego. Quero ser essa juíza”, diz Priscila hoje. O sonho, que na época podia parecer inalcançável a quem olhasse de fora, está bem mais próximo. A Priscila de 2021 cursa o 4º semestre de Direito na faculdade JK. (Tem até uma vaquinha na internet, pra ajudar a pagar as mensalidades.) Os passos seguintes são conquistar o diploma, passar na prova da OAB, atuar primeiro como advogada, depois como promotora, ser aprovada no concurso público e tornar-se a juíza preta que não vai deixar mulher nenhuma sofrer o que ela sofreu. Recém-chegada à capital do país, a Priscila de 2016 enfrentava sobretudo a dor da separação do filho pequeno, Samuel, que ela havia deixado em Salvador aos cuidados da mãe, dona Carminha, quando veio tentar a sorte em Brasília. Hoje, setembro de 2021, Priscila e Samuel estão juntos e felizes, mas em setembro de 2016, quando estampou pela primeira vez as páginas da seção 3x4, Priscila amargava seis meses sem ver o filho, que ela não teve tempo nem de desmamar direito, como relatou o texto da edição nº 11: Nestes seis meses de distância, Samuel aprendeu a engatinhar, e Priscila não viu. Samuel aprendeu a andar, e Priscila não abriu os braços para ampará-lo nas quedas. Samuel aprendeu a falar, e Priscila não estava por perto para ouvir suas primeiras palavras. Não é a mesma coisa, mas ela pelo menos ouve a voz do filho quando telefona para Salvador.“Alô. Mamãe. Amo”, Samuel diz. 42 43 “Muito prazer. Sou Priscila, mulher preta empoderada.” Foto: Thaís Mallon
  • 23. 44 45 De Priscila pra Priscila Priscila acumula várias jornadas: além de porta-voz da cultura, estudante de Direito e mãe e pai de Samuel, ela ainda faz um curso técnico de redação, com vistas a outro sonho: escrever livros de Direito, sobre temas que ela conhece na carne. Os dois primeiros já estão na sua cabeça. Um sobre o direito à paternidade, com base na guerra que travou contra o machismo e o Estado, e o outro sobre o direito das mães-solo à moradia, essa que ela ainda espera conquistar. As duas Priscilas, a de 2016 e a de 2021, são muito gratas à Traços. Pela acolhida carinhosa, pelo apoio psicológico, pela melhoria da qualidade de vida. São apenas cinco anos de diferença entre uma e outra, mas é como se fosse uma vida inteira. “Quantas vezes eu deixei de comer pra que meu filho e minha mãe comessem... Eu só pensava neles, só via os dois na minha frente, só pensava em como ia fazer pra comprar a fralda, pra comprar o leite. Hoje faço uma limpeza de pele, faço as unhas, boto uma roupinha mais arrumada no corpo. Hoje eu consigo cuidar de mim.” E antes de terminarmos (provisoriamente) a história das duas Priscilas – que, é claro, continua depois que fecharmos esta edição nº 50 da Traços – cabe aqui uma pergunta: – Priscila, se fosse possível voltar no tempo, o que a Priscila empoderada de 2021 diria pra aquela Priscila insegura e triste de 2016? – Eu diria pra ela o que hoje eu sei. Que às vezes é dia de sol, mas que o tempo também pode fechar, e que mesmo assim a gente não pode esmorecer. Aprendi que duas coisas movem o ser humano: o sonho e a esperança. As cicatrizes A Priscila de 2021 tem muito carinho pela Priscila de 2016.Mas gosta muito mais da versão atual de si mesma.Diz que não esperava mudar tanto,nem chegar aonde chegou em apenas cinco anos. “É até emocionante pensar no quanto mudei. Eu realmente dei um up na minha vida. A Priscila de hoje sabe dizer ‘não’ e sabe dizer ‘sim’ também, sempre de uma forma assertiva. Há cinco anos, eu não imaginava que teria a qualidade de vida que eu tenho hoje. A Traços me deu essa oportunidade e eu agarrei pelos cabelos. Se hoje eu sou a mulher que sou é também porque tive acompanhamento psicológico, e isso mexeu muito com a minha cabeça, me ajudou muito a curar as cicatrizes. Porque se a gente não cura nossas cicatrizes, a gente tende a gerar outras e mais outras. A gente precisa se curar internamente. Nosso psicológico é nosso HD, se ele estiver estragado nada mais funciona direito.” Priscila sabe que a luta das mulheres pretas,sobretudo pobres, mesmo quando empoderadas, é sem fim.Mas sabe também que já avançou muito.