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Este livro tern como principal objectivo possibilitar uma ampla fundamen-
tac;ao te6rica e conceptual em tornoda avaliac;ao educacional, procurando, ao
mesmo tempo, com sentido critico e problematizador, dar visibilidade as
dimens6es sociais, ideol6gicas e gestionapas que fizeram da avaliac;ao um dos
eixos estruturantes das polfticas Ce reformas) educativas contemporaneas.
Ap6s uma breve revisao de algumas teorias do Estado, quer para me-
lhor compreender a natureza politica do Estado-providencia e a sua crise,
querpara melhorinterpretar as recentes mutac;oes na natureza e configurac;ao ,
doEstado em face do mercado, o autorprop6e um quadrote6rico-conceptual
original que visa precisamente elucidar, do pontp de vista sociol6gico, as
mudanc;as na avaliac;ao ocorridas em diferentes pafses nas ultimas decadas.
Os limites analfticos de um quadro te6rico baseado apenas na compre-
ensao ou descric;ao das referidas mudanc;as, bem como a constatac;ao de
que, apesar de tudo, em muitos paf~es, se desenvolveram reacc;o~s
anticonservadoras que conduziram a permanericia e resistencia de politicas
educativas (ainda) referenciaveis ao modelo de Estado-providencia, estimula-
ram o autoraretomaradefesa deuma concepc;ao radical das potencialidades
educacionais (nao esgotadas) da "avaliac;ao formativa". Neste sentido, e como
antfdoto as modalidades de avaliac;ao que tern vindo adar suporte apolfticas
de regulac;ao neoliberal, defende ser urgente resgatar a avaliac;ao formativa
como dispositivo emanclpat6rio, ja que esta contem possibilidades para aju-
darapromoveraconcretizac;ao efectiva dos direitos culturais e educacionais,
hoje fortemente ameac;ados. •
Almerindo Janela Afonso
AYALIA(AO EDUCACIONAL: regula9ao e emancipa9ao
Almerindo Janela Afonso
Capa: DAC
Revisiio: Agnaldo Alves de Oliveira
Composir;iio: Dany Editora Ltda.
Coorde11ar;iio editorial: Danilo A. Q. Morales
Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou duplicada sem autoriza9ao expressa do autor e do
editor.
Nata do Editor: Nesta edi9ao foi preservada a ortografia original do autor.
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lmpresso no Brasil - agosto de 2000
SUMARIO
PREFACIO ................................................................................................... 7
INTRODU(AO .............................................................................................. 9
CAPITULO I - Sociologia da Avalia<;ao: problemas de delimita<;ao de
um campo te6rico-conceptual e de investiga<;ao .............. 13
1. Sociologia da educa<;ao e avalia<;ao educacional ............................ 15
1.1 Campo possfvel para uma sociologia da avalia<;ao .................... 16
1.2 Algumas furn;oes da avalia<;ao................................................... 18
1.3 Avalia<;ao, poder e disciplina<;ao ............................................... 20
1.4 A avalia9ao como instrumento de socializa9ao ......................... 23
1.5 Algumas modalidades de avalia9ao ........................................... 28
1.5.1 Os exames tradicionais ..................................................... 29
1.5.2 Os quocientes de inteligencia e os testes educacionais ..... 31
1.5.3 A avalia<;ao normativa ...................................................... 34
1.5.4 A avalia9ao criteriaI .......................................................... 35
1.5.5 A avalia9ao formativa ....................................................... 38
1.6 Avalia<;ao e autonomia profissional dos professores ................. 40
1.7 Avalia<;ao e modelos de responsabiliza9ao em educa9ao .......... 43
1.8 0 Estado avaliador..................................................................... 49
5
r
CAPITULO III
ESTADO, MERCADO, COMUNIDADE EAVALIA('AO:
proposta de um quadro te6rico-sociol6gico
93
----------~-------~~
1. Estado e teorias do Estado
0 Estado nao pode deixar de ser integrado como um elemento chave na
analise <las polfticas educativas. No entanto, varios autores tern assinalado
que a presen~a do Estado e bastante tenue na analise educacional, notando-se
mesmo, em muitos trabalhos, uma total ausencia de qualquer <las diferentes
perspectivas te6ricas que a ele podem ser referenciadas1
•
Ao escreverem sobre a ausencia destas teorias na analise educacional
nos EUA, Martin Camoy e Henry Levin sugerem como explica~ao o facto de
neste pafs predominar uma representa~ao social em tomo do Estado que tende
a fazer com que este seja percepcionado como "expressao de uma vontade
geral", nao susceptfvel de problematiza~ao ja que o Estado, "nao possuindo
ideologia, nem qualquer prop6sito subjacente excepto o de reflectir aquela
vontade", preocupar-se-ia em prover a educa~ao porque simplesmente isso
faz parte da oferta natural de um "conjunto de bens sociais comuns" (Camoy
& Levin, 1985, pp. 27-28). Trata-se, por isso e no essencial, de uma perspec-
tiva que acentua a ideia de um "Estado como provedor de bens colectivos" e
que considera que "a principal fun~ao do Estado e servir como mecanismo
neutro para agregarpreferencias ou integrara sociedade atraves da corporiza~ao
de valores consensuais" (Alford & Friedland, 1991, p. 51).
Ao contrario, as perspectivas marxistas, baseadas na analise <las classes
sociais, diferem radicalmente na interpreta~ao sobre o Estado. Se, no caso <las
teorias pluralistas, o Estado esta acima dos conflitos sociais porque se aceita
l. Ja ha algum tempo, Roger Dale afirmou a estc prop6si10: "Given all that sociologists, economists
and political scientists have had lo say about the meanings and assumptions, the processes and practices,
the functions and outcomes, ofeducation systems in recent years, it is really very surprising lo find almost
no analysis of the implications of State provision, irrespective of the particular approach adopted" (Dale,
1989, p. 23). TambemTadeu da Silvacomcntou sobre o mesmo assunto: "Aausencia de uma maior 1eoriza9ao
sobrc as conexoes entre Estado c cduca91ioetanto mais inexplicavel quanto esta conexiioeexatamente um
dos fatos mais notaveis a rcspeito da educa9ao modema" (Silva, I992, p. 21).
95
que ele representa a sociedade como um todo, nas teorias marxistas, ao con-
tnirio, o Estado esta imerso nos conflitos de classe porque, por um !ado, ele
pr6prio e um instrumento essencial de dominai;ao de classe, e, por outro.yor-
que tern que mediar os conflitos intrfnsecos aniio homogeneidad~ de mte-
resses no interior da pr6pria classe dominante (cf. Camoy & Levm, 1985,
pp. 37-38).
Estes e outros aspectos considerados identificadores de duas concep-
i;oes distintas resultam essencialmente do facto de se usar como criteria o
modo como se concebe e justifica a relai;ao (de identidade ou de autonomia)
do Estado com a sociedade. Neste domlnio, algumas sfnteses mostram que ha
importantes clivagens que permitem que se afirme que "a questiio de saber se
o Estado eaut6nomo ou redutfvel a sociedade e uma das mais importantes
formas de diferenciar as varias teorias do Estado" (Hall, 1984, p. 23).
No que conceme mais especificamente aeducai;iio, saliente-se, por exem-
plo, que as teorias pluralistas "tendem a recusar quaisquer limitai;6es estrutu-
rais sabre o processo de elaborai;iio das polfticas'', enquanto que as "teorias da
sociologia crftica atribuem um papel fundamental ao conceito de autonomia
relativa precisamente para reconhecer uma detenninar;ii.o estrutural ou uma
delimitar;ii.o estrutural face as polfticas" (Stoer, 1994, p. 6)
2
•
Claus Offe, que e um dos autores mais representativos a teorizar sabre a
questiio da autonomia relativa, refere duas vers6es contemporaneas das teorias
marxistas sabre o Estado. Para este autor, uma dessas versoes sugere a exis-
tencia de uma relai;ao instrumental especffica entre a classe dominante e o
aparelho estatal; a outra defende que "o Estado nao favorece interesses espe-
cfficos nem esta aliado a classes especfficas". Neste ultimo caso, "o que o
Estado protege e sanciona e, pelo contrario, um conjunto de instituii;oes e
rela96es sociais necessarias para a dominai;ao da classe capitalista". Deste
modo, acrescenta Offe, "embora niio defenda os interesses especfficos de uma
unica classe, 0 Estado procura, apesar disso, implementar e garantir OS inte-
resses colectivos de todos os membros de uma sociedade de classes dominada
pelo capital" (Offe, l 984a, pp. 119-120).
Desenvolvendo esta segunda versao, Offe esclarece a sua posii;ao em
relai;ao as polfticas de educai;ao e formai;ao defendendo que elas visam, es-
sencialmente, criar condi96es propfcias aefectivai;ao de rela96es de troca ou
intercambio capitalistas, ou seja, condi96es que possam aumentar as probabi-
2. Do nosso ponto de vista lalvez possamos situar, por um Jado, Althusser e Poulantzas como dois
autores que consideram a questao da auto110111ia relativa do Estado e reconhecem a determina(·iio estrulll-
ra/ (no caso de Poulantzas sobretudo nos trabalhos da primeira fase) e, por outro, Claus Offe como excm-
plo de um autorque tendo tambem considerado a questlio da au10110111ia relativa do Estadoesta, no entanto,
mais pr6ximo do reconhecimento da delimirar;iio estrutural na elabora~ao das polfticas. Para uma analise
aprofundada dos trabalhos destes autores, ver, por exemplo, Martin Camoy (1990a e 1990b).
96
lidades dos trabalhadores virem a ser empregados pelos capitalistas, dando a
estes, simultaneamente, maiores oportunidades de acumularcapital. Mais con-
cretamente, diz Offe,
"[...] seria um equfvoco alegar que as polfticas estatais de educac;ao e formac;ao
tern como objectivo fornecer a forc;a de trabalho necessaria a certas industrias
[...].Ao contrario, tais polfticas tern coma meta criar o maxima de oportu11ida-
des de troca entre o trabalho e o capital, de modo que os indivfduos de ambas as
classes possam entrarem relac;oes capitalistas de produc;ao" (Offe, I984a, p. 123).
Apesar de nao estarmos totalmente de acordo com a forma como Offe
interpreta as polfticas de educai;iio e formai;ao - fundamentalmente porque
pensamos que a sua funi;iio nao se resume apenas a contribuir para criar as
condi96es necessarias para "universalizar a forma mercantil" -, parece-nos,
no entanto, que esta passagem da sua obra e fundamental para perceber a
teoria polftica do autor, exemplificando ao mesmo tempo o modo como o
sistema educativo pode servir para ajudar a concretizar a autonomia relativa
do Estado.
Como o pr6prio Offe refere, o princfpio que visa submeter todos os indi-
vfduos a rela96es mercantilizadas (ou mercadorizadas) contribui muito mais
para manter as polfticas estatais sintonizadas com os interesses classistas dos
agentes de acumulai;ao do que qualquer suposta conspirar;ii.o ou acordo entre
o Estado e a industria (cf. Offe, l984a, p. 138). Neste sentido, o papel da
educai;ao e formai;iio acaba por ser tambem um papel de intermediai;ao que
ajuda a dissimular o caracter classista do Estado. Alias, coma varios autores
referem, Offe rejeita a ideia de um Estado determinado exclusivamente pela
16gica do capital, antes defendendo que ele tern um papel de mediador (niio
neutro) entre a luta de classes e o processo de acumulai;iio. Como ele pr6prio
escreve em outra passagem, "as polfticas reformistas do Estado capitalista niio
servem, de modo algum, inequivocamente, os interesses colectivos da classe
capitalista"ja que, com frequencia, colidem com a mais vigorosa resistencia e
oposii;iio polftica desta classe (cf. Offe, 1984a, p. 126). Dito de outro modo, o
Estado niio e controlado pela classe dominante pois, como ja atras se referiu,
o seu papel nas sociedades capitalistas avani;adas visa sobretudo
"[...] garantir as relac;oes de troca entre actores econ6micos individuais. Uma
vez mais, isto niio sig11ifica que o Estado capitalista atenda os i11teresses de
uma classe particular; mais precisamente, ele sa11ciona o interesse geral de
todas as classes na base de rela~oes de troca capitalistas" (Offe, 1984a, p.
123, italico nosso).
Por esta e outras considera96es identicas, alguns autores tern afirmado
que Claus Offe vai longe demais na sua concep9iio sabre a autonomia do
97
Estado. Por exemplo, M. Carnoy e H. Levin (1985, p. 45), mesmo reconhe-
cendo que aquele e outros autores "deram uma contribui9ao significativa ao
enfatizar o pr6prio Estado como uma arena de conflito", criticam, no entanto,
o facto de estas teorias reconhecerem a burocracia do Estado grande indepen-
dencia no estabelecimento de polfticas, acabando por colocar o Estado e a
polftica educativa longe da influencia quer dos grupos sociais, como os em-
presariais, quer dos movimentos sociais.
Ajulgar pela analise desenvolvida por alguns exegetas que tern acompa-
nhado a evolu9ao do pensamento de Claus Offe, parece-nos que a crftica de
M. Carnoy e H. Levin ja nao e, neste momento, totalmente procedente. Se-
gundo John Keane, por exemplo, e significativo que, nos escritos mais recen-
tes de Offe, as polfticas estatais tenham passado a ser consideradas dependen-
tes da "matriz de poder sociaI'', a qua) esta constantemente sujeita a transfor-
ma9oes pela actividade de grupos e movimentos sociais (Keane, 1984, p. 26).
Esta evolu9ao, alias, pode notar-se num texto posteriorde Claus Offe, intitulado
"Os novos movimentos sociais questionam os limites da ac9ao institucional",
onde este autor afirma que actualmente se questiona cada vez mais "a utilida-
de analftica da dicotomia convencional entre o Estado e a sociedade civif' e
que isso passa, nomeadamente, por "processos de fusao entre ambas as esfe-
ras, nao s6 a nfvet de manifesta9oes globais sociopolfticas mas tambem a nf-
vel dos cidadaos como actores politicos primarios" (cf. Offe, 1992, pp. 163-
164)3.
Para alem disto, e independentemente das crfticas a aspectos especfficos
da contribui9ao de Claus Offe-que, como referimos, devem ser relativizadas
tendo em conta a evolu9ao te6rica incorporada em textos mais recentes -, o
que e inegavel e que este soci6logo alemao tern tido uma influencia importan-
te no campo da sociologia (polftica) da educa9ao, como se pode constatar em
alguns dos trabalhos a que seguidamente faremos referenda. Neles, como se
vera, a compreensao do que e o Estado e dos modos como este funciona nas
sociedades capitalistas e uma condi9ao indispensavel para problematizar a
fun9ao da escola e da educa9ao. Procuraremos em segu.ida sumariar alguns
t6picos sobre este assunto.
Uma primeira ideia, que e frequente ser referida para introduzir a ques-
tao atras enunciada, e a de que o Estado nape sin6nimo de govemo, embora
essa seja a sua representa9ao social mais frequente. Reduzir o Estado aos 6r-
gaos que compoem o governo - diz R. Dale - e reduzir o todo ao que pode
ser considerado, tao s6, a sua "parte mais activa e visfvel".
3. Claus Offe chama tambem a aten~ao para o facto de diferentes actores colectivos, nomeadamente
os varios tipos de movimentos sociais, cstarem a abrir "fcndas no sistema de monop6lio do poder do
Estado" (Offe, 1996, p. 65), mostrando assim que algumas conce~5es tradicionais de Estado se tomaram
obsoletas.
98
Neste momento, a necessi?ade de explicitar (e nao adiar) uma posi
9
ao
leva-nos a adoptar uma perspect1va bastante ampla que define o Estado como
um "pacto de domina9ao social" do qua) participam as classes sociais e, si-
mul_taneame~te, ~0?10 "uma entidade administrativa auto-regulada, isto e, um
conJunto de mst1tu19oes, rotinas organizacionais, leis e, sobretudo, burocra-
cia, que e responsavel por implementar esse pacto de domina9ao" (Torres
1993, p. 44). •
Esta defini9ao, mais operat6ria, tern a vantagem de ser bastantecongruente
com a de outros autores que referem ser o Estado "um feixe de agencias,
departamentos e nfveis, cada qual com as suas pr6prias regras e recursos, e
frequentement~ com diversos prop6sitos e objectivos" (Held, 1989, p. 2), po-
dendo mesmo mcluir as organiza9oes nao-govemamentais que sao financei-
ramente su~ortad~s atraves de impostos (cf. Ginsburg et al., 1990, p. 489). o
Estado esta, ass1m, longe de poder ser conceptualizado coma um todo
monol!tico ja que e diffcil esconder, ou nao valorizar, as importantes diferen-
9as e~1stentes, entre e no interior dos varios aparelhos estatais, a respeito da
mane1ra como se devem estabelecer as prioridades, nao apenas face as solici-
ta9o~s ou exigencias que sabre esses aparelhos recaem, mas tambem tendo em
cons1dera9ao a capacidade de satisfaze-las (cf. Dale, 1989, p. 29).
2. Genese e desenvolvimento do Estado-providencia
Sendo importante para este trabalho perceber algumas das muta9oes re-
centes n~ nat~rez~ ~o Estado, nao podemos deixar de considerar que e numa
per~pect1va d1acron~ca que s.e inscreve necessariamente uma melhor compre-
ensao dessas muta9oes. Ass1m, a forrna como o Estado Iida actualmente com
as solicit.:19~es e exigencias econ6micas e sociais e, pelo menos em parte, uma
consequen~1~ da~ altera9oes que ocorreram na passagem da fase do capitalis-
mo c?1:1pettt1v~ liberal (em que o papel do Estado se limitava a criar algumas
cond19oes ge~a1s para o funcionamento da economia) para a fase do capitalis-
~o monopohsta (em que as fun9oes do Estado passam a estender-se mais
d1rectamente a produ9ao)- "Na fase do capitalismo monopolista produzem-
se mudan9as fundamentais. As rela~oes entre o polftico e o econ6mico entre
o Estado e a sociedade, estabelecem-se a partir de outros pressupost~s que
levam.a que a separa9ao se suceda a inter-rela9ao. Eisto que significa e supoe
a apan9ao do Estado-providencia" (Martin, 1994, p. 64).
. De facto, na fase de expansao capitalista que se seguiu a II Guerra Mun-
d1al, o Estado-providencia passou a ser a formula encontrada em muitos paf-
ses para a gestao das contradi95es que vao tomar-se cada vez mais agudas
~omo resultado, por um !ado, da necessidade de o Estado ter uma decisiva
mterven9ao econ6mica e, por outro, de ter que criar condi9oes para atender as
99
novas e crescentes expectativas e necessidades sociais, muitas delas decor-
rentes do reconhecimento de direitos de cidadania como a protecc;ao social, o
acesso aos cuidados de saude e a educac;ao, entre outros.
Para compreender adequadamente o caracter intrinsecamente contradi-
torio destas novas solicitac;oes e preciso ter presente alguns dos "problemas
centrais" do Estado capitalista, a saber: a) a necessidade de apoiar o processo
de acumulac;ao; b) a necessidade de garantir o contexto adequado a continua
expansao deste processo; e c) a necessidade de legitimar;iio do modo capitalis-
ta de produc;ao (cf. Dale, 1989; Dale & Ozga, 1991).
Sendo que as (sempre provisorias) soluc;6es encontradas num determi-
nado momento para atender as exigencias da acumular;iio sao tambem (fre-
quentemente) contraditorias com as necessidades de legitima<;iio, o Estado
acaba por se envolver numa crise estrutural que se vai agravando a medida
que, perante as crescentes exigencias que sobre ele pesam, se verifica "uma
tendencia para as despesas publicas crescerem mais rapidamente do que os
meios de financia-las" (O'Connor, 1977, p. 22)4
•
Pela sua natureza intervencionista, o Estado-providencia e, assim, a for-
ma polftica do Estado que mais contribui para esta crisefiscal permanente.
Apesar disto, no pos-guerra, o Estado-providencia conseguiu, em dife-
rentes pafses, ser a formula polftica mais adequada para fazer a gestao de
solicitac;6es sociais, polfticas e economicas dificilmente conciliaveis. Neste
perlodo, como acentua Offe, o Estado "mantem o controlo do capital sobre a
produc;ao" mas tambem "fortalece o potencial de resistencia do operariado"
perante esse mesmo controlo. Deste modo, "as relac;oes de produc;ao explora-
doras coexistem com maiores possibilidades de resistir, escapar e mitigar a
explorac;ao" (Offe, 1984a, pp. 151-152)- o que ilustra bem a natureza com-
plexa e contraditoria desta especie de "pacto objectivo" ou "conciliac;ao taci-
ta" entre o capital e o trabalho (Martin, 1994, p. 65) que se tomou um dos
elementos estruturais do Estado-providencia, visando assim "garantir a coe-
xistencia pacffica entre o capitalismo e a democracia" (Habermas, 1994, p.
121). Estes aspectos refere-os igualmente Boaventura Santos quando, ao sin-
tetizar as principais caracterlsticas do Estado-providencia, escreve:
4. Como esclarece James O'Connor, "o Estado capitalista tern de tentar desempenhar duas funyoes
basicas e muitas vezes contradit6rias: arumulariio e legitimariio. lsto quer dizer que o Estado deve tentar
manter, ou criar, as condiy6es em que se faya possfvel uma lucrativa acumulayao de capital. Entretanto, o
Estado tambem deve manter ou criar condiyoes de harmonia social. Um Estado capitalista que empregue
abertamente sua forya de coayao para ajudar uma classe a acumular capital acusta de outras classes perdc
sua legitirnidade e, portanto, abala a base de suas lealdades e apoios. Porem, um Estado que ignore a
necess1~de de assistir o processo de acumulayao de capital arrisca-se a secar a fonte de seu pr6prio podcr,
a capac1dade de produyao de excedentes econ6micos e os impostos arrecadados deste excedente (e de
outras forrnas de capital)" (O'Connor, 1977, p. 19).
100
"O Estado-providencia ea forma polftica dominante nos pafses centrais na fase
de 'capitalismo organizado', constituindo, por isso, parte integrante do modo
de regulai;:ao fordista. Baseia-se em quatro elementos estruturais: um pacto en-
tre o capital e o trabalho sob a egide do Estado, com o objective fundamental de
compatibilizar capitalismo e democracia; uma relai;:ao constante, mesmo que
tensa, entre acumulai;:ao e legitimai;:ao; um elevado nfvel de despesas em inves-
timentos e consumes sociais; e uma estrutura administrativa consciente de que
OS direitos SOciais sao direitos dos cidadaos e nao produtos da benevolencia
estatal" (Santos, 1993, pp. 43-44).
As polfticas economicas keynesianas adoptadas pelo Estado em alguns
palses capitalistas centrais no pos-guerra tiveram como consequencia um cres-
cimento economico sem precedentes e permitiram, ao longo de aproximada-
mente tres decadas, assegurar (quase) o pleno emprego, manter uma inflac;ao
baixa e alargar o acesso a determinados bens e servic;os considerados como
direitos sociais (entre outros, o direito ao trabalho ea protecc;ao social; a igual-
dade de oportunidades no acesso a educac;ao e aos servi<;os de saude, etc.)-
razao pela qua! "os anos de 1945 e de 1973 definem, por assim dizer, as frontei-
ras magicas de um perfodo para o qua! nao faltam designac;6es vistosas, como a
que refere o pleno desenvolvimento de um cfrculo virtuoso da economia ou a
que qualifica aquele perfodo de trinta anos gloriosos" (Reis, 1992, p. 31).
2. 1. A crise do Estado-providencia
A recessao economica que ocorre na sequencia do chamado choque do
petr6leo no infcio dos anos setenta - e que se tomou socialmente visIvel com
o aumento da infla<;ao mais o aparecimento do desemprego massivo
(estagfiar;iio) - , conduziu rapidamente a uma revisao dos postulados do mo-
delo keynesiano em que assentava o Estado-providencia, revelando as contra-
dic;oes e as limitac;6es inerentes a formula poIftica adoptada e "semeando a
duvida sobre a omnicompetencia do Estado e da sua capacidade de adaptac;ao
a situac;oes novas" (Badie & Birnbaum, 1994, p. 189). Como consequencia, o
intervencionismo estatal, ate entao aceite coma benefice, passou a ser visto
coma um impedimento para a resolu<;ao dos problemas emergentes (cf. Pico,
1987).
A crltica ao modelo do Estado-providencia passa a ser uma constante
vinda dos sectores liberais e conservadores que integram a chamada nova
direita. Eesta coliga<;ao polftica, resultante de interesses e valores contradito-
rios, que ira marcar a agenda ao longo dos anos oitenta em muitos palses.
Dessa agenda fazem parte estrategias polfticas e economicas que visam a
revalorizac;ao do mercado, a reformulac;ao das relac;6es do Estado com o sector
privado, a adopc;ao de novos modelos de gestao publica preocupados com a
101
eficacia e a eficiencia ("new public management"), e a redefini<;iio dos direi-
tos sociais (cf. Pollitt, 1993; Ranson & Stewart, 1994; Salter, 1995).
Passados alguns anos e iniciada uma outra decada, a analise retrospecti-
va do que ocorreu, sobretudo nos Estados Unidos e na Inglaterra, revela, ape-
sar de tudo, que o projecto da nova direita niio tera sido totalmente bem suce-
dido. Se, por exemplo, o pleno emprego deixou de serum dos objectivos mais
importantes das polfticas publicas (passando, ao contrario, o desemprego a ser
visto mesmo como solu<;iio ou, pelo menos, como uma consequencia natural
da implementa<;iio do mercado competitivo), o mesmo niio parece ter aconte-
cido com os "programas sociais universais" que eram a marca distintiva do
Estado-providencia e que, em grande parte, continuaram a vigorar (cf. Mishra,
1995; Therbom, 1995). Alguns autores referem mesmo que os govemos con-
servadores niio conseguiram o sucesso econ6mico que apregoavam no infcio
da crise, "convertendo-se assim em gestores de um Estado-providencia que
pretendiam desmantelar" (Benedicto & Reinares, 1992, p. 20).
