1) Artistas de vanguarda estão explorando as possibilidades criativas na fronteira entre biologia, informática e ciberespaço, como o projeto do brasileiro Eduardo Kac de um cachorro fluorescente.
2) Kac também criou bactérias que emitem luz azul ou amarela quando expostas a raios UV com base no código genético extraído de um trecho da Bíblia.
3) A arte digital permite que obras sejam acessadas online e dependam da participação do público, como as criaturas virt
1. Originalmente publicado em Isto É, 15 de Setembro de 1999,pp. 66-69.
Nº 1563 -- 15 de setembro de 1999
T E N D Ê N C I A S
A arte na era da biotecnologia
Artistas de vanguarda exploram as
possibilidades criativas na fronteira entre a
biologia, a informática e o ciberespaço
DARLENE MENCONI
Os grandes mestres das artes sempre foram
ávidos consumidores denovas tecnologias.
Leonardo Da Vinci,Van Eyck e outros pintores da
Renascença,por exemplo, só conseguiram
imprimir noções de perspectiva em suas telas ao
pincelar nuances deluz, cores e sombras coma
ajuda da então novíssima tinta a óleo. Passados
quasecinco séculos,experimentos com
clonagem de animais como a ovelha Dolly
viraramrealidadenos laboratórios,motivando
os artistas a avançar sobreos tubos de ensaio.É
o que os mais renomados representantes da
arte digital resolveramfazer.Dispensaramos
dedos manchados de tinta em troca dos
princípios debiotecnologia,informáticaevida
artificial paracolocar emprática suas idéias.
Quem achava o francês Marcel Duchamp maluco
por transformar um urinol em obra-prima não sabeo que esse novo movimento estético lhereserva.
Um dos projetos mais polêmicos éo cachorro transgênico,no qual é enxertado um gene extraído de
uma medusa que habita o Oceano Pacífico.O resultado é um cão que emite luzfluorescente
esverdeada quando exposto à luzultravioleta.Embora reservada apenas à Internet
(emwww.ekac.org/transgenic.html), a obra canina pode tornar-serealidadeumdia."Esse tipo de
trabalho (comGFP) já é comum em ratos de laboratório,semqualquer dano físico aos animais",
garante Eduardo Kac, artista brasileiro queaos 37 anos é um dos expoentes da arte transgênica.
Antes do projeto ganhar corpo e latido,váriaspessoastentaramfazer encomendas para produzir
animais deestimação em outras cores. Rosa,para começar."Por que não", pergunta Eduardo Kac.
Afinal,outros artistas já usaramo computador como palco para todo tipo de manifestação artística,
inclusiveaquelasdegosto duvidoso.Inventor da droga alucinógena LSD, Timothy Leary registrou
durante meses, pela Internet, cada momento de sua agonia provocada por um tumor maligno.Milhões
de pessoas acompanharamsua prostração eassistiramao vivo,online,ao momento de sua morte.
Dentro dessa perspectiva,por que não ter um mascote colorido? De mais a mais,o papel do artista é
perseguir o que o filósofo alemão Friedrich Nietzschedefiniu ser o dever da arte: "Antes de tudo, em
primeiro lugar,embelezar a vida."
Fotos: DIVULGAÇÃO
MUTAÇÃO Vira-lata deEduardo Kac com gene de
medusa (acima) emitirá luzverde quando exposto
ao sol
Fotos: MAX PINTO e DIVULGAÇÃO
2. O projeto do carioca Eduardo Kac aindaesbarraem
dificuldades técnicasediscussões éticas (como seria
de se imaginar),mas elenão perde fôlego.
Apresentou outro trabalho envolvendo seres vivos
modificados geneticamente naArts Electronica,
principal exposição mundial dearte tecnológica,que
acontece em Linz, na Áustria,até o dia 18 de
setembro. Dessa vez, Kac realizou sua obra coma
ajuda da Bíblia. Extraiu do livro do Gênesis um
trecho para dar origem ao código genético das
bactérias quecompõem sua obra.Mais
especificamente, o texto que trata do sexto dia da
criação eda supremacia do homem sobrequalquer
outra criatura vivaquehabite a Terra. A partir dessa
fraseem inglês,Kac traduziu cada letra em sinais do
Código Morse para,em seguida,verter em
informações genéticas injetadas na
bactériaEscherichia coli. O resultado foi inusitado.