É uma das porta-vozes da cultura mais bem-sucedidas da Traços,tanto em volume de vendas quanto em afeto recebido dos leitores e leitoras da revista.Mora de aluguel no Paranoá,enquanto espera na fila da Codhab (Companhia de Desenvolvimento Habitacional do Distrito Federal) por uma moradia destinada à população em vulnerabilidade social,para realizar enfim o sonho da casa própria. Mas nenhuma dessas conquistas – nem a melhoria da qualidade de vida, nem a faculdade de Direito, nem a futura casa própria – faria sentido se ela já não tivesse conseguido realizar o sonho maior: trazer o filho e a mãe pra morarem com ela. “O Samuel tem 6 aninhos. É um companheiro pra mim. Tudo ele quer fazer comigo: passear, andar de bicicleta, fazer as atividades de casa... Ele acha que eu sou muito amiga, muito parceira dele. A verdade é que eu sou a mãe e o pai do Samuel. Sou eu que ensino pra ele o que é certo e o que é errado.Tenho que criar meu filho direito, não posso deixar ao encargo do mundo.” O filho aprendeu a admirar o trabalho da mãe. Outro dia, feliz da vida, mostrou pra ela o desenho que fez. Nele, Priscila aparece vendendo a Traços. Samuel vai bem na escola. Priscila se orgulha da letra bonita do filho. Não esconde o alívio de saber que ele tem direito a um sobrenome de pai, mesmo não tendo direito um pai. “Pelo menos na escolinha ele não passa vergonha, nem frustração. No Dia dos Pais a escola mandou um convite aqui pra casa. E o convite tinha o nome do pai escrito. Eu disse pro Samuel: ‘Filho, eu vou guardar esse papel, porque tem o nome do seu pai. Se um dia vocês se encontrarem, você mostra pra ele’. O Samuel pode nunca conhecer o pai, mas é importante saber que ele existe.’’ Para ajudar a Priscila a se formar: www.vakinha.com.br/vaquinha/ajude-priscila-a-se-formar Foto: Thaís Mallon
  • 24. mímico e muito mais MIQUEIAS PAZ Por Maíra Valério e Marianna França Fotos Fábio Setti Direção de arte: Tamara dos Santos 46 47 Ato I: o artista em descoberta Miquéias Paz, o primeiro mímico do Distrito Federal, recebeu a Revista Traços para uma conversa íntima durante uma ligação de vídeo. Enquanto passava um café fresco, começou o compartilhamento das diferentes fases de suas mais de quatro décadas de trajetória. Primeiro mímico da capital federal, pai, avô, mestre da cultura popular brasileira, ex-deputado distrital, conhecedor dos milagres da arte como forma de resistência… Abram alas: com vocês, Miquéias Paz! Haja café! O início de tudo se deu em uma Brasília povoada por jovens artistas que queriam deixar marcas na cultura local, ainda incipiente, e lutar a favor da democracia. Concentrado no bate-papo, cada detalhe era minuciosamente lembrado por ele – nomes, datas, lugares – como se tivesse acontecido ontem. Em um ensaio tímido, a arte chegou na vida do mímico quando ele era ainda criança e quase foi embora para nunca mais voltar. Nas palavras dele, a primeira experiência com o teatro não foi “das mais interessantes”. Durante uma gincana de escola, quando tinha uns nove anos de idade, Miquéias decidiu fazer uma imitação do esplendoroso Ney Matogrosso e acabou sendo severamente repreendido pelo pai. “Isso não era pra mim, né? Não era ‘coisa de homem’ imitar o Ney Matogrosso. E aí, nessa história, perdi qualquer vontade de estar no palco, né?”, relembra. Porém, no início dos anos oitenta, a arte bateu novamente na porta de Miquéias. Isso foi quando, ainda no ensino médio, um amigo falou para ele sobre um curso de teatro que estava com inscrições abertas e tentou incentivá-lo a fazer parte. “Marcinho o nome dele [Márcio Rodrigues]. Foi criador de um espaço aqui muito importante em Taguatinga, o Botequim Blues [um dos pubs mais longevos e conhecidos da região]. E eu disse ‘não’. Se eu tinha alguma intenção, ela tava muito reprimida”, conta. “Mas aí, nessa época, ele já com esse olhar dele aí, de produtor, que já devia estar na veia…E eu ‘não, não sei fazer isso não’ e, tá bom, passou essa conversa…”, acrescenta.
