SlideShare uma empresa Scribd logo
1 de 4
A Sexualidade na Era Moderna
A experiência sexual, como toda experiência humana, é produto de um complexo
conjunto de processos sociais, culturais e históricos. A concepção moderna de sexualidade,
segundo Foucault(1988), designa uma série de fenômenos que englobam tanto os mecanismos
biológicos da reprodução como as variantes individuais e sociais do comportamento, a
instauração de regras e normas apoiadas em instituições religiosas, judiciárias, pedagógicas e
médicas, e também as mudanças no modo pelo qual os indivíduos são levados a dar sentido e
valor à sua conduta, seus deveres, prazeres, sentimentos,sensações e sonhos.Sexualidade é,
pois, uma construção social que engloba o conjunto dos efeitos produzidos nos corpos, nos
comportamentos e nas relações sociais. Ao longo da história, a atividade sexual sempre foi
objeto de preocupação moral e, como tal, submetida a dispositivos de controle das práticas e
comportamentos sexuais. Como esses dispositivos são construídos com base nos valores e
ideologias predominantes na sociedade, eles assumem formas diferentes à medida que a
sociedade muda.
Para Foucault, a sociedade que se desenvolveu a partir do século XVII - sociedade
burguesa,capitalista ouindustrial - deuinício a uma épocade repressão àsexualidadenão como
proibição em si, mas através da incitação dos discursos. Essa sociedade não reagiu ao sexo
como uma recusa em reconhecê-lo, ao contrário, instaurou todo um aparelho para produzir
verdadeiros discursos sobre ele. Nessas sociedades, não somente se falou muito sobre sexo e
se forçou todo mundo a falar dele, como também instituiu-se uma verdade regulada sobre a
sexualidade.
Nos séculos XIX e XX, instituiu-se um discurso disciplinadorparasuprimiras formas
de sexualidade não relacionadas com a reprodução e com o casamento como lugar legítimo da
sexualidade. Através desses discursos, multiplicaram-se as condenações judiciárias das
perversões menores, anexou-se a irregularidade sexual à doença mental: da infância à velhice
foi definida uma norma de desenvolvimento sexual e cuidadosamente caracterizados todos os
desvios possíveis; organizaram-se os controles pedagógicos e os tratamentos médicos.Até o
século XVIII, o sexo lícito era restrito às relações matrimoniais e carregado de prescrições.
Romper as regras do casamento ou procurar prazeres estranhos merecia a condenação moral
e jurídica. As práticas sexuais fora do casamento - sexualidade das crianças, homossexuais,
perversões, devaneios,obsessões, etc., eram consideradas “contra a natureza”. Os libertinos
carregavam o estigma da “loucura moral”, neurose genital, desequilíbrio psicológico, etc.
No século XIX, os códigos de delitos sexuais se alteraram, e a justiça deu lugar à
medicina. Aumentaram as instâncias de controle e vigilância instauradas pela pedagogia ou pela
terapêutica. A medicina passou a interferir nos prazeres do casal, inventou toda uma patologia
orgânica, funcional ou mental, originada nas práticas sexuais. O poder exercido pelos médicos
e pedagogos voltou-se para o controle da sexualidade infantil, interdição do incesto e caça às
sexualidades periféricas (sodomia, homossexualismo e outras perversões).
O exame médico, a investigação psiquiátrica, o relatório pedagógico e as condutas
familiares têm como objetivo dizer não a todas as sexualidades errantes e improdutivas mas, na
realidade, funcionam como mecanismos de dupla incitação: prazer e poder. Prazer em exercer
um poder que questiona, fiscaliza, espreita, espia, investiga, apalpa, revela e, por outro lado,
prazerque se abrasa porter que escapara esse poder,fingir-lhe,enganá-lo outravesti-lo. Poder
que se deixa invadir pelo prazer que persegue e,diante dele,poder que se afirma no prazer de
