2. ESCREVER POR QUÊ?
“escrevo porque perdi o mapa”
Mapa (1. , p. 163)
O mapa
Senti sempre a matemática como uma
presença
Física; em relação a ela vejo-me
Como alguém que não conseguiu
Esquecer o pulso porque vestiu uma camisa
demasiado
Apertada nas mangas
Perdoem-me a imagem: como
Num bar de putas onde se vai beber uma
cerveja
E provocar com a nossa indiferença o desejo
Interesseiro das mulheres, a matemática é
isto: um
Mundo onde entro para me sentir excluído;
3. Para perceber, no fundo, que a linguagem, em
relação
Aos números e seus cálculos, é um sistema,
Ao mesmo tempo, milionário e pedinte.
Escrever
Não é mais inteligente que resolver uma
equação;
Porque optei por escrever? Não sei. Ou talvez
saiba;
Entre a possibilidade de acertar muito,
existente
Na matemática, e a possibilidade de errar
muito,
Que existe na escrita (errar de errância, de
caminhar
Mais ou menos sem meta) optei
instintivamente
Pela segunda. Escrevo porque perdi o mapa.
1, Poesia
4. LITERATURA – PARA QUE SERVE?
Para INVESTIGAR, RE-PARAR, DES-FAMILIARIZAR, INTENSIFICAR.
“O instinto de pesquisa é este: quero tentar perceber. Começamos a
pesquisar quando não sabemos e nunca se para de pesquisar, porque
nunca se sabe, terminado assunto, tudo. Para mim a escrita é um estado
de investigação, e o que me interessa essencialmente é investigar os
comportamentos humanos”
• DESFAMILIARIZAR Linguagem poética como DESVIO da língua
cotidiana
• INTENSIFICAR A arte expressa a vida vivida, mas acrescentando-
lhe um artifício; porque viver é não saber sentir, é saber sentir de maneira
confusa. SÓ A ARTE PERMITE APRENDER A SENTIR, SENTIR MELHOR,
sabendo o que se sente e sentindo MAIS INTENSAMENTE. Nesse sentido, a
arte prolonga a vida.
5. • INVESTIGAR “Tenho muito respeito pelos filósofos e pela filosofia. E
a palavra investigação agrada-me. Investigar, tentar perceber. O
filósofo, se calhar, está marcado pela ideia de verdade ou de tentar
perceber a verdade. Eu quero perceber mas não no sentido de
apanhar uma verdade. Pergunto-me muitas vezes: se encontrar a
verdade, que farei no dia a seguir? NÃO QUERO DESCOBRIR A
VERDADE; quero descobrir um infinito de mentiras, que são as
ficções. Descobrir um infinito de ficções, porque, de certa maneira,
e por exclusão, vou descobrir a verdade”.
Entrevista Diário de Notícias, 05.12.2004
6. LITERATURA E AMBIGUIDADE
A ambiguidade do texto poético não é sinónimo de obscuridade
mas de MULTIPLICIDADE, essa riqueza de níveis em que um texto
pode ser lido. A possibilidade de haver não uma leitura, a certa,
mas várias leituras possíveis.
Ex. em Machado de Assis: CAPITU TRAIU OU NÃO TRAIU?
O Senhor Valéry
“Um dos meus livros a que dou a maior importância é o Sr. Valéry,
precisamente porque tem leituras que passam pela filosofia –
leitores da ‘pesada’ associam-no a Wittgenstein e a outros filósofos
e escritores – ao mesmo tempo que pode ser lido por crianças. Ser
simples e ter diferentes leituras (camadas) agrada-me.”
Entrevista, editora Caminho, disponível em
http://www.caminho.leya.com/
7. LINGUAGEM
A literatura de Gonçalo M. Tavares parte de uma atenção à
linguagem, à materialidade da linguagem. Ao fato da linguagem ser
um código, um sistema com leis próprias, uma convenção. Houve
momentos em que a literatura ignorou o fato, evidente, de que as
palavras não são coisas.
Mas é preciso lembrar que “a palavra cão não morde.”
A partir de Mallarmé, de Proust, de Joyce, o escritor passa a dar mais
atenção à materialidade da linguagem.
E também passa a entender a sua relação com aquilo que escreve de
uma forma menos possessiva. O autor torna-se menos importante
do que aquilo que escreve.
“Dar iniciativa às palavras”, escreveu Mallarmé
“Que importa quem fala, perguntava Beckett?”
8. LITERATURA E POLÍTICA
A literatura pode mudar o mundo?
A literatura pode ser política não porque tem uma
transmita uma “mensagem”: sigam estas ideias, façam
isto, façam assim. Política no sentido de propor ao leitor
outras formas de olhar, outros ângulos, outros aspectos
das coisas, e desta forma levá-lo a se questionar.
Texto: A escrita para teatro
9. 1. A escrita para teatro
Toda a literatura é assunto de letras paradas fazerem ou não as
coisas do mundo moverem-se. A literatura poderá ser um esplêndido
sistema, mas é feito de letras, um alfabeto estático. Campo em
estado de invenção, preparado para as flores e para as árvores do
descanso e do alimento, o alfabeto, eis. Mas parado.
