1. ponto_e_virgula
NOVEMBRO 2007 EDIÇÃO 8
A Morte do Autor
Ensaio de Roland Barthes reflete o
papel do escritor
30 anos sem Clarice
A vida da escritora que dizia-se uma
mulher como outra qualquer
Frei Caneca
A verdadeira história do frei levado
(várias vezes) à forca
Ferreira Gullar
O poeta e pensador conta como se
inventou na Arte, no Jornalismo e na
Poesia... e fala de Política
2. ponto_e_virgula
[ su m ário]
NOVEMBRO 2007 EDIÇÃO 8
ESCRITORES
Adriana Seguro
ESPAÇOS NESTA EDIÇÃO
Carolina Moura
Fernanda Dutra
Fernanda Volkerling
04 Perfil 17 O que a História não conta Luisa Frey
Marina Veshagem
A história da insolúvel Clairce Lispector, Maurício Tussi
A verdadeira história do frei chamado Caneca, o
homenageada 30 anos após sua morte Pedro Santos
personagem prestigiado pela população que foi levado
08 Cinema (várias vezes) à forca
ESPECIAL
a. pizarro
19
Crítica do polêmico filme de José Padilha
Diálogo entre irmãs
que mostra a realidade, segundo o Bope.
EDIÇÃO
11 Música Fernanda Volkerling
Filosofia e Literatura, como Ciência e Arte, são duas Lucas Sarmanho
áreas de conhecimento que encantam o homem, mas
Um pouco do que apareceu no rock dos Luisa Frey
nem todos percebem a íntima relação entre as duas
anos 50´s e 70´s Marina Veshagem
14 Literatura EDITORAÇÃO
Carolina Moura
Um ensaio de Roland Barthes reflete o
Juliana Sakae
descolamento entre obra e autor.
Maurício Tussi
23 Entrevista Thiago Bora
Arte, Jornalismo, Poesia e Política para o CAPA
poeta Ferreira Gullar Juliana Sakae
29 Viagem ARTE FINAL
Juliana Sakae
Temporada de verão em Balneário Camboriú,
Matheus Joffre
uma cidade adoravelmente odiável Maurício Tussi
32 Fotografia REVISÃO
Adriana Seguro
São Paulo: ensaio fotográfico a cores e
Lucas Sarmanho
P&B da cidade-tema de Caetano
Marina Almeida
34 Causos&Coisas Rodrigo Tonetti
;
Florianópolis - SC
www.revistapontoevirgula.com
3. 3
[ca r ta ao le i tor ]
V
oltando para a casinha(1), dar. Lembremos: a reforma proposta
ridícula essa história de refor- vai além dos acentos.
ma ortográfica. Se pensarmos Mudar novamente, na utopia
bem, a última foi em 1943. Fazendo de unificar o português entre seus
as contas, são 64 anos. E houve a falantes. Portugal não está afim de
reforminha (pequenos ajustes, diga- aderir. Também deveríamos nos
mos) de 1971, que tirou todos aque- rebelar. Mesmo que os países escre-
les horrorosos acentos diferenciais. vam igual, vamos continuar esco-
Desta última, lá se vão 26 aninhos. lhendo certas palavras, eles outras.
Veja você que fez seu ensino Bem como vamos continuar enten-
fundamental e básico antes de 1971. dendo o que eles escrevem e vice-
Você sabe que é necessário ampliar versa.
o pôrto de Santos? Mais, sabe que Mas, se ainda assim insistirem,
é preciso fazê-lo a tôdos êles? Aliás, podemos brasileiros, portugueses,
não depende sòmente da vontade angolanos, guineenses, cabo-verdia-
dêsse govêrno, mas dos que virão. nos, moçambicanos, santomenses,
Côisa estranha? timorenses e tantos outros passar
Por que tanta gente reclama uns três séculos dentro de um gran-
que, no Brasil (generalizando), não de saco ortográfico-cultural. Quem
se sabe bem o português? Quanto sabe sairemos de lá com um consen-
tempo demora para uma língua se so sobre se chamamos a furadeira
firmar? Pensou em quantos séculos? de furadeira ou de bebequim, a ofer-
É, em cinco, seis décadas não vai ta de oferta ou desbarato...