  • 25. 48 49 Será que tinha passado mesmo? Era o que o mímico queria acreditar. Contudo, Marcinho foi insistente e, apesar de todas as negativas, realizou por conta própria a inscrição de Miquéias no curso oferecido pelo Projeto Plateia, iniciativa da extinta Fundação Educacional.“E teve uma lábia suficientemente firme pra poder me convencer”, ri o ator. Órfão de mãe desde os quatro anos de idade, o artista, que veio do Paraná para Brasília aos cinco, precisou tornar-se independente muito cedo. O pai não tinha muitos recursos e, dessa maneira, Miquéias acabou “pingando aqui e ali”, por casas de parentes. Aos doze anos, já estava inserido no mercado de trabalho informal; aos catorze, já tinha carteira assinada como empacotador de supermercado e, aos quinze, já morava sozinho, após uma temporada com a irmã. Portanto, dono de si e sem a necessidade de dar satisfação para outras pessoas, o mímico decidiu arriscar a arte novamente – e, dessa vez, agarrou firme e nunca mais largou. Desse curso inicial, muitos quiseram continuar na área, incluindo Miquéias. A partir daí, o modo com que o artista enxergava o mundo passou a ter uma perspectiva mais versátil, divertida e empolgante, com um viés de militância. “Fazer teatro era um movimento libertário, a gente não imaginava o teatro como profissão, mas como algo que a gente pudesse ser diferente, não fizesse parte da mesmice que estava acontecendo”, conta. Seguindo o fluxo de descobertas de uma nova paixão, ele decidiu ingressar no Grupo Retalhos, de teatro amador, berço de vários artistas locais. O grupo surgiu quando alguns integrantes do Projeto Plateia decidiram se unir. Composto por artistas de localidades como Taguatinga e Ceilândia, a iniciativa instigou Miquéias a participar de muitas intervenções de resistência ao longo da década de oitenta. “Pra minha felicidade. Até porque a gente era um grupo mais de periferia, então a gente acabou que conviveu com algumas pessoas que já vinham na militância”, relembra. “Foi quando comecei a conhecer o que era o processo político, não necessariamente partidário”, acrescenta. As performances estavam sempre conectadas com alguma questão de caráter social. O grupo realizava passeatas em busca de espaços para a cultura na cidade e apresentava, ainda, muitos espetáculos pelas ruas do DF – o que incluía até mesmo o Areal “quando era apenas um areal mesmo”, enfatiza o mímico. DA POLÍTICA INFORMAL A DEPUTADO DISTRITAL O trabalho de Miquéias sempre o levou para a mídia, como é o caso, neste momento. Certa vez, ao ser entrevistado pelo jornalista e poeta Luis Turiba, o mímico foi indagado se já tinha cogitado ser candidato a deputado. Até então, tal ideia nunca havia passado pela cabeça de Miquéias mas, depois da reportagem, foram várias as pessoas que começaram a sondá-lo. “Eu nem levava aquilo muito a sério”, conta. Política institucionalizada não era uma vontade e ele sabia que o intuito era funcionar principalmente como um agregador de votos dentro de uma legenda. Para surpresa geral, ele acabou aceitando entrar na corrida eleitoral. No entanto, a surpresa maior foi ter sido, de fato, eleito. O artista fez parte do Partido Comunista do Brasil (PC do B) e, por divergências (“não sabia ainda convencer as pessoas da importância da cultura como transformação”, diz), migrou para o Partido dos Trabalhadores (PT). Sua atuação na área foi da metade até o final dos anos noventa e é um período que ele não relembra com tom de saudade. Mas ele segue, “amadurecendo, aprendendo e se reconstruindo”, nas próprias palavras. “Posso