1. COGNIÇÃO, MÚSICA E CORPO NO CANTO CORAL: UM FAZER MUSICAL
CRIATIVO
Denise Sant’Anna Bündchen (UFRGS)
denise.bb@uol.com.br
Resumo. O foco desta pesquisa está centrado no processo, no fazer musical criativo integrado às
descobertas das possibilidades corporais relativas à música, como fator fundamental e determinante
para o desenvolvimento da performance na atividade de Canto Coral. Desta forma, pretendemos
investigar se o uso do movimento corporal na criação musical coletiva potencializa o processo de
aprendizagem musical numa situação de Canto Coral. Assim, o problema a ser investigado é o
seguinte: A consciência do uso do movimento corporal, integrado as atividades criativas, pode agir
como um recurso facilitador na construção do conceito ritmo e no desenvolvimento expressivo da
performance, com meninas entre 10 e 17 anos, numa situação de Canto Coral? Nossa hipótese para
essa questão é de que o movimento corporal aliado às experiências criativas musicais pode ampliar
a construção de esquemas, podendo inclusive levar a conceituação dos elementos musicais pela
tomada de consciência.
INTRODUÇÃO
No decorrer de nossa experiência em educação musical e como regente de coros, com
diversas faixas etárias, temos observado a relevância das atividades criativas e corporais na
interação com a música. O uso do movimento corporal parece ampliar a experiência
envolvendo o sujeito na sua totalidade e favorecendo a relação entre os elementos da
linguagem musical. Assim, o foco desta pesquisa está centrado no processo, no fazer
musical criativo integrado às descobertas das possibilidades corporais relativas à música,
como fator que consideramos fundamental e determinante para o desenvolvimento da
performance na atividade de Canto Coral.
Dessa forma, iremos investigar se a música pode ser apreendida pela totalidade
corporal, ou seja, pretendemos investigar se o uso do movimento corporal na criação
musical coletiva potencializa o processo de aprendizagem musical numa situação de Canto
Coral. Assim, o problema a ser investigado é o seguinte: A consciência do uso do
movimento corporal, integrado as atividades criativas, pode agir como um recurso
facilitador na construção do conceito ritmo e no desenvolvimento expressivo da
performance, com meninas entre 10 e 17 anos, numa situação de Canto Coral? Nossa
2. hipótese para essa questão é de que o movimento corporal aliado às experiências criativas
musicais pode ampliar a construção de esquemas, podendo inclusive levar a conceituação
dos elementos musicais pela tomada de consciência.
Pretendemos buscar na relação corpo-música, uma metodologia fundamentada nas
idéias interacionista-construtivista de Piaget integrando à prática de Canto Coral.
Segundo o autor, é através da ação com o objeto, que o sujeito constrói suas hipóteses e
pode transformar as coisas, ampliando seus esquemas em patamares cada vez mais
complexos. A idéia de que o sujeito apreende primeiramente o mundo pelo próprio corpo,
é uma das maiores justificativas para verificar a compreensão da música neste mesmo
contexto. Neste estudo, o objetivo geral é o de verificar a implicação do uso do
movimento corporal na criação musical coletiva na construção do conceito ritmo e no
desenvolvimento expressivo da performance. A pesquisa será realizada com um grupo
onde desenvolvemos um trabalho de Canto Coral há dois anos e meio. Por ser esse o
campo de investigação deste estudo, a metodologia que utilizaremos nesta pesquisa
abrangerá a intervenção pedagógica, um planejamento de intervenção, entrevistas,
observações e coleta sistemática de dados. Visando analisar a implicação do movimento-
criatividade na construção do conceito ritmo e performance, serão adotadas idéias e
conceitos piagetianos.
O FAZER MUSICAL NO CANTO CORAL
No decorrer da história, a prática coral inicialmente ligada a atividades religiosas
passou a socializar-se. Portanto, além de um momento de socialização, pensar o canto
coral como uma situação de construção musical, descobertas e criação não é uma tarefa
fácil, pois envolve muita reflexão por parte do regente. Dessa forma, nossa concepção
sobre o trabalho coral está diretamente relacionada ao processo de aprendizagem, bem
como à performance. Acreditamos que a música existe e se constrói na ação, e isto é o que
nos instiga a refletir e analisar mais profundamente a prática do ensino musical no Canto
Coral. Sobre isso Beyer contribui apontando que:
A compreensão conceitual é praticamente o produto da reflexão sobre o fazer
existente. Na prática coral, esta poderia ser alcançada se o regente propusesse situações
aos coralistas onde melodias a serem cantadas fossem recriadas, através de variações de
3. arranjos, jogos com os motivos implicados, trocas de naipes na execução, enfim, onde este
aluno tivesse a oportunidade de “desmontar” o discurso musical e montá-lo
posteriormente segundo os significados nele encontrados. (Beyer 1995,p. 21)
Dessa forma, concordamos que é justamente o processo que deve ser o foco de
atenção na aprendizagem musical no Canto Coral, ou seja, que o regente possa pensar nas
várias possibilidades de interação com a música dentro do mesmo contexto. Portanto,
pensamos que a reflexão e a clareza sobre a prática pedagógica utilizada são
fundamentais. Sendo assim, diante de uma pedagogia relacional, acreditamos que uma
experiência não pode ser apenas recepção se não proporcionarmos momentos de interação
com o objeto musical como um todo, possibilitando a integração do corpo e mente na
formação de esquemas a partir das ações e coordenações dessas ações sobre o mundo
sonoro.