mostrar-se, de escandalizar ou de resistir. Captação e sedução; confronto e reforço recíprocos:
pais e filhos, adulto e adolescente, educador e alunos, médico e doente e o psiquiatra com sua
histérica e seus perversos, não cessaram de desempenhar esse papel desde o século XIX. Tais
apelos, esquivas, incitações circulares não organizaram, em torno dos sexos e dos corpos,
fronteiras a não serem ultrapassadas, e, sim, as perpétuas espirais de poder e prazer (Foucault,
1988, p. 45).
Nesse domínio, a sexualidade instituiu-se como um dispositivo de saber e poder.
Tornou-se um campo de poder nas relações entre homens e mulheres, entre jovens e velhos,
entre pais e filhos, entre educadores e alunos, entre padres e leigos, entre a administração e a
população. Nas relações de poder, a sexualidade encontrou um ponto de apoio, de articulação
às mais variadas estratégias de controle.
Foucault busca as razões pelas quais a sexualidade, longe de ser reprimida na
sociedade contemporânea está, ao contrário, sendo suscitada. O dispositivo da sexualidade
deve ser pensado a partir das técnicas de poder que lhe são contemporâneas. Para ele, três
eixos constituem a sexualidade nas sociedades modernas: a formação dos saberes que a ela se
referem; os sistemas de poder que regulam suas práticas e as formas pelas quais os indivíduos
podem e devem se reconhecer como sujeitos dessa sexualidade.
Ao centrar a história da sexualidade nos mecanismos da repressão, Foucault
considera duas rupturas:
Uma ocorreu no decorrer do século XVIII: nascimento das grandes proibições,
valorização exclusiva da sexualidade adulta e matrimonial, imperativos de decência, esquiva
obrigatória do corpo,contenção e pudores imperativos da linguagem. A outra ocorreu no século
XX, momento em que os mecanismos da repressão teriam começado a se afrouxar; passar-se-
ia das interdições sexuais imperiosas a uma relativa tolerância a propósito das relações pré-
nupciais ou extra-matrimoniais; a desqualificação dos perversos teria sido atenuada e sua
condenação pela lei, eliminada em parte; ter-se-iam eliminado, em grande parte, os tabus que
pesavam sobre a sexualidade das crianças (Foucault, 1988, p. 109).
Os estudos de Foucaultnos mostram, portanto, que a sexualidade,longe de serum
fenômeno natural, é, ao contrário, profundamente suscetível às influências sociais e culturais. É
produto de forças sociais e históricas.É a sociedade e a cultura que designam se determinadas
práticas sexuais são apropriadas ou não, morais ou imorais, saudáveis ou doentias. A história
da nossa concepção de corpo e sexualidade é a história dos sistemas de valores fundamentais
em cada sociedade.
Em suma…
A história da sexualidade vista como uma construção social aponta mudanças
importantes tanto no comportamento sexual como no significado que lhe atribuímos. Por isso
não se pode explicar suas formas e variações sem examinar o contexto em que se formaram.
Isso nos permite entender, por exemplo, o significado da bissexualidade para os gregos e o
pluralismo sexual do século XX. Para os gregos que idealizavam a beleza do corpo, não existia
dois impulsos diferentes.Oque permitiadesejarum homemouuma mulher era o simples apetite
sexual que a natureza lhes havia despertado por seres humanos “belos” de qualquer sexo. No
século XX, o pluralismo sexual,ao se desviardo paradigmacartesiano (mentalidade mecanicista,
categorização normal/anormal),reinventao corpo comoumaforma de organismo socialque abre
caminho para a aceitação da diversidade como norma viável da cultura. “Se a natureza humana
é histórica, cada indivíduo tem uma história diferente e, portanto, necessidades diferentes”
(Highwater, 1992, p.155).