ter aberto uma porta do respeito à arte enquanto instrumento de transformação da sociedade”, reflete. não sei o quê e aí eu fui entender que nada daquilo [das roupas] era muito importante, era importante com quem eu estivesse”, afirma. De acordo com o artista, esse foi um momento de virada pois foi quando ele entendeu a diferença entre o ser e o ter. Para ele, a sociedade da época – e de hoje também – estimula uma vida de aparências e incentiva as pessoas a trabalharem o dia inteiro apenas para adquirirem um bem ou uma roupa que as faça serem aceitas por um determinado grupo. No entanto, o mímico percebeu, ao se reunir com aquelas pessoas em prol da cultura, que estava mais interessado em fazer a diferença no mundo, de alguma forma, e não em tentar se encaixar em redomas sociais. A maneira que ele encontrou de se libertar foi essa: se conectando com o teatro e com as questões políticas que podem vir junto com essa forma de expressão artística. “Era um momento em que o Brasil tinha uma história meio que… Começava, né? Foi oitenta e… Oitenta para oitenta e um, então tinha um movimento que eu não tinha consciência, porque eu vivia dentro de uma redoma, né, mais religiosa, né, familiar”, rememora. “Eu não era muito voltado para o que estava acontecendo no país. Mas alguns dos que estavam no grupo já eram de alguma organização estudantil, alguma coisa… E aí a gente começava a conversar essas coisas”, diz. O tal curso de teatro aconteceu em uma escola no final de Taguatinga Norte e reuniu uma turma de aproximadamente sessenta alunos em uma semana de “muita diversão e aprendizado”, segundo Miquéias. “Eu era o garotinho que tinha saído da religião há pouco tempo. Todo alinhadinho, sapatinho brilhando e tal. No final do primeiro dia [de curso], meu sapato já tinha virado figurino de alguém, minha blusa tinha virado Ato II: “Ó, você está fazendo mímica, né?” O Miquéias mímico começou a nascer, de fato, em um evento em Paracatu (MG) junto ao seu grupo de teatro. “Lá já tinha um movimento de resistência política”, comenta. Entre as dinâmicas do evento, uma das atividades culturais envolvia criar personagens e realizar um cortejo pela cidade. Empolgado, o artista vestiu uma malha preta, fez uma maquiagem meio borrada e começou a brincar. Pelas ruas da cidade, ele se divertia com esse figurino enquanto interpretava um personagem ainda em formação, que parecia um boneco. A brincadeira foi contagiando a meninada, que o acompanhou pelo cortejo durante horas. De repente, uma das crianças perguntou para o colega de Miquéias se, quando voltassem para casa, o “boneco” seria guardado inteiro ou era preciso desmontá-lo. “Essa pergunta, para mim, foi fundamental. Tinha alguma magia no ar, alguma coisa forte aí”, fala. Foto: Fábio Setti
  • 26. 50 51 Foi então que o artista começou a desenvolver mais o “boneco” e, a partir daí, a criar um personagem que, mais tarde, ele foi entender como a figura de um mímico.“Nesse momento, esse personagem que faz essa transição do que eu fazia com teatro falado, convencional, para a mímica. No momento que eu faço essa experimentação é que algumas pessoas [falam]: ‘Ó, você está fazendo mímica, né?’E eu nem sabia que estava fazendo mímica... E aí comecei a entender o que era, fui conversar com algumas pessoas, comecei a assistir coisas”, explica.