Assim, teremos como base as idéias de Piaget, tanto para uma prática continuada
como fazendo parte de todo o processo de pesquisa. A importância que atribuímos à
epistemologia genética piagetiana para esta pesquisa é pelo fato, da música ser um
conhecimento a ser construído. Conforme Piaget (1978), é na interação do sujeito com o
objeto que se processa o conhecimento. Desta forma, através da ação com o objeto, é que
o sujeito constrói suas hipóteses e pode transformar as coisas, ampliando seus esquemas
em patamares cada vez mais complexos. Portanto, por ação (na teoria piagetiana),
entende-se a atividade do indivíduo sobre o meio ambiente, interagindo com o objeto e
resultando na construção e desenvolvimento de estruturas cognitivas.
A experiência musical nos remete à ação, seja tocando ou cantando, portanto, será no
processo que o indivíduo estará ampliando seu conhecimento musical, onde os
mecanismos de assimilação e acomodação estarão em jogo, implicando na construção de
esquemas e consequentemente no desenvolvimento das estruturas. Todas as mudanças
cognitivas resultam de um processo de desenvolvimento, onde os esquemas novos não
substituem os anteriores, e sim, incorporam-se a eles. Portanto, os esquemas são
construídos e reconstruídos progressivamente. Segundo Becker:
[...] para Piaget, a função da ação é a de superar a dicotomia sujeito-objeto,
podemos dizer que não se admite, na sua epistemologia, consciência antes da ação;
a ação é que produz a psiqué, a ação é que produz o próprio inconsciente humano,
a ação é que produz não só o conhecimento no seu conteúdo, mas o conhecimento
4. na sua forma e, sobretudo, o conhecimento nas suas estruturas básicas, ou seja, na
sua condição de possibilidade. (Becker 2001,p.37)
Dentro deste contexto, é que pensamos em integrar e investigar o uso do movimento
corporal na aprendizagem musical no Canto Coral, de forma que, na interação com a
música, esta relação possa favorecer a construção e desenvolvimento de esquemas
musicais favorecendo a performance. Portanto, consideramos o envolvimento corporal nas
atividades musicais criativas, como dois aspectos básicos e fundamentais a serem
analisados na construção de conceito ritmo e desenvolvimento expressivo da performance.
O CORPO EM MOVIMENTO NO FAZER MUSICAL
Gostaríamos de ressaltar que o movimento humano dentro de um contexto trivial e
cotidiano, pode passar até despercebido, mas ele está inserido numa rede complexa de
possibilidades, que num primeiro momento decorrem naturalmente da própria estrutura
anatômica. Neste sentido, Laban (1978) mergulhou no estudo do movimento humano em
si, como uma possibilidade espontânea. Seu trabalho compreende os fatores do
movimento que são percebidos pelo observador e que carregam a informação expressiva
independentemente do gesto específico executado. Portanto, integrar as idéias de Laban no
desenvolvimento desta pesquisa, é pensar na relação som-movimento no sentido de ter
claro as possibilidades corporais que estarão ou poderão estar envolvidas, tanto ao nível
técnico como expressivo na situação de Canto Coral.
Existem inúmeras pesquisas referentes à importância do movimento corporal na
prática de educação musical, como as que integram a dança, expressão corporal e
improvisação. Este novo olhar para a prática do ensino-aprendizagem musical, surgiu nas
primeiras décadas do século XX com músicos e pedagogos como Dalcroze, Willems, Orff,
Gainza (PAZ, 2000). A partir desta nova perspectiva para o fazer musical, autores como,
Delalande (1999), Mialaret (1990), Noisette (1997), Gagnard (1977), Agostin-Gherban e
Happ-Hess (1986), ampliaram suas idéias para uma abordagem interacionista atribuindo
importância aos aspectos motores ligados às construções musicais.