Um grupo de bactérias como "gene da Bíblia" emite
cor azul sempre que iluminado por raios
ultravioleta.No mesmo recipientefica outra família
de bactérias,essasamareladas.Cabeentão ao visitante,seja na Áustria,seja aqui no Brasil,pela
Internet (em www.ekac.org/genesis.html), acionar o botão eletrônico que liga a lâmpada ultravioleta
posicionada sobreo vasilhamede bactérias.Acada apertão, a lâmpada acendepor um minuto e meio,
tempo suficientepara acelerar a mutação das bactériaseproduzir um caleidoscópio vivo.As novas
bactérias podem nascer azuis ou amarelas como os pais genéticos.Ou verdes, numa combinação entre
as bactérias azuis,como "gene da Bíblia", e as amarelas E.coli. "Nem eu sei o que vai acontecer com a
obra", comemora Kac.
Nova perspectiva -- Ao contrário da pintura convencional,emque o observador é mantido longe dos
quadros,às vezes separado por redomas de vidro ou cordões de isolamento,na arte transgênica as
obras não terminam em si.Sua existência depende da interferência do observador, que modifica
plásticaeconcretamente as obras dearte. Na imensa maioria dos casos,elas podemser acessadas a
partir de uma página na Internet, como a experiência das bactérias na Áustria."O que define essa arte
não é apenas o nascimento e o crescimento de uma planta ou animal,mas a natureza das relações
entre o artista,o público eo organismo transgênico",explica Kac,professor do Instituto de Artes de
Chicago,nos EUA.
MICROGALERIA Eduardo Kac e suas bactérias
azuis:brasileiro éexpoente da escola
transgênica
Fotos: MAX PINTO e ROY ASCOTT
3. Mundos digitais -- Na verdade, o que se pretende é
usar o computador, em particulara Internet, como
meio para inventar e dar vida a seres únicos,que só
existem por fruto da imaginação.Nessebalaio há de
tudo um pouco. Desde obras que existem apenas e
somente na web, passando por aquelasquedão
acesso a câmeras para interferir a distâncianuma
obra exposta numa galeria,atéchegar nas pesquisas
puramente especulativas,queempregam
tecnologias de ponta e beiram a invenção.Nesse
último grupo estão os exercícios fronteiriços entre
arte, ciência e tecnologia.Já que não possuem os
meios para colocar emprática seus projetos de
vidas artificiais,os artistasconstroemmundos
digitais emodelam suas idéiasparahabitarapenas
os domínios do ciberespaço.Não é à toa que o
maior evento de arte e tecnologia brasileiro,que
aconteceu em São Paulo na última semana de
agosto, recebeu o título Invenção. Dele participaram
os principaisnomes da arte digital.
Um deles foi a bióloga Christa Sommerer, nascidana
Bélgica e atualmente pesquisadorado Laboratório
de Pesquisa Avançada emTelecomunicações de
Kyoto, no Japão."Optamos por inventar seres
virtuais paranão esbarrarem questões morais",
explica Christa.Junto de seu marido,o francês
Laurent Mignonneau, ela criou um universo de
criaturaseletrônicasquedançamsem parar num
baléfrenético. O trabalho,chamado LifeSpacies, também utiliza princípiosdeengenharia genética para
produzir seres inexistentes na natureza. A instalação está no Museu de Intercomunicação deTóquio e
é composta de um cenário virtual em que o visitante
parece nadar entre as criaturas.
Mas de permanente, a instalação não tem nada. As
criaturassão geradas a partirdo texto das
mensagens enviadas por correio eletrônico aos
artistas.Acomplexidadedos seres depende
literalmente do corpo da mensagem. Para chegar ao
código genético dos monstros flutuantes, Laurent
desenvolveu um programa que traduz as letras dos
e-mails em um algoritmo matemático que
representa suas coordenadas no espaço."Nesse
momento, tanto o artista quanto a platéia,que está
em qualquer canto do mundo na frente de um PC,
lidamcom as questões fundamentais da arte e da
vida,que são o nascimento, a existência e a morte",
analisa Christa.Em sua obra,o casal ainda exploraa
carga emocional que os visitantes,em particularos
japoneses,devotam a bichinhos virtuais –como o Tamagochi – para ficar numúnico exemplo. Basta
enviar uma mensagem pelo endereço www.ntticc.or.jp/~lifespacies e no prazo de 24 horas recebe-se
também por e-mail uma foto da criatura gerada,seus dados denascimento e constituição física.