Estamos, portanto, face a uma avalia<;iio generica das mudan<;as polfti-
cas do neo-laissez-faire, que e pouco consensual, alias, ja que tern vindo a
alimentar uma interessante polemica nas ciencias sociais sobre a questiio da
manuten<;iio versus retrac<;iio do Estado-providencia: se uns defendem que o
Estado-providencia ira continuar a resistir, como alguns exemplos demons-
tram (cf. Clasen & Gould, 1995), outros advogam que a questiio da
reversibilidade niio foi de todo resolvida, e outros, ainda, acham que ele vai
continuar mas "tera de ser reconstrufdo com o mfnimo de burocracia"
(Dahrendorf, 1993, p. 33).
Alguns soci6logos como JUrgen Habermas tern feito notar que, apesar
dos muitos problemas e contradi<;6es que !he siio inerentes, niio e poss!vel
substituir o Estado-providencia: "Precisamente a falta de op<;oes substitutivas
e, inclusive, a irreversibilidade de algumas estruturas de compromisso pelas
quais foi necessario lutar, situam-nos perante o dilema de que o capitalismo
avan<;ado niio pode viver sem o Estado social, nem tiio-pouco pode faze-lo
com ele" (Habermas, 1994, p. 124). Ou, como afirma Offe de forma muito
semelhante, "O desagradavel segredo do Estado social reside em que, apesar
do seu efeito sobre a acumula<;iio capitalista poder muito bem tornar-se
destrutivo (como a analise conservadora demonstra tao enfaticamente), a sua
elimina<;iio seria evidentemente disruptiva (fato que a crftica conservadora
sistematicamente ignora). A contradi<;iio consiste em que o capitalismo niio
pode coexistir com o Estado social nem continuar existindo sem ele" (Offe,
1991, p. 122).
Para Goran Therborn, o Estado-providencia constitui, apesar de tudo,
um "capital polftico importante dos progressistas" - capital polftico que niio
pode ser considerado ultrapassado, devendo antes ser qualitativamente desen-
102
volvido. Se assim niio acontecer, esclarece, o Estado-providencia deixara de
ser uma institui<;iio universal que garante os direitos sociais fundamentais para
uma grande maioria e passara a ser apenas uma solu<;iio de recurso para os
mais desfavorecidos. Neste caso, a sua pr6pria sobrevivencia estara em causa
porque "uma institui<;iio que se encarrega somente dos pobres acaba conver-
tendo-se em algo secundario" (Therbom, 1994, p. 63).
Uma leitura mais pessimista fortalece a ideia de que a transi<;iio para
uma sociedade p6s-fordista esta de facto a criar uma "economia dual" ou uma
"sociedade de duas na<;oes" - e e isso precisamente que leva autores como
Ramesh Mishra (1995) a acreditarem que "o Estado-providencia esta de facto
a revelar-se reversfvel", ainda que se trate de uma estrategia de retrac~iio a
longo prazo.
3. A tipologia habermasiana das crises do capitalismo e a educa~ao:
dois exemplos de recontextualiza~ao
Uma das concep<;oes mais interessantes para compreender as mudan<;as
atras referidas foi proposta por JUrgen Habermas (1988) quando analisou as
"tendencias de crise especfficas do sistema" capitalista (cf. quadro 3).
QUADR03
Tipologia das crises do capitalismo
PONTO DE ORIGEM CRISE DO SISTEMA CRISE DE IDENTIDADE
Sistema econ6mico Crise econ6mica
Sistema polftico Crise de racionalidade Crise de legitimar;:ao
Sistema s6cio-cultural Crise de motivar;:ao
Fonte: Jiirgen Habermas (1988) (1973) Legitimation crisis. Cambridge: Polity Press, p. 45.
Habermas sugere quatro "poss(veis tendencias de crise": a crise
econ6mica que tern como ponto de origem o sistema econ6mico; a crise de
racionalidade e a crise de legitima<;iio que se originam no sistema polftico; ea
crise de motiva<;iio com origem no sistema socio-cultural.
Erelativamente consensual que o capitalismo sofre periodicamente cri-
ses de acumula~iio econ6mica. Para reagir a essas crises, o Estado assume
algumas tarefas de apoio ao processo de acumula<;iio - tarefas essas que tenta
103
dissimular uma vez que nao sao compatfveis com a procura de consentimento
ou "lealdade das massas"5
•
Segundo Habermas, e a "lealdade das massas" que constitui o input do
sistema politico, ao qual, por sua vez, corresponde um output que consiste em
"decis6es administrativas soberanamente executadas". As crises manifestam-
se quer num quer noutro ponto do sistema politico. Assim, relativamente ao
output, pode falar-se de uma crise de racionalidade que se expressa na inca-
pacidade do sistema adrninistrativo dar conta com sucesso dos imperativos do
sistema econ6mico6• Por sua vez, com referencia ao input, pode falar-se de
uma crise de legitimar;ao quando o sistema politico deixa de poder contar
com o nfvel indispensavel de lealdade das massas. Embora se desenvolvam
no mesmo sistema, estas duas tendencias de crise diferem na forma como
aparecem. Finalmente, a crise de motivafao tern origem nas mudan9as que
afectam o sistema s6cio-cultural. Dado que o sistema socio-cultural recebe o
input do sistema politico e do sistema econ6rnico, as crises pr6prias do siste-
ma socio-cultural sao sempre crises de output. Estas tomam-se visfveis pela
ruptura do sistema cultural tradicional (o sistema moral, as visoes do mundo)
bem como pelas mudan9as nos sistemas de educa9ao de que fazem parte, no-
meadamente, a escola, a famflia e os meios de comunica9ao de massas (cf.
Haberrnas, 1988, pp. 46-48).
Dito de outro modo, os padroes motivacionais do capitalismo avan9ado
produzir-se-iam por uma rnistura de elementos tradicionais pre-capitalistas
(por exemplo, a velha etica cfvica, a tradi9ao religiosa) e de elementos bur-
gueses (por exemplo, o individualismo possessivo e o utilitarismo). Acontece,
porem, que os elementos pre-capitalistas estao agora amea9ados pelo proces-
so de crescente racionaliza9ao social e de crescente relativiza9ao moral, e os
elementos centrais da ideologia burguesa sofrem igualmente um processo de
erosao, nomeadamente pelo facto de o sistema educativo criar expectativas e
5. A prop6sito desta necessidade de dissimulayao, escrcveu ha algum tempo O'Connor: "O Estado
deve envolver-se no processo de acumulayao, porem tern de faze-lo mistificando sua polftica, denominan-
do-a de algo que nao e,ou tern de oculta-la (por exemplo, transformando temas politicos em temas adminis-
trativos)" (O'Connor, 1977, p. 19).
6. "Output crises have the form of a rationality crisis in owhich the administrative system does not
succeed in reconciling and fulfiHing the imperatives received from the economic system" (Habermas, 1988,
p. 46). Na interpretairao de Barbara Freitag, a crise de racionalidade ocorre "quando o Estado capitalista se
ve for9ado a ajustar racionalmente meios a fins em funyao de valores e problemas muitas vezes nao
conciliaveis, procurando otimizar os ganhos em todos os casos. lsso ocorre freqtientemente na tentativa do
Estado de conciliar os interesses da polftica intema com os da polftica extema". E mais a frente: "Enquanto
Estado-nayao, procura maximizar ou otimizar os lucros defendendo uma posiirao economica favoravel no
mercado intemacional. Digladia-se com perfodos de recessao, concorrencia no mercado, oligop61ios, falta
de ~atena-prima, elevairao dos preyos do petr61eo, etc., e procura permanentemente atender as exigencias
do s1stema produtivo, seja como consumidor, seja como produtor de mercadorias (crise de racionalidade)"
(Freitag, 1990, p. 100 e p. 103).
104
aspira96es que nao podem ser coordenadas com as oportunidades ocupacionais
(cf. Held, 1989, p. 85).
A • 0 q~e parece.assim estar tambem em causa e a pr6pria ideologia do
ex1to (achievement ideology)- um dos elementos centrais da concep9ao bur-
gues~ que se~pre ?efendeu que "a distribui<;ao das recompensas deveria ser
uma 1ma~em 1somorfica das realizas:6es individuais" (Haberrnas, 1988, p. 81).
De~acred1tado.o mercado, enquanto mecanismo justo de distribui9ao de opor-
tumd~des de v1da, o sucesso ocupacional passou a ser mediado pela escola -
solus:ao que, por s~a vez, s6 poderia ter tido credibilidade, segundo Habermas,
se fossem. pr:ench1da~ as seguintes condi96es: a) igualdade de oportunidades
para adm_iss~o a? ~ns1~0. superior; b) padr6es de avalias:ao do desempenho
escolar nao d1scnmmatonos; c) desenvolvimentos sincr6nicos do sistema edu-
c.acional e ~o ~istema ocupacional; d) processos de trabalho em que se permi-
~tss~ ~ avah~~ao.d~ acordo com realiza96es susceptfveis de responsabiliza9ao
md1v1dual ( md1v1dually accountable achievements"). Tambem neste caso,
acresce~ta ~abermas, se e poss!vel dizer que alguns progressos ocorreram nas
duas pnmetras condi96es, o mesmo ja nao se pode dizer em relas:ao as outras,
nomeadamente pelo facto de "a expansao do sistema educacional se estar a
tomar cada vez mais independente das mudan9as no sistema ocupacional"
(Habermas, 1988, p. 81).
.!alvez por isto, m~ito~ autor~s, ao considerarem a tipologia proposta
por Jurgen Ha~rmas, se mclmem a mterpretar a crise de motiva9ao sobretudo
coma. uma cnse que se expressa pela ausencia de um sentido para a vida.
Re~attvamente aos j?vens, a crise de motiva9ao (ou a perda desse sentido para
a ~1da) ace,nt~ar-se-ta quando estes se dao conta, por exemplo, que, perante a
cnse.econoffilcae na sequencia do desaparecimento da ideia de vocafao,con-
segmr um emprego significa apenas a oportunidade de obter um salario ou
pior ainda, que o crescente esfor90 exigido pela escola garante cada vez,me~
n?s a inser9ao no mercado de trabalho e a concretiza9ao dos projectos pesso-
a1s (cf. Young, 1989).
Esta crise de motiva9ao esta igualmente relacionada com a "coloniza9ao
do mundo da vida", como parece depreender-se de um outro texto de Habermas
no qual este.a~tor_reconhece e responde a algumas criticas relativas a pouca
clareza na d1stm9ao que propoe entre crise de legitima9ao e crise de motiva-
9ao. Neste texto, Habermas escreve:
"Para as deforma<;oes do mundo da vida, que nas sociedades modernas se fa-
~em sentir como de~trui5ao das formas tradicionais de vida, como ataque a
mfraestrutura comumcat1va dos mundos da vida, como anquilosamento de uma
pratica quotidiana unilateralmente racionalizada e que seexpressam em sequelas
que representam tradi<;?es culturais empobrecidas e processos de socializa<;ao
perturbados, empregue1 nesse momento o equfvoco r6tulo de crise de motiva-
105
r;ao. Hoje preferiria entende-la como um caso paralelo ao da crise de legiti-
mar;ao" (Habermas, 1989, p. 474).
De facto, parece existir uma relac;ao muito pr6xima entre crise de
legitimac;ao e crise de motivac;ao uma vez que uma ocorre na sequencia ~a nao
resoluc;ao da outra. Mais explicitamente, quando ocorre uma cnse de
legitimac;ao e porque o Estado tern dificuldade em promo:er, justificar e de-
fender certas polfticas - o que, alias, se toma cada vez ma1s frequente dado o
caracter contradit6rio de muitas iniciativas e decisoes que siio tomadas, sobre-
tudo no campo econ6mico. Neste quadro, acrescenta Barbara Freitag, o
insucesso do Estado, quando procura explicar e defender medidas que
implementou, reflecte-se numa crise de motivac;ao. Euma crise "que anuncia
problemas de integrac;ao social" e que ocorre quando "os indivfduos membros
de uma sociedade ja nao se sentem motivados a seguir as instruc;oes e ordens
advindas do sistema economico e politico". Esta crise de motivac;ao pode le-
var tambem a uma procura de altemativas de vida em relac;ao as que estiio
institucionalizadas, podendo ter expressiio em determinados grupos ou movi-
mentos sociais (cf. Freitag, 1990, pp. 100-101).
A teoria das crises de Jlirgen Habermas, aqui sucintamente referida a
partir de alguns dos seus textos e da interpretac;ao que dele~ fizemos -,f~e­
quentemente apoiada, alias, em outros autores dada a mamfesta e genenca
dificuldade conceptual que os caracteriza -, tern sido utilizada como recurso
analftico por alguns investigadores do campo da educac;ao. Parece-nos por
isso util referir aqui dais <lesses trabalhos ate porque tern a particularidade de
tentar articular algumas mudanc;as que tern vindo a ocorrer nos sistemas
educativos com a problematica da avaliac;ao educacional. Um <lesses traba-
lhos, proposto por Andy Hargreaves (1989a, 1989b), diz respeito a um pafs
central que ea Inglaterra; e o outro, proposto por Felix Angulo (1993), a um
pafs (semi)periferico que e a Espanha.
No que diz respeito a Inglaterra, Andy Hargreaves considera que nas
ultimas decadas as tentativas mais importantes de reestruturac;ao da educac;iio
coincidem com tres periodos caracterizados por um tipo particular de crise
social: um primeiro periodo, que e marcado·por uma crise de racionalidade,
vai do fim dos anos cinquenta a meados dos anos setenta; um segundo perfo-
do, que vai de meados dos anos setenta ao infcio dos anos oitenta, corresponde
a uma crise de legitimac;ao; e um terceiro periodo, que se inicia com a decada
de oitenta, mas sem um limite muito definido, e aquele em que ocorre uma
crise de motivac;ao. A cada um <lesses perfodos correspondem crises educacio-
nais especfficas que procuram ser resolvidas atraves de mudanc;as nas politi-
cas de educac;ao (cf. quadro 4).
106
QUADR04
Crises sociais e educacionais
PERIODOS TIPO DE CRISE TIPO DE CRISE PONTO DE
SOCIAL EDUCACIONAL CONVERGENCJA
POLITICAS
Finais de 1950 - Racionalidade Administra¥ii.o e Escolas sccundarias
Meados de 1970 reorganiza¥ii.O nao selectivas
Meados de 1970- Legitima¥ii.O Currfculo Direito a um currfculo
infcio de 1980 comum
lnfcio de 1980... Motiva¥ii.O Avalia¥ii.o dos alunos Registos de avalia¥ii.o
(e dos professores)
Fonte: Adaptado de Andy Hargreaves (1989a) Curriculum and Assessment Reform. Milton
Keynes: Open University Press, p. 103.
Segundo Andy Hargreaves, nos anos cinquenta e sessenta as reformas
na Inglaterra apoiaram-se fundamentalmente em estrategias administrativas
que conduziram a expansiio ea reorganizac;ao do sistema educativo. 0 Estado
preocupou-se com a qualificac;iio tecnica dos indivfduos (investimento em
capital humano) para atender ao crescimento da economia e para dar satisfa-
c;ao as novas exigencias decorrentes das polfticas de bem-estar social que se
verificaram no p6s-guerra. Euma epoca de crenc;a optimista na educac;iio que
levou a criac;ao da escola secundaria de massas (comprehensive school) e a
implementac;ao de polfticas de igualdade de oportunidades.
A recessao econ6mica de meados dos anos setenta veio par termo a este
consenso optimista sabre a educac;ao. Diminui a crenc;a nos beneffcios da ex-
pansao e reorganizac;ao, e as estrategias administrativas adoptadas ate af dei-
xaram de ser percepcionadas coma adequadas, instalando-se uma crise de
racionalidade administrativa. Esta crise combinou-se rapidamente com uma
crescente desconfianc;a em relac;ao as instituic;oes sociais, provocando o
questionamento da qualidade da escola publica e obrigando a redefinir os pro-
p6sitos da educac;ao. A descrenc;a no sistema educativo - agora no contexto
de uma crise de legitirnac;ao -, reflecte-se, em terrnos educacionais, nas dis-
cussoes que terao coma foco o curricula. Nao se trata, observa Hargreaves,
exactamente de urna desconfianc;a que tenha origem numa suposta convicc;ao
de que o curricula, par estar fora do controlo publico, teria mais facilmente
deixado de corresponder as necessidades econ6micas. 0 que parece explicar
esta focalizac;ao no curricula ea percepc;iio de que ele podia assumir um papel
ideol6gico importante para criar "uma nova base de consentimento e coesao
sociais".
107
No entanto, esta oportunidade de dar uma outra orienta9ao a polftica
educativa (aproveitando, nomeadamente, a pr6pria reivindica9ao, entao emer-
gente, do direito a um currfculo comum) derivou para outras solu96es que
Jevaram o curriculo a refor9ar-se como "um mecanismo de diferencia9ao so-
cial e educacional". Assim, "no infcio dos anos oitenta o currfculo como um
todo ja nao era visto como uma estrategia dominante para assegurar o consen-
timento social, restaurar uma cren9a comum, restabelecer uma ampla
legitima9ao para os prop6sitos da sociedade e das institui96es numa epoca em
que as oportunidades continuavam a ser esporadicas, os empregos raros e as
recompensas escassas" (Hargreaves, 1989b, p. 109).
Com a entrada na decada de oitenta, abre-se um novo perfodo no qua) se
assistira a um aprofundamento do sentimento de insatisfa9ao dos jovens face
as perspectivas pessimistas de futuro a que a escola nao parece ser capaz de
responder. A isto se associa a recessao econ6mica, bem como o declfnio das
formas tradicionais de apoio emocional e cultural, como a comunidade e a
famllia, cerceadas pela intromissao crescente do Estado na vida privada dos
indivfduos - factores e indicadores identicos, alias, aos que ja Habermas
havia nomeado na sua analise sobre o capitalismo tardio.
Independentemente dos sintomas especfficos desta nova fase - que al-
guns autores, segundo o pr6prio Hargreaves, contestam - , tera sido por esta
altura percepcionada uma crise de motiva9iio dos jovens que volta a estimular
mudan9as na polftica educativa visando agora, sobretudo, a introdu9ao de novas
formas de avalia9ao. Eprecisamente neste perfodo que surgem os chamados
records ofachievement - os novos "registos de avalia9ao" que passaram a
ser vistos (e propagandeados) como uma forma de avalia9ao capaz de promo-
ver a motiva9ao dos alunos.
Andy Hargreaves, no entanto, questiona fortemente a aceita9ao acrftica
destas novas propostas de avalia9ao por conterem implicitamente a ideia de
que a motiva9ao dos alunos seria um fim em si mesmo e, por isso mesmo,
independenteda discussao (e da legitimidade) dos conteudos a serem aprendi-
dos. Deste modo, continua este autor, um processo que pretende, mesmo que
seja com as melhores inten96es, aumentar a motiva9ao para a aprendizagem
mas semdiscutir os prop6sitos curriculares subjacentes pode ser "equivalente
a uma manipula9ao de disposi96es, habitos.e inclina96es" para promover o
ajustamento dos jovens a qualquer exigencia do sistema social e econ6mico.
Nestas circunstancias, acrescenta Hargreaves, promovera motiva9ao deixa de
ser um processo pedag6gico, cujo objectivo seria criar uma predisposi9ao
positiva para os alunos aprenderem conhecimentos que valem a pena ser
aprendidos, para passar a serum processo s6cio-polftico, gerido pelo Estado, de
acomoda9ao as realidades da crise econ6mica: a motiva9ao, que deve seressen-
cialmente um processo de encorajamento educativo, pode transformar-se assim
numa outra estrategia de gestao da crise (cf. Hargreaves, 1989b, pp. 112-113).
108
Como se verifica pela interpreta9ao te6rica que acabamos de sintetizar
as crises sociais e educacionais vao sendo diferentemente classificadas e no~
meadas.mas mantem u.ma liga9ao estreita com as condi96es e consequencias
do func1onamento do s1stema econ6mico. Alias, na esteira de outros trabalhos
que temos vindo a citar, Andy Hargreaves come9a por considerar que grande
parte da "educa9ao organizada" e parte do Estado, e que este tern como uma
das su~s fun96es intervir na economia, sobretudo para prevenir ou compensar
os efe1tos nao desejados da actividade econ6mica - o que significa que a
forma como o Estado gere a educa9ao esta fortemente condicionada pela "sor-
te da e~onomia" e pelas estrategias adoptadas para lidar com os problemas
que denvam do sistema econ6mico.
Nesta mesma linha, vamos referir tambem um texto de Felix Angulo
(1993) que procura ensaiar uma possfvel articula9ao da tipologia das crises
de Jtirgen Habermas com a tipologia das "estrategias de legitima9ao com-
pensat6ria" de Hans Weiler, aplicando-a a evolu9ao da polftica educativa
espanhola.
,~orem, antes de entrarmos nessa proposta de articula9ao te6rica, parece-
nos util ~~res~ntar uma p~quena sfntese do artigo "Legalization, expertise,
and part1c1pation: strategies of compensatory legitimation in educational
policy" onde H. Weiler esclarece a sua tipologia.
. Partindo do pressuposto, comum a outros autores, de que o Estado capi-
tahsta opera com um defice permanente de legitimidade - que se reflecte de
modo particular na area da educa9ao, e para o qual contribuem simultanea-
men~e algumas ~as fun96es do pr6prio sistema educativo -, Weiler (1983)
cons1dera que ex1stem tres estrategias na polftica educativa que sao particular-
~ente uteis para responder a esta situa9iio: trata-se de polfticas especfficas,
vistas como "estrategias de legitima9ao compensat6ria'', que implicam a utili-
za9ao ~a legislaf~o, do conhecimento especializado e da participafao, e que
se destmam a apo1ar o Estado na supera9ao ou na diminui9ao dos defices de
legitimidade.
No campo da polftica educativa, mais concretamente, recorre-se com
alguma frequencia a estrategias de legitima9ao compensat6ria que tern como
base a invoca9ao de normas legais e decisoes judiciais ("legalization" ou
"judicialization"); a utiliza9ao do conhecimento cientffico e tecnico atraves
de instrumentos de planifica9ao e experimenta9ao ("expertise"); e o estabele-
cimento de formas de participa9ao dos actores nos processos de decisao
("participation"). Nas palavras de Hans Weiler, estas tres estrategias nao sao
senao variantes daquilo que o pensamento polftico ocidental tern considerado
como as.principais f~ntes de legitimidade da autoridade polftica: os princfpios
da legahdade, da rac1onalidade organizacional e da participa9ao democratica
(cf. Weiler, 1983, p. 263).
109
Partindo das tipologias de Weiler e de Habermas, anteriormente referi-
das, Felix Angulo (1993) interpreta a evolu~ao da polfticaeducativa e curricular
em Espanha, e tenta projectar a sua evolu~ao futura, "combinando os tipos de
crise e as estrategias de solu~ii.o", em fun~ao das exigencias que o capitalismo
avan~ado faz ao Estado e ao sistema educativo. Aquelas exigencias passariam
pela implementa~ao de criterios relativos a conten~ii.o de despesas, e pela va-
loriza~ao da eficacia e da eficiencia; pela prepara~ii.o de mii.o-de-obra qualifi-
cada ou pela sua predisposi~ao para uma qualifica~ii.o posterior e permanente
no posto de trabalho; pela diferencia~ao e selec~ao individual dos sujeitos; e
pela flexibiliza~ao dos modelos burocraticos de gestao. A expressii.o destes
vectores, segundo o autor, encontrar-se-ia (tambem em Espanha) nas orienta-
~oes de polftica educativa que se desenvolveram ao longo dos anos oitenta e
infcio dos anos noventa. E isto, precisamente, que o quadro 5 pretende
exemplificar.
E
s
T
R
A
T
E
G
I
A
s
QUADROS
Desenvolvimento da polltica educativa e curricular em Espanha nos anos oitenta
Sistema Sociocultural
Racionalidade Legitima~ao Motiva~ao
Legisla~ao Leis de racionaliza~ao Currfculo nacional/ Sistema de
do sistema (LOGSE) estatal centralizado acredita~ao/
selec~ao
meritocratica
Conhccimento Estruturas/racionais: Contcudos culturais Provas/exames
especializado niveis de concretiza~ao avaliados por nacionais
curricular. DCBs. especialistas (ex:
matematica, ciencias
e lfnguas)
Participa~ao Leis de racionaliza~ao Participa~ao Sociedade civil
da participa~ao constrangida/ como cliente do
(LODE) depcndente sistema educativo.
. Competi~ao entre
escolas
Fonte: Adaptado de Felix Angulo (1993). "Evaluaci6n de! sistema educativo". Cuademos de
Pedagogia, n° 219, p. 10.
Sem querermos retomar em pormenor a reforma educativa espanhola
(mesmo porque ja foi considerada, em boa parte, no capftulo 2), salientaremos
110
apenas dois ou tres aspectos da proposta em causa. Um <lesses aspectos pare-
ce indicar que a Ley de Ordenaci6n del Sistema Educativo (LOGSE) foi nao
s6 a principal estrategia legislativa (legalization) considerada pelo Estado
espanhol para solucionar a crise de racionalidade e de legitimidade do siste-
ma educativo no periodo em causa, como ela pr6pria seria um born exemplo
quer da colabora~ii.o dos especialistas, que teriam contribufdo para a aceita-
~ao das op~oes tomadas em rela~ao a estrutura e conteudos dos novas currf-
culos (expertise), quer da consagrat;ii.o e promo~ao da participa~ao dos dife-
rentes actores enquanto uma nova estrategia adoptada no campo educacional
(participation).