Dalcroze (1966), abriu caminho para se pensar a prática de ensino musical de uma
forma completamente inovadora. Chegou à conclusão de que a musicalidade unicamente
auditiva é incompleta, e de que existem ligações entre a mobilidade e o instinto auditivo,
5. entre a harmonia dos sons e as durações, entre o tempo e a energia, entre a dinâmica e o
espaço, entre a música e o caráter, entre a música e o temperamento, entre a arte musical e
a dança, enfim, observou que existe uma dialética entre os processos e que esses possuem
um caráter dinâmico, onde as figuras da escrita musical também passam a fazer parte das
vivências corporais, aliando a educação do ouvido aos movimentos corporais à
representação gráfica das durações. Eis suas grandes descobertas que abriram espaço para
que outros educadores musicais, e até mesmo pesquisadores pensassem os processos de
aprendizagem em música a partir de uma visão interacionista.
Assim como Dalcroze, também Willems (1987) revela a importância dos movimentos
para o desenvolvimento rítmico e também do ponto de vista das ligações entre o som e o
ritmo. Compôs uma série de músicas específicas para trabalhar padrões rítmicos variados,
em que as crianças deveriam marchar, correr, galopar, saltar conforme a música tocada.
Numa ordem de associações, diz o autor, devemos dar grande importância, no começo, às
relações diretas e reais que existem entre o ritmo musical e o movimento e, como em meio
a todos os sentidos, o movimento é o mais desenvolvido na criança, é importante explorar
essa necessidade de se mexer que a criança possui em benefício da música. Willems
sugere que a movimentação através da música conduz a criança a uma escuta geradora de
aprendizagem e, por isso, a uma resposta criativa, onde se torna capaz de explorar as
idéias expressivas contidas no objeto sonoro assimilado. Desse modo, segundo ele, o
movimento deve ser visto como modo de expressão criativa da música.
Já Noisette (1997), defende a tese de que a musicalidade nasce de uma relação entre a
arte do movimento e a do som, e não de simples técnicas instrumentais e que o som só se
torna música através de suas modificações no tempo, estando, assim, relacionado à idéia
de movimento.
Também pesquisas mais recentes, têm reforçado a importância de se considerar o
corpo (gestos e movimentos), como um recurso fundamental na experiência musical. Mais
especificamente sobre o Canto Coral, Wis (1999) coloca que a compreensão que os
cantores têm da música é maior quando eles se movem; sua compreensão como o ritmo,
fraseado, impulso, direção, e muitos outros conceitos musicais se tornam reais quando eles
traduzem suas próprias experiências em termos de movimento físico dentro da música.
6. Podemos fazer uma relação entre as colocações de Wis e as idéias de Piaget, no que
diz respeito à manipulação do objeto, pois se afastar e aproximar-se de uma fonte sonora,
explorar timbres no próprio corpo, batendo em diferentes áreas ou usando a voz de
diferentes modos, favorece sua diferenciação na medida em que as ações concretas podem
transformar-se em observáveis que podem ser relacionados entre si ou não, dependendo
dos esquemas que o sujeito possui. Esta interação no processo faz com que o sujeito
consiga progredir de modo operatório sobre as relações que deve realizar entre as partes
da estrutura musical, para que consiga aprendê-la.
CONCLUSÕES
Acreditamos na importância de aprofundar a análise do que estamos nos propondo, a
partir de uma intervenção pedagógica considerando o coralista como construtor do seu
próprio conhecimento musical. Buscando uma reflexão sobre a importância dos desafios e
descobertas neste processo, sem atribuir ao erro uma incapacidade, mas aceitá-lo como
parte do processo de reconstrução das estruturas cognitivas.
É preciso que o regente, na sua prática de Canto Coral, proporcione desafios que vão
além da execução da música, que possibilitem a reflexão e a criação, pois em cada nível de
compreensão, novas possibilidades se abrem, novos esquemas são construídos e
reestruturados, gerando desequilíbrios e reequilibrações.
Portanto, nessa pesquisa a ação integrada entre música, corpo e criatividade, está a
favor da performance e da compreensão da música na atividade de Canto Coral. Além de
ser esta uma atividade coletiva, de relacionamento interpessoais, que também possa abrigar
uma experiência musical significativa, ampliando a ação de cantar à totalidade corporal
aliada ao ato de criar. Visando não só a excelência da performance, como a compreensão da
música de forma mais ampla, ou seja, a compreensão dos conceitos como integrantes de um
todo e o domínio e a liberdade de expressão na execução musical.
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