Mais conteúdo relacionado

Mais procurados

Instituições Sociais
Instituições SociaisInstituições Sociais
Instituições SociaisAlfredo Garcia
 
Identidade de gênero e orientação sexual.
Identidade de gênero e orientação sexual.Identidade de gênero e orientação sexual.
Identidade de gênero e orientação sexual.Fábio Fernandes
 
Sociologia aplicada ao aluno
Sociologia aplicada ao alunoSociologia aplicada ao aluno
Sociologia aplicada ao alunoleandrotezolin87
 
Texto instituições sociais
Texto   instituições sociaisTexto   instituições sociais
Texto instituições sociaisFabio Salvari
 
Instituições Sociais
Instituições SociaisInstituições Sociais
Instituições SociaisIsaquel Silva
 
GÊNERO E O PROCESSO SAÚDE-DOENÇA
GÊNERO E O PROCESSO SAÚDE-DOENÇAGÊNERO E O PROCESSO SAÚDE-DOENÇA
GÊNERO E O PROCESSO SAÚDE-DOENÇARodrigo Abreu
 
Instituições sociais
Instituições sociaisInstituições sociais
Instituições sociaisLídia Santos
 
A Educação e a Diversidade Sexual e de Gênero: a academia e o senso comum
A Educação e a Diversidade Sexual e de Gênero: a academia e o senso comumA Educação e a Diversidade Sexual e de Gênero: a academia e o senso comum
A Educação e a Diversidade Sexual e de Gênero: a academia e o senso comumDaniel Tavares
 
Instituições sociais
Instituições sociaisInstituições sociais
Instituições sociaisLídia Santos
 
estrutura familiar e dinamica social
estrutura familiar e dinamica socialestrutura familiar e dinamica social
estrutura familiar e dinamica socialJoão Marrocano
 
Socializacao controle social
Socializacao controle socialSocializacao controle social
Socializacao controle socialLoredana Ruffo
 
Relações de Gênero
Relações de GêneroRelações de Gênero
Relações de GêneroPrivada
 
Instituições sociais
Instituições sociaisInstituições sociais
Instituições sociaisturma12d
 
Sexualidade juvenil, direitos e diversidade sexual.
Sexualidade juvenil, direitos e diversidade sexual.Sexualidade juvenil, direitos e diversidade sexual.
Sexualidade juvenil, direitos e diversidade sexual.Fábio Fernandes
 

Mais procurados (18)

Segundo Bimestre – sociologia
Segundo Bimestre – sociologia Segundo Bimestre – sociologia
Segundo Bimestre – sociologia
 
Instituições Sociais
Instituições SociaisInstituições Sociais
Instituições Sociais
 
Identidade de gênero e orientação sexual.
Identidade de gênero e orientação sexual.Identidade de gênero e orientação sexual.
Identidade de gênero e orientação sexual.
 
Resumo sobre as instituições sociais
Resumo sobre as instituições sociaisResumo sobre as instituições sociais
Resumo sobre as instituições sociais
 
Sociologia aplicada ao aluno
Sociologia aplicada ao alunoSociologia aplicada ao aluno
Sociologia aplicada ao aluno
 
Texto instituições sociais
Texto   instituições sociaisTexto   instituições sociais
Texto instituições sociais
 
Instituições Sociais
Instituições SociaisInstituições Sociais
Instituições Sociais
 
GÊNERO E O PROCESSO SAÚDE-DOENÇA
GÊNERO E O PROCESSO SAÚDE-DOENÇAGÊNERO E O PROCESSO SAÚDE-DOENÇA
GÊNERO E O PROCESSO SAÚDE-DOENÇA
 
Instituições Sociais
Instituições SociaisInstituições Sociais
Instituições Sociais
 
Instituições sociais
Instituições sociaisInstituições sociais
Instituições sociais
 
A Educação e a Diversidade Sexual e de Gênero: a academia e o senso comum
A Educação e a Diversidade Sexual e de Gênero: a academia e o senso comumA Educação e a Diversidade Sexual e de Gênero: a academia e o senso comum
A Educação e a Diversidade Sexual e de Gênero: a academia e o senso comum
 
Instituições sociais
Instituições sociaisInstituições sociais
Instituições sociais
 
estrutura familiar e dinamica social
estrutura familiar e dinamica socialestrutura familiar e dinamica social
estrutura familiar e dinamica social
 
Socializacao controle social
Socializacao controle socialSocializacao controle social
Socializacao controle social
 
Relações de Gênero
Relações de GêneroRelações de Gênero
Relações de Gênero
 
Instituições sociais
Instituições sociaisInstituições sociais
Instituições sociais
 
Genoma família
Genoma   famíliaGenoma   família
Genoma família
 
Sexualidade juvenil, direitos e diversidade sexual.
Sexualidade juvenil, direitos e diversidade sexual.Sexualidade juvenil, direitos e diversidade sexual.
Sexualidade juvenil, direitos e diversidade sexual.
 