“Tinha o grupo EnDança, com Luiz Mendonça [dançarino, coreógrafo e professor] que dirigia, e era uma coisa bem corporal, muito forte, aí comecei a conversar com eles, conversar com outros atores, o que achavam, comecei a fazer tudo quanto é oficina, tudo quanto é workshop que tinha, qualquer coisa de movimento eu ia fazer. A gente teve uma efervescência de ações, né? Projeto Cabeças, Jogo de Cena, várias coisas estavam acontecendo”, relembra. Isso foi em meados dos anos oitenta. Miquéias, que era também um dos poucos homens na Escola Normal de Taguatinga, aproveitou um concurso na instituição para inscrever o personagem. “Ele não tinha um nome, né? Lembro que, indo pra apresentação, aí [pensei]: ‘Gente, mas ele é só um boneco, né? Não fala, não conta nada, só se movimenta, isso tá me incomodando’. E aí surgiu a ideia de contar uma pequena historinha com esse boneco, sem palavra”, diz. “E aí contei a história de um trabalhador que ia trabalhar, com todos os percalços de sair cedo, com sonhos… Bom, resumindo, esse personagem que surgiu aí acabou ganhando o festival da escola. Depois, acabou indo se apresentar em outras escolas, em vários lugares”, relembra, com carinho. Esse foi, como define o artista, um boom na carreira dele. Quanto mais escolas ele visitava, mais escolas queriam recebê- lo. Após uma apresentação para um auditório lotado de crianças atentas, ele passou a se dizer oficialmente mímico. E, após mais de trezentas apresentações por escolas de todo o DF, em que teve a oportunidade de colher feedbacks importantíssimos de adolescentes “sem perdão, que falam tudo mesmo”, ele passou a ser reconhecido como uma personalidade local. “Tudo isso sem rede social”, diverte-se. Esse processo permitiu que ele aperfeiçoasse o próprio trabalho e começasse a percorrer por festivais teatrais diversos. De festival em festival, ele foi se conectando também com entidades, sindicatos e associações que começaram a escrever uma nova história na vida dele.“O olhar do meu trabalho tinha muito essa coisa do personagem brasileiro, histórias de luta”, diz.“Eu virei o artista dos sindicatos”,acrescenta. Uma parceria frutífera aconteceu especialmente com o Sindicato dos Bancários de Brasília que, para Miquéias, era uma “potência cultural”entre os anos oitenta e noventa, por conta do apoio disponibilizado aos artistas. Foto: Fábio Setti
  • 27. 52 53 No evento, quando fez uma apresentação de seu trabalho, foi aplaudido de pé e tudo mudou da água para o vinho. “Imagina, você vai como aprendiz e de repente é aceito, né?”, comenta. Pra completar, descobriu que a tal carta que havia recebido dizia que ele teria todos os custos cobertos pelo evento. “E eu comendo batata todo dia”, ri. Então, acabou ganhando mais uma semana de viagem, com ingressos para espetáculos e museus. “Foi uma semana de desfrute”, relembra. E essa semana de desfrute, alguns meses após o evento, acabou virando uma fértil parceria: Miquéias foi convidado para voltar para a Inglaterra, para participar de experimentações artísticas com um dos instrutores do festival. Ele foi, claro. E acabou entrando em um ciclo de passar quase dois anos indo e voltando, dentro de um projeto da companhia Ralf Ralf, junto com atores de locais como Estados Unidos, França, Escócia e Porto Rico. Com o grupo, viajou por países da Europa e pelos Estados Unidos, conheceu novas culturas e enriqueceu o próprio repertório prático-teórico. Além disso, o carimbo internacional pode sempre dar uma ajudinha no impulsionamento de artistas brasileiros, principalmente quando eles estão fora de eixos tradicionais (o que deveria fazer as pessoas pensarem sobre o porquê disso). O trabalho do mímico era requisitado por esse nicho não apenas pela facilidade de encaixar uma atividade com um homem só em qualquer