(1)referindo-se à edição de outubro
4. 4
[ p er fil]
Trinta anos depois da morte, a personalidade que continua intrigando (Qual é melhor?)
por Luisa Frey
C
omo traçar o perfil de alguém vida que se conta é o título da biogra-
tida como uma “mulher insolú- fia publicada por Nádia na tentativa de
vel”? Foi exatamente assim que desvendar o fenômeno Clarice.
o jornalista e amigo Paulo Francis defi- Clarice Lispector nasceu na
niu Clarice Lispector. Para ela, podiam Ucrânia, em 1920. Seu nome de ba-
parecer insolúveis as muitas contradi- tismo, alterado quando chega ao
ções que vivia. Ou então, era ela pró- Brasil, era Haia. O nome significa
pria insolúvel porque não se dissolvia “vida” e o primeiro ano da de Clarice
dentre nós, reles mortais. Ela tinha algo foi marcado por medo, fome, miséria.
a mais. Nádia Battella Gotlib, uma das A família judia foge para a América
maiores estudiosas da autora, diz que e se instala em Maceió, quando Cla-
ela possuía uma espécie de intuição em rice tem pouco mais de um ano. Em
relação à natureza do ser humano. Uma 1925, mudam-se para Recife.
5. 5
No semi-árido, a menina passa par- o primeiro romance (e talvez desde os
te de sua sofrida infância e adquire o tão contos escritos na infância), ela tinha
característico sotaque nordestino. Desde uma bagagem de experiência quanto à
antes do nascimento, Clarice já escuta natureza humana, que impressiona psi-
canalistas: “Já está tudo ali em Perto do
os diversos sons dos idiomas dos muitos
coração. Vai incorporando técnicas no-
países por onde a família passa: russo,
idish, romeno, húngaro, alemão. Depois vas, mas sempre teve essa intuição em
vem o português do Nordeste, que se relação ao que é o ser humano, um dos Principais obras publicadas:
combina com a língua presa e, mais tar- grandes trunfos de seu sucesso”. Clarice Lispector publicou mais
de 20 romances, contos,
de, sofre influências dos outros lugares Viver em tantos lugares diferen-
crônicas e livros infantis:
em que morou. tes pode ter também tornado a escritora Romances:
Assim que se alfabetiza, cria o há- uma estrangeira em toda parte, inclusi- Perto do Coração Selvagem (1943)
bito de escrever. Com apenas nove anos, ve na própria vida. Nádia explica que ela O Lustre (1946)
Clarice perde a mãe e se arrisca numa tinha um “lugar isolado, um estado de A Cidade Sitiada (1949)
A Maçã no Escuro (1961)
peça de teatro – Pobre menina rica. Con- solidão”. “Do que gostava mesmo era de
A Paixão segundo G.H. (1964)
tinua escrevendo contos durante toda a ficar no seu canto escrevendo”, diz. As- Uma Aprendizagem ou Livro dos Prazeres
adolescência e aos 15, muda-se com a sim como Clarice, seus personagens es- (1969)
família para o Rio de Janeiro, onde vive- tão sempre à procura de algum lugar, de Água Viva (1973)
ria por mais tempo. alguma coisa, que ela própria não encon- Um Sopro de Vida - Pulsações (1978)
Novela:
O ano de 1943 foi marcante na tra. Para Nádia este constante reconhe-
A hora da estrela (1977)
vida da escritora. A jovem de 23 anos cimento da frustração é o cerne de sua Crônicas e contos:
publica seu primeiro romance – Perto do produção literária. Alguns contos (1952)