Semelhante a A sexualidade na era moderna

Relações de genero e divers sexual
Relações de genero e divers sexualRelações de genero e divers sexual
Relações de genero e divers sexualFlávia Cunha Lima
 
Identidade de gênero e orientação sexual.
Identidade de gênero e orientação sexual.Identidade de gênero e orientação sexual.
Identidade de gênero e orientação sexual.Fábio Fernandes
 
Aula 6 adolescência e relações de gênero
Aula 6   adolescência e relações de gêneroAula 6   adolescência e relações de gênero
Aula 6 adolescência e relações de gêneroariadnemonitoria
 
Cultura e sexualidade resumo
Cultura e sexualidade resumoCultura e sexualidade resumo
Cultura e sexualidade resumoTradicao Viva
 
Gênero e outras formas de classificação social.
Gênero e outras formas de classificação social.Gênero e outras formas de classificação social.
Gênero e outras formas de classificação social.Fábio Fernandes
 
Louro, guacira lopes. o corpo educado
Louro, guacira lopes. o corpo educadoLouro, guacira lopes. o corpo educado
Louro, guacira lopes. o corpo educadonatielemesquita
 
Louro, guacira lopes. gênero e sexualidade pedagogias contemporâneas
Louro, guacira lopes. gênero e sexualidade   pedagogias contemporâneasLouro, guacira lopes. gênero e sexualidade   pedagogias contemporâneas
Louro, guacira lopes. gênero e sexualidade pedagogias contemporâneasBruno Martins Soares
 
A desigualdade entre os sexos face à evolução da legislação
A desigualdade entre os sexos face à evolução da legislaçãoA desigualdade entre os sexos face à evolução da legislação
A desigualdade entre os sexos face à evolução da legislaçãoSirlene Guimarães
 
Banner - Apresentação no Chile -
Banner - Apresentação no Chile -Banner - Apresentação no Chile -
Banner - Apresentação no Chile -Roberto Warken
 
OrientaçãO Sexual E A Escola – Segundo Os Pcn
OrientaçãO Sexual E A Escola – Segundo Os PcnOrientaçãO Sexual E A Escola – Segundo Os Pcn
OrientaçãO Sexual E A Escola – Segundo Os Pcnguestfcfa930f
 
Seminário novas configurações familiares
Seminário novas configurações familiaresSeminário novas configurações familiares
Seminário novas configurações familiaresFabiano Macedo
 
OrientaçãO Sexual E A Escola – Segundo Os Pcn
OrientaçãO Sexual E A Escola – Segundo Os PcnOrientaçãO Sexual E A Escola – Segundo Os Pcn
OrientaçãO Sexual E A Escola – Segundo Os Pcnguest35ba75
 
Orientação Sexual E A Escola – Segundo Os P C N
Orientação  Sexual E A  Escola –  Segundo Os  P C NOrientação  Sexual E A  Escola –  Segundo Os  P C N
Orientação Sexual E A Escola – Segundo Os P C Nsouzagabrielli
 
OrientaçãO Sexual E A Escola – Segundo Os Pcn
OrientaçãO Sexual E A Escola – Segundo Os PcnOrientaçãO Sexual E A Escola – Segundo Os Pcn
OrientaçãO Sexual E A Escola – Segundo Os Pcnsouzagabrielli
 

Semelhante a A sexualidade na era moderna (20)

O que é sexo
O que é sexoO que é sexo
O que é sexo
 
Relações de genero e divers sexual
Relações de genero e divers sexualRelações de genero e divers sexual
Relações de genero e divers sexual
 
Identidade de gênero e orientação sexual.
Identidade de gênero e orientação sexual.Identidade de gênero e orientação sexual.
Identidade de gênero e orientação sexual.
 
Aula 6 adolescência e relações de gênero
Aula 6   adolescência e relações de gêneroAula 6   adolescência e relações de gênero
Aula 6 adolescência e relações de gênero
 
Cultura e sexualidade resumo
Cultura e sexualidade resumoCultura e sexualidade resumo
Cultura e sexualidade resumo
 
Sexualidade
SexualidadeSexualidade
Sexualidade
 
Gênero e outras formas de classificação social.
Gênero e outras formas de classificação social.Gênero e outras formas de classificação social.
Gênero e outras formas de classificação social.
 