Quando o monstro morre, seu criador recebe um obituário.
Os visitantes reais,emTóquio, alimentam essas criaturascomletras do alfabeto e interagem num
ambiente de realidadevirtual,"pegando no ar", com as mãos, a criatura mostrada na tela.Ao ser
capturados,os monstros geram clones.Se um visitantereal agarraruma criatura no mesmo instante
em que outro clicar sobreoutro bicho pela Internet, nasceentão outra linhagemde seres com a
mistura genética das duas criaturasselecionadas no momento da gênese.
COLAGEM NA WEB Pioneiro da arte
eletrônica,Roy Ascott (abaixo) alia multimídia
a rituais amazônicos
Fotos: MAX PINTO e DIVULGAÇÃO
ZOOLÓGICO VIRTUAL Christa e Laurent (à
esq.) fizeram programa que gera criaturas
eletrônicas
4. De qualquer forma, as obras einstalações trazema possibilidadedeo público participar ativamentedo
processo de criação.E,embora a interatividadenão seja novidadeno mundo das artes,ela mudou com
a disseminação da microinformática.Como sempre dependeu da presença física do observador na sala
de exposição,a interatividadeestava limitadapelo espaço físico dos museus.Com o computador e a
Internet, em particular,o que muda é a possibilidadedeestender a experiência da interatividadea
milhões de pessoas simultaneamente. "O papel do espectador nas obras mais recentes da arte
eletrônica é tão fundamental quanto a participação do artista",explicaRoy Ascott, um dos decanos da
arte eletrônica e fundador do Centro de Pesquisa Avançada em Artes Interativas da Universidadedo
País de Gales,em Newport, Reino Unido.
Autor dos primeiros projetos artísticos detelemática no mundo, ainda na década de 60, Ascott agora
cria obras interativasna Internet e cujo destino,ele sabe,é fugir completamente de seu controle. Dois
anos atrás,comum computador a tiracolo,Ascott desembarcou em plena Floresta Amazônica para
estudar os rituais deuma aldeia indígena no Xingu. Ascott chegou a incorporar emsua obra cibernética
alguns princípios dos rituaisxamânicosdos índios.Uma das obras inspiradasnesseprincípio éa
Xamantic Web, uma espécie de túnel de imagens,sons e sensações quemistura elementos de
multimídia com conceitos sobrea natureza das relações entre o real e o virtual.A obra desse inglês alia
conceitos de altíssima tecnologia a rituaismágicosdepovos nativos e primitivos (seu trabalho está
em http://caiia-star.newport.plymouth.ac.uk).
Conhecimento técnico -- A mais importanteconsequência dessa interação entre arte e ciência éque os
artistas estão cada vezmais técnicos,como nos tempos renascentistas.Isso porqueprecisamaprender
a escrever seus próprios programas eoperar computadores cada vez mais sofisticados.Foi o caso de
Mignonneau, que escreveu cada linha do algoritmo matemático que transforma texto em formas
tridimensionais.Essageração deartistas digitaisestá cada vez mais vinculadaa centros de pesquisa de
alta tecnologia,os verdadeiros financiadores deseus projetos.Por uma única razão:ali estão os
instrumentos de tecnologia que os artistas buscamem seu trabalho."Somos o que se convencionou
chamar de artistas pesquisadores",dizChrista.
Como os recursos necessáriosparatransformar essetipo de arte em realidadepodem custar milhares
de dólares,essa éuma alternativa para resolver umproblema ancestral:a remuneração do artista.
"Acontece com a biotecnologia o que ocorreu nos anos 70 com os computadores. Eles eram caros e
inacessíveis,como são os laboratóriosdehoje. Mas isso não impede que os artistas investiguemcomo
seria o mundo com o uso poético e humano dessa tecnologia",dizAscott.
Além disso,a Internet permite uma infinidadedereproduções e distorções das obras autênticas.Como
são virtuais do início ao fim,os trabalhos eletrônicos também não possuem a chamada "aura"que,
dizem os especialistas,envolveas obras originais.Seu valor não é negociado na forma tradicional,fruto
de leilões etrocas entre museus, marchands e artistas.Por isso,a questão agora é descobrir como os
artistas dessanova escola podemganhar dinheiro vivendo de sua arte.
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