programação (Miquéias já chegou a realizar uma performance em um pequeno cubo 1x1 metro na Câmara dos Deputados), mas também pela capacidade que a arte realizada por ele possuía de adentrar lugares que outras expressões artísticas não conseguiam. Sem a “agressividade da palavra”, segundo o artista, muito pode ser dito no silêncio. Ato III: partitura corporal ritmada mentalmente Ainda “pingando aqui e ali”,como na infância e adolescência,mas dessa vez por bons motivos – para apresentar o próprio trabalho, afinal –,Miquéias descobriu um festival de mímica que iria acontecer na Inglaterra.Isso foi já chegando nos anos noventa, o que significa que o artista precisou realizar uma intensa mobilização presencial para levantar fundos para viajar.Após muito esforço,conseguiu,mas os desafios persistiam.A língua inglesa,que ele não dominava, era uma barreira – “Me deram uma carta que eu não sabia o que estava escrito”,relembra. Ele não encontrava onde era o evento.As pessoas não eram muito solícitas.Mil coisas.Mas ele conseguiu superar também essas adversidades e se instalou no festival,realizou cursos e fez tudo o que tinha direito. Fotos: Fábio Setti
  • 28. 54 55 O processo de conhecer outras localidades do Brasil e do mundo caminhou junto ao processo de autoconhecimento do artista: quanto mais ele olhava para o outro, mais ele olhava, também, para dentro de si próprio. Miquéias já sabia, há tempos, que um mímico poderia ir muito além da cara branca e roupa listrada de Marcel Marceau, famoso mímico francês que viveu entre 1923 e 2007.“Desde a máscara até nudez, existem várias formas de fazer mímica, não é a máscara branca e roupa listrada que te definem”, conta. Contudo, o aprendizado estava sempre presente. O próximo paradigma foi o do som: acostumado ao silêncio absoluto como regra, representado por filmes como O Boulevard do Crime (1945), do também francês Marcel Carné, o primeiro mímico do DF passou a introduzir a sonoridade em seu trabalho, de maneira onomatopeica. “Sonorizar gestos sem que isso fosse exatamente uma palavra”, explica. Desse modo, ele passou a trabalhar com ritmo, a ter o movimento ritmado a partir de uma sonoridade criada dentro da própria cabeça. “É como se tivesse uma partitura corporal ritmada a partir de um trabalho que se cria mentalmente”, diz. Tais descobertas, de acordo com o artista, ganharam força nas trocas internacionais visto que, antes da popularização da internet, a informação sobre determinados temas era escassa no Brasil, principalmente de algo tão específico quanto a mímica. Hoje, o trabalho de Miquéias engloba questões sociais em um mix de técnicas de mímica que abrangem a rua, a brasilidade e a latinidade.“Talvez seja essa característica… O meu trabalho mistura o que a gente é”, define. E essa mistura dá muita liga. Neste governo, o mímico foi reconhecido como mestre da cultura popular brasileira da região Centro-Oeste pelo Ministério da Cultura. E, pouco antes da pandemia da COVID-19 começar, Miquéias recebeu, em Cuba, uma homenagem à representatividade da identidade latino-americana de seu trabalho, em festival organizado pela Escola Nacional de Mímica de Cuba. “Lá em Cuba, me deram esse reconhecimento, fizeram esse festival em que eu era homenageado com essa lógica. Meu trabalho tem essa característica: não me ausentar de minha realidade”, afirma, orgulhoso.