Louro, guacira lopes. o corpo educado
Louro, guacira lopes. o corpo educadoLouro, guacira lopes. o corpo educado
Louro, guacira lopes. o corpo educado
 
Louro, guacira lopes. gênero e sexualidade pedagogias contemporâneas
Louro, guacira lopes. gênero e sexualidade   pedagogias contemporâneasLouro, guacira lopes. gênero e sexualidade   pedagogias contemporâneas
Louro, guacira lopes. gênero e sexualidade pedagogias contemporâneas
 
A desigualdade entre os sexos face à evolução da legislação
A desigualdade entre os sexos face à evolução da legislaçãoA desigualdade entre os sexos face à evolução da legislação
A desigualdade entre os sexos face à evolução da legislação
 
Conceito de gênero.
Conceito de gênero.Conceito de gênero.
Conceito de gênero.
 
Conceito de gênero.
Conceito de gênero.Conceito de gênero.
Conceito de gênero.
 
9704 3
9704 39704 3
9704 3
 
Gênero
GêneroGênero
Gênero
 
Banner - Apresentação no Chile -
Banner - Apresentação no Chile -Banner - Apresentação no Chile -
Banner - Apresentação no Chile -
 
OrientaçãO Sexual E A Escola – Segundo Os Pcn
OrientaçãO Sexual E A Escola – Segundo Os PcnOrientaçãO Sexual E A Escola – Segundo Os Pcn
OrientaçãO Sexual E A Escola – Segundo Os Pcn
 
Seminário novas configurações familiares
Seminário novas configurações familiaresSeminário novas configurações familiares
Seminário novas configurações familiares
 
OrientaçãO Sexual E A Escola – Segundo Os Pcn
OrientaçãO Sexual E A Escola – Segundo Os PcnOrientaçãO Sexual E A Escola – Segundo Os Pcn
OrientaçãO Sexual E A Escola – Segundo Os Pcn
 
Orientação Sexual E A Escola – Segundo Os P C N
Orientação  Sexual E A  Escola –  Segundo Os  P C NOrientação  Sexual E A  Escola –  Segundo Os  P C N
Orientação Sexual E A Escola – Segundo Os P C N
 
OrientaçãO Sexual E A Escola – Segundo Os Pcn
OrientaçãO Sexual E A Escola – Segundo Os PcnOrientaçãO Sexual E A Escola – Segundo Os Pcn
OrientaçãO Sexual E A Escola – Segundo Os Pcn
 

Mais de Filipe Simão Kembo

Mais de Filipe Simão Kembo (20)

Vidav e obra de Platão e Sócrates
Vidav e obra de Platão e SócratesVidav e obra de Platão e Sócrates
Vidav e obra de Platão e Sócrates
 
Vida e obra de Wuanhenga Xitu
Vida e obra de Wuanhenga XituVida e obra de Wuanhenga Xitu
Vida e obra de Wuanhenga Xitu
 
Novos processo de formação de palavras completo
Novos processo de formação de palavras completoNovos processo de formação de palavras completo
Novos processo de formação de palavras completo
 
O Sistema de informação
O Sistema de informaçãoO Sistema de informação
O Sistema de informação
 
Tendencias
TendenciasTendencias
Tendencias
 
Tales de Mileto
Tales de MiletoTales de Mileto
Tales de Mileto
 
Surgimento da sociologia
Surgimento da sociologiaSurgimento da sociologia
Surgimento da sociologia
 
Revolução francesa
Revolução francesaRevolução francesa
Revolução francesa
 
Resumo Reino de Matamba
Resumo Reino de MatambaResumo Reino de Matamba
Resumo Reino de Matamba
 
Remuneração nas organizações
Remuneração nas organizaçõesRemuneração nas organizações
Remuneração nas organizações
 
Reino da matamba
Reino da matambaReino da matamba
Reino da matamba
 
Química analítica
Química analíticaQuímica analítica
Química analítica
 
Psicologia do desenvolvimento
Psicologia do desenvolvimentoPsicologia do desenvolvimento
Psicologia do desenvolvimento
 