Coração Selvagem. Formada em Direito, Outra razão para o sucesso da Lite- Laços de família (1960)
casa-se com o diplomata Maury Gurgel ratura clariceana é a recepção, que Ná- A legião estrangeira (1964)
Felicidade clandestina (1971)
Valente. Após seis meses em Belém do dia diz acontecer de uma maneira mui-
A imitação da rosa (1973)
Pará, Clarice acompanha o marido em to diferente em cada um. “Ela instiga as A via crucis do corpo (1974)
uma jornada internacional que duraria pessoas porque nem tudo aparece expli- Onde estivestes de noite? (1974)
16 anos. Passam por Inglaterra, Suíça, cado, abre para muitas sugestões.” Além A bela e a fera (1979)
Itália e Estados Unidos. disso, sua Literatura promove um “con- Visão do esplendor - Impressões leves
(1975)
Essa vivência pluricultural, desde o tato com a intimidade, uma coisa muito
Para não esquecer (1978)
nascimento, obviamente contribuiu para profunda de cada um”. Segundo Nádia, A descoberta do mundo (1984)
formar a concepção de mundo da autora. a autora dizia que a liberdade é um hor- Literatura infantil:
Mas, segundo Nádia Gotlib, independen- ror que sentimos diante das coisas: “Ela O mistério do coelho pensante (1967)
te de onde estivesse, Clarice era sempre sabia provocar esse impacto das pessoas A mulher que matou os peixes (1968)
A vida íntima de Laura (1974)
a mesma, com o seu próprio mundo, o diante de si mesmas, da própria liber-
Quase de verdade (1978)
mundo da criação. Nádia diz que desde dade”. Como nasceram as estrelas (1987)
6. 6
Apesar de considerada insolúvel, Clarice se di- surpreendentes. A personagem Macabéa de A Hora
zia simples, uma mulher como outra qualquer. E as- da Estrela (1977), por exemplo, era uma nordestina
sim conseguia ser em suas crônicas e na convivên- muito pobre que migrou para o Rio de Janeiro, assim
cia com os amigos. Mas, ao mesmo tempo, construía como a escritora.
uma imagem um pouco bizarra de si mesma. Tinha Em permanente desajuste com o mundo, Cla-
atitudes para chocar. Nádia conta que ela gostava rice tomou a Literatura como válvula de escape. Mas,
de exibir a mão deformada após o incêndio ocorrido ao mesmo tempo em que esta foi sua salvação, mer-
em sua casa, em 1966, quando pegou no sono segu- gulhou tão intensamen-te na ficção, que acabou enx-
rando um cigarro. ergando a si mesma como personagem. Na véspera
Muitos costumam traçar um paralelo entre vida de sua mor-te (Clarice sofria de câncer no ovário),
e obra da autora, mas para Nádia é muito difícil fazer teve uma hemorragia muito forte. Desesperada, ten-
essa relação mecânica. “A obra é um conjunto tão tou deixar o quarto. À enfermeira que lhe impediu,
disse: “Você matou meu personagem”. ;
diferenciado, que ali cabe tudo, inclusive aquilo que
Clarice – Uma vida que se conta, de Nádia Batella Gotlib –
você não é. Todo produto cultural parte de algum lu-
Editora Ática
gar e quando tomados como ingredientes para compor
O livro foi publicado pela primeira vez em 1995. Sua quinta
uma ficção, os aspectos autobiográficos perdem seu edição está esgotada, mas Nádia pre-tende reeditá-lo em 2008.