Para os objectivos deste trabalho, sao ainda mais importantes algumas
considera~oes feitas por Felix Angulo a prop6sito das fun~oes da avalia~ao
que classifica "segundo a sua importancia real para o Estado e para o capita-
lismo, como primarias, secundarias e terciarias". Para este autor, as fun~oes
que designa por primarias (a "selec~ao dos indivfduos'', o "controlo adminis-
trativo" e a "gestao produtivista do sistema") sao as mais importantes neste
momenta, nomeadamente porque estao associadas ao ressurgimento da ideo-
logia meritocratica, as pressoes para fomentar a competi~ao entre escolas e as
exigencias de acompanhamento do "rendimento do sistema educativo", so-
bretudo em termos da sua eficacia e eficiencia. Estas fun~5es da avalia~ao, em
grande medida implfcitas ou "ocultas", tomaram-se gradualmente explfcitas
com a implementa~ii.o das polfticas neoconservadoras em pafses como os EUA
e a lnglaterra. As fun~5es designadas por intermedias ou secundarias (por
exemplo, o "refor~o da homogeneidade cultural" ea "valoriza~ao de aprendi-
zagens, conteudos e processos curriculares") sii.o apresentadas como funt;oes
publicamente aceites, muito embora possam produzir efeitos negativos e vir a
introduzir tensoes importantes no sistema educativo. Conforme observa o au-
tor, se, por um !ado, tende a acentuar-se uma certa estandardiza~ao cultural,
nomeadamente atraves de currfculos nacionais, por outro !ado, assiste-se a
valoriza~ii.o da intermulticulturalidade; se, de algum modo, sao valorizadas as
aprendizagens dos alunos, por outro, certos conteudos curriculares tenderao a
prevalecer em fun~ao de objectivos que serii.o medidos atraves de provas e
exames. Por ultimo, as fun~5es designadas por "terciarias" ou "explfcitas" sao
aquelas que servem apenas a objectivos polfticos meramente ret6ricos -
objectivos que sao anunciados nos discursos quando se enumeram as
virtualidades da avalia~ao, quer para melhorar a informa~ii.o sabre o sistema
educativo, quer para justificar uma pretensa mobilidade social, quer ainda
para promover a motiva~ao individual.
Numa perspectiva comparativa, e ao contrario do que a primeira vista
possa parecer, estamos perante dois ensaios bastante diferentes.
No que diz respeito as crises de legitima~ii.o (ou de confian~a) nos siste-
mas educativos, os dois autores coincidem em afirmar que, ao longo das ulti-
111
mas decadas, as tentativas de solu9ao dessas crises passaram sobretudo pelo
currfculo. Quer no caso da Inglaterra, quer no caso da Espanha, tanto a
implementa9ao como a redefini9ao de um currfculo nacional foram igualmen-
te acompanhadas pelo refor90 dos mecanismos de controlo por parte do Estado.
Ja no que diz respeito acrise de motiva9ao, que os mesmos autores rela-
cionam com as mudan9as nos processos de avalia9ao, notam-se divergencias
importantes. Se, por um lado, no caso do esquema conceptual proposto por
Hargreaves, sao as novas formas de avalia9ao, como os records ofachievement,
que sao tratadas como pretensas estrategias de atenua9ao da crise de motiva-
9ao, por outro, no esquema proposto por Felix Angulo, parece que esta fun9ao
e, ao contnirio, atribufda a formas de avalia9ao mais selectivas e meritocraticas
(provas e exames nacionais) capazes de promover a compara9ao entre alunos
e favorecer a competi9ao entre escolas (cf. quadro 5).
Relativamente a estas perspectivas, percorremos com aten9ao virios tra-
balhos que aceitam que as diferentes modalidades de avalia9ao podem ter
alguma rela9ao diferencial com a crise de motivafiio, mas nao encontramos
argumentos convincentes que permitissem concluir que as provas e exames
nacionais sao as formas de avalia9ao que, no contexto das mudan9as s6cio-
econ6micas actuais, podem contribuir mais eficazmente para atenuar a referi-
da crise. Naturalmente que poderemos ainda considerar um problema mais
importante: trata-se de questionar a pr6pria hip6tese de partida que sup6e que
a avalia9ao pedag6gica pode contribuir de forma significativa para solu9ao da
crise de motivafiio. Se lembrarmos que esta crise, no sentido habermasiano,
esta muito longe de se circunscrever ao contexto escolar, nao sera bastante
redutor esperar que os problemas que resultam da interacc;:ao de factores
econ6micos, sociais e politicos, profundamente imbricados nas muta96es do
Estado e do capitalismo a nfvel nacional e global, possam ser solucionados
(ou mesmo significativamente atenuados) atraves de mudan9as na avalia9ao
pedag6gica?
Independentementede alguns limites te6ricos ou metodol6gicos dos tex-
tos acima analisados (em parte assumidos pelos pr6prios autores), e justo re-
conhecer que se trata de duas tentativas importantes de articula9ao das mu-
dan9as sociais e das formas de avalia9ao, tao mais importantes quanto escas-
seiam os trabalhos originais que com este objectivo podem ser considerados
especificamente sociol6gicos. •
Por isso, o nosso pr6prio contributo insere-se tambem nessa linha de
analise, embora tenhamos optado por construir um quadro te6rico relativa-
mente distinto. Em vez de utilizarmos apenas tipologias ja constitufdas, como
a tipologia das tendencias de crise do capitalismo proposta por JUrgen Habermas
ou a tipologia das estrategias de legitima9ao compensat6ria de Hans Weiler,
partimos antes para uma compreensao das mudanc;:as econ6micas e polfticas
em pafses centrais onde ocorreu mais cedo o renascimento neoliberal e
112
neoconservador e fomos procurando perceber as implica96es destes aconteci-
mentos ei:n~ermos de reforrnula9ao das polfticas educativas e avaliativas. Sendo
a r~defimc;:ao do pap~I. do Estado e a revaloriza9ao da ideologia do mercado
do1s vectore.s essenctats destas mudan9as, epor referencia a estes elementos
que constru1remos grande parte do nosso quadro te6rico, relativamente ao
~~al faremos a analise sociol6gica do papel da avaliac;:ao educacional nas po-
ht1cas contemporaneas.
4. Estado, mercado e avalia~ao: esbo~o para uma articula~ao te6rica
4.1. 0 mito do livre-mercado e a manutenfiio do Estado forte
C?m?ja tivemos oportunidade de referir em outros momentos7, nos paf-
ses cap~t~hstas centrais o perfodo em analise caracterizou-se pela emergencia
das pohticas da chamada ~ova dire.ita. Em The Free Economy and the Strong
State--:-.uma obra por mu1tos cons1derada essencial para a compreensao des-
tas poht1cas nos E.U.A e na Jnglaterra-, Andrew Gamble mostra bem como
elas, de forrna muito distinta de polfticas anteriores, tambem de direita foram
marcad~s por uma singularidade pr6pria: uma combinac;:ao da defesa da livre
e~ononua, de tradi9ao liberal, com a defesa da autoridade do Estado, de tradi-
9ao conserv.adora. Na base desta bipolaridade, decisoes nao-intervencionistas
e ?escentra~1za?oras passaram a coexistircom outras altamente centralizadoras
~ mtervenc1omstas, reveland? a.ambiguidade inerente a esta articulac;:ao polf-
tlca qu~ fe~ com que a nova d1re1ta pudesse "parecer sucessivamente libertaria
e autontana, populista e elitista" (Gamble, 1994, p. 36).
Como sintetiza u.m ~u!or, "para os neoliberais a enfase esempre na Ii-
be~dade de escolha, no md1v1duo, no mercado, no govemo mfnimo e no laissez-
faire;. en.quanta ~ue os neoconservadores dao prioridade a ideias como 0
autontansmo social, a sociedade disciplinada, a hierarquia e subordina9ao, a
na9ao e o govemo forte" (Chitty, 1994, p. 23).
0 resultado destas tens6es e contradi96es - decorrentes de uma formu-
la.polftica que exige um Estado limitado (portanto, mais reduzido e circuns-
cnto:ias suas fun~6es) mas, ao mesmo tempo.forte (no seu poder de inter-
venc;:ao)-prod~z~u em c~rto sentido um desequilfbrio importante a favor do
Estado e em pre3uizo do hvre-mercado. Designado ja como o "paradoxo do
Esta.do n~oliberal", este facto significa basicamente que, "embora 0
neohberahsmo possa ser considerado como uma doutrina que prega 0 Estado
7. Com alguma~ nuances, a parte do ~apftulo que aqui se inicia teve no Brasil uma primeira ediyao
sobre. a f~rma de a:i1go, pubhcado na rev1sta Educariio & Sociedade, n• 69, 1999, pp. 139-164. Pela
autonzayao conced1da para esta nova publicayao, agradecemos ao Comite da Redacyao da revista e ao
Coleg1ado do Cedes (Unicamp).
113
autolimitador, o Estado tem-se tornado mais 'poderoso' sob as polfticas
neoliberais de mercado" (Peters, 1994, p. 213).
De facto, se tomarmos como referencia a concep9ao neoliberal proposta
porautores como Robert Nozick na sua obra Anarchy, State and Utopia, vere-
mos que a nova direita adoptou uma versao liberal bastante mitigada. Na
visao liberal radical, a economia e o resultado de uma harrnonia de interesses
gerada por trocas voluntarias entre indivfduos Iivres e aut6nomos, e o Estado
e apenas o garante dessa ordem espontaneamente gerada pelo mercado. Nesta
Iinha de pensamento, admite-se como possfvel e desejavel a existencia de um
mercado totalmente livre da tutela estatal, aceitando apenas como tarefas le-
gftimas de um "Estado mfnimo" aquelas que se restrinjam "as fun96es de
protec9ao contra a violencia, o roubo e a fraude, bem como as fun96es que
perrnitam o cumprimento de contratos" (Nozick, 1988, p. 7).
No entanto, nao parece ter sido isto que aconteceu nos pafses que
analisamos. Ao contrario, o mercado nao ressurgiu como um processo espon-
taneo, completamente fora do ambito do Estado, mas como um sistema pro-
movido e controlado, em grande parte, pelo Estado. E nao nos parece que
tenha sido assim apenas pelo facto de, como refere Bill Schwarz (1992, p.
ll l), no capitalismo avan9ado, o Estado autoritario se tomar necessario ao
projecto neoliberal para vigiar activamente a imposi9ao dessa nova ordem
representada pelo mercado. 0 que ocorre, mais precisamente, e que, como
observa Hanf (1994, p. 127), nem os mercados sao fen6menos naturais nem,
tao pouco, se pode pensar esta questao como se estivesse em causa uma sim-
ples escolha entre um mercado livre ou uma economia regulada pelo govemo.
De facto, como conclui este ultimo autor, "todas as economias de mercado sao
sistemas mistos de regulamenta<;:ao govemamental e de for9as de mercado''.
Ha, no entanto, especificidades na forrna como as polfticas da nova di-
reita desenharam as rela<;:oes entre Estado e mercado. Se, por um !ado, o mer-
cado tout court teve uma not6ria expansao sob a forma de algumas polfticas
de privatiza9ao e de liberaliza9ao da econornia, tambem e verdade que, ape-
sar da crise fiscal e dos ataques neoliberais, o Estado-providencia resistiu -
e isso, por outro !ado, constituiu igualmente um importante obstaculo a maior
expansao do mercado.
Mas a resistencia do Estado-providencia nao significou a manuten<;:ao
do status quo. De facto, as coliga<;:oes de direita que estiveram no poder em
pafses como a Inglaterra puseram em pratica outras estrategias para tentar
gerir a tensao resultante da nao diminui<;:iio das exigencias em rela<;:ao aos
direitos sociais (nomeadamente na area da saude e da educa9ao) ea crescente
escassez de receitas. Como refere Brian Salter (1995), numa situa9ao como a
descrita, ha que procurar urna das seguintes estrategias: ou se tenta redefinir o
que se entende por direitos ligados ao Estado-providencia (uma questao es-
sencialmente ideo16gica), ou se consegue um rnelhor equilfbrio entre a oferta
ea procura (corn uma maior eficiencia na utiliza9ao das receitas provenientes
114
dos impostos) ou, ainda, se encontrarn fontes altemativas de financiamento.
A_prirneira estrategia exige convencer os cidadiios a reduzir ou, pelo menos,
nao aumentaros seus direitos - o que nao e uma estrategia plausfvel a curto
pra~o_da.da a_"hege~oni~ dos valores do Estado-providencia". A segunda es-
trat~g1a 1mphc~ red.Irecc1?nar a procura para o sector privado - o que pres-
s~poe que se cn~m mcenttvos para que este sector possa aumentar a sua capa-
c~da~e de atend1mento, e os cidadiios sejam persuadidos de que niio perdem
d1re1tos porque poderao fazer escolhas mais amplas e ter acesso a servi9os de
melhor ~ualidade.. Finalmente, a terceira estrategia, muito mais subtil, supoe
a adop<;:ao d~ med1das tendentes a atenuar as fronteiras entre o sector publico
e o sector pnvado, de modo a permitirque se tome igualmente menos nftida a
distin<;:a? entre ?s direitos sociais e os direitos individuais. Isto, por sua vez,
refere amda Bnan Salter, pode levar ao enfraquecimento da hegemonia dos
valores do Es~ado-providencia e, consequentemente, a uma redw;:ao da pro-
cura dos serv1<;:os publicos. Exemplos destas polfticas silo, entre outros, os
mercados internos (internal markets) e os incentives para uma economia mis-
ta de bem-estar social (cf. Salter, 1995).
. . Foram precisamente algumas destas estrategias, implementadas pela nova
dire1ta: que configuraram o que alguns autores tern vindo a designar como
mecamsmos de quase-mercado. Na realidade, mais do que aconfina<;:ao do
Estadoea expansaodo mercado, assistiu-se, em muitos casos, a interpenetra<;:ao
<lesses elementos, com arranjos especfficos consoante as conjunturas nacio-
nais, os quais resultaram numa configura9ao particular se comparada com
outros perfodos hist6ricos da evolu<;:ao do capitalismo. Eisto que, do nosso
ponto de vista, constitui um dos aspectos distintivos mais importantes das
polfticas de convergencia neoliberal e neoconservadora; e eisso tambem que
seguramente constitui um dos principais vectores da redefini<;:ao do papel do
Estado neste perfodo.
Como escreve Reg Whitaker (1992), muitas destas tendencias poem em
causa a natureza do pr6prio Estado capitalista obrigando nao apenas a redefinir
as fronteiras tradicionais entre os sectores publico e privado mas tambem a
repensar a questao da relativa autonomia do Estado. Dai, igualmente, a
centralidade do conceito de quase-mercado.
Na defini9iio de Le Grand, quase-mercados sao mercados porque subs-
tituem o monop6Iio dos fomecedores do Estado por uma diversidade de for-
necedores independentes e competitivos. Sao quase porque diferem dos mer-
c~dos convencionais em aspectos importantes. Assim, por exemplo, as orga-
mza<r6es competem porclientes mas nao visam necessariamente a maximiza<rao
dos seus lucros; o poder de compra dos consumidores nao e necessariamente
expressoem terrnos monetarios e, em alguns casos, os consumidores delegam
em certos agentes a sua representa<;:ao no mercado (cf. Le Grand, 1991, pp.
1259-1260).
115
Estes mecanismos de quase-mercado - porque foram igualment~ in-
troduzidos nos sistemas educativos - justificam mais algumas referencias e
considera9oes.
4.2. Quase-mercados em educa(:iiO
Como observa Roger Dale (1994, p. 112), em educa9ao o termo merea-
doe mais conotativo do que denotativo. Isto significa que, por vezes, quando
se fala de "mercadoriza9ao da educa9ao" nao se trata senao da implementa9ao
de mecanismos de "liberaliza9ao" no interior do sistema educativo, ou da
introdu9ao de elementos de "quase-mercado". De facto, analisando algun~
casos concretos de politicas educacionais da nova direita, R. Dale ~onclm
que "o que esta em questao sao novas formas e combina9oes de finan~1~me~­
to, fomecimento e regula9ao da educa9ao", diferentes <las formas trad1c1ona1s
exclusivamente assumidas pelo Estado. Todavia, ta! como aconteceu noutros
sectores, a cria9ao de quase-mercados em educa~ao pode r;i~smo "incluir.um
papel maior, e/ou modificado para o Estado (e nao necessana ou automat1ca-
mente um papel menor)" (Dale, 1994, pp. 110-111).
Alias, o Estado nao deixa deter um papel activo sendo "o mercado uma
cria~ao polftica, concebida para fins polfticos", como acentua Stewart Ranson.
Por esta razao, parece-nos importante a observa9ao deste autor quando a::re~­
centa que "o mercado em educa9ao nao e o mercado classico da conco;r~nc1~
perfeita mas um mercado cuidadosamente regulado e com controlos ng1dos
(Ranson, 1993,p. 338~.
Neste mesmo sentido, escreve tambem R. Hatcher (1994), a regula9ao
que e feita pelo Estado nao e contraposta ao mercado, pois a cria9ao e manu-
ten~ao do mercado depende do Estado. Alias, a introd~9ao de q~ase-~erca­
dos no sector publico, em geral, e na educa~ao, em particular, ev1denc1a bem
estas rela9oes. De facto, acrescenta R. Hatcher, "a educa9ao distin,gu~-se nao
s6 do sector privado como tambem de outras areas do sector pubhco pelo
facto de os poderes do Estado, que mantem o mercado, se entrela9arem com
outros poderes que controlam o pr6prio conteudo da educa9ao" (p. 45).
E, alias, esta combina9ao especffica de regula9ao do Estado e de e.le-
mentos de mercado no domfnio publico qMe, na nossa perspectiva, exphca
que os govemos da nova direita tenham aumentado consideravelmente o con-
trolo sobre as escolas (nomeadamente pela introdu~ao de currfculos e exames
nacionais) e, simultaneamente, tenham promovido a cria9ao de mecanismos
8. Estas e outras afirmayoes de Stewart Ranson, inseridas no texto que acima citamos, deram origem
a uma interessante polemica sobre o conceitode mercado em educayao. Ver, a esse prop6sito, James Tooley
(1995) e tambem a resposta de Stewart Ranson (J995).
116
como a publicita9ao dos resultados escolares, abrindo espa90 para a realiza-
9ao de pressi5es competitivas no sistema educativo.
Na perspectiva de M. Apple, por exemplo, esta aparente contradi9ao,
pode nao ser tao substancial como se esperaria dado que, numa epoca de crise
e de perda de legitimidade, a introdu9ao de um currfculo nacional e de uma
avalia9ao tambem a nfvel nacional transmitem a ideia de que o govemo esta
preocupado com os consumidores e com a necessidade de elevar os nfveis
educacionais-oque e, afinal, a principal preocupa9ao do mercado (cf. Apple,
1993, p. 230). Para este autor, a cria~ao de um curriculo nacional, o estabele-
cimento de normas-padrao e a realiza9ao de testes tambem a nfvel nacional
sao mesmo condi9oes previas para que se possam implementar polfticas de
privatiza~iio e mercadoriza9ao da educa~ao, representando, portanto, um com-
promisso ideal no ambito da coliga9ao de direita.
Curiosamente, os sectores neoliberais ingleses nao estavam inicialmen-
te dispostos a apoiar a imposi9ao de um controlo central sobre o currfculo.
Como lembra Clyde Chitty, foi mesmo necessario convence-los de que
"um currfculo nacional niio era necessariamente incompatfvel com a promo~iio
dos princfpios do livre-mercado. Isso poderia, afinal, ser uma boa justifica~iio
para realizar testes de avaliactiio nacionais em determinadas etapas da carreira
escolar dos alunos, proporcionando, desse modo, importantes dados e informa-
ct6es aos pais sobre as caracterfsticas desejaveis ou indesejaveis de cada escola.
Por outras palavras, informact6es suplementares aos consumidores proporcio-
nadas pelos resultados dos testes poderiam realmente ajudar um sistema de
mercado a operar de modo mais eficaz" (Chitty, 1994, p. 24).
Hoje em dia parece ser relativamente consensual naqueles sectores que a
imposi~ao de um currfculo nacional e a introdu9ao de exames nacionais niio
sao, de facto, incompatfveis com a prom09iio de valores de mercado, embora a
adoIJ9iiO dessas altera90es tenha introduzido no sistema educativo ingles impor-
tantes tens5es a que os professores deram voz (cf. Bernstein, 1994; Black, 1994).
4.3. 0 Estado-avaliador e a enfase nos resultadoslprodutos educacionais
Se, ao nfvel dos sistemas educativos, em pafses como os EUA ea Ingla-
terra, a avalia9iio foi essencial para a promo9ao de quase-mercados, tambem
mostrou ser uma estrategia util ao nfvel (mais geral) das tentativas de transfor-
ma9ao dos valores pr6prios do dom{nio publico. Sendo este o espa~o onde se
expressam os prop6sitos colectivos de uma dada sociedade - remetendo,
nomeadamente, para os direitos e necessidades sociais que sao estabelecidos
atraves de escolhas publicamente construfdas -, o dom{nio publico deve pre-
servar e atender valores especfficos como a igualdade, a justi9a ea cidadania
(cf. Ranson & Stewart, 1994).
117
No entanto, foram estes e outros valores semelhantes que estiveram (e
continuam a estar) amea9ados perante a introdu9ao de elementos de ~erc~do
e outras J6gicas especfficas do sector privado que, par sua vez, ~em s1do
viabilizadas pela utiliza9ao polftica e administrativa de certas modahdades de
avalia9ao.
Como mostra Mary Henkel em Government, Evaluation an~ <:hang;-:-
estudo que cobre um perfodo decisivo de transforma9oes nas poht1cas pubh-
cas inglesas, entre 1983 e 1989 -, "o governo identificou a avalia9a? c~mo
uma componente significativa na sua estrategia de conseguir alguns obJ,ec~1vos
decisivos: controlar as despesas publicas, mudar a cultura do sector pubhco e
alterar as fronteiras e a defini9ao das esferas de actividade publica e privada"
(cf. Henkel, 1991a, p. 9).
Deste modo, a avalia9ao reaparece claramente relacionada com fun9oes
gestionarias tendendo a ser, coma refere E. House_. uma "avalia9a~.centrada
na eficiencia e na produtividade sob o controlo directo do Estado (House,
1993, p. x).
Considerando estes vectores, toma-se agora mais evidente a razao pela
qua!, no perfodo em analise, uma das mudan9a~ i~portante~, t:nto fora coma
dentro do contexto educacional, ea enfase genenca na avaha9ao dos resulta-
dos (e produtos) ea consequente desvaloriza9ao da avalia9a? do~ proce.sso~,
independentemente da natureza e fins especfficos das organiza9oes au mst1-
tui90es publicas consideradas9
•
Como referem David Osborne e Ted Gaebler (1992, p. 139), o simples
facto de as agencias publicas terem que definir os resultados ou indicadore~­
alvo (benchmarks) que pretendem alcan9ar obriga-as a pensar nos seus pro-
prios fins, OS quais, frequentemente, OU nao SaO cJaros OU nao estaO bem defi-
nidos. Assim acrescentam estes mesmos autores, os "govemos empreende-
dores" deve~ procurar mudar o sistema de recompensas, panda a t6nica nos
resultados, porque "quando as institui9oes sao financiadas de acord.~ co,n:1 os
resultados elas tomam-se obsessivas em rela9ao ao seu desempenho , e e 1sso
que e necessario incentivar.
No relat6rio intitulado Reinventar a Administrariio Pilblica, elaborado
sob a direc9ao do vice-presidente americano 11 Gore, e fortemente influencia-
do pela obra de David Osborne e Ted Gaebler, afirma-se a certa a~t~ra: "O
nosso caminho e claro: temos de transitar de sistemas que responsab1hzam as
9. Ha aqui, como facilmente se deprecnde, uma racionalidade muito pr6xima. da ~lcgitima~ao.pela
performatividade" aqua! esta hoje sujeito, por exemplo, o ensino superior ca invesuga9ao, ~omo ass~nala
Jcan-Fran9ois Lyotard em "A Condi9iio P6s-Modema". Veja-se tambCm, a prop6sllo do ensmo supcnor, a
analise de Licfnio Lima em tomo do que designa por "educa9ao contabil" {cf. Lima, 1997).
118
pessoas par processos, para sistemas que as tornam responsaveis par resulta-
dos" (Al Gore, 1994, p. 55).
De acordo com estes pressupostos, sem resultados mensuraveis (que
devem ser tornados publicos) nao se consegue estabelecer uma base de
responsabiliza9ao credfvel, tomando-se igualmente mais diffcil a promo9ao
da competi9ao entre sectores e servi9os - em ambos as casos, duas dimen-
soes essenciais das novas orienta9oes polfticas e administrativas.
Em termos de polftica educativa, mais especificamente, trata-se agora
de tentar conciliar o Estado-avaliador- preocupado com a imposi9ao de um
currfculo nacional comum e com o controlo dos resultados (sobretudo
academicos) - ea filosofia de mercado educacional assente, nomeadamen-
te, na diversifica9ao da oferta e na competi9ao entre escolas. Sendo a avalia-
9ao um dos vectores fundamentais neste processo, e necessario saber qua! a
modalidade que melhor serve a obten9ao simultanea daqueles objectivos.
4.4. A avaliariio estandardizada criteria! com publicitariio de resultados
Tenda admitido nos mementos iniciais deste trabalho (e par razoes es-
sencialmente dedutivas) que a modalidade de avalia9ao mais congruente com
a ideologia do mercado seria a avaliariio normativa (cf. capftulo 1), fomos
constatando, no entanto, amedida que avan9avamos na compreensao das
especificidades das actuais polfticas educativas, que nao havia evidencia
empfrica para sustentar essa hip6tese. Nao que (teoricamente) a avalia9ao
normativa nao fosse a mais adequada para promover os valores neoliberais
baseados na compara9ao dos indivfduos e na competi9ao de mercado. Par
alguma razao obras marcantes do neoliberalismo educacional, coma Politics,
Markets, and America's Schools de J. Chubb e T. Moe (1990), propugnaram
por esses princfpios e valorizaram a utiliza9ao de modalidades de avalia9ao
estandardizada normativa (cf. capftulo 2). De facto, se as teorias vindas dos
sectores neoliberais mais radicais tivessem sido pastas em pratica, essa seria
naturalmente a modalidade de avalia9ao que faria sentido num contexto de
forte retrac9ao do Estado (Estado-mfnimo) e de grande expansao do mercado.