Mas agir é diferente.
Ninguém escreve atos, nem o I, nem o II, muito menos o último.
Escrever ações é talvez uma das grandes vontades de qualquer
escritor, mas escrever ações é acontecimento que não ocorre desde
que os homens perceberam que entre as palavras e as coisas há um
incêndio; e tanto as palavras como as coisas são feitas de material
que cede a este fogo a sua forma. Nem as palavras nem as coisas
sobrevivem ao incêndio que é feito de temperatura exata. Se
quiseres ir para o outro lado perderás todas as tuas qualidades, eis a
conversa de café entre a literatura e as ações do mundo. Nem se
escrevem atos, nem os atos deixam letras atrás de si. São dois
mundos: um, dois.
Toda a escrita, pelo menos a decente, ou seja: a magnífica, toda a
escrita instala, é certo, uma promessa de movimento, de ação.
Há versos de uma beleza tão rápida que fazem com que o futuro seja
imediatamente à frente do sítio onde agora agimos. Se esticarmos a
mão podemos tocar o futuro, é isto também a literatura.
Em: A colher de Samuel Beckett e outros textos, 2002
10. A LITERATURA É UM ASSUNTO DE HOMEM, NÃO DE PÁTRIAS
“O meu instinto primário foi escrever romances para tentar perceber o
mal, como é que ele surge, em que situações se desenvolve e manifesta,
etc. a possibilidade de o homem fazer o mal não é característico do nosso
país, é característico dos homens em geral. Pessoalmente não quero
conhecer e investigar o Homem Português, quero sim perceber e
investigar o homem, em geral, e os seus comportamentos.
Julgo que não é muito entusiasmante definir e ficar circunscrito a um
pensamento ou uma escrita portuguesa. Eu escrevo em língua portuguesa
e esse é um ponto de partida fundamental. Mas a literatura é assunto de
homem, não de pátrias. Os grandes temas humanos atravessam os vários
homens dos vários países. Podemos exprimir a dor que sentimos numa
língua, mas a dor, ela própria não tem gostos ou restrições linguísticas.”
Entrevista ao Círculo dos leitores, Online.
11. A OBRA
poesia, romance, epopeia, aforismos, investigações, breves notas (sobre a
ciência, o medo, sobre as ligações). E livros de difícil definição.
“As categorias literárias não me interessam muito. Tudo é sempre uma
misturada”. Talvez o que exista sejam apenas porcentagens mais altas ou
mais baixas de uma matéria. Mais percentagem de poesia, mais
percentagem de ensaio, mais percentagem de narração.”
OS GÊNEROS “é difícil, é impossível, separar ficção de ensaio ou, mais
especificamente, do pensamento.”
O PROJETO LITERÁRIO de Gonçalo Tavares pode ser pensado a partir da
tensão entre utopia e distopia.
Utopia – Projeto de construção de uma sociedade melhor.
Distopia – Análise crítica das características da sociedade atual.
“Olhar com atenção para o pior, e para o possível-melhor”.
12. 2 PROJETOS : LIVROS PRETOS E O BAIRRO
LIVROS PRETOS
LIVROS PRETOS “Considero que estes romances são livros emocionais e portanto que
incluem o leitor no seu mundo. Não há nada de abstrato em “Jerusalém”, a violência
entre pessoas e os laços amorosos e familiares existem em todo o lado. Estamos todos
no mesmo barco. [As personagens] aparecem num lugar paralelo ao nosso. Não é um
lugar estrangeiro porque não há nenhum lugar estrangeiro ao medo, à agressividade, à
loucura, à ligação entre pais e filhos. Pertencemos todos ao mesmo país.”
Em: “Jerusalém”. Canto interrompido – O incomodar. Entrevista ao Círculo dos leitores
O tema destes livros é a CONDIÇÃO HUMANA NA SOCIEDADE MODERNA E
CONTEMPORÂNEA, seus modos de organização social e mecanismos de controle.
Trata-se de uma tetralogia que pode ser lida como estágios da civilização ocidental: Do
primeiro, A máquina de Joseph Walser, ao último, Aprender a rezar na Era da Técnica,
assiste-se à expansão e sofisticação técnica: cada vez mais, máquinas mais sofisticadas
dominam as existências. Nos dois primeiros romances, numa era ainda prosaicamente
metálica, o clima é o de conspiração que antecede a guerra. A técnica adquire vida
própria e impõe decisões. Em Jerusalém, Theodor tenta encontrar uma fórmula que
explique a ocorrência do horror, o que prova que a racionalidade não foi posta em
causa. A loucura de Mylia ou os delírios de seu marido, Theodor, qual a maior loucura?
O último romance a técnica muda de ângulo: do domínio da corpo para o domínio da
vontade. “O mundo reduzido a um fazer”.