Proliferação das seitas religiosas em Angola
Proliferação das seitas religiosas em AngolaProliferação das seitas religiosas em Angola
Proliferação das seitas religiosas em Angola
 
Martiz extracelular biologia
Martiz extracelular   biologiaMartiz extracelular   biologia
Martiz extracelular biologia
 
Breve Historial do Município de Cacuaco
Breve Historial do Município de CacuacoBreve Historial do Município de Cacuaco
Breve Historial do Município de Cacuaco
 
Matriz extra celelular
Matriz extra celelularMatriz extra celelular
Matriz extra celelular
 
Insulinoterapia
InsulinoterapiaInsulinoterapia
Insulinoterapia
 
Informática na ciencia
Informática na cienciaInformática na ciencia
Informática na ciencia
 
Infecção urinária e gravidez
Infecção urinária e gravidezInfecção urinária e gravidez
Infecção urinária e gravidez
 

A sexualidade na era moderna

  • 1. A Sexualidade na Era Moderna A experiência sexual, como toda experiência humana, é produto de um complexo conjunto de processos sociais, culturais e históricos. A concepção moderna de sexualidade, segundo Foucault(1988), designa uma série de fenômenos que englobam tanto os mecanismos biológicos da reprodução como as variantes individuais e sociais do comportamento, a instauração de regras e normas apoiadas em instituições religiosas, judiciárias, pedagógicas e médicas, e também as mudanças no modo pelo qual os indivíduos são levados a dar sentido e valor à sua conduta, seus deveres, prazeres, sentimentos,sensações e sonhos.Sexualidade é, pois, uma construção social que engloba o conjunto dos efeitos produzidos nos corpos, nos comportamentos e nas relações sociais. Ao longo da história, a atividade sexual sempre foi objeto de preocupação moral e, como tal, submetida a dispositivos de controle das práticas e comportamentos sexuais. Como esses dispositivos são construídos com base nos valores e ideologias predominantes na sociedade, eles assumem formas diferentes à medida que a sociedade muda. Para Foucault, a sociedade que se desenvolveu a partir do século XVII - sociedade burguesa,capitalista ouindustrial - deuinício a uma épocade repressão àsexualidadenão como proibição em si, mas através da incitação dos discursos. Essa sociedade não reagiu ao sexo como uma recusa em reconhecê-lo, ao contrário, instaurou todo um aparelho para produzir verdadeiros discursos sobre ele. Nessas sociedades, não somente se falou muito sobre sexo e se forçou todo mundo a falar dele, como também instituiu-se uma verdade regulada sobre a sexualidade. Nos séculos XIX e XX, instituiu-se um discurso disciplinadorparasuprimiras formas de sexualidade não relacionadas com a reprodução e com o casamento como lugar legítimo da sexualidade. Através desses discursos, multiplicaram-se as condenações judiciárias das perversões menores, anexou-se a irregularidade sexual à doença mental: da infância à velhice foi definida uma norma de desenvolvimento sexual e cuidadosamente caracterizados todos os desvios possíveis; organizaram-se os controles pedagógicos e os tratamentos médicos.Até o século XVIII, o sexo lícito era restrito às relações matrimoniais e carregado de prescrições. Romper as regras do casamento ou procurar prazeres estranhos merecia a condenação moral e jurídica. As práticas sexuais fora do casamento - sexualidade das crianças, homossexuais, perversões, devaneios,obsessões, etc., eram consideradas “contra a natureza”. Os libertinos carregavam o estigma da “loucura moral”, neurose genital, desequilíbrio psicológico, etc. No século XIX, os códigos de delitos sexuais se alteraram, e a justiça deu lugar à medicina. Aumentaram as instâncias de controle e vigilância instauradas pela pedagogia ou pela terapêutica. A medicina passou a interferir nos prazeres do casal, inventou toda uma patologia orgânica, funcional ou mental, originada nas práticas sexuais. O poder exercido pelos médicos e pedagogos voltou-se para o controle da sexualidade infantil, interdição do incesto e caça às sexualidades periféricas (sodomia, homossexualismo e outras perversões).