No limite, o Estado - nao pondo qualquer obstaculo a uma maior diversifi-
ca9ao curricular e admitindo a transmissao de conteudos e objectivos edu-
cacionais nao sujeitos a qualquer uniformiza9ao nacional - poderia permi-
tir a predominancia de formas de avalia9ao congruentes com a
mercadoriza9ao da educa9ao escolar. Mas, coma ja procuramos demons-
trar, isso nao ocorreu assim e, neste sentido, as altera9oes nas polfticas
avaliativas acabaram tambem par reflectir a filosofia das mudan9as mais
gerais em curso neste perfodo.
119
Ao contrariodo que inicialmente prevfamos, a avaliafiio estandardizada
criteria/, isto e, a avalia9iio que visa o controlo de objectivos previamente
definidos (quer enquanto produtos, quer enquanto resultados educacionais), e
que foi sendo gradualmente apontada como um dos tra9os distintivos das
mudan9as nas polfticas avaliativas. Isto aconteceu porque pela introdu9iio da
avalia9iio estandardizada criteria! pode favorecer-se a expansiio do Estado e,
simultaneamente, pela publicita9iio dos resultados dessa mesma avalia9iio pode
promover-se a expansiio do mercado.
Assim, e apesar das crfticas cada vez mais contundentes - not6rias, por
exemplo, no facto de a literatura sobre avalia9iio ter continuado a alimentar as
mais diferentes versoes e polemicas sabre as suas potencialidades e limites, a
avalia9iio estandardizada criteria! tomou-se um instrumento importante para a
implementa9iio da agenda educacional da nova direita.
Foi, assim, necessario contextualizar estas mudan9as de modo a tomar
compreensfvel o que inicialmente nos parecia sem sentido - e que, diga-se,
s6 muito mais tarde come9ou a ser objecto de interesse academico, ou a ser
mais explicitamente referenciado na literatura especializada (cf., por exem-
plo, Davis, 1995; Schrag, 1995). Depois deste percurso te6rico, parecera ago-
ra 6bvio ao leitor que, tendo o Estado refor9ado o seu poder de regula9iio e
retomado o controlo central (nomeadamente sabre o currfculo escolar), a ava-
lia9iio tivesse, de forma congruente, sido accionada como suporte de proces-
sos de responsabiliza9iio ou de prestafiio de contas relacionados com os re-
sultados educacionais e academicos, passando estes a ser mais importantes do
que os processos pedag6gicos (que teriam implicado outras formas de avalia-
9iio).
Em sfntese, see verdade que emergiu o Estado-avaliador tambem ever-
dade que as mudan9as nas polfticas avaliativas foram igualmente marcadas
pela introdu9iio de mecanismos de mercado. Por isso, neste contexto politica-
mente ambivalente, e neste perfodo especffico que analisamos, o controlo sa-
bre os resultados escolares niio foi subordinado, nem se restringiu, a uma mera
16gica burocratica - o que tomou a actua9iio do Estado neste campo clara-
mente distinta das estrategias adoptadas em outras epocas e em outros contex-
tos hist6ricos, explicando-se tambem por af as especificidades contemporaneas.
5. Sintese do quadro teorico proposto
A figura 2 resume grande parte do percurso analftico por n6s efectuado.
Contem, porem, alguns elementos que niio foram ainda objecto de
problematiza9iio e que, por isso, seriio agora discutidos. Trata-se, em sfntese,
de uma constru9iio te6rica que contem duas dimens5es importantes: uma, mais
descritiva e analftica, que pretende dar conta, com suficiente consistencia e
120
fundamenta9iio, das mud~n9as ocorridas nas polfticas avaliativas neoliberais
e neoconservadoras a part1r da decada de oitenta e infcio da decada de noven-
t~: a ~utra, ass~mi.damente mais normativa, que procura inscrever nas insufi-
cienc1as da pnme1ra uma contra-proposta altemativa assente no que pensa-
mos se_r ~ma utopia re~liza~el: ~ defesa de uma concep9iio mais radical das
potenc1altdades educac1ona1s (amda niio esgotadas) da avalia9iio formativa
ancora?a n~m novo (des)equilfbrio entre o pilar da regulafiio e o pilar d~
emanc1pafao.
FIGURA2
A avalia~ao no contexto das mudan~as s6cio-politicas contemporaneas
Teorias do Estado
+
Estado-providencia ...
!
Resistencia do Estado-providencia
Crise do
Estado-providencia
t
Nova Dircita
/ ""'
- - - - ....
Neoliberalismo
-Estado
+Mercado
Neoconservadorismo - -.....
•Av. Formativa
• Novas formas
de AvaJiai;:ao
!
Mercado-avaJiador
D
Avaliai;:ao
Estandardizada
Normativa
Quase-Mercado
+ Estado
Mercado
"Estado-avaliador"
Avaliai;:ao j
Estandardizada
CriteriaJ
Teorias da
Avaliai;:ao
....
,...___..
..,~ AvaJiai;:ao Estandardizada
Criteria! com Publicitai;:ao de Resultados
, As teorias do ~stado - em rela9iio as quais as primeiras paginas deste
capttulo foram dedtcadas - siio o ponto de partida para a compreensiio da
121
especificidade do Estado-providencia cuja crise se tern procurado solucio-
nar pela implementa<;ao de polfticas sociais e econ6micas hfbridas que tive-
ram, como seria de esperar, importantes reflexos nas reformas educativas
mais recentes.
Se, no que aeduca<;ao escolar publica diz respeito, uma das dimensoes
mais expressivas dos valores neoconservadores foi a emergencia do Estado-
avaliador, em termos de valores neoliberais o mais importante tera sido a
introdu<;ao de mecanismos de mercado nesse mesmo domfnio. Assim, como
essas dimensoes se (con)fundiram em articula<;6es muito especfficas de pafs
para pafs, haveria que encontrar uma forma de avalia<;ao (ideal-tipica) capaz
de dar conta (genericamente) destas particularidades, sendo igualmente sus-
ceptfvel de atender quer aos pressupostos subjacentes ao mercado educacio-
nal quer ao Estado-avaliador.
Para alem de encontrarjustifica<;ao do ponto de vista da teoria e sociolo-
gia da avalia<;ao (cf. capftulo 1), a modalidade de avalia<;ao criteria!- neces-
sariamente validada do ponto de vista tecnico e cientffico (portanto,
estandardizada ou aferida), mas sujeita ao controlo pelo mercado atraves da
publicita<;iio dos respectivos resultados - parece ser a modalidade de avalia-
<;ao mais congruente com as mudan<;as estudadas. Alias, como ja vimos ante-
riorrnente, esta coneIusao e tambem refor<;ada empiricamente pelo facto deter
sido esta a forma de avalia<;ao que (re)emergiu e que foi mais valorizada nas
agendas educacionais e nas polfticas educativas ate agora referenciadas.
Designada aqui como avaliariio estandardizada criteria/ com
publicitariio de resultados, esta modalidade de avalia<;ao permite evidenciar,
melhor que qualquer outra, o ja designado "paradoxo do Estado neoliberal":
por um !ado, o Estado quer controlar mais de perto os resultados escolares e
educacionais (tomando-se assim mais Estado, Estado-avaliador) mas, por ou-
tro !ado, tern que partilhar esse escrutfnio com os pais e outros "clientes" ou
"consumidores" (diluindo tambem por af algumas fronteiras tradicionais, e
tomando-se mais mercado e menos Estado). Produz-se assim um mecanismo
de quase-mercado em que o Estado, nao abrindo mao da imposi<;ao de deter-
minados conteudos e objectivos educacionais (de que a cria<;ao de um currfcu-
lo nacional e apenas um exemplo), permite, ao mesmo tempo, que os resulta-
dos/produtos do sistema educativo sejam tambem controlados pelo mercado.
Procurando colmatar as insuficiencias elimites inerentes a este enqua-
dramento te6rico-conceptual, ate aqui quase exclusivamente centrado na ex-
plica<;ao e contextualiza<;ao de algumas mudan<;as nas polfticas educativas e
avaliativas iniciadas e desenvolvidas em pafses centrais, queremos agora de-
senvolver outras dimensoes, tambem sinalizadas na figura 2, que apontam
para um outro tipo de polftica educativa e para uma outra agenda avaliativa.
Trata-se assim, essencialmente, de completar o enquadramento te6rico-socio-
16gicoque temos estado a desenvolver introduzindo uma visao mais prospectiva
122
que contraponha a J6gica da e . - .
16gica da regularao uma vez qman~1pa<;a~I ~mats centrada na comunidade) a
, • Y • ue e esta u t1ma que te ·d +
poht1cas avaliativas do neol1'b 1· m s1 o re1or<;ada pelas
era 1smo conservador c t · d .
mente, por terem acentuado (ainda mais) o d . , ~rac enza as, prec1sa-
do mercado, em prejufzo da comunidade. esequ1hbno a favor do Estado e
5. I. A melhoria qualitativa do Estado- ri 'dA . . -
o retorno aemancipariio p ovz encza, a avalzaraofonnativa e
. Retomando considera<;oes anteriores ,
des1gnamos por melhoria qualitativa do Es;a~~~ps::~~·Ae~ smtese, que o q.ue
mente por um novo equilfbrio entre o ilar d v1 ~mcia pa.ssa necessana-
pa<;ao. Como Boaventura Sant p a regula<;~o e o pilar da emanci-
modemidade assenta em do' ~sl 0 99
fl) refere, 0
proJecto s6cio-cultural da
. is p1 ares undamenta· . ·1 d -
pllar da emancipa<;ao oprime· , . 'd is. 0
p1 ar a regula9ao e o
o mercado e a comu~idade) e1ro e const1tu! o po~ tr~s princfpios (o Estado,
racionalidade (a racionalidade es~,:~gundo e c.onst1tu1do por tres 16gicas de
tica e a racionalidade cogn1't1'v .e ico-express1va, a racionalidade moral-pra-
o-mstrumentaJ)•o.
Dos tres princfpios, 0 princfpio da c .d d , " .
para instaurar uma dialectica positiva co omu~i' a e e o m~1s b_em colocado
Iecer assim a vincula9ao da regula ao e~o p1 ar d~ em:in.~1pa9ao, e restabe-
para isto o facto de o princfpio <rd a e~anc1pa9ao (p. 27). Concorre
epistemol6gicas" que 0
tomam u . a ~omunrdade conter "virtualidades
entre regula9ao e emancipa9ao m e1xo importante neste redimensionamento
elementos constitutivos (como opo;!ue, entre .o~tras_razoes, ~!guns dos seus
sido focos de resistencia a. ~ der, a ~artic.ipa9ao ea solrdariedade) tern
da ciencia e da tecnica. mvasao a rac1onalrdade cognitivo-instrumental
A comunidade pode tomar-se "o ca . ·1 .
emancipa9ao" se este for conceb'd mpo.pn~1 .eg1ado do conhecimento-
um estado de ignoriincia a um es~a~ c~mo ~aJectona que Ieva? indivfduo de
dariedade (um conhecimento u "o e .sa er que se.p~e des1gnar por soli-
dade"); e sea solidariedade fo("~ prognde do col~rnalrsmo para a solidarie-
para a reciprocidade atraves da c~~~;~~~~s~mpr~ t~acabado, de ca~acita9ao
"sujeitos capazes de reciprocidade". e SUJe1tos que a exerc1tem" ou
Por isso, acrescenta o mesmo autor , , .
cimento-regula9ao" que transformou o ;u~rnecessabr~o romper com o "conhe-
o em o ~ecto para, de uma forma
' 10. Nesta mesma linha, Arriscado Nunes acrescenta se ui d S " ..
modemas' [...].Ires modos de regula~ao princi ais· ' g n o antos, d1stingo, nas sociedades
modos de regulayiio realiza de maneira diferente ~rel~o_Estado, o mercado ea comunidade. Cada um destes
e as rela~0essociais globais, atraves do vfnculo privile~~aod~n~~econ~nu~ ~omo.proccsso institucionalizado
a troca ea reciprocidade respectivamente" (N gl993 um pnnc1p10 de integra~ao: a redistribuirao
' unes, , p. I10, nota 6). T '
123
radicalmente nova, passar a "constituir o outro numa rede intersubjectiva de
reciprocidades" (p. 30). Trata-se, portanto, de um "conhecimento-emancipa-
9ao que avan9a do colonialismo para a solidariedade, pela cria9iio de rela96es
sujeito-sujeito estabelecidas no seio de comunidades interpretativas" (p. 37).
Em sfntese,
"Este saber novo, sendo uma racionalidade cognitivo-instrumental, sera tam-
bem uma nova racionalidade moral-pratica e uma nova racionalidade estetico-
expressiva. 0 saber novo s6 sera novo se for simultaneamente uma nova
inteligibilidade, uma nova etica, uma nova politica e uma nova estetica. Para
isso tern de se exercitar no recurse criativo aos elementos constitutivos do prin-
cfpio da comunidade, asolidariedade, aparticipa<;ao e ao prazer" (Santos, 1991,
p. 39).
Na nossa perspectiva, uma teoria como esta- assente na valoriza9iio do
conhecimento-emancipa9ao, na intersubjectividade e na reinven9ao da comu-
nidade - eextremamente oportuna para fundamentar a defesa de uma polfti-
ca avaliativa radicalmente diferente daquela que atravessou e caracterizou os
ultimas anos. E, alias, a partir dos seus pressupostos que defendemos ser pos-
sfvel (e desejavel) relocalizar a avalia9ao formativa, considerando-a um eixo
fundamental na articula9ao entre o Estado e a comunidade.
QUADR06
A avalia~ao formativa numa nova articula~ao entre o Estado e a Comunidade
Avalia~ao estandardizada (aferida)
Avalia<;ao
Avaliac;ao criteria! Avaliac;ao
criteria!
com publicitac;ao normativa
de resultados
Estado Quase-mcrcado Mercado
Regula~ao
Redistribuic;ao ................................................................... troca
Avalia~o nao
estandardizada
Avaliac;ao
formativa
Estado-Providencia
Comunidade
Aluno/Profcssor
Emancipa~lio
REGULA<;AO
reciprocidade
De facto, a avalia9ao formativa, sem deixar de estar relacionada com o
Estado, enquanto lugar de defini9ao de objectivos educacionais e espa90 de
124
cida~a~i~, parece ser ~ forma de avalia9ao pedag6gica mais congruente com
o pnnc1p10 da comumdade e com o pilar da emancipa9ao. Pensamos me
I
. _ , . smo
que a av~ 1a9~0 iormat1va deve ser considerada no ambito dos direitos sociais
e edu:ac1ona1s que caracterizam o Estado-providencia, os quais, como Jembra
t~mbem Boaventura Santos (1994, p. 211), foram direitos essencialmente ob-
tidos P?r pressiio do princfpio da comunidade. Por outro !ado, s6 a avalia
9
ao
forn:at1va, en~uanto a~9a? pedag6gica estruturada na base de rela96es de reci-
proc1dade, e.mte:subJec.tivamente validada, nos parece poder promover um
novo ~eseqmlfbno no p1lar da regula9iio a favor do pilar da emancipa9ao''·
E is~o ~reci~amente que o quadro 6 sintetiza: um novo ponto de chega-
da, que ~a.o e mats, a~nal, do que um outro ponto de partida para retlectir a
problem~tica da avaha9ao pedag6gica numa perspectiva sociol6gica. Uma
perspecttva, segundo cremos, que nao deixa certamente de ser simultanea-
mente crftica e ut6pica.
11. Pedagog~s radkai.s como Paulo Freire (1975) ou Henry Giroux (1986), tern tambCm (cha muito
tempo) contnbu1yoes dec1S1vas para pensar a ~uesta~ da emancipayao nas suas relay0es com a educayao.
~a;;S~~ exemplo concreto de procura de arttculayao entre avaliayao e emancipayao, ver Ana M' Saul
125
CONCLUSAO
Procurando uma visao global e integrada, parece-nos ser util fazer neste
momento uma sfntese das principais linhas de for~a deste trabalho.
No primeiro capftulo, recuperamos e articulamos um conjunto diversifi-
cado e plural de interpreta~oes relativas a avalia~ao educacional, quejulgamos
poderem ser integraveis sob a designa~ao de sociologia da avalia~ao. Mais do
que os aspectos tecnicos que cada modalidade de avalia~ao necessariamente
contem, e que estao destinados a cumprir objectivos muito especfficos, alguns
deles profusamente discutidos na literatura, interessou-nos mostrar como a
problematica da avalia~ao educacional transcende esses mesmos aspectos e
perrnite estabelecer uma ponte entre os processos que ocorrem em contexto
propriamente pedag6gico e os processos sociais e polfticos em sentido amplo.
Assim, para alem das rela~oes de poder (sentidas ou nao como coerci-
vas) que no espa~o da aula tradicional se estruturam em tomo da avalia~ao
pedag6gica, ou da fun~ao de socializa<;iio antecipat6ria que, com algumas
varia~oes ou modula~oes consoante os autores e a forrna como percepcionam
as rela~oes entre o sistema educativo e o sistema produtivo, as teoriasfuncio-
nalistas e as teorias da correspondencia tendem a atribuir a avalia~ao.
procuramos ainda enfatizar outros aspectos com particular interesse sociol6-
gico. Referiram-se neste caso as dimensoes eticas que andam frequentemente
associadas a problematiza~ao da fun~ao de avaliador, ou que com~am a ser
desocultadas pelas crfticas as versoes positivistas mais obcecadas pelos as-
pectos tecnicos da avalia~ao; as dimensoes e implicai;oes produtivistas decor-
rentes das exigencias que recaem sobre as escolas em momentos de recessao
econ6mica, e que acentuam a avalia~ao como controlo dos resultados; as di-
mensoes polfticas da avalia~ao decorrentes da implementai;ao de princfpios e
mecanismos democraticos de responsabiliza~ao (accountability), ou de dis-
positivos de compensai;ao introduzidos em sistemas descentralizados; e as
127
dimens6es simb61ico-ideol6gicas que algumas modalidades de avaliai;lio cum-
prem quando esta em causa a legitimai;lio das polfticas educativas, do sistema
educativo ou <las praticas dos actores escolares.
A discusslio em tomo das caracterfsticas e funi;oes de algumas modali-
dades de avaliai;lio permitiu-nos entender as suas potencialidades e limites, os
objectivos prosseguidos e as ideologias polfticas e pedag6gicas a que servi-
ram em momentos hist6ricos diferentes. Sem esse percurso nlio teria sido pos-
sfvel, por exemplo, compreender a razlio pela qual algumas modalidades de
avaliai;lio continuam a ser defendidas e actualizadas, enquanto outras slio des-
valorizadas; ou perceber as relai;6es complexas e contradit6rias que determi-
nadas formas de avaliai;lio tern vindo a manter com as polfticas educativas
contemporaneas.
A este prop6sito, por exemplo, a emergencia do Estado-avaliador
(evaluative state), tal como foi caracterizada no primeiro capftulo, traduz um
retrocesso consideravel, nao apenas porque promove a recuperai;lio e
actualizai;lio de muitos dos pressupostos positivistas e quantitativistas toma-
dos anacr6nicos pelo pr6prio desenvolvimento e aperfeii;oamento das teorias
da avaliai;lio, mas sobretudo porque, do nosso ponto de vista, favorece a des-
valorizai;lio da multirreferencialidade dos processos avaliativos, que tern vin-
do a ser reconhecida como o novo ponto de chegada para superar a crise dos
paradigmas tradicionais neste domfnio.
Foi, alias, a necessidade de compreender a relai;lio entre as polfticas
educativas de cariz neoliberal e neoconservador e determinadas formas de
avaliai;lio que nos levou, no segundo capftulo, a percorrer alguma literatura
sociol6gica sabre as reformas mais recentemente levadas a cabo em pafses
centrais e semiperifericos, ea confirmar a emergencia da avaliai;lio, quer como
dispositivo de controlo par parte do Estado, quer como mecanismo de intro-
dui;lio da 16gica do mercado em contextos de transii;lio polftica e de crise
econ6mica.
A compreenslio da perda de poder explicativo das dicotomias tradicio-
nais, nomeadamente as que assentam na oposii;lio entre o campo do Estado e
o campo do mercado, ou as que justificam a polarizai;lio entre modalidades de
avaliai;lio criteria! e modalidades de avaliai;lio normativa, permitiu-nos, ja no
terceiro capftulo do trabalho, propor uma articulai;lio original que da conta do
caracter hfbrido das novas relai;oes que actualmente slio estruturadas por estes
elementos. Neste sentido, procuramos justificar, do ponto de vista socio16gi-
co, a emergencia de modalidades de avaliai;lio que tern a possibilidade de
articular, em simultaneo e no interior de um mesmo sistema educative, quer a
necessidade de efectuar um controlo mais apertado sobre os conteudos
curriculares, quer as exigencias ditadas por todos aqueles que passam agora a
ser redefinidos como clientes do sistema, e que estlio, supostamente, interes-
sados no mercado educacional.
128
Estas e outras mudani;as aqui sinalizadas, apesar das especificidades
que assumem em diferentes contextos nacionais,ja nlio podem ser referenciadas
exclusivamente as fronteiras tradicionais do Estado-nai;lio, exigindo, por isso,
uma contextualizai;lio mais ampla que inclua, entre outros factores, as muta-
<;6es que nas ultimas decadas ocorreram ao nfvel da economia global.
Com origem mais imediata na recesslio econ6mica que se seguiu a cha-
mada crise petrolffera do infcio dos anos setenta, as referidas mudani;as -
que se traduzem de diferentes formas em diferentes pafses -, apresentam
entretanto alguns trai;os em comum: quando presente, o modelo de Estado-
providencia eassociado a Crise e a incapacidade de sair da crise; OS direitOS
sociais e culturais, assegurados por este modelo polftico, comei;am a ser pos-
tos em causa; e o mercado renasce ou ganha uma nova dinamica. O mercado
alias, que e apresentado como antfdoto contra os excessos da regulai;lio esta~
ta! (quer do modelo de Estado-providencia em sociedades capitalistas, quer
~o modelo do Estado totalitario em economias planificadas), aproveita os
msucessos do capitalismo e do socialismo real para se transformar numa nova
ideologia, que os ventos da globalizai;lio ajudam a espalhar rapidamente.
Mas a necessidade de promover um novo consenso em tomo das pro-
postas reformadoras nlio podia, na perspectiva dos novas arautos do
n~oliberalismo conse~vador, ficar dependente da explicai;lio, ainda que con-
v_mce~te, da complex1dade das mudani;as a nfvel mundial - as explicai;oes
s1mphstas, sobretudo quando se trata das polfticas de educai;lio, parecem ter
uma eficacia persuasiva muito superior. Este tipo de explicai;oes tern outras
repercussoes e outro impacto em termos de manipulai;lio da opiniii.o publica
- como se verificou, alias, a partir do momenta em que as referencias a falta
de qualidade do ensino, avaliada sobretudo por provas estandardizadas em
comparai;oes intemacionais, passou a serum dos argumentos mais utilizados
para imputar a responsabilidade pela crise econ6mica aos sistemas de educa-
<;lio publica, transformando-os em bodes expiat6rios (e alvos preferenciais)
das reformas educativas neoliberais e neoconservadoras.
Nao desconhecendo que ha ainda um longo caminho a percorrer para
que maiores exigencias, em termos cientfficos e pedag6gicos, possam fazer
parte de um numero cada vez maior de escolas publicas - e, sobretudo, para
que essas exigencias beneficiem todos os alunos e sejam articuladas com a
mais ampla repolitizai;lio e democratizai;lio do espai;o escolar -, o que esta
em ~ausa, uma vez mais, e, por um !ado, 0 caracter redutor de algumas pers-
pect1vas de avaliai;lio quando nlio acolhem, ou quando subvalorizam, a
problematizai;lio do(s) conceito(s) de resultados escolares, pretendendo aferi-
los tendo exclusivamente como base instrumentos estandardizados e, por ou-
tro, a necessidade de desocultar o caracter ideol6gico que se esconde na impu-
tai;lio da responsabilidade da crise econ6mica a escola publica, quando esta
tern sido (e nos ultimas anos com maior evidencia empfrica) vftima das deci-
129
soes macroecon6micas que a impossibilitam de desenvolver projectos com
qualidade democratica e cientffico-pedag6gica.
Recusando admitir como facto consumado ou irreversfvel a nova confi-
gurac;ao das polfticas educativas que dao prioridade ao mercado- configura-
c;ao essa que, em nome de valores como o individualismo possessivo, a com-
petic;ao, a discriminac;ao social e a avaliac;ao meritocratica e selectiva, tern
promovido o abandono das preocupac;oes do Estado-providencia com a igual-
dade de oportunidades e com a construc;ao da escola democratica -
procuramos, ainda no capftulo terceiro, esboc;ar uma agenda altemativa para
pensar a avaliac;ao pedag6gica niio apenas como uma competencia profissio-
nal dos professores mas tambem como uma pratica polftica. Sugerimos assim,
na esteira de outras reflexoes e contribuic;oes sociol6gicas, que epossfvel
modificar a actual predominancia ou desequilfbrio a favor do Mercado, que
tern as suas pr6prias manifestac;oes e especificidades no campo da educac;ao,
rearticulando algumas das func;oes do Estado com a Comunidade - o que
significa assumir, no que diz respeito ao nosso objecto de estudo, que algumas
modalidades de avaliac;iio tern mais possibilidades do que outras para promo-
ver o reequilfbrio entre regulac;ao e emancipac;iio.
Do nosso ponto de vista, a avaliac;iio formativa (que esta longe de ter
esgotado todas as suas potencialidades) pode cumprir um papel de rearticulac;iio
do Estado com a Comunidade na medida em que ajudar a promover a aprendi-
zagem dos saberes e objectivos curriculares comuns, que decorrem de uma
escola basica como projecto de um Estado democratico, sem excluir as
subjectividades e as necessidades que se expressam nae pela Comunidade. A
Escola pubIica, nesta perspectiva, faz parte do Estado e da Comunidade e s6
neste sentido pode ser a expressiio das tensoes e contradic;oes que resultam,
por um !ado, da convergencia cultural decorrente da construc;iio da cidadania
e, por outro, da divergencia multicultural que a sociedade democratica propi-
cia e valoriza. Esta escola tern que ser credfvel, e isso passa pela capacidade
de realizar projectos educacionais com qualidade democratica e cientffico-
pedag6gica.