13. QUEM O HOMEM PENSA QUE É?
Mas esse pessimismo é compensado pelo movimento que se desenvolve em
paralelo: a des-antropomorfização que percorre estas fábulas. É aí, na forma diferente
de situar o homem no mundo, que podemos encontrar o lado positivo destas
narrativas. Um homem destronado, posto em contato com o mundo, mundo esse
habitado não por essências mas por substâncias e energias. O homem situado ao lado
de, não “acima”. Esta é a moral destes livros.
UM NOVO HUMANISMO ou uma NOVA ECOLOGIA?
O que está em questão é a maneira de viver daqui em diante sobre este planeta, no
contexto da aceleração das mutações técnico-científicas e do crescimento
demográfico.
É preciso REINVENTAR MANEIRAS DE SER no interior no interior da família, da
sociedade, do trabalho, da cidade.
14. UMA POÉTICA DO CORPO
Livro da dança – projeto para uma poética do movimento
70.
uma parte do movimento é excremento.
a outra é desejo.
Não sai apenas esperma e Fluxo MATERNAL.
Caem Fezes das ancas.
Caem Fezes das ancas lateralmente, atravessam o ar, roubam o AROMA
Escondido do invisível e FAZEM-NO aparecer de modo feio, CLARO,
MORTAL.
As Fezes são Mortais. Matam.
uma parte do movimento é esse excremento.
a outra é desejo.
Caem Fezes dos Pés da bailarina que é delicada e é bailarina.
Não pode ter vergonha das Fezes, a bailarina.
Se o Mortal tem medo da Morte tem medo de si, do corpo, do Ego,
da consciência, de pensar, tem medo do corpo, Medo da Morte e do
corpo e de tudo.
Não pode ter vergonha das Fezes, a bailarina.
Em: Livro da dança, 2001
15.
16. PROJETO O BAIRRO
Imagine um bairro de uma cidade qualquer, com novos vizinhos chegando
a cada dia e outros de despedindo.
Agora imagine que esses vizinhos são personagens inspirados nas obras
das mais geniais mentes criativas; escritores como T.S Eliot, Paul Valéry,
Ítalo Calvino, Bertold Brecht...
ESCREVEMOS SEMPRE DEPOIS DOS OUTROS
“Quem faz algo sem ouvir o que se fez, sem falar para o que já se fez,
entra num monólogo um pouco tonto; pensando estar a inaugurar um
mundo qualquer está, afinal, só a varrer para o canto só restos de uma
festa anterior. Ninguém faz nada de novo a partir do zero, só se faz algo
de novo a partir do antigo, parece-me.”
“há uma série de escritores de que gosto tanto que já os esqueci. Quando
se recebe algo de alguém, o melhor é fazer alguma coisa com o que se
recebeu. É nesse sentido que digo esquecer.”
17. Quem é Gonçalo Tavares?
BIOGRAFIA
Gonçalo M. Tavares. 43 anos, mais de 20 livros publicados. Estão em curso cerca de 230 traduções com edição em quarenta e seis
países. Os seus livros deram origem, em diferentes países, a peças de teatro, peças radiofónicas, curtas metragens e objectos de
artes plásticas, vídeos de arte, ópera, performances, projectos de arquitectura, teses académicas, etc.
Em Portugal recebeu vários prémios entre os quais o Prémio José Saramago 2005 e o Prémio LER/Millennium BCP 2004, com o
romance - "Jerusalém" (Caminho); o Grande Prémio de Conto da Associação Portuguesa de Escritores "Camilo Castelo Branco"
com "água, cão, cavalo, cabeça" 2007(Caminho). Prémio Branquinho da Fonseca/Fundação Calouste Gulbenkain com "O Senhor
Valéry", Prémio Revelação APE com "Investigações Novalis" e com "Uma Viagem à Índia"
PRÉMIOS INTERNACIONAIS:
- Prémio Portugal Telecom 2007 (Brasil).
- Prémio Internazionale Trieste 2008 (Itália).
- Prémio Belgrado Poesia 2009 (Sérvia).
- Prix du Meilleur Livre Étranger 2010 (França)
- Grand Prix Littéraire du Web
- Culture 2010 (França)
- Finalista do Prix Femina (2010, França)
- Finalista do Prix Médicis (2010, França)
(com "Aprender a Rezar na Era da Técnica")
- Prix Littéraire Européens 2011, "Étudiants Francophones" (França)
(com "O Senhor Kraus e a Política")
com "Jerusalém"
- Nomeado para o Prix Cévennes 2009, Prémio para o melhor romance europeu (França) com "Jerusalém" .
Veja aqui o blogue do autor http://goncalomtavares.blogspot.com
Projeto heteronímico: “Há uma ideia de que uma pessoa é só uma pessoa. Mas não,
todos somos uma quantidade de coisas diferentes, como toda a gente sabe e sente”.
Apresentação Madalena Vaz-Pinto
Profa. Adjunta UERJ/S. Gonçalo
16 de maio de 2013