  • 2. O exame médico, a investigação psiquiátrica, o relatório pedagógico e as condutas familiares têm como objetivo dizer não a todas as sexualidades errantes e improdutivas mas, na realidade, funcionam como mecanismos de dupla incitação: prazer e poder. Prazer em exercer um poder que questiona, fiscaliza, espreita, espia, investiga, apalpa, revela e, por outro lado, prazerque se abrasa porter que escapara esse poder,fingir-lhe,enganá-lo outravesti-lo. Poder que se deixa invadir pelo prazer que persegue e,diante dele,poder que se afirma no prazer de mostrar-se, de escandalizar ou de resistir. Captação e sedução; confronto e reforço recíprocos: pais e filhos, adulto e adolescente, educador e alunos, médico e doente e o psiquiatra com sua histérica e seus perversos, não cessaram de desempenhar esse papel desde o século XIX. Tais apelos, esquivas, incitações circulares não organizaram, em torno dos sexos e dos corpos, fronteiras a não serem ultrapassadas, e, sim, as perpétuas espirais de poder e prazer (Foucault, 1988, p. 45). Nesse domínio, a sexualidade instituiu-se como um dispositivo de saber e poder. Tornou-se um campo de poder nas relações entre homens e mulheres, entre jovens e velhos, entre pais e filhos, entre educadores e alunos, entre padres e leigos, entre a administração e a população. Nas relações de poder, a sexualidade encontrou um ponto de apoio, de articulação às mais variadas estratégias de controle. Foucault busca as razões pelas quais a sexualidade, longe de ser reprimida na sociedade contemporânea está, ao contrário, sendo suscitada. O dispositivo da sexualidade deve ser pensado a partir das técnicas de poder que lhe são contemporâneas. Para ele, três eixos constituem a sexualidade nas sociedades modernas: a formação dos saberes que a ela se referem; os sistemas de poder que regulam suas práticas e as formas pelas quais os indivíduos podem e devem se reconhecer como sujeitos dessa sexualidade. Ao centrar a história da sexualidade nos mecanismos da repressão, Foucault considera duas rupturas: Uma ocorreu no decorrer do século XVIII: nascimento das grandes proibições, valorização exclusiva da sexualidade adulta e matrimonial, imperativos de decência, esquiva obrigatória do corpo,contenção e pudores imperativos da linguagem. A outra ocorreu no século XX, momento em que os mecanismos da repressão teriam começado a se afrouxar; passar-se- ia das interdições sexuais imperiosas a uma relativa tolerância a propósito das relações pré- nupciais ou extra-matrimoniais; a desqualificação dos perversos teria sido atenuada e sua condenação pela lei, eliminada em parte; ter-se-iam eliminado, em grande parte, os tabus que pesavam sobre a sexualidade das crianças (Foucault, 1988, p. 109). Os estudos de Foucaultnos mostram, portanto, que a sexualidade,longe de serum fenômeno natural, é, ao contrário, profundamente suscetível às influências sociais e culturais. É
  • 3. produto de forças sociais e históricas.É a sociedade e a cultura que designam se determinadas práticas sexuais são apropriadas ou não, morais ou imorais, saudáveis ou doentias. A história da nossa concepção de corpo e sexualidade é a história dos sistemas de valores fundamentais em cada sociedade.
  • 4. Em suma… A história da sexualidade vista como uma construção social aponta mudanças importantes tanto no comportamento sexual como no significado que lhe atribuímos. Por isso não se pode explicar suas formas e variações sem examinar o contexto em que se formaram. Isso nos permite entender, por exemplo, o significado da bissexualidade para os gregos e o pluralismo sexual do século XX. Para os gregos que idealizavam a beleza do corpo, não existia dois impulsos diferentes.Oque permitiadesejarum homemouuma mulher era o simples apetite sexual que a natureza lhes havia despertado por seres humanos “belos” de qualquer sexo. No século XX, o pluralismo sexual,ao se desviardo paradigmacartesiano (mentalidade mecanicista, categorização normal/anormal),reinventao corpo comoumaforma de organismo socialque abre caminho para a aceitação da diversidade como norma viável da cultura. “Se a natureza humana é histórica, cada indivíduo tem uma história diferente e, portanto, necessidades diferentes” (Highwater, 1992, p.155).