No entanto, a gestao da regulac;iio e da emancipac;iio eum processo ex-
tremamente complexo e diffcil. Nao depende apenas dos professores, embora
sejam estes que estiio em melhores condic;6es de mediar as exigencias do Es-
tado e as expectativas e necessidades da Comunidade, sobretudo quando a
autonomia profissional e posta ao servic;o de projectos que aproveitam da
autonomia relativa do pr6prio sistema educativo e das ambiguidades das po-
lfticas educativas.
Num contexto despolitizado, em que os direitos humanos basicos niio
siio, frequentemente, respeitados pelo pr6prio Estado e pela administrac;ao
publica, nem estiio interiorizados pelos actores educativos (pais, alunos e pro-
130
fessores, entre outros), as transformac;5es exigem lideranc;as colegiais e de-
mocraticas (dentro e fora da escola); professores que se assumam como inte-
lectuais transformadores e como agentes intermulticulturais; pais, alunos e
outros actores educativos que se co-responsabilizem por projectos de inova-
c;iio e emancipac;iio.
131

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A avaliação educacional: regulação e emancipação

  • 1. Este livro tern como principal objectivo possibilitar uma ampla fundamen- tac;ao te6rica e conceptual em tornoda avaliac;ao educacional, procurando, ao mesmo tempo, com sentido critico e problematizador, dar visibilidade as dimens6es sociais, ideol6gicas e gestionapas que fizeram da avaliac;ao um dos eixos estruturantes das polfticas Ce reformas) educativas contemporaneas. Ap6s uma breve revisao de algumas teorias do Estado, quer para me- lhor compreender a natureza politica do Estado-providencia e a sua crise, querpara melhorinterpretar as recentes mutac;oes na natureza e configurac;ao , doEstado em face do mercado, o autorprop6e um quadrote6rico-conceptual original que visa precisamente elucidar, do pontp de vista sociol6gico, as mudanc;as na avaliac;ao ocorridas em diferentes pafses nas ultimas decadas. Os limites analfticos de um quadro te6rico baseado apenas na compre- ensao ou descric;ao das referidas mudanc;as, bem como a constatac;ao de que, apesar de tudo, em muitos paf~es, se desenvolveram reacc;o~s anticonservadoras que conduziram a permanericia e resistencia de politicas educativas (ainda) referenciaveis ao modelo de Estado-providencia, estimula- ram o autoraretomaradefesa deuma concepc;ao radical das potencialidades educacionais (nao esgotadas) da "avaliac;ao formativa". Neste sentido, e como antfdoto as modalidades de avaliac;ao que tern vindo adar suporte apolfticas de regulac;ao neoliberal, defende ser urgente resgatar a avaliac;ao formativa como dispositivo emanclpat6rio, ja que esta contem possibilidades para aju- darapromoveraconcretizac;ao efectiva dos direitos culturais e educacionais, hoje fortemente ameac;ados. • Almerindo Janela Afonso
  • 2. AYALIA(AO EDUCACIONAL: regula9ao e emancipa9ao Almerindo Janela Afonso Capa: DAC Revisiio: Agnaldo Alves de Oliveira Composir;iio: Dany Editora Ltda. Coorde11ar;iio editorial: Danilo A. Q. Morales Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou duplicada sem autoriza9ao expressa do autor e do editor. Nata do Editor: Nesta edi9ao foi preservada a ortografia original do autor. © 2000 by Autor Direitos para esta edi9ao CORTEZ EDITORA Rua Bartira, 317 - Perdizes 05009-000 - Sao Paulo-SP Tel.: ( 11) 3864-011 l Fax: (11) 3864-4290 E-mail: cortez@cortezeditora.com.br lmpresso no Brasil - agosto de 2000 SUMARIO PREFACIO ................................................................................................... 7 INTRODU(AO .............................................................................................. 9 CAPITULO I - Sociologia da Avalia<;ao: problemas de delimita<;ao de um campo te6rico-conceptual e de investiga<;ao .............. 13 1. Sociologia da educa<;ao e avalia<;ao educacional ............................ 15 1.1 Campo possfvel para uma sociologia da avalia<;ao .................... 16 1.2 Algumas furn;oes da avalia<;ao................................................... 18 1.3 Avalia<;ao, poder e disciplina<;ao ............................................... 20 1.4 A avalia9ao como instrumento de socializa9ao ......................... 23 1.5 Algumas modalidades de avalia9ao ........................................... 28 1.5.1 Os exames tradicionais ..................................................... 29 1.5.2 Os quocientes de inteligencia e os testes educacionais ..... 31 1.5.3 A avalia<;ao normativa ...................................................... 34 1.5.4 A avalia9ao criteriaI .......................................................... 35 1.5.5 A avalia9ao formativa ....................................................... 38 1.6 Avalia<;ao e autonomia profissional dos professores ................. 40 1.7 Avalia<;ao e modelos de responsabiliza9ao em educa9ao .......... 43 1.8 0 Estado avaliador..................................................................... 49 5
  • 3. r CAPITULO III ESTADO, MERCADO, COMUNIDADE EAVALIA('AO: proposta de um quadro te6rico-sociol6gico 93
  • 4. ----------~-------~~ 1. Estado e teorias do Estado 0 Estado nao pode deixar de ser integrado como um elemento chave na analise <las polfticas educativas. No entanto, varios autores tern assinalado que a presen~a do Estado e bastante tenue na analise educacional, notando-se mesmo, em muitos trabalhos, uma total ausencia de qualquer <las diferentes perspectivas te6ricas que a ele podem ser referenciadas1 • Ao escreverem sobre a ausencia destas teorias na analise educacional nos EUA, Martin Camoy e Henry Levin sugerem como explica~ao o facto de neste pafs predominar uma representa~ao social em tomo do Estado que tende a fazer com que este seja percepcionado como "expressao de uma vontade geral", nao susceptfvel de problematiza~ao ja que o Estado, "nao possuindo ideologia, nem qualquer prop6sito subjacente excepto o de reflectir aquela vontade", preocupar-se-ia em prover a educa~ao porque simplesmente isso faz parte da oferta natural de um "conjunto de bens sociais comuns" (Camoy & Levin, 1985, pp. 27-28). Trata-se, por isso e no essencial, de uma perspec- tiva que acentua a ideia de um "Estado como provedor de bens colectivos" e que considera que "a principal fun~ao do Estado e servir como mecanismo neutro para agregarpreferencias ou integrara sociedade atraves da corporiza~ao de valores consensuais" (Alford & Friedland, 1991, p. 51). Ao contrario, as perspectivas marxistas, baseadas na analise <las classes sociais, diferem radicalmente na interpreta~ao sobre o Estado. Se, no caso <las teorias pluralistas, o Estado esta acima dos conflitos sociais porque se aceita l. Ja ha algum tempo, Roger Dale afirmou a estc prop6si10: "Given all that sociologists, economists and political scientists have had lo say about the meanings and assumptions, the processes and practices, the functions and outcomes, ofeducation systems in recent years, it is really very surprising lo find almost no analysis of the implications of State provision, irrespective of the particular approach adopted" (Dale, 1989, p. 23). TambemTadeu da Silvacomcntou sobre o mesmo assunto: "Aausencia de uma maior 1eoriza9ao sobrc as conexoes entre Estado c cduca91ioetanto mais inexplicavel quanto esta conexiioeexatamente um dos fatos mais notaveis a rcspeito da educa9ao modema" (Silva, I992, p. 21). 95
  • 5. que ele representa a sociedade como um todo, nas teorias marxistas, ao con- tnirio, o Estado esta imerso nos conflitos de classe porque, por um !ado, ele pr6prio e um instrumento essencial de dominai;ao de classe, e, por outro.yor- que tern que mediar os conflitos intrfnsecos aniio homogeneidad~ de mte- resses no interior da pr6pria classe dominante (cf. Camoy & Levm, 1985, pp. 37-38). Estes e outros aspectos considerados identificadores de duas concep- i;oes distintas resultam essencialmente do facto de se usar como criteria o modo como se concebe e justifica a relai;ao (de identidade ou de autonomia) do Estado com a sociedade. Neste domlnio, algumas sfnteses mostram que ha importantes clivagens que permitem que se afirme que "a questiio de saber se o Estado eaut6nomo ou redutfvel a sociedade e uma das mais importantes formas de diferenciar as varias teorias do Estado" (Hall, 1984, p. 23). No que conceme mais especificamente aeducai;iio, saliente-se, por exem- plo, que as teorias pluralistas "tendem a recusar quaisquer limitai;6es estrutu- rais sabre o processo de elaborai;iio das polfticas'', enquanto que as "teorias da sociologia crftica atribuem um papel fundamental ao conceito de autonomia relativa precisamente para reconhecer uma detenninar;ii.o estrutural ou uma delimitar;ii.o estrutural face as polfticas" (Stoer, 1994, p. 6) 2 • Claus Offe, que e um dos autores mais representativos a teorizar sabre a questiio da autonomia relativa, refere duas vers6es contemporaneas das teorias marxistas sabre o Estado. Para este autor, uma dessas versoes sugere a exis- tencia de uma relai;ao instrumental especffica entre a classe dominante e o aparelho estatal; a outra defende que "o Estado nao favorece interesses espe- cfficos nem esta aliado a classes especfficas". Neste ultimo caso, "o que o Estado protege e sanciona e, pelo contrario, um conjunto de instituii;oes e rela96es sociais necessarias para a dominai;ao da classe capitalista". Deste modo, acrescenta Offe, "embora niio defenda os interesses especfficos de uma unica classe, 0 Estado procura, apesar disso, implementar e garantir OS inte- resses colectivos de todos os membros de uma sociedade de classes dominada pelo capital" (Offe, l 984a, pp. 119-120). Desenvolvendo esta segunda versao, Offe esclarece a sua posii;ao em relai;ao as polfticas de educai;ao e formai;ao defendendo que elas visam, es- sencialmente, criar condi96es propfcias aefectivai;ao de rela96es de troca ou intercambio capitalistas, ou seja, condi96es que possam aumentar as probabi- 2. Do nosso ponto de vista lalvez possamos situar, por um Jado, Althusser e Poulantzas como dois autores que consideram a questao da auto110111ia relativa do Estado e reconhecem a determina(·iio estrulll- ra/ (no caso de Poulantzas sobretudo nos trabalhos da primeira fase) e, por outro, Claus Offe como excm- plo de um autorque tendo tambem considerado a questlio da au10110111ia relativa do Estadoesta, no entanto, mais pr6ximo do reconhecimento da delimirar;iio estrutural na elabora~ao das polfticas. Para uma analise aprofundada dos trabalhos destes autores, ver, por exemplo, Martin Camoy (1990a e 1990b). 96 lidades dos trabalhadores virem a ser empregados pelos capitalistas, dando a estes, simultaneamente, maiores oportunidades de acumularcapital. Mais con- cretamente, diz Offe, "[...] seria um equfvoco alegar que as polfticas estatais de educac;ao e formac;ao tern como objectivo fornecer a forc;a de trabalho necessaria a certas industrias [...].Ao contrario, tais polfticas tern coma meta criar o maxima de oportu11ida- des de troca entre o trabalho e o capital, de modo que os indivfduos de ambas as classes possam entrarem relac;oes capitalistas de produc;ao" (Offe, I984a, p. 123). Apesar de nao estarmos totalmente de acordo com a forma como Offe interpreta as polfticas de educai;iio e formai;ao - fundamentalmente porque pensamos que a sua funi;iio nao se resume apenas a contribuir para criar as condi96es necessarias para "universalizar a forma mercantil" -, parece-nos, no entanto, que esta passagem da sua obra e fundamental para perceber a teoria polftica do autor, exemplificando ao mesmo tempo o modo como o sistema educativo pode servir para ajudar a concretizar a autonomia relativa do Estado. Como o pr6prio Offe refere, o princfpio que visa submeter todos os indi- vfduos a rela96es mercantilizadas (ou mercadorizadas) contribui muito mais para manter as polfticas estatais sintonizadas com os interesses classistas dos agentes de acumulai;ao do que qualquer suposta conspirar;ii.o ou acordo entre o Estado e a industria (cf. Offe, l984a, p. 138). Neste sentido, o papel da educai;ao e formai;iio acaba por ser tambem um papel de intermediai;ao que ajuda a dissimular o caracter classista do Estado. Alias, coma varios autores referem, Offe rejeita a ideia de um Estado determinado exclusivamente pela 16gica do capital, antes defendendo que ele tern um papel de mediador (niio neutro) entre a luta de classes e o processo de acumulai;iio. Como ele pr6prio escreve em outra passagem, "as polfticas reformistas do Estado capitalista niio servem, de modo algum, inequivocamente, os interesses colectivos da classe capitalista"ja que, com frequencia, colidem com a mais vigorosa resistencia e oposii;iio polftica desta classe (cf. Offe, 1984a, p. 126). Dito de outro modo, o Estado niio e controlado pela classe dominante pois, como ja atras se referiu, o seu papel nas sociedades capitalistas avani;adas visa sobretudo "[...] garantir as relac;oes de troca entre actores econ6micos individuais. Uma vez mais, isto niio sig11ifica que o Estado capitalista atenda os i11teresses de uma classe particular; mais precisamente, ele sa11ciona o interesse geral de todas as classes na base de rela~oes de troca capitalistas" (Offe, 1984a, p. 123, italico nosso). Por esta e outras considera96es identicas, alguns autores tern afirmado que Claus Offe vai longe demais na sua concep9iio sabre a autonomia do 97
  • 6. Estado. Por exemplo, M. Carnoy e H. Levin (1985, p. 45), mesmo reconhe- cendo que aquele e outros autores "deram uma contribui9ao significativa ao enfatizar o pr6prio Estado como uma arena de conflito", criticam, no entanto, o facto de estas teorias reconhecerem a burocracia do Estado grande indepen- dencia no estabelecimento de polfticas, acabando por colocar o Estado e a polftica educativa longe da influencia quer dos grupos sociais, como os em- presariais, quer dos movimentos sociais. Ajulgar pela analise desenvolvida por alguns exegetas que tern acompa- nhado a evolu9ao do pensamento de Claus Offe, parece-nos que a crftica de M. Carnoy e H. Levin ja nao e, neste momento, totalmente procedente. Se- gundo John Keane, por exemplo, e significativo que, nos escritos mais recen- tes de Offe, as polfticas estatais tenham passado a ser consideradas dependen- tes da "matriz de poder sociaI'', a qua) esta constantemente sujeita a transfor- ma9oes pela actividade de grupos e movimentos sociais (Keane, 1984, p. 26). Esta evolu9ao, alias, pode notar-se num texto posteriorde Claus Offe, intitulado "Os novos movimentos sociais questionam os limites da ac9ao institucional", onde este autor afirma que actualmente se questiona cada vez mais "a utilida- de analftica da dicotomia convencional entre o Estado e a sociedade civif' e que isso passa, nomeadamente, por "processos de fusao entre ambas as esfe- ras, nao s6 a nfvet de manifesta9oes globais sociopolfticas mas tambem a nf- vel dos cidadaos como actores politicos primarios" (cf. Offe, 1992, pp. 163- 164)3. Para alem disto, e independentemente das crfticas a aspectos especfficos da contribui9ao de Claus Offe-que, como referimos, devem ser relativizadas tendo em conta a evolu9ao te6rica incorporada em textos mais recentes -, o que e inegavel e que este soci6logo alemao tern tido uma influencia importan- te no campo da sociologia (polftica) da educa9ao, como se pode constatar em alguns dos trabalhos a que seguidamente faremos referenda. Neles, como se vera, a compreensao do que e o Estado e dos modos como este funciona nas sociedades capitalistas e uma condi9ao indispensavel para problematizar a fun9ao da escola e da educa9ao. Procuraremos em segu.ida sumariar alguns t6picos sobre este assunto. Uma primeira ideia, que e frequente ser referida para introduzir a ques- tao atras enunciada, e a de que o Estado nape sin6nimo de govemo, embora essa seja a sua representa9ao social mais frequente. Reduzir o Estado aos 6r- gaos que compoem o governo - diz R. Dale - e reduzir o todo ao que pode ser considerado, tao s6, a sua "parte mais activa e visfvel". 3. Claus Offe chama tambem a aten~ao para o facto de diferentes actores colectivos, nomeadamente os varios tipos de movimentos sociais, cstarem a abrir "fcndas no sistema de monop6lio do poder do Estado" (Offe, 1996, p. 65), mostrando assim que algumas conce~5es tradicionais de Estado se tomaram obsoletas. 98 Neste momento, a necessi?ade de explicitar (e nao adiar) uma posi 9 ao leva-nos a adoptar uma perspect1va bastante ampla que define o Estado como um "pacto de domina9ao social" do qua) participam as classes sociais e, si- mul_taneame~te, ~0?10 "uma entidade administrativa auto-regulada, isto e, um conJunto de mst1tu19oes, rotinas organizacionais, leis e, sobretudo, burocra- cia, que e responsavel por implementar esse pacto de domina9ao" (Torres 1993, p. 44). • Esta defini9ao, mais operat6ria, tern a vantagem de ser bastantecongruente com a de outros autores que referem ser o Estado "um feixe de agencias, departamentos e nfveis, cada qual com as suas pr6prias regras e recursos, e frequentement~ com diversos prop6sitos e objectivos" (Held, 1989, p. 2), po- dendo mesmo mcluir as organiza9oes nao-govemamentais que sao financei- ramente su~ortad~s atraves de impostos (cf. Ginsburg et al., 1990, p. 489). o Estado esta, ass1m, longe de poder ser conceptualizado coma um todo monol!tico ja que e diffcil esconder, ou nao valorizar, as importantes diferen- 9as e~1stentes, entre e no interior dos varios aparelhos estatais, a respeito da mane1ra como se devem estabelecer as prioridades, nao apenas face as solici- ta9o~s ou exigencias que sabre esses aparelhos recaem, mas tambem tendo em cons1dera9ao a capacidade de satisfaze-las (cf. Dale, 1989, p. 29). 2. Genese e desenvolvimento do Estado-providencia Sendo importante para este trabalho perceber algumas das muta9oes re- centes n~ nat~rez~ ~o Estado, nao podemos deixar de considerar que e numa per~pect1va d1acron~ca que s.e inscreve necessariamente uma melhor compre- ensao dessas muta9oes. Ass1m, a forrna como o Estado Iida actualmente com as solicit.:19~es e exigencias econ6micas e sociais e, pelo menos em parte, uma consequen~1~ da~ altera9oes que ocorreram na passagem da fase do capitalis- mo c?1:1pettt1v~ liberal (em que o papel do Estado se limitava a criar algumas cond19oes ge~a1s para o funcionamento da economia) para a fase do capitalis- ~o monopohsta (em que as fun9oes do Estado passam a estender-se mais d1rectamente a produ9ao)- "Na fase do capitalismo monopolista produzem- se mudan9as fundamentais. As rela~oes entre o polftico e o econ6mico entre o Estado e a sociedade, estabelecem-se a partir de outros pressupost~s que levam.a que a separa9ao se suceda a inter-rela9ao. Eisto que significa e supoe a apan9ao do Estado-providencia" (Martin, 1994, p. 64). . De facto, na fase de expansao capitalista que se seguiu a II Guerra Mun- d1al, o Estado-providencia passou a ser a formula encontrada em muitos paf- ses para a gestao das contradi95es que vao tomar-se cada vez mais agudas ~omo resultado, por um !ado, da necessidade de o Estado ter uma decisiva mterven9ao econ6mica e, por outro, de ter que criar condi9oes para atender as 99
  • 7. novas e crescentes expectativas e necessidades sociais, muitas delas decor- rentes do reconhecimento de direitos de cidadania como a protecc;ao social, o acesso aos cuidados de saude e a educac;ao, entre outros. Para compreender adequadamente o caracter intrinsecamente contradi- torio destas novas solicitac;oes e preciso ter presente alguns dos "problemas centrais" do Estado capitalista, a saber: a) a necessidade de apoiar o processo de acumulac;ao; b) a necessidade de garantir o contexto adequado a continua expansao deste processo; e c) a necessidade de legitimar;iio do modo capitalis- ta de produc;ao (cf. Dale, 1989; Dale & Ozga, 1991). Sendo que as (sempre provisorias) soluc;6es encontradas num determi- nado momento para atender as exigencias da acumular;iio sao tambem (fre- quentemente) contraditorias com as necessidades de legitima<;iio, o Estado acaba por se envolver numa crise estrutural que se vai agravando a medida que, perante as crescentes exigencias que sobre ele pesam, se verifica "uma tendencia para as despesas publicas crescerem mais rapidamente do que os meios de financia-las" (O'Connor, 1977, p. 22)4 • Pela sua natureza intervencionista, o Estado-providencia e, assim, a for- ma polftica do Estado que mais contribui para esta crisefiscal permanente. Apesar disto, no pos-guerra, o Estado-providencia conseguiu, em dife- rentes pafses, ser a formula polftica mais adequada para fazer a gestao de solicitac;6es sociais, polfticas e economicas dificilmente conciliaveis. Neste perlodo, como acentua Offe, o Estado "mantem o controlo do capital sobre a produc;ao" mas tambem "fortalece o potencial de resistencia do operariado" perante esse mesmo controlo. Deste modo, "as relac;oes de produc;ao explora- doras coexistem com maiores possibilidades de resistir, escapar e mitigar a explorac;ao" (Offe, 1984a, pp. 151-152)- o que ilustra bem a natureza com- plexa e contraditoria desta especie de "pacto objectivo" ou "conciliac;ao taci- ta" entre o capital e o trabalho (Martin, 1994, p. 65) que se tomou um dos elementos estruturais do Estado-providencia, visando assim "garantir a coe- xistencia pacffica entre o capitalismo e a democracia" (Habermas, 1994, p. 121). Estes aspectos refere-os igualmente Boaventura Santos quando, ao sin- tetizar as principais caracterlsticas do Estado-providencia, escreve: 4. Como esclarece James O'Connor, "o Estado capitalista tern de tentar desempenhar duas funyoes basicas e muitas vezes contradit6rias: arumulariio e legitimariio. lsto quer dizer que o Estado deve tentar manter, ou criar, as condiy6es em que se faya possfvel uma lucrativa acumulayao de capital. Entretanto, o Estado tambem deve manter ou criar condiyoes de harmonia social. Um Estado capitalista que empregue abertamente sua forya de coayao para ajudar uma classe a acumular capital acusta de outras classes perdc sua legitirnidade e, portanto, abala a base de suas lealdades e apoios. Porem, um Estado que ignore a necess1~de de assistir o processo de acumulayao de capital arrisca-se a secar a fonte de seu pr6prio podcr, a capac1dade de produyao de excedentes econ6micos e os impostos arrecadados deste excedente (e de outras forrnas de capital)" (O'Connor, 1977, p. 19). 100 "O Estado-providencia ea forma polftica dominante nos pafses centrais na fase de 'capitalismo organizado', constituindo, por isso, parte integrante do modo de regulai;:ao fordista. Baseia-se em quatro elementos estruturais: um pacto en- tre o capital e o trabalho sob a egide do Estado, com o objective fundamental de compatibilizar capitalismo e democracia; uma relai;:ao constante, mesmo que tensa, entre acumulai;:ao e legitimai;:ao; um elevado nfvel de despesas em inves- timentos e consumes sociais; e uma estrutura administrativa consciente de que OS direitos SOciais sao direitos dos cidadaos e nao produtos da benevolencia estatal" (Santos, 1993, pp. 43-44). As polfticas economicas keynesianas adoptadas pelo Estado em alguns palses capitalistas centrais no pos-guerra tiveram como consequencia um cres- cimento economico sem precedentes e permitiram, ao longo de aproximada- mente tres decadas, assegurar (quase) o pleno emprego, manter uma inflac;ao baixa e alargar o acesso a determinados bens e servic;os considerados como direitos sociais (entre outros, o direito ao trabalho ea protecc;ao social; a igual- dade de oportunidades no acesso a educac;ao e aos servi<;os de saude, etc.)- razao pela qua! "os anos de 1945 e de 1973 definem, por assim dizer, as frontei- ras magicas de um perfodo para o qua! nao faltam designac;6es vistosas, como a que refere o pleno desenvolvimento de um cfrculo virtuoso da economia ou a que qualifica aquele perfodo de trinta anos gloriosos" (Reis, 1992, p. 31). 2. 1. A crise do Estado-providencia A recessao economica que ocorre na sequencia do chamado choque do petr6leo no infcio dos anos setenta - e que se tomou socialmente visIvel com o aumento da infla<;ao mais o aparecimento do desemprego massivo (estagfiar;iio) - , conduziu rapidamente a uma revisao dos postulados do mo- delo keynesiano em que assentava o Estado-providencia, revelando as contra- dic;oes e as limitac;6es inerentes a formula poIftica adoptada e "semeando a duvida sobre a omnicompetencia do Estado e da sua capacidade de adaptac;ao a situac;oes novas" (Badie & Birnbaum, 1994, p. 189). Como consequencia, o intervencionismo estatal, ate entao aceite coma benefice, passou a ser visto coma um impedimento para a resolu<;ao dos problemas emergentes (cf. Pico, 1987). A crltica ao modelo do Estado-providencia passa a ser uma constante vinda dos sectores liberais e conservadores que integram a chamada nova direita. Eesta coliga<;ao polftica, resultante de interesses e valores contradito- rios, que ira marcar a agenda ao longo dos anos oitenta em muitos palses. Dessa agenda fazem parte estrategias polfticas e economicas que visam a revalorizac;ao do mercado, a reformulac;ao das relac;6es do Estado com o sector privado, a adopc;ao de novos modelos de gestao publica preocupados com a 101