“A arte é um caminho de trabalho, de reconhecimento como um ser humano participante na sociedade. Arte é instrumento de conexão, senão é uma coisa muito individualizada”, acrescenta. PERDA DE PESSOAS IMPORTANTES Embora Miquéias tenha conquistas recentes para celebrar, os infortúnios de uma crise sanitária, econômica e social que assolam o país e tiraram a vida de mais de meio milhão de brasileiros também atingiram o círculo íntimo dele. Durante a pandemia, ele perdeu a esposa Ivete Mangueira, companheira há mais de uma década e professora da Secretaria de Educação do DF. “Era uma pessoa muito linda, que nesse processo artístico foi muito importante, esses últimos catorze anos foram ao lado dela”, lamenta. Eles já eram amigos há cerca de trinta anos e, segundo o mímico, foram parceiros de inúmeras histórias. “Dói muito. Infelizmente tive que aprender muito cedo a perder pessoas importantes”, afirma, relembrando a morte da mãe. CONVIVÊNCIA CULTURAL O mímico vive, há algumas décadas, em uma chácara em Vicente Pires, que era só um retângulo de terra quando ele chegou, aos vinte e dois anos. Hoje, o local tem plantações, um palco na varanda e está virando uma área que o artista tem o objetivo de transformar em um espaço de convivência cultural, com cursos, oficinas, encontros – coisas que já vinham acontecendo, de modo não sistemático, e ele quer consolidar mais organizadamente. No espaço, ele quer também realizar encontros de música caribenha durante a semana, e preparar feijoadas com samba de quintal e galinhada aos fins de semana. “Gosto muito de cozinhar e nem imagino estar no fogão de forma comercial, mas quero dar meus pitacos”, brinca. “Enquanto essa coisa [o coronavírus] não nos deixa, eu tô preparando o espaço”, diz. Na casa, ele pinta, sobe na parede, faz reparos e resgata tudo o que aprendeu no período em que atuou com construção civil, antes do teatro. SAIBA MAIS @miqueias.paz Foto: Fábio Setti
  • 29. MILA PETRILLO Por Marianna França e Shyrlem Barbosa I N S TA N T ES 56 57 Mila Petrillo é uma mulher distraída, mas quando uma câmera encosta em seu rosto e encaixa entre as mãos, ela se torna completamente presente: fotografar é como se fosse um estado meditativo. Guiada pelas emoções da cena, ela se conecta e encontra o enquadramento perfeito. Mila diz que é um processo emocional difícil de descrever. Por isso, as imagens contam histórias por si só, suaves e impactantes. Em 1987, com apenas 18 anos, ela começou a fotografar. O enquadramento do olhar, necessário para a fotografia, foi algo sempre presente devido a sua criação. Mila é filha de artistas socialistas nada convencionais para o século passado: o pai, José Petrillo, publicitário com aspirações voltadas para o cinema, já a mãe, Dalel Achkar Petrillo, desenhista de animação. SUAS LENTES REGISTRARAM MAIS DO QUE É POSSÍVEL IMAGINAR, MOMENTOS DA DITADURA, O INÍCIO DA EFERVESCÊNCIA CULTURAL DE BRASÍLIA, INÚMEROS ESPETÁCULOS, INICIATIVAS SOCIAIS DIVERSAS COMO O PROJETO AXÉ, O RIO 92 E A RIO + 20. CONHEÇA A FOTÓGRAFA MILA PETRILLO, PATRIMÔNIO CULTURAL DE BRASÍLIA. “Para mim, é muito melhor ver uma peça de teatro ou um espetáculo de dança fotografando porque eu tô dentro, é como se eu tivesse no palco junto. Então, é muito engraçado porque todo meu ser responde àquilo, sabe? Todo o meu ser responde ao ápice da música, dos movimentos, das expressões. As coisas que eu fotografei eu não esqueço mais, assim, elas ficam impressas de alguma maneira” explica a fotógrafa com mais de 40 anos de carreira. Luciano Porto em Hexgram, Histórias do Velho e do Mundo (1996). Direção Mark Hopkins Projeto Axé (2010) Eliana Carneiro em Anada (1986). Direção Eliana Carneiro Janguruçú/Edisca (1998)
  • 30. 58 59 Quarup. Aldeia Kamayurá. Xingu (1986)