  • 8. eficacia e a eficiencia ("new public management"), e a redefini<;iio dos direi- tos sociais (cf. Pollitt, 1993; Ranson & Stewart, 1994; Salter, 1995). Passados alguns anos e iniciada uma outra decada, a analise retrospecti- va do que ocorreu, sobretudo nos Estados Unidos e na Inglaterra, revela, ape- sar de tudo, que o projecto da nova direita niio tera sido totalmente bem suce- dido. Se, por exemplo, o pleno emprego deixou de serum dos objectivos mais importantes das polfticas publicas (passando, ao contrario, o desemprego a ser visto mesmo como solu<;iio ou, pelo menos, como uma consequencia natural da implementa<;iio do mercado competitivo), o mesmo niio parece ter aconte- cido com os "programas sociais universais" que eram a marca distintiva do Estado-providencia e que, em grande parte, continuaram a vigorar (cf. Mishra, 1995; Therbom, 1995). Alguns autores referem mesmo que os govemos con- servadores niio conseguiram o sucesso econ6mico que apregoavam no infcio da crise, "convertendo-se assim em gestores de um Estado-providencia que pretendiam desmantelar" (Benedicto & Reinares, 1992, p. 20). Estamos, portanto, face a uma avalia<;iio generica das mudan<;as polfti- cas do neo-laissez-faire, que e pouco consensual, alias, ja que tern vindo a alimentar uma interessante polemica nas ciencias sociais sobre a questiio da manuten<;iio versus retrac<;iio do Estado-providencia: se uns defendem que o Estado-providencia ira continuar a resistir, como alguns exemplos demons- tram (cf. Clasen & Gould, 1995), outros advogam que a questiio da reversibilidade niio foi de todo resolvida, e outros, ainda, acham que ele vai continuar mas "tera de ser reconstrufdo com o mfnimo de burocracia" (Dahrendorf, 1993, p. 33). Alguns soci6logos como JUrgen Habermas tern feito notar que, apesar dos muitos problemas e contradi<;6es que !he siio inerentes, niio e poss!vel substituir o Estado-providencia: "Precisamente a falta de op<;oes substitutivas e, inclusive, a irreversibilidade de algumas estruturas de compromisso pelas quais foi necessario lutar, situam-nos perante o dilema de que o capitalismo avan<;ado niio pode viver sem o Estado social, nem tiio-pouco pode faze-lo com ele" (Habermas, 1994, p. 124). Ou, como afirma Offe de forma muito semelhante, "O desagradavel segredo do Estado social reside em que, apesar do seu efeito sobre a acumula<;iio capitalista poder muito bem tornar-se destrutivo (como a analise conservadora demonstra tao enfaticamente), a sua elimina<;iio seria evidentemente disruptiva (fato que a crftica conservadora sistematicamente ignora). A contradi<;iio consiste em que o capitalismo niio pode coexistir com o Estado social nem continuar existindo sem ele" (Offe, 1991, p. 122). Para Goran Therborn, o Estado-providencia constitui, apesar de tudo, um "capital polftico importante dos progressistas" - capital polftico que niio pode ser considerado ultrapassado, devendo antes ser qualitativamente desen- 102 volvido. Se assim niio acontecer, esclarece, o Estado-providencia deixara de ser uma institui<;iio universal que garante os direitos sociais fundamentais para uma grande maioria e passara a ser apenas uma solu<;iio de recurso para os mais desfavorecidos. Neste caso, a sua pr6pria sobrevivencia estara em causa porque "uma institui<;iio que se encarrega somente dos pobres acaba conver- tendo-se em algo secundario" (Therbom, 1994, p. 63). Uma leitura mais pessimista fortalece a ideia de que a transi<;iio para uma sociedade p6s-fordista esta de facto a criar uma "economia dual" ou uma "sociedade de duas na<;oes" - e e isso precisamente que leva autores como Ramesh Mishra (1995) a acreditarem que "o Estado-providencia esta de facto a revelar-se reversfvel", ainda que se trate de uma estrategia de retrac~iio a longo prazo. 3. A tipologia habermasiana das crises do capitalismo e a educa~ao: dois exemplos de recontextualiza~ao Uma das concep<;oes mais interessantes para compreender as mudan<;as atras referidas foi proposta por JUrgen Habermas (1988) quando analisou as "tendencias de crise especfficas do sistema" capitalista (cf. quadro 3). QUADR03 Tipologia das crises do capitalismo PONTO DE ORIGEM CRISE DO SISTEMA CRISE DE IDENTIDADE Sistema econ6mico Crise econ6mica Sistema polftico Crise de racionalidade Crise de legitimar;:ao Sistema s6cio-cultural Crise de motivar;:ao Fonte: Jiirgen Habermas (1988) (1973) Legitimation crisis. Cambridge: Polity Press, p. 45. Habermas sugere quatro "poss(veis tendencias de crise": a crise econ6mica que tern como ponto de origem o sistema econ6mico; a crise de racionalidade e a crise de legitima<;iio que se originam no sistema polftico; ea crise de motiva<;iio com origem no sistema socio-cultural. Erelativamente consensual que o capitalismo sofre periodicamente cri- ses de acumula~iio econ6mica. Para reagir a essas crises, o Estado assume algumas tarefas de apoio ao processo de acumula<;iio - tarefas essas que tenta 103
  • 9. dissimular uma vez que nao sao compatfveis com a procura de consentimento ou "lealdade das massas"5 • Segundo Habermas, e a "lealdade das massas" que constitui o input do sistema politico, ao qual, por sua vez, corresponde um output que consiste em "decis6es administrativas soberanamente executadas". As crises manifestam- se quer num quer noutro ponto do sistema politico. Assim, relativamente ao output, pode falar-se de uma crise de racionalidade que se expressa na inca- pacidade do sistema adrninistrativo dar conta com sucesso dos imperativos do sistema econ6mico6• Por sua vez, com referencia ao input, pode falar-se de uma crise de legitimar;ao quando o sistema politico deixa de poder contar com o nfvel indispensavel de lealdade das massas. Embora se desenvolvam no mesmo sistema, estas duas tendencias de crise diferem na forma como aparecem. Finalmente, a crise de motivafao tern origem nas mudan9as que afectam o sistema s6cio-cultural. Dado que o sistema socio-cultural recebe o input do sistema politico e do sistema econ6rnico, as crises pr6prias do siste- ma socio-cultural sao sempre crises de output. Estas tomam-se visfveis pela ruptura do sistema cultural tradicional (o sistema moral, as visoes do mundo) bem como pelas mudan9as nos sistemas de educa9ao de que fazem parte, no- meadamente, a escola, a famflia e os meios de comunica9ao de massas (cf. Haberrnas, 1988, pp. 46-48). Dito de outro modo, os padroes motivacionais do capitalismo avan9ado produzir-se-iam por uma rnistura de elementos tradicionais pre-capitalistas (por exemplo, a velha etica cfvica, a tradi9ao religiosa) e de elementos bur- gueses (por exemplo, o individualismo possessivo e o utilitarismo). Acontece, porem, que os elementos pre-capitalistas estao agora amea9ados pelo proces- so de crescente racionaliza9ao social e de crescente relativiza9ao moral, e os elementos centrais da ideologia burguesa sofrem igualmente um processo de erosao, nomeadamente pelo facto de o sistema educativo criar expectativas e 5. A prop6sito desta necessidade de dissimulayao, escrcveu ha algum tempo O'Connor: "O Estado deve envolver-se no processo de acumulayao, porem tern de faze-lo mistificando sua polftica, denominan- do-a de algo que nao e,ou tern de oculta-la (por exemplo, transformando temas politicos em temas adminis- trativos)" (O'Connor, 1977, p. 19). 6. "Output crises have the form of a rationality crisis in owhich the administrative system does not succeed in reconciling and fulfiHing the imperatives received from the economic system" (Habermas, 1988, p. 46). Na interpretairao de Barbara Freitag, a crise de racionalidade ocorre "quando o Estado capitalista se ve for9ado a ajustar racionalmente meios a fins em funyao de valores e problemas muitas vezes nao conciliaveis, procurando otimizar os ganhos em todos os casos. lsso ocorre freqtientemente na tentativa do Estado de conciliar os interesses da polftica intema com os da polftica extema". E mais a frente: "Enquanto Estado-nayao, procura maximizar ou otimizar os lucros defendendo uma posiirao economica favoravel no mercado intemacional. Digladia-se com perfodos de recessao, concorrencia no mercado, oligop61ios, falta de ~atena-prima, elevairao dos preyos do petr61eo, etc., e procura permanentemente atender as exigencias do s1stema produtivo, seja como consumidor, seja como produtor de mercadorias (crise de racionalidade)" (Freitag, 1990, p. 100 e p. 103). 104 aspira96es que nao podem ser coordenadas com as oportunidades ocupacionais (cf. Held, 1989, p. 85). A • 0 q~e parece.assim estar tambem em causa e a pr6pria ideologia do ex1to (achievement ideology)- um dos elementos centrais da concep9ao bur- gues~ que se~pre ?efendeu que "a distribui<;ao das recompensas deveria ser uma 1ma~em 1somorfica das realizas:6es individuais" (Haberrnas, 1988, p. 81). De~acred1tado.o mercado, enquanto mecanismo justo de distribui9ao de opor- tumd~des de v1da, o sucesso ocupacional passou a ser mediado pela escola - solus:ao que, por s~a vez, s6 poderia ter tido credibilidade, segundo Habermas, se fossem. pr:ench1da~ as seguintes condi96es: a) igualdade de oportunidades para adm_iss~o a? ~ns1~0. superior; b) padr6es de avalias:ao do desempenho escolar nao d1scnmmatonos; c) desenvolvimentos sincr6nicos do sistema edu- c.acional e ~o ~istema ocupacional; d) processos de trabalho em que se permi- ~tss~ ~ avah~~ao.d~ acordo com realiza96es susceptfveis de responsabiliza9ao md1v1dual ( md1v1dually accountable achievements"). Tambem neste caso, acresce~ta ~abermas, se e poss!vel dizer que alguns progressos ocorreram nas duas pnmetras condi96es, o mesmo ja nao se pode dizer em relas:ao as outras, nomeadamente pelo facto de "a expansao do sistema educacional se estar a tomar cada vez mais independente das mudan9as no sistema ocupacional" (Habermas, 1988, p. 81). .!alvez por isto, m~ito~ autor~s, ao considerarem a tipologia proposta por Jurgen Ha~rmas, se mclmem a mterpretar a crise de motiva9ao sobretudo coma. uma cnse que se expressa pela ausencia de um sentido para a vida. Re~attvamente aos j?vens, a crise de motiva9ao (ou a perda desse sentido para a ~1da) ace,nt~ar-se-ta quando estes se dao conta, por exemplo, que, perante a cnse.econoffilcae na sequencia do desaparecimento da ideia de vocafao,con- segmr um emprego significa apenas a oportunidade de obter um salario ou pior ainda, que o crescente esfor90 exigido pela escola garante cada vez,me~ n?s a inser9ao no mercado de trabalho e a concretiza9ao dos projectos pesso- a1s (cf. Young, 1989). Esta crise de motiva9ao esta igualmente relacionada com a "coloniza9ao do mundo da vida", como parece depreender-se de um outro texto de Habermas no qual este.a~tor_reconhece e responde a algumas criticas relativas a pouca clareza na d1stm9ao que propoe entre crise de legitima9ao e crise de motiva- 9ao. Neste texto, Habermas escreve: "Para as deforma<;oes do mundo da vida, que nas sociedades modernas se fa- ~em sentir como de~trui5ao das formas tradicionais de vida, como ataque a mfraestrutura comumcat1va dos mundos da vida, como anquilosamento de uma pratica quotidiana unilateralmente racionalizada e que seexpressam em sequelas que representam tradi<;?es culturais empobrecidas e processos de socializa<;ao perturbados, empregue1 nesse momento o equfvoco r6tulo de crise de motiva- 105
  • 10. r;ao. Hoje preferiria entende-la como um caso paralelo ao da crise de legiti- mar;ao" (Habermas, 1989, p. 474). De facto, parece existir uma relac;ao muito pr6xima entre crise de legitimac;ao e crise de motivac;ao uma vez que uma ocorre na sequencia ~a nao resoluc;ao da outra. Mais explicitamente, quando ocorre uma cnse de legitimac;ao e porque o Estado tern dificuldade em promo:er, justificar e de- fender certas polfticas - o que, alias, se toma cada vez ma1s frequente dado o caracter contradit6rio de muitas iniciativas e decisoes que siio tomadas, sobre- tudo no campo econ6mico. Neste quadro, acrescenta Barbara Freitag, o insucesso do Estado, quando procura explicar e defender medidas que implementou, reflecte-se numa crise de motivac;ao. Euma crise "que anuncia problemas de integrac;ao social" e que ocorre quando "os indivfduos membros de uma sociedade ja nao se sentem motivados a seguir as instruc;oes e ordens advindas do sistema economico e politico". Esta crise de motivac;ao pode le- var tambem a uma procura de altemativas de vida em relac;ao as que estiio institucionalizadas, podendo ter expressiio em determinados grupos ou movi- mentos sociais (cf. Freitag, 1990, pp. 100-101). A teoria das crises de Jlirgen Habermas, aqui sucintamente referida a partir de alguns dos seus textos e da interpretac;ao que dele~ fizemos -,f~e­ quentemente apoiada, alias, em outros autores dada a mamfesta e genenca dificuldade conceptual que os caracteriza -, tern sido utilizada como recurso analftico por alguns investigadores do campo da educac;ao. Parece-nos por isso util referir aqui dais <lesses trabalhos ate porque tern a particularidade de tentar articular algumas mudanc;as que tern vindo a ocorrer nos sistemas educativos com a problematica da avaliac;ao educacional. Um <lesses traba- lhos, proposto por Andy Hargreaves (1989a, 1989b), diz respeito a um pafs central que ea Inglaterra; e o outro, proposto por Felix Angulo (1993), a um pafs (semi)periferico que e a Espanha. No que diz respeito a Inglaterra, Andy Hargreaves considera que nas ultimas decadas as tentativas mais importantes de reestruturac;ao da educac;iio coincidem com tres periodos caracterizados por um tipo particular de crise social: um primeiro periodo, que e marcado·por uma crise de racionalidade, vai do fim dos anos cinquenta a meados dos anos setenta; um segundo perfo- do, que vai de meados dos anos setenta ao infcio dos anos oitenta, corresponde a uma crise de legitimac;ao; e um terceiro periodo, que se inicia com a decada de oitenta, mas sem um limite muito definido, e aquele em que ocorre uma crise de motivac;ao. A cada um <lesses perfodos correspondem crises educacio- nais especfficas que procuram ser resolvidas atraves de mudanc;as nas politi- cas de educac;ao (cf. quadro 4). 106 QUADR04 Crises sociais e educacionais PERIODOS TIPO DE CRISE TIPO DE CRISE PONTO DE SOCIAL EDUCACIONAL CONVERGENCJA POLITICAS Finais de 1950 - Racionalidade Administra¥ii.o e Escolas sccundarias Meados de 1970 reorganiza¥ii.O nao selectivas Meados de 1970- Legitima¥ii.O Currfculo Direito a um currfculo infcio de 1980 comum lnfcio de 1980... Motiva¥ii.O Avalia¥ii.o dos alunos Registos de avalia¥ii.o (e dos professores) Fonte: Adaptado de Andy Hargreaves (1989a) Curriculum and Assessment Reform. Milton Keynes: Open University Press, p. 103. Segundo Andy Hargreaves, nos anos cinquenta e sessenta as reformas na Inglaterra apoiaram-se fundamentalmente em estrategias administrativas que conduziram a expansiio ea reorganizac;ao do sistema educativo. 0 Estado preocupou-se com a qualificac;iio tecnica dos indivfduos (investimento em capital humano) para atender ao crescimento da economia e para dar satisfa- c;ao as novas exigencias decorrentes das polfticas de bem-estar social que se verificaram no p6s-guerra. Euma epoca de crenc;a optimista na educac;iio que levou a criac;ao da escola secundaria de massas (comprehensive school) e a implementac;ao de polfticas de igualdade de oportunidades. A recessao econ6mica de meados dos anos setenta veio par termo a este consenso optimista sabre a educac;ao. Diminui a crenc;a nos beneffcios da ex- pansao e reorganizac;ao, e as estrategias administrativas adoptadas ate af dei- xaram de ser percepcionadas coma adequadas, instalando-se uma crise de racionalidade administrativa. Esta crise combinou-se rapidamente com uma crescente desconfianc;a em relac;ao as instituic;oes sociais, provocando o questionamento da qualidade da escola publica e obrigando a redefinir os pro- p6sitos da educac;ao. A descrenc;a no sistema educativo - agora no contexto de uma crise de legitirnac;ao -, reflecte-se, em terrnos educacionais, nas dis- cussoes que terao coma foco o curricula. Nao se trata, observa Hargreaves, exactamente de urna desconfianc;a que tenha origem numa suposta convicc;ao de que o curricula, par estar fora do controlo publico, teria mais facilmente deixado de corresponder as necessidades econ6micas. 0 que parece explicar esta focalizac;ao no curricula ea percepc;iio de que ele podia assumir um papel ideol6gico importante para criar "uma nova base de consentimento e coesao sociais". 107
  • 11. No entanto, esta oportunidade de dar uma outra orienta9ao a polftica educativa (aproveitando, nomeadamente, a pr6pria reivindica9ao, entao emer- gente, do direito a um currfculo comum) derivou para outras solu96es que Jevaram o curriculo a refor9ar-se como "um mecanismo de diferencia9ao so- cial e educacional". Assim, "no infcio dos anos oitenta o currfculo como um todo ja nao era visto como uma estrategia dominante para assegurar o consen- timento social, restaurar uma cren9a comum, restabelecer uma ampla legitima9ao para os prop6sitos da sociedade e das institui96es numa epoca em que as oportunidades continuavam a ser esporadicas, os empregos raros e as recompensas escassas" (Hargreaves, 1989b, p. 109). Com a entrada na decada de oitenta, abre-se um novo perfodo no qua) se assistira a um aprofundamento do sentimento de insatisfa9ao dos jovens face as perspectivas pessimistas de futuro a que a escola nao parece ser capaz de responder. A isto se associa a recessao econ6mica, bem como o declfnio das formas tradicionais de apoio emocional e cultural, como a comunidade e a famllia, cerceadas pela intromissao crescente do Estado na vida privada dos indivfduos - factores e indicadores identicos, alias, aos que ja Habermas havia nomeado na sua analise sobre o capitalismo tardio. Independentemente dos sintomas especfficos desta nova fase - que al- guns autores, segundo o pr6prio Hargreaves, contestam - , tera sido por esta altura percepcionada uma crise de motiva9iio dos jovens que volta a estimular mudan9as na polftica educativa visando agora, sobretudo, a introdu9ao de novas formas de avalia9ao. Eprecisamente neste perfodo que surgem os chamados records ofachievement - os novos "registos de avalia9ao" que passaram a ser vistos (e propagandeados) como uma forma de avalia9ao capaz de promo- ver a motiva9ao dos alunos. Andy Hargreaves, no entanto, questiona fortemente a aceita9ao acrftica destas novas propostas de avalia9ao por conterem implicitamente a ideia de que a motiva9ao dos alunos seria um fim em si mesmo e, por isso mesmo, independenteda discussao (e da legitimidade) dos conteudos a serem aprendi- dos. Deste modo, continua este autor, um processo que pretende, mesmo que seja com as melhores inten96es, aumentar a motiva9ao para a aprendizagem mas semdiscutir os prop6sitos curriculares subjacentes pode ser "equivalente a uma manipula9ao de disposi96es, habitos.e inclina96es" para promover o ajustamento dos jovens a qualquer exigencia do sistema social e econ6mico. Nestas circunstancias, acrescenta Hargreaves, promovera motiva9ao deixa de ser um processo pedag6gico, cujo objectivo seria criar uma predisposi9ao positiva para os alunos aprenderem conhecimentos que valem a pena ser aprendidos, para passar a serum processo s6cio-polftico, gerido pelo Estado, de acomoda9ao as realidades da crise econ6mica: a motiva9ao, que deve seressen- cialmente um processo de encorajamento educativo, pode transformar-se assim numa outra estrategia de gestao da crise (cf. Hargreaves, 1989b, pp. 112-113). 108 Como se verifica pela interpreta9ao te6rica que acabamos de sintetizar as crises sociais e educacionais vao sendo diferentemente classificadas e no~ meadas.mas mantem u.ma liga9ao estreita com as condi96es e consequencias do func1onamento do s1stema econ6mico. Alias, na esteira de outros trabalhos que temos vindo a citar, Andy Hargreaves come9a por considerar que grande parte da "educa9ao organizada" e parte do Estado, e que este tern como uma das su~s fun96es intervir na economia, sobretudo para prevenir ou compensar os efe1tos nao desejados da actividade econ6mica - o que significa que a forma como o Estado gere a educa9ao esta fortemente condicionada pela "sor- te da e~onomia" e pelas estrategias adoptadas para lidar com os problemas que denvam do sistema econ6mico. Nesta mesma linha, vamos referir tambem um texto de Felix Angulo (1993) que procura ensaiar uma possfvel articula9ao da tipologia das crises de Jtirgen Habermas com a tipologia das "estrategias de legitima9ao com- pensat6ria" de Hans Weiler, aplicando-a a evolu9ao da polftica educativa espanhola. ,~orem, antes de entrarmos nessa proposta de articula9ao te6rica, parece- nos util ~~res~ntar uma p~quena sfntese do artigo "Legalization, expertise, and part1c1pation: strategies of compensatory legitimation in educational policy" onde H. Weiler esclarece a sua tipologia. . Partindo do pressuposto, comum a outros autores, de que o Estado capi- tahsta opera com um defice permanente de legitimidade - que se reflecte de modo particular na area da educa9ao, e para o qual contribuem simultanea- men~e algumas ~as fun96es do pr6prio sistema educativo -, Weiler (1983) cons1dera que ex1stem tres estrategias na polftica educativa que sao particular- ~ente uteis para responder a esta situa9iio: trata-se de polfticas especfficas, vistas como "estrategias de legitima9ao compensat6ria'', que implicam a utili- za9ao ~a legislaf~o, do conhecimento especializado e da participafao, e que se destmam a apo1ar o Estado na supera9ao ou na diminui9ao dos defices de legitimidade. No campo da polftica educativa, mais concretamente, recorre-se com alguma frequencia a estrategias de legitima9ao compensat6ria que tern como base a invoca9ao de normas legais e decisoes judiciais ("legalization" ou "judicialization"); a utiliza9ao do conhecimento cientffico e tecnico atraves de instrumentos de planifica9ao e experimenta9ao ("expertise"); e o estabele- cimento de formas de participa9ao dos actores nos processos de decisao ("participation"). Nas palavras de Hans Weiler, estas tres estrategias nao sao senao variantes daquilo que o pensamento polftico ocidental tern considerado como as.principais f~ntes de legitimidade da autoridade polftica: os princfpios da legahdade, da rac1onalidade organizacional e da participa9ao democratica (cf. Weiler, 1983, p. 263). 109
  • 12. Partindo das tipologias de Weiler e de Habermas, anteriormente referi- das, Felix Angulo (1993) interpreta a evolu~ao da polfticaeducativa e curricular em Espanha, e tenta projectar a sua evolu~ao futura, "combinando os tipos de crise e as estrategias de solu~ii.o", em fun~ao das exigencias que o capitalismo avan~ado faz ao Estado e ao sistema educativo. Aquelas exigencias passariam pela implementa~ao de criterios relativos a conten~ii.o de despesas, e pela va- loriza~ao da eficacia e da eficiencia; pela prepara~ii.o de mii.o-de-obra qualifi- cada ou pela sua predisposi~ao para uma qualifica~ii.o posterior e permanente no posto de trabalho; pela diferencia~ao e selec~ao individual dos sujeitos; e pela flexibiliza~ao dos modelos burocraticos de gestao. A expressii.o destes vectores, segundo o autor, encontrar-se-ia (tambem em Espanha) nas orienta- ~oes de polftica educativa que se desenvolveram ao longo dos anos oitenta e infcio dos anos noventa. E isto, precisamente, que o quadro 5 pretende exemplificar. E s T R A T E G I A s QUADROS Desenvolvimento da polltica educativa e curricular em Espanha nos anos oitenta Sistema Sociocultural Racionalidade Legitima~ao Motiva~ao Legisla~ao Leis de racionaliza~ao Currfculo nacional/ Sistema de do sistema (LOGSE) estatal centralizado acredita~ao/ selec~ao meritocratica Conhccimento Estruturas/racionais: Contcudos culturais Provas/exames especializado niveis de concretiza~ao avaliados por nacionais curricular. DCBs. especialistas (ex: matematica, ciencias e lfnguas) Participa~ao Leis de racionaliza~ao Participa~ao Sociedade civil da participa~ao constrangida/ como cliente do (LODE) depcndente sistema educativo. . Competi~ao entre escolas Fonte: Adaptado de Felix Angulo (1993). "Evaluaci6n de! sistema educativo". Cuademos de Pedagogia, n° 219, p. 10. Sem querermos retomar em pormenor a reforma educativa espanhola (mesmo porque ja foi considerada, em boa parte, no capftulo 2), salientaremos 110 apenas dois ou tres aspectos da proposta em causa. Um <lesses aspectos pare- ce indicar que a Ley de Ordenaci6n del Sistema Educativo (LOGSE) foi nao s6 a principal estrategia legislativa (legalization) considerada pelo Estado espanhol para solucionar a crise de racionalidade e de legitimidade do siste- ma educativo no periodo em causa, como ela pr6pria seria um born exemplo quer da colabora~ii.o dos especialistas, que teriam contribufdo para a aceita- ~ao das op~oes tomadas em rela~ao a estrutura e conteudos dos novas currf- culos (expertise), quer da consagrat;ii.o e promo~ao da participa~ao dos dife- rentes actores enquanto uma nova estrategia adoptada no campo educacional (participation). Para os objectivos deste trabalho, sao ainda mais importantes algumas considera~oes feitas por Felix Angulo a prop6sito das fun~oes da avalia~ao que classifica "segundo a sua importancia real para o Estado e para o capita- lismo, como primarias, secundarias e terciarias". Para este autor, as fun~oes que designa por primarias (a "selec~ao dos indivfduos'', o "controlo adminis- trativo" e a "gestao produtivista do sistema") sao as mais importantes neste momenta, nomeadamente porque estao associadas ao ressurgimento da ideo- logia meritocratica, as pressoes para fomentar a competi~ao entre escolas e as exigencias de acompanhamento do "rendimento do sistema educativo", so- bretudo em termos da sua eficacia e eficiencia. Estas fun~5es da avalia~ao, em grande medida implfcitas ou "ocultas", tomaram-se gradualmente explfcitas com a implementa~ii.o das polfticas neoconservadoras em pafses como os EUA e a lnglaterra. As fun~5es designadas por intermedias ou secundarias (por exemplo, o "refor~o da homogeneidade cultural" ea "valoriza~ao de aprendi- zagens, conteudos e processos curriculares") sii.o apresentadas como funt;oes publicamente aceites, muito embora possam produzir efeitos negativos e vir a introduzir tensoes importantes no sistema educativo. Conforme observa o au- tor, se, por um !ado, tende a acentuar-se uma certa estandardiza~ao cultural, nomeadamente atraves de currfculos nacionais, por outro !ado, assiste-se a valoriza~ii.o da intermulticulturalidade; se, de algum modo, sao valorizadas as aprendizagens dos alunos, por outro, certos conteudos curriculares tenderao a prevalecer em fun~ao de objectivos que serii.o medidos atraves de provas e exames. Por ultimo, as fun~5es designadas por "terciarias" ou "explfcitas" sao aquelas que servem apenas a objectivos polfticos meramente ret6ricos - objectivos que sao anunciados nos discursos quando se enumeram as virtualidades da avalia~ao, quer para melhorar a informa~ii.o sabre o sistema educativo, quer para justificar uma pretensa mobilidade social, quer ainda para promover a motiva~ao individual. Numa perspectiva comparativa, e ao contrario do que a primeira vista possa parecer, estamos perante dois ensaios bastante diferentes. No que diz respeito as crises de legitima~ii.o (ou de confian~a) nos siste- mas educativos, os dois autores coincidem em afirmar que, ao longo das ulti- 111
  • 13. mas decadas, as tentativas de solu9ao dessas crises passaram sobretudo pelo currfculo. Quer no caso da Inglaterra, quer no caso da Espanha, tanto a implementa9ao como a redefini9ao de um currfculo nacional foram igualmen- te acompanhadas pelo refor90 dos mecanismos de controlo por parte do Estado. Ja no que diz respeito acrise de motiva9ao, que os mesmos autores rela- cionam com as mudan9as nos processos de avalia9ao, notam-se divergencias importantes. Se, por um lado, no caso do esquema conceptual proposto por Hargreaves, sao as novas formas de avalia9ao, como os records ofachievement, que sao tratadas como pretensas estrategias de atenua9ao da crise de motiva- 9ao, por outro, no esquema proposto por Felix Angulo, parece que esta fun9ao e, ao contnirio, atribufda a formas de avalia9ao mais selectivas e meritocraticas (provas e exames nacionais) capazes de promover a compara9ao entre alunos e favorecer a competi9ao entre escolas (cf. quadro 5). Relativamente a estas perspectivas, percorremos com aten9ao virios tra- balhos que aceitam que as diferentes modalidades de avalia9ao podem ter alguma rela9ao diferencial com a crise de motivafiio, mas nao encontramos argumentos convincentes que permitissem concluir que as provas e exames nacionais sao as formas de avalia9ao que, no contexto das mudan9as s6cio- econ6micas actuais, podem contribuir mais eficazmente para atenuar a referi- da crise. Naturalmente que poderemos ainda considerar um problema mais importante: trata-se de questionar a pr6pria hip6tese de partida que sup6e que a avalia9ao pedag6gica pode contribuir de forma significativa para solu9ao da crise de motivafiio. Se lembrarmos que esta crise, no sentido habermasiano, esta muito longe de se circunscrever ao contexto escolar, nao sera bastante redutor esperar que os problemas que resultam da interacc;:ao de factores econ6micos, sociais e politicos, profundamente imbricados nas muta96es do Estado e do capitalismo a nfvel nacional e global, possam ser solucionados (ou mesmo significativamente atenuados) atraves de mudan9as na avalia9ao pedag6gica? Independentementede alguns limites te6ricos ou metodol6gicos dos tex- tos acima analisados (em parte assumidos pelos pr6prios autores), e justo re- conhecer que se trata de duas tentativas importantes de articula9ao das mu- dan9as sociais e das formas de avalia9ao, tao mais importantes quanto escas- seiam os trabalhos originais que com este objectivo podem ser considerados especificamente sociol6gicos. • Por isso, o nosso pr6prio contributo insere-se tambem nessa linha de analise, embora tenhamos optado por construir um quadro te6rico relativa- mente distinto. Em vez de utilizarmos apenas tipologias ja constitufdas, como a tipologia das tendencias de crise do capitalismo proposta por JUrgen Habermas ou a tipologia das estrategias de legitima9ao compensat6ria de Hans Weiler, partimos antes para uma compreensao das mudanc;:as econ6micas e polfticas em pafses centrais onde ocorreu mais cedo o renascimento neoliberal e 112 neoconservador e fomos procurando perceber as implica96es destes aconteci- mentos ei:n~ermos de reforrnula9ao das polfticas educativas e avaliativas. Sendo a r~defimc;:ao do pap~I. do Estado e a revaloriza9ao da ideologia do mercado do1s vectore.s essenctats destas mudan9as, epor referencia a estes elementos que constru1remos grande parte do nosso quadro te6rico, relativamente ao ~~al faremos a analise sociol6gica do papel da avaliac;:ao educacional nas po- ht1cas contemporaneas. 4. Estado, mercado e avalia~ao: esbo~o para uma articula~ao te6rica 4.1. 0 mito do livre-mercado e a manutenfiio do Estado forte C?m?ja tivemos oportunidade de referir em outros momentos7, nos paf- ses cap~t~hstas centrais o perfodo em analise caracterizou-se pela emergencia das pohticas da chamada ~ova dire.ita. Em The Free Economy and the Strong State--:-.uma obra por mu1tos cons1derada essencial para a compreensao des- tas poht1cas nos E.U.A e na Jnglaterra-, Andrew Gamble mostra bem como elas, de forrna muito distinta de polfticas anteriores, tambem de direita foram marcad~s por uma singularidade pr6pria: uma combinac;:ao da defesa da livre e~ononua, de tradi9ao liberal, com a defesa da autoridade do Estado, de tradi- 9ao conserv.adora. Na base desta bipolaridade, decisoes nao-intervencionistas e ?escentra~1za?oras passaram a coexistircom outras altamente centralizadoras ~ mtervenc1omstas, reveland? a.ambiguidade inerente a esta articulac;:ao polf- tlca qu~ fe~ com que a nova d1re1ta pudesse "parecer sucessivamente libertaria e autontana, populista e elitista" (Gamble, 1994, p. 36). Como sintetiza u.m ~u!or, "para os neoliberais a enfase esempre na Ii- be~dade de escolha, no md1v1duo, no mercado, no govemo mfnimo e no laissez- faire;. en.quanta ~ue os neoconservadores dao prioridade a ideias como 0 autontansmo social, a sociedade disciplinada, a hierarquia e subordina9ao, a na9ao e o govemo forte" (Chitty, 1994, p. 23). 0 resultado destas tens6es e contradi96es - decorrentes de uma formu- la.polftica que exige um Estado limitado (portanto, mais reduzido e circuns- cnto:ias suas fun~6es) mas, ao mesmo tempo.forte (no seu poder de inter- venc;:ao)-prod~z~u em c~rto sentido um desequilfbrio importante a favor do Estado e em pre3uizo do hvre-mercado. Designado ja como o "paradoxo do Esta.do n~oliberal", este facto significa basicamente que, "embora 0 neohberahsmo possa ser considerado como uma doutrina que prega 0 Estado 7. Com alguma~ nuances, a parte do ~apftulo que aqui se inicia teve no Brasil uma primeira ediyao sobre. a f~rma de a:i1go, pubhcado na rev1sta Educariio & Sociedade, n• 69, 1999, pp. 139-164. Pela autonzayao conced1da para esta nova publicayao, agradecemos ao Comite da Redacyao da revista e ao Coleg1ado do Cedes (Unicamp). 113
  • 14. autolimitador, o Estado tem-se tornado mais 'poderoso' sob as polfticas neoliberais de mercado" (Peters, 1994, p. 213). De facto, se tomarmos como referencia a concep9ao neoliberal proposta porautores como Robert Nozick na sua obra Anarchy, State and Utopia, vere- mos que a nova direita adoptou uma versao liberal bastante mitigada. Na visao liberal radical, a economia e o resultado de uma harrnonia de interesses gerada por trocas voluntarias entre indivfduos Iivres e aut6nomos, e o Estado e apenas o garante dessa ordem espontaneamente gerada pelo mercado. Nesta Iinha de pensamento, admite-se como possfvel e desejavel a existencia de um mercado totalmente livre da tutela estatal, aceitando apenas como tarefas le- gftimas de um "Estado mfnimo" aquelas que se restrinjam "as fun96es de protec9ao contra a violencia, o roubo e a fraude, bem como as fun96es que perrnitam o cumprimento de contratos" (Nozick, 1988, p. 7). No entanto, nao parece ter sido isto que aconteceu nos pafses que analisamos. Ao contrario, o mercado nao ressurgiu como um processo espon- taneo, completamente fora do ambito do Estado, mas como um sistema pro- movido e controlado, em grande parte, pelo Estado. E nao nos parece que tenha sido assim apenas pelo facto de, como refere Bill Schwarz (1992, p. ll l), no capitalismo avan9ado, o Estado autoritario se tomar necessario ao projecto neoliberal para vigiar activamente a imposi9ao dessa nova ordem representada pelo mercado. 0 que ocorre, mais precisamente, e que, como observa Hanf (1994, p. 127), nem os mercados sao fen6menos naturais nem, tao pouco, se pode pensar esta questao como se estivesse em causa uma sim- ples escolha entre um mercado livre ou uma economia regulada pelo govemo. De facto, como conclui este ultimo autor, "todas as economias de mercado sao sistemas mistos de regulamenta<;:ao govemamental e de for9as de mercado''. Ha, no entanto, especificidades na forrna como as polfticas da nova di- reita desenharam as rela<;:oes entre Estado e mercado. Se, por um !ado, o mer- cado tout court teve uma not6ria expansao sob a forma de algumas polfticas de privatiza9ao e de liberaliza9ao da econornia, tambem e verdade que, ape- sar da crise fiscal e dos ataques neoliberais, o Estado-providencia resistiu - e isso, por outro !ado, constituiu igualmente um importante obstaculo a maior expansao do mercado. Mas a resistencia do Estado-providencia nao significou a manuten<;:ao do status quo. De facto, as coliga<;:oes de direita que estiveram no poder em pafses como a Inglaterra puseram em pratica outras estrategias para tentar gerir a tensao resultante da nao diminui<;:iio das exigencias em rela<;:ao aos direitos sociais (nomeadamente na area da saude e da educa9ao) ea crescente escassez de receitas. Como refere Brian Salter (1995), numa situa9ao como a descrita, ha que procurar urna das seguintes estrategias: ou se tenta redefinir o que se entende por direitos ligados ao Estado-providencia (uma questao es- sencialmente ideo16gica), ou se consegue um rnelhor equilfbrio entre a oferta ea procura (corn uma maior eficiencia na utiliza9ao das receitas provenientes 114 dos impostos) ou, ainda, se encontrarn fontes altemativas de financiamento. A_prirneira estrategia exige convencer os cidadiios a reduzir ou, pelo menos, nao aumentaros seus direitos - o que nao e uma estrategia plausfvel a curto pra~o_da.da a_"hege~oni~ dos valores do Estado-providencia". A segunda es- trat~g1a 1mphc~ red.Irecc1?nar a procura para o sector privado - o que pres- s~poe que se cn~m mcenttvos para que este sector possa aumentar a sua capa- c~da~e de atend1mento, e os cidadiios sejam persuadidos de que niio perdem d1re1tos porque poderao fazer escolhas mais amplas e ter acesso a servi9os de melhor ~ualidade.. Finalmente, a terceira estrategia, muito mais subtil, supoe a adop<;:ao d~ med1das tendentes a atenuar as fronteiras entre o sector publico e o sector pnvado, de modo a permitirque se tome igualmente menos nftida a distin<;:a? entre ?s direitos sociais e os direitos individuais. Isto, por sua vez, refere amda Bnan Salter, pode levar ao enfraquecimento da hegemonia dos valores do Es~ado-providencia e, consequentemente, a uma redw;:ao da pro- cura dos serv1<;:os publicos. Exemplos destas polfticas silo, entre outros, os mercados internos (internal markets) e os incentives para uma economia mis- ta de bem-estar social (cf. Salter, 1995). . . Foram precisamente algumas destas estrategias, implementadas pela nova dire1ta: que configuraram o que alguns autores tern vindo a designar como mecamsmos de quase-mercado. Na realidade, mais do que aconfina<;:ao do Estadoea expansaodo mercado, assistiu-se, em muitos casos, a interpenetra<;:ao <lesses elementos, com arranjos especfficos consoante as conjunturas nacio- nais, os quais resultaram numa configura9ao particular se comparada com outros perfodos hist6ricos da evolu<;:ao do capitalismo. Eisto que, do nosso ponto de vista, constitui um dos aspectos distintivos mais importantes das polfticas de convergencia neoliberal e neoconservadora; e eisso tambem que seguramente constitui um dos principais vectores da redefini<;:ao do papel do Estado neste perfodo. Como escreve Reg Whitaker (1992), muitas destas tendencias poem em causa a natureza do pr6prio Estado capitalista obrigando nao apenas a redefinir as fronteiras tradicionais entre os sectores publico e privado mas tambem a repensar a questao da relativa autonomia do Estado. Dai, igualmente, a centralidade do conceito de quase-mercado. Na defini9iio de Le Grand, quase-mercados sao mercados porque subs- tituem o monop6Iio dos fomecedores do Estado por uma diversidade de for- necedores independentes e competitivos. Sao quase porque diferem dos mer- c~dos convencionais em aspectos importantes. Assim, por exemplo, as orga- mza<r6es competem porclientes mas nao visam necessariamente a maximiza<rao dos seus lucros; o poder de compra dos consumidores nao e necessariamente expressoem terrnos monetarios e, em alguns casos, os consumidores delegam em certos agentes a sua representa<;:ao no mercado (cf. Le Grand, 1991, pp. 1259-1260). 115
  • 15. Estes mecanismos de quase-mercado - porque foram igualment~ in- troduzidos nos sistemas educativos - justificam mais algumas referencias e considera9oes. 4.2. Quase-mercados em educa(:iiO Como observa Roger Dale (1994, p. 112), em educa9ao o termo merea- doe mais conotativo do que denotativo. Isto significa que, por vezes, quando se fala de "mercadoriza9ao da educa9ao" nao se trata senao da implementa9ao de mecanismos de "liberaliza9ao" no interior do sistema educativo, ou da introdu9ao de elementos de "quase-mercado". De facto, analisando algun~ casos concretos de politicas educacionais da nova direita, R. Dale ~onclm que "o que esta em questao sao novas formas e combina9oes de finan~1~me~­ to, fomecimento e regula9ao da educa9ao", diferentes <las formas trad1c1ona1s exclusivamente assumidas pelo Estado. Todavia, ta! como aconteceu noutros sectores, a cria9ao de quase-mercados em educa~ao pode r;i~smo "incluir.um papel maior, e/ou modificado para o Estado (e nao necessana ou automat1ca- mente um papel menor)" (Dale, 1994, pp. 110-111). Alias, o Estado nao deixa deter um papel activo sendo "o mercado uma cria~ao polftica, concebida para fins polfticos", como acentua Stewart Ranson. Por esta razao, parece-nos importante a observa9ao deste autor quando a::re~­ centa que "o mercado em educa9ao nao e o mercado classico da conco;r~nc1~ perfeita mas um mercado cuidadosamente regulado e com controlos ng1dos (Ranson, 1993,p. 338~. Neste mesmo sentido, escreve tambem R. Hatcher (1994), a regula9ao que e feita pelo Estado nao e contraposta ao mercado, pois a cria9ao e manu- ten~ao do mercado depende do Estado. Alias, a introd~9ao de q~ase-~erca­ dos no sector publico, em geral, e na educa~ao, em particular, ev1denc1a bem estas rela9oes. De facto, acrescenta R. Hatcher, "a educa9ao distin,gu~-se nao s6 do sector privado como tambem de outras areas do sector pubhco pelo facto de os poderes do Estado, que mantem o mercado, se entrela9arem com outros poderes que controlam o pr6prio conteudo da educa9ao" (p. 45). E, alias, esta combina9ao especffica de regula9ao do Estado e de e.le- mentos de mercado no domfnio publico qMe, na nossa perspectiva, exphca que os govemos da nova direita tenham aumentado consideravelmente o con- trolo sobre as escolas (nomeadamente pela introdu~ao de currfculos e exames nacionais) e, simultaneamente, tenham promovido a cria9ao de mecanismos 8. Estas e outras afirmayoes de Stewart Ranson, inseridas no texto que acima citamos, deram origem a uma interessante polemica sobre o conceitode mercado em educayao. Ver, a esse prop6sito, James Tooley (1995) e tambem a resposta de Stewart Ranson (J995). 116 como a publicita9ao dos resultados escolares, abrindo espa90 para a realiza- 9ao de pressi5es competitivas no sistema educativo. Na perspectiva de M. Apple, por exemplo, esta aparente contradi9ao, pode nao ser tao substancial como se esperaria dado que, numa epoca de crise e de perda de legitimidade, a introdu9ao de um currfculo nacional e de uma avalia9ao tambem a nfvel nacional transmitem a ideia de que o govemo esta preocupado com os consumidores e com a necessidade de elevar os nfveis educacionais-oque e, afinal, a principal preocupa9ao do mercado (cf. Apple, 1993, p. 230). Para este autor, a cria~ao de um curriculo nacional, o estabele- cimento de normas-padrao e a realiza9ao de testes tambem a nfvel nacional sao mesmo condi9oes previas para que se possam implementar polfticas de privatiza~iio e mercadoriza9ao da educa~ao, representando, portanto, um com- promisso ideal no ambito da coliga9ao de direita. Curiosamente, os sectores neoliberais ingleses nao estavam inicialmen- te dispostos a apoiar a imposi9ao de um controlo central sobre o currfculo. Como lembra Clyde Chitty, foi mesmo necessario convence-los de que "um currfculo nacional niio era necessariamente incompatfvel com a promo~iio dos princfpios do livre-mercado. Isso poderia, afinal, ser uma boa justifica~iio para realizar testes de avaliactiio nacionais em determinadas etapas da carreira escolar dos alunos, proporcionando, desse modo, importantes dados e informa- ct6es aos pais sobre as caracterfsticas desejaveis ou indesejaveis de cada escola. Por outras palavras, informact6es suplementares aos consumidores proporcio- nadas pelos resultados dos testes poderiam realmente ajudar um sistema de mercado a operar de modo mais eficaz" (Chitty, 1994, p. 24). Hoje em dia parece ser relativamente consensual naqueles sectores que a imposi~ao de um currfculo nacional e a introdu9ao de exames nacionais niio sao, de facto, incompatfveis com a prom09iio de valores de mercado, embora a adoIJ9iiO dessas altera90es tenha introduzido no sistema educativo ingles impor- tantes tens5es a que os professores deram voz (cf. Bernstein, 1994; Black, 1994). 4.3. 0 Estado-avaliador e a enfase nos resultadoslprodutos educacionais Se, ao nfvel dos sistemas educativos, em pafses como os EUA ea Ingla- terra, a avalia9iio foi essencial para a promo9ao de quase-mercados, tambem mostrou ser uma estrategia util ao nfvel (mais geral) das tentativas de transfor- ma9ao dos valores pr6prios do dom{nio publico. Sendo este o espa~o onde se expressam os prop6sitos colectivos de uma dada sociedade - remetendo, nomeadamente, para os direitos e necessidades sociais que sao estabelecidos atraves de escolhas publicamente construfdas -, o dom{nio publico deve pre- servar e atender valores especfficos como a igualdade, a justi9a ea cidadania (cf. Ranson & Stewart, 1994). 117
  • 16. No entanto, foram estes e outros valores semelhantes que estiveram (e continuam a estar) amea9ados perante a introdu9ao de elementos de ~erc~do e outras J6gicas especfficas do sector privado que, par sua vez, ~em s1do viabilizadas pela utiliza9ao polftica e administrativa de certas modahdades de avalia9ao. Como mostra Mary Henkel em Government, Evaluation an~ <:hang;-:- estudo que cobre um perfodo decisivo de transforma9oes nas poht1cas pubh- cas inglesas, entre 1983 e 1989 -, "o governo identificou a avalia9a? c~mo uma componente significativa na sua estrategia de conseguir alguns obJ,ec~1vos decisivos: controlar as despesas publicas, mudar a cultura do sector pubhco e alterar as fronteiras e a defini9ao das esferas de actividade publica e privada" (cf. Henkel, 1991a, p. 9). Deste modo, a avalia9ao reaparece claramente relacionada com fun9oes gestionarias tendendo a ser, coma refere E. House_. uma "avalia9a~.centrada na eficiencia e na produtividade sob o controlo directo do Estado (House, 1993, p. x). Considerando estes vectores, toma-se agora mais evidente a razao pela qua!, no perfodo em analise, uma das mudan9a~ i~portante~, t:nto fora coma dentro do contexto educacional, ea enfase genenca na avaha9ao dos resulta- dos (e produtos) ea consequente desvaloriza9ao da avalia9a? do~ proce.sso~, independentemente da natureza e fins especfficos das organiza9oes au mst1- tui90es publicas consideradas9 • Como referem David Osborne e Ted Gaebler (1992, p. 139), o simples facto de as agencias publicas terem que definir os resultados ou indicadore~­ alvo (benchmarks) que pretendem alcan9ar obriga-as a pensar nos seus pro- prios fins, OS quais, frequentemente, OU nao SaO cJaros OU nao estaO bem defi- nidos. Assim acrescentam estes mesmos autores, os "govemos empreende- dores" deve~ procurar mudar o sistema de recompensas, panda a t6nica nos resultados, porque "quando as institui9oes sao financiadas de acord.~ co,n:1 os resultados elas tomam-se obsessivas em rela9ao ao seu desempenho , e e 1sso que e necessario incentivar. No relat6rio intitulado Reinventar a Administrariio Pilblica, elaborado sob a direc9ao do vice-presidente americano 11 Gore, e fortemente influencia- do pela obra de David Osborne e Ted Gaebler, afirma-se a certa a~t~ra: "O nosso caminho e claro: temos de transitar de sistemas que responsab1hzam as 9. Ha aqui, como facilmente se deprecnde, uma racionalidade muito pr6xima. da ~lcgitima~ao.pela performatividade" aqua! esta hoje sujeito, por exemplo, o ensino superior ca invesuga9ao, ~omo ass~nala Jcan-Fran9ois Lyotard em "A Condi9iio P6s-Modema". Veja-se tambCm, a prop6sllo do ensmo supcnor, a analise de Licfnio Lima em tomo do que designa por "educa9ao contabil" {cf. Lima, 1997). 118 pessoas par processos, para sistemas que as tornam responsaveis par resulta- dos" (Al Gore, 1994, p. 55). De acordo com estes pressupostos, sem resultados mensuraveis (que devem ser tornados publicos) nao se consegue estabelecer uma base de responsabiliza9ao credfvel, tomando-se igualmente mais diffcil a promo9ao da competi9ao entre sectores e servi9os - em ambos as casos, duas dimen- soes essenciais das novas orienta9oes polfticas e administrativas. Em termos de polftica educativa, mais especificamente, trata-se agora de tentar conciliar o Estado-avaliador- preocupado com a imposi9ao de um currfculo nacional comum e com o controlo dos resultados (sobretudo academicos) - ea filosofia de mercado educacional assente, nomeadamen- te, na diversifica9ao da oferta e na competi9ao entre escolas. Sendo a avalia- 9ao um dos vectores fundamentais neste processo, e necessario saber qua! a modalidade que melhor serve a obten9ao simultanea daqueles objectivos. 4.4. A avaliariio estandardizada criteria! com publicitariio de resultados Tenda admitido nos mementos iniciais deste trabalho (e par razoes es- sencialmente dedutivas) que a modalidade de avalia9ao mais congruente com a ideologia do mercado seria a avaliariio normativa (cf. capftulo 1), fomos constatando, no entanto, amedida que avan9avamos na compreensao das especificidades das actuais polfticas educativas, que nao havia evidencia empfrica para sustentar essa hip6tese. Nao que (teoricamente) a avalia9ao normativa nao fosse a mais adequada para promover os valores neoliberais baseados na compara9ao dos indivfduos e na competi9ao de mercado. Par alguma razao obras marcantes do neoliberalismo educacional, coma Politics, Markets, and America's Schools de J. Chubb e T. Moe (1990), propugnaram por esses princfpios e valorizaram a utiliza9ao de modalidades de avalia9ao estandardizada normativa (cf. capftulo 2). De facto, se as teorias vindas dos sectores neoliberais mais radicais tivessem sido pastas em pratica, essa seria naturalmente a modalidade de avalia9ao que faria sentido num contexto de forte retrac9ao do Estado (Estado-mfnimo) e de grande expansao do mercado. No limite, o Estado - nao pondo qualquer obstaculo a uma maior diversifi- ca9ao curricular e admitindo a transmissao de conteudos e objectivos edu- cacionais nao sujeitos a qualquer uniformiza9ao nacional - poderia permi- tir a predominancia de formas de avalia9ao congruentes com a mercadoriza9ao da educa9ao escolar. Mas, coma ja procuramos demons- trar, isso nao ocorreu assim e, neste sentido, as altera9oes nas polfticas avaliativas acabaram tambem par reflectir a filosofia das mudan9as mais gerais em curso neste perfodo. 119
  • 17. Ao contrariodo que inicialmente prevfamos, a avaliafiio estandardizada criteria/, isto e, a avalia9iio que visa o controlo de objectivos previamente definidos (quer enquanto produtos, quer enquanto resultados educacionais), e que foi sendo gradualmente apontada como um dos tra9os distintivos das mudan9as nas polfticas avaliativas. Isto aconteceu porque pela introdu9iio da avalia9iio estandardizada criteria! pode favorecer-se a expansiio do Estado e, simultaneamente, pela publicita9iio dos resultados dessa mesma avalia9iio pode promover-se a expansiio do mercado. Assim, e apesar das crfticas cada vez mais contundentes - not6rias, por exemplo, no facto de a literatura sobre avalia9iio ter continuado a alimentar as mais diferentes versoes e polemicas sabre as suas potencialidades e limites, a avalia9iio estandardizada criteria! tomou-se um instrumento importante para a implementa9iio da agenda educacional da nova direita. Foi, assim, necessario contextualizar estas mudan9as de modo a tomar compreensfvel o que inicialmente nos parecia sem sentido - e que, diga-se, s6 muito mais tarde come9ou a ser objecto de interesse academico, ou a ser mais explicitamente referenciado na literatura especializada (cf., por exem- plo, Davis, 1995; Schrag, 1995). Depois deste percurso te6rico, parecera ago- ra 6bvio ao leitor que, tendo o Estado refor9ado o seu poder de regula9iio e retomado o controlo central (nomeadamente sabre o currfculo escolar), a ava- lia9iio tivesse, de forma congruente, sido accionada como suporte de proces- sos de responsabiliza9iio ou de prestafiio de contas relacionados com os re- sultados educacionais e academicos, passando estes a ser mais importantes do que os processos pedag6gicos (que teriam implicado outras formas de avalia- 9iio). Em sfntese, see verdade que emergiu o Estado-avaliador tambem ever- dade que as mudan9as nas polfticas avaliativas foram igualmente marcadas pela introdu9iio de mecanismos de mercado. Por isso, neste contexto politica- mente ambivalente, e neste perfodo especffico que analisamos, o controlo sa- bre os resultados escolares niio foi subordinado, nem se restringiu, a uma mera 16gica burocratica - o que tomou a actua9iio do Estado neste campo clara- mente distinta das estrategias adoptadas em outras epocas e em outros contex- tos hist6ricos, explicando-se tambem por af as especificidades contemporaneas. 5. Sintese do quadro teorico proposto A figura 2 resume grande parte do percurso analftico por n6s efectuado. Contem, porem, alguns elementos que niio foram ainda objecto de problematiza9iio e que, por isso, seriio agora discutidos. Trata-se, em sfntese, de uma constru9iio te6rica que contem duas dimens5es importantes: uma, mais descritiva e analftica, que pretende dar conta, com suficiente consistencia e 120 fundamenta9iio, das mud~n9as ocorridas nas polfticas avaliativas neoliberais e neoconservadoras a part1r da decada de oitenta e infcio da decada de noven- t~: a ~utra, ass~mi.damente mais normativa, que procura inscrever nas insufi- cienc1as da pnme1ra uma contra-proposta altemativa assente no que pensa- mos se_r ~ma utopia re~liza~el: ~ defesa de uma concep9iio mais radical das potenc1altdades educac1ona1s (amda niio esgotadas) da avalia9iio formativa ancora?a n~m novo (des)equilfbrio entre o pilar da regulafiio e o pilar d~ emanc1pafao. FIGURA2 A avalia~ao no contexto das mudan~as s6cio-politicas contemporaneas Teorias do Estado + Estado-providencia ... ! Resistencia do Estado-providencia Crise do Estado-providencia t Nova Dircita / ""' - - - - .... Neoliberalismo -Estado +Mercado Neoconservadorismo - -..... •Av. Formativa • Novas formas de AvaJiai;:ao ! Mercado-avaJiador D Avaliai;:ao Estandardizada Normativa Quase-Mercado + Estado Mercado "Estado-avaliador" Avaliai;:ao j Estandardizada CriteriaJ Teorias da Avaliai;:ao .... ,...___.. ..,~ AvaJiai;:ao Estandardizada Criteria! com Publicitai;:ao de Resultados , As teorias do ~stado - em rela9iio as quais as primeiras paginas deste capttulo foram dedtcadas - siio o ponto de partida para a compreensiio da 121
  • 18. especificidade do Estado-providencia cuja crise se tern procurado solucio- nar pela implementa<;ao de polfticas sociais e econ6micas hfbridas que tive- ram, como seria de esperar, importantes reflexos nas reformas educativas mais recentes. Se, no que aeduca<;ao escolar publica diz respeito, uma das dimensoes mais expressivas dos valores neoconservadores foi a emergencia do Estado- avaliador, em termos de valores neoliberais o mais importante tera sido a introdu<;ao de mecanismos de mercado nesse mesmo domfnio. Assim, como essas dimensoes se (con)fundiram em articula<;6es muito especfficas de pafs para pafs, haveria que encontrar uma forma de avalia<;ao (ideal-tipica) capaz de dar conta (genericamente) destas particularidades, sendo igualmente sus- ceptfvel de atender quer aos pressupostos subjacentes ao mercado educacio- nal quer ao Estado-avaliador. Para alem de encontrarjustifica<;ao do ponto de vista da teoria e sociolo- gia da avalia<;ao (cf. capftulo 1), a modalidade de avalia<;ao criteria!- neces- sariamente validada do ponto de vista tecnico e cientffico (portanto, estandardizada ou aferida), mas sujeita ao controlo pelo mercado atraves da publicita<;iio dos respectivos resultados - parece ser a modalidade de avalia- <;ao mais congruente com as mudan<;as estudadas. Alias, como ja vimos ante- riorrnente, esta coneIusao e tambem refor<;ada empiricamente pelo facto deter sido esta a forma de avalia<;ao que (re)emergiu e que foi mais valorizada nas agendas educacionais e nas polfticas educativas ate agora referenciadas. Designada aqui como avaliariio estandardizada criteria/ com publicitariio de resultados, esta modalidade de avalia<;ao permite evidenciar, melhor que qualquer outra, o ja designado "paradoxo do Estado neoliberal": por um !ado, o Estado quer controlar mais de perto os resultados escolares e educacionais (tomando-se assim mais Estado, Estado-avaliador) mas, por ou- tro !ado, tern que partilhar esse escrutfnio com os pais e outros "clientes" ou "consumidores" (diluindo tambem por af algumas fronteiras tradicionais, e tomando-se mais mercado e menos Estado). Produz-se assim um mecanismo de quase-mercado em que o Estado, nao abrindo mao da imposi<;ao de deter- minados conteudos e objectivos educacionais (de que a cria<;ao de um currfcu- lo nacional e apenas um exemplo), permite, ao mesmo tempo, que os resulta- dos/produtos do sistema educativo sejam tambem controlados pelo mercado. Procurando colmatar as insuficiencias elimites inerentes a este enqua- dramento te6rico-conceptual, ate aqui quase exclusivamente centrado na ex- plica<;ao e contextualiza<;ao de algumas mudan<;as nas polfticas educativas e avaliativas iniciadas e desenvolvidas em pafses centrais, queremos agora de- senvolver outras dimensoes, tambem sinalizadas na figura 2, que apontam para um outro tipo de polftica educativa e para uma outra agenda avaliativa. Trata-se assim, essencialmente, de completar o enquadramento te6rico-socio- 16gicoque temos estado a desenvolver introduzindo uma visao mais prospectiva 122 que contraponha a J6gica da e . - . 16gica da regularao uma vez qman~1pa<;a~I ~mats centrada na comunidade) a , • Y • ue e esta u t1ma que te ·d + poht1cas avaliativas do neol1'b 1· m s1 o re1or<;ada pelas era 1smo conservador c t · d . mente, por terem acentuado (ainda mais) o d . , ~rac enza as, prec1sa- do mercado, em prejufzo da comunidade. esequ1hbno a favor do Estado e 5. I. A melhoria qualitativa do Estado- ri 'dA . . - o retorno aemancipariio p ovz encza, a avalzaraofonnativa e . Retomando considera<;oes anteriores , des1gnamos por melhoria qualitativa do Es;a~~~ps::~~·Ae~ smtese, que o q.ue mente por um novo equilfbrio entre o ilar d v1 ~mcia pa.ssa necessana- pa<;ao. Como Boaventura Sant p a regula<;~o e o pilar da emanci- modemidade assenta em do' ~sl 0 99 fl) refere, 0 proJecto s6cio-cultural da . is p1 ares undamenta· . ·1 d - pllar da emancipa<;ao oprime· , . 'd is. 0 p1 ar a regula9ao e o o mercado e a comu~idade) e1ro e const1tu! o po~ tr~s princfpios (o Estado, racionalidade (a racionalidade es~,:~gundo e c.onst1tu1do por tres 16gicas de tica e a racionalidade cogn1't1'v .e ico-express1va, a racionalidade moral-pra- o-mstrumentaJ)•o. Dos tres princfpios, 0 princfpio da c .d d , " . para instaurar uma dialectica positiva co omu~i' a e e o m~1s b_em colocado Iecer assim a vincula9ao da regula ao e~o p1 ar d~ em:in.~1pa9ao, e restabe- para isto o facto de o princfpio <rd a e~anc1pa9ao (p. 27). Concorre epistemol6gicas" que 0 tomam u . a ~omunrdade conter "virtualidades entre regula9ao e emancipa9ao m e1xo importante neste redimensionamento elementos constitutivos (como opo;!ue, entre .o~tras_razoes, ~!guns dos seus sido focos de resistencia a. ~ der, a ~artic.ipa9ao ea solrdariedade) tern da ciencia e da tecnica. mvasao a rac1onalrdade cognitivo-instrumental A comunidade pode tomar-se "o ca . ·1 . emancipa9ao" se este for conceb'd mpo.pn~1 .eg1ado do conhecimento- um estado de ignoriincia a um es~a~ c~mo ~aJectona que Ieva? indivfduo de dariedade (um conhecimento u "o e .sa er que se.p~e des1gnar por soli- dade"); e sea solidariedade fo("~ prognde do col~rnalrsmo para a solidarie- para a reciprocidade atraves da c~~~;~~~~s~mpr~ t~acabado, de ca~acita9ao "sujeitos capazes de reciprocidade". e SUJe1tos que a exerc1tem" ou Por isso, acrescenta o mesmo autor , , . cimento-regula9ao" que transformou o ;u~rnecessabr~o romper com o "conhe- o em o ~ecto para, de uma forma ' 10. Nesta mesma linha, Arriscado Nunes acrescenta se ui d S " .. modemas' [...].Ires modos de regula~ao princi ais· ' g n o antos, d1stingo, nas sociedades modos de regulayiio realiza de maneira diferente ~rel~o_Estado, o mercado ea comunidade. Cada um destes e as rela~0essociais globais, atraves do vfnculo privile~~aod~n~~econ~nu~ ~omo.proccsso institucionalizado a troca ea reciprocidade respectivamente" (N gl993 um pnnc1p10 de integra~ao: a redistribuirao ' unes, , p. I10, nota 6). T ' 123
  • 19. radicalmente nova, passar a "constituir o outro numa rede intersubjectiva de reciprocidades" (p. 30). Trata-se, portanto, de um "conhecimento-emancipa- 9ao que avan9a do colonialismo para a solidariedade, pela cria9iio de rela96es sujeito-sujeito estabelecidas no seio de comunidades interpretativas" (p. 37). Em sfntese, "Este saber novo, sendo uma racionalidade cognitivo-instrumental, sera tam- bem uma nova racionalidade moral-pratica e uma nova racionalidade estetico- expressiva. 0 saber novo s6 sera novo se for simultaneamente uma nova inteligibilidade, uma nova etica, uma nova politica e uma nova estetica. Para isso tern de se exercitar no recurse criativo aos elementos constitutivos do prin- cfpio da comunidade, asolidariedade, aparticipa<;ao e ao prazer" (Santos, 1991, p. 39). Na nossa perspectiva, uma teoria como esta- assente na valoriza9iio do conhecimento-emancipa9ao, na intersubjectividade e na reinven9ao da comu- nidade - eextremamente oportuna para fundamentar a defesa de uma polfti- ca avaliativa radicalmente diferente daquela que atravessou e caracterizou os ultimas anos. E, alias, a partir dos seus pressupostos que defendemos ser pos- sfvel (e desejavel) relocalizar a avalia9ao formativa, considerando-a um eixo fundamental na articula9ao entre o Estado e a comunidade. QUADR06 A avalia~ao formativa numa nova articula~ao entre o Estado e a Comunidade Avalia~ao estandardizada (aferida) Avalia<;ao Avaliac;ao criteria! Avaliac;ao criteria! com publicitac;ao normativa de resultados Estado Quase-mcrcado Mercado Regula~ao Redistribuic;ao ................................................................... troca Avalia~o nao estandardizada Avaliac;ao formativa Estado-Providencia Comunidade Aluno/Profcssor Emancipa~lio REGULA<;AO reciprocidade De facto, a avalia9ao formativa, sem deixar de estar relacionada com o Estado, enquanto lugar de defini9ao de objectivos educacionais e espa90 de 124 cida~a~i~, parece ser ~ forma de avalia9ao pedag6gica mais congruente com o pnnc1p10 da comumdade e com o pilar da emancipa9ao. Pensamos me I . _ , . smo que a av~ 1a9~0 iormat1va deve ser considerada no ambito dos direitos sociais e edu:ac1ona1s que caracterizam o Estado-providencia, os quais, como Jembra t~mbem Boaventura Santos (1994, p. 211), foram direitos essencialmente ob- tidos P?r pressiio do princfpio da comunidade. Por outro !ado, s6 a avalia 9 ao forn:at1va, en~uanto a~9a? pedag6gica estruturada na base de rela96es de reci- proc1dade, e.mte:subJec.tivamente validada, nos parece poder promover um novo ~eseqmlfbno no p1lar da regula9iio a favor do pilar da emancipa9ao''· E is~o ~reci~amente que o quadro 6 sintetiza: um novo ponto de chega- da, que ~a.o e mats, a~nal, do que um outro ponto de partida para retlectir a problem~tica da avaha9ao pedag6gica numa perspectiva sociol6gica. Uma perspecttva, segundo cremos, que nao deixa certamente de ser simultanea- mente crftica e ut6pica. 11. Pedagog~s radkai.s como Paulo Freire (1975) ou Henry Giroux (1986), tern tambCm (cha muito tempo) contnbu1yoes dec1S1vas para pensar a ~uesta~ da emancipayao nas suas relay0es com a educayao. ~a;;S~~ exemplo concreto de procura de arttculayao entre avaliayao e emancipayao, ver Ana M' Saul 125
  • 20. CONCLUSAO Procurando uma visao global e integrada, parece-nos ser util fazer neste momento uma sfntese das principais linhas de for~a deste trabalho. No primeiro capftulo, recuperamos e articulamos um conjunto diversifi- cado e plural de interpreta~oes relativas a avalia~ao educacional, quejulgamos poderem ser integraveis sob a designa~ao de sociologia da avalia~ao. Mais do que os aspectos tecnicos que cada modalidade de avalia~ao necessariamente contem, e que estao destinados a cumprir objectivos muito especfficos, alguns deles profusamente discutidos na literatura, interessou-nos mostrar como a problematica da avalia~ao educacional transcende esses mesmos aspectos e perrnite estabelecer uma ponte entre os processos que ocorrem em contexto propriamente pedag6gico e os processos sociais e polfticos em sentido amplo. Assim, para alem das rela~oes de poder (sentidas ou nao como coerci- vas) que no espa~o da aula tradicional se estruturam em tomo da avalia~ao pedag6gica, ou da fun~ao de socializa<;iio antecipat6ria que, com algumas varia~oes ou modula~oes consoante os autores e a forrna como percepcionam as rela~oes entre o sistema educativo e o sistema produtivo, as teoriasfuncio- nalistas e as teorias da correspondencia tendem a atribuir a avalia~ao. procuramos ainda enfatizar outros aspectos com particular interesse sociol6- gico. Referiram-se neste caso as dimensoes eticas que andam frequentemente associadas a problematiza~ao da fun~ao de avaliador, ou que com~am a ser desocultadas pelas crfticas as versoes positivistas mais obcecadas pelos as- pectos tecnicos da avalia~ao; as dimensoes e implicai;oes produtivistas decor- rentes das exigencias que recaem sobre as escolas em momentos de recessao econ6mica, e que acentuam a avalia~ao como controlo dos resultados; as di- mensoes polfticas da avalia~ao decorrentes da implementai;ao de princfpios e mecanismos democraticos de responsabiliza~ao (accountability), ou de dis- positivos de compensai;ao introduzidos em sistemas descentralizados; e as 127
  • 21. dimens6es simb61ico-ideol6gicas que algumas modalidades de avaliai;lio cum- prem quando esta em causa a legitimai;lio das polfticas educativas, do sistema educativo ou <las praticas dos actores escolares. A discusslio em tomo das caracterfsticas e funi;oes de algumas modali- dades de avaliai;lio permitiu-nos entender as suas potencialidades e limites, os objectivos prosseguidos e as ideologias polfticas e pedag6gicas a que servi- ram em momentos hist6ricos diferentes. Sem esse percurso nlio teria sido pos- sfvel, por exemplo, compreender a razlio pela qual algumas modalidades de avaliai;lio continuam a ser defendidas e actualizadas, enquanto outras slio des- valorizadas; ou perceber as relai;6es complexas e contradit6rias que determi- nadas formas de avaliai;lio tern vindo a manter com as polfticas educativas contemporaneas. A este prop6sito, por exemplo, a emergencia do Estado-avaliador (evaluative state), tal como foi caracterizada no primeiro capftulo, traduz um retrocesso consideravel, nao apenas porque promove a recuperai;lio e actualizai;lio de muitos dos pressupostos positivistas e quantitativistas toma- dos anacr6nicos pelo pr6prio desenvolvimento e aperfeii;oamento das teorias da avaliai;lio, mas sobretudo porque, do nosso ponto de vista, favorece a des- valorizai;lio da multirreferencialidade dos processos avaliativos, que tern vin- do a ser reconhecida como o novo ponto de chegada para superar a crise dos paradigmas tradicionais neste domfnio. Foi, alias, a necessidade de compreender a relai;lio entre as polfticas educativas de cariz neoliberal e neoconservador e determinadas formas de avaliai;lio que nos levou, no segundo capftulo, a percorrer alguma literatura sociol6gica sabre as reformas mais recentemente levadas a cabo em pafses centrais e semiperifericos, ea confirmar a emergencia da avaliai;lio, quer como dispositivo de controlo par parte do Estado, quer como mecanismo de intro- dui;lio da 16gica do mercado em contextos de transii;lio polftica e de crise econ6mica. A compreenslio da perda de poder explicativo das dicotomias tradicio- nais, nomeadamente as que assentam na oposii;lio entre o campo do Estado e o campo do mercado, ou as que justificam a polarizai;lio entre modalidades de avaliai;lio criteria! e modalidades de avaliai;lio normativa, permitiu-nos, ja no terceiro capftulo do trabalho, propor uma articulai;lio original que da conta do caracter hfbrido das novas relai;oes que actualmente slio estruturadas por estes elementos. Neste sentido, procuramos justificar, do ponto de vista socio16gi- co, a emergencia de modalidades de avaliai;lio que tern a possibilidade de articular, em simultaneo e no interior de um mesmo sistema educative, quer a necessidade de efectuar um controlo mais apertado sobre os conteudos curriculares, quer as exigencias ditadas por todos aqueles que passam agora a ser redefinidos como clientes do sistema, e que estlio, supostamente, interes- sados no mercado educacional. 128 Estas e outras mudani;as aqui sinalizadas, apesar das especificidades que assumem em diferentes contextos nacionais,ja nlio podem ser referenciadas exclusivamente as fronteiras tradicionais do Estado-nai;lio, exigindo, por isso, uma contextualizai;lio mais ampla que inclua, entre outros factores, as muta- <;6es que nas ultimas decadas ocorreram ao nfvel da economia global. Com origem mais imediata na recesslio econ6mica que se seguiu a cha- mada crise petrolffera do infcio dos anos setenta, as referidas mudani;as - que se traduzem de diferentes formas em diferentes pafses -, apresentam entretanto alguns trai;os em comum: quando presente, o modelo de Estado- providencia eassociado a Crise e a incapacidade de sair da crise; OS direitOS sociais e culturais, assegurados por este modelo polftico, comei;am a ser pos- tos em causa; e o mercado renasce ou ganha uma nova dinamica. O mercado alias, que e apresentado como antfdoto contra os excessos da regulai;lio esta~ ta! (quer do modelo de Estado-providencia em sociedades capitalistas, quer ~o modelo do Estado totalitario em economias planificadas), aproveita os msucessos do capitalismo e do socialismo real para se transformar numa nova ideologia, que os ventos da globalizai;lio ajudam a espalhar rapidamente. Mas a necessidade de promover um novo consenso em tomo das pro- postas reformadoras nlio podia, na perspectiva dos novas arautos do n~oliberalismo conse~vador, ficar dependente da explicai;lio, ainda que con- v_mce~te, da complex1dade das mudani;as a nfvel mundial - as explicai;oes s1mphstas, sobretudo quando se trata das polfticas de educai;lio, parecem ter uma eficacia persuasiva muito superior. Este tipo de explicai;oes tern outras repercussoes e outro impacto em termos de manipulai;lio da opiniii.o publica - como se verificou, alias, a partir do momenta em que as referencias a falta de qualidade do ensino, avaliada sobretudo por provas estandardizadas em comparai;oes intemacionais, passou a serum dos argumentos mais utilizados para imputar a responsabilidade pela crise econ6mica aos sistemas de educa- <;lio publica, transformando-os em bodes expiat6rios (e alvos preferenciais) das reformas educativas neoliberais e neoconservadoras. Nao desconhecendo que ha ainda um longo caminho a percorrer para que maiores exigencias, em termos cientfficos e pedag6gicos, possam fazer parte de um numero cada vez maior de escolas publicas - e, sobretudo, para que essas exigencias beneficiem todos os alunos e sejam articuladas com a mais ampla repolitizai;lio e democratizai;lio do espai;o escolar -, o que esta em ~ausa, uma vez mais, e, por um !ado, 0 caracter redutor de algumas pers- pect1vas de avaliai;lio quando nlio acolhem, ou quando subvalorizam, a problematizai;lio do(s) conceito(s) de resultados escolares, pretendendo aferi- los tendo exclusivamente como base instrumentos estandardizados e, por ou- tro, a necessidade de desocultar o caracter ideol6gico que se esconde na impu- tai;lio da responsabilidade da crise econ6mica a escola publica, quando esta tern sido (e nos ultimas anos com maior evidencia empfrica) vftima das deci- 129
  • 22. soes macroecon6micas que a impossibilitam de desenvolver projectos com qualidade democratica e cientffico-pedag6gica. Recusando admitir como facto consumado ou irreversfvel a nova confi- gurac;ao das polfticas educativas que dao prioridade ao mercado- configura- c;ao essa que, em nome de valores como o individualismo possessivo, a com- petic;ao, a discriminac;ao social e a avaliac;ao meritocratica e selectiva, tern promovido o abandono das preocupac;oes do Estado-providencia com a igual- dade de oportunidades e com a construc;ao da escola democratica - procuramos, ainda no capftulo terceiro, esboc;ar uma agenda altemativa para pensar a avaliac;ao pedag6gica niio apenas como uma competencia profissio- nal dos professores mas tambem como uma pratica polftica. Sugerimos assim, na esteira de outras reflexoes e contribuic;oes sociol6gicas, que epossfvel modificar a actual predominancia ou desequilfbrio a favor do Mercado, que tern as suas pr6prias manifestac;oes e especificidades no campo da educac;ao, rearticulando algumas das func;oes do Estado com a Comunidade - o que significa assumir, no que diz respeito ao nosso objecto de estudo, que algumas modalidades de avaliac;iio tern mais possibilidades do que outras para promo- ver o reequilfbrio entre regulac;ao e emancipac;iio. Do nosso ponto de vista, a avaliac;iio formativa (que esta longe de ter esgotado todas as suas potencialidades) pode cumprir um papel de rearticulac;iio do Estado com a Comunidade na medida em que ajudar a promover a aprendi- zagem dos saberes e objectivos curriculares comuns, que decorrem de uma escola basica como projecto de um Estado democratico, sem excluir as subjectividades e as necessidades que se expressam nae pela Comunidade. A Escola pubIica, nesta perspectiva, faz parte do Estado e da Comunidade e s6 neste sentido pode ser a expressiio das tensoes e contradic;oes que resultam, por um !ado, da convergencia cultural decorrente da construc;iio da cidadania e, por outro, da divergencia multicultural que a sociedade democratica propi- cia e valoriza. Esta escola tern que ser credfvel, e isso passa pela capacidade de realizar projectos educacionais com qualidade democratica e cientffico- pedag6gica. No entanto, a gestao da regulac;iio e da emancipac;iio eum processo ex- tremamente complexo e diffcil. Nao depende apenas dos professores, embora sejam estes que estiio em melhores condic;6es de mediar as exigencias do Es- tado e as expectativas e necessidades da Comunidade, sobretudo quando a autonomia profissional e posta ao servic;o de projectos que aproveitam da autonomia relativa do pr6prio sistema educativo e das ambiguidades das po- lfticas educativas. Num contexto despolitizado, em que os direitos humanos basicos niio siio, frequentemente, respeitados pelo pr6prio Estado e pela administrac;ao publica, nem estiio interiorizados pelos actores educativos (pais, alunos e pro- 130 fessores, entre outros), as transformac;5es exigem lideranc;as colegiais e de- mocraticas (dentro e fora da escola); professores que se assumam como inte- lectuais transformadores e como agentes intermulticulturais; pais, alunos e outros actores educativos que se co-responsabilizem por projectos de inova- c;iio e emancipac;iio. 131