valor documental”. Agora, não há dúvida de que as Para o fim dezembro deste ano, a autora anuncia o lançamento
coincidências entre realida-de e ficção de Clarice são de uma fotobiografia de Clarice Lispector
Clarice Jornalista rice da ficção hermética, fechada, subjetiva”, afirma Aparecida
O Jornalismo teve papel fundamental na vida de Cla- Maria Nunes, autora de Clarice Lispector jornalista. No livro,
rice. Além de servir para o sustento, a imprensa foi porta-voz Aparecida dá enfoque às colunas femininas escritas por Cla-
da escritora e popularizou seu trabalho literário. A autora não rice, com os pseudônimos de Tereza Quadros e Ilka Soares,
en-contrava editoras que quisessem publicar seus primeiros e como ghost-writer da modelo e atriz, Ilka Soares. Clarice,
contos e os jornais foram a saída. O primeiro conto – Triunfo uma mulher à frente de seu tempo, absorve a técnica do
– foi publicado no jornal Pan, em 1940. No mesmo ano, Cla- texto de jornal e transmuta isso para um lado muito pessoal,
rice começou a trabalhar de redatora na Agência Nacional, utilizando a primeira pessoa e colocando sua opinião. “Há
onde era uma mulher em meio a muitos homens. Dois anos muito da jornalista na escritora e da escritora na jornalista. É
depois, no jornal A Noite, obteve seu primeiro registro profis- o tempo todo Clarice Lispector, independente se está fazendo
sio-nal. Mais tarde - quando vai atuar na revista Manchete, na Literatura ou Jornalismo”, diz Aparecida.
Fatos&Fotos e no Jornal do Brasil com as suas crônicas, “ela Clarice Lispector jornalista – páginas femininas e outras
se aproxima de um público que não aquele que conhece a Cla- páginas. Editora Senac, 2006, R$ 45,00
7. 7
Os Lispector Clarice
A família A família
Clarice nasce
mudam-se para escreve a
chega a muda-se
em Tchetchelnik, peça Pobre
Recife
Maceió para o
Ucrânia menina rica
Rio de Janeiro
Nasce o
Sai o primeiro livro,
segundo
Perto do coração sel-
Clarice publica o
vagem. Forma-se em
conto Triunfo no Nasce Pedro, o filho, Paulo,
Começa a trabalhar como
Direito e casa-se com
jornal Pan e inicia redatora do jornal A noite,
primeiro filho, na nos Estados
o diplomata Maury
onde obteve seu primeiro
como redatora na
Suíça Unidos
registro profissional Gurgel Valente
Agência Nacional
Clarice dorme
com o cigarro
aceso e tem as
Divorciada, Clarice
mãos e pernas
começa a atuar na Publica A Hora da Estrela.
queimadas
imprensa carioca Morre, aos 57 anos
8. 8
[c i nema]
Filmes nacionais recentes trazem a
mesma temática de tráfico de drogas,
pobreza, violência e corrupção. Tropa
de Elite vem para apimentar a discussão
e desenvolver o debate
por Pedro Santos
H
istoriadores confirmam o que “Coloca a pena de morte aí pra você ver
a realidade insiste em mos- se não resolve.”
trar: ninguém passa impune Além das opiniões, a ditadura tam-
por uma ditadura. Os anos de chumbo bém está presente em atitudes cotidia-
deixaram resquícios em muito mais lu- nas e em frases aparentemente inocen-
gares onde se pode imaginar. O pensa- tes que reproduzem um discurso típico
mento autoritário que surge, de tempos daquele tempo. Ela também deixou res-
em tempos, em camadas da sociedade quícios na polícia, em grupos especiais
é exemplo disso. Ou você nunca ouviu como a Ronda Ostensiva Tobias Aguiar
Wagner Moura interpreta
alguém defendendo ardorosamente a (ROTA), em São Paulo, ou o Batalhão de
o Capitão Nascimento
pena de morte? “Bandido bom é ban- Operações Policiais Especiais (BOPE),
dido morto”, “Tem que matar mesmo”, principalmente no Rio de Janeiro.
foto: David Pichard
disponível em: tropadeeliteofilme.com.br
9. 9
nos altos escalões. O diálogo com Notí-
gente vai perder pro tráfico só pra um
S cias de uma Guerra Particular (lançado
ubindo o morro, em mais um dia es- playboy enrolar um baseado?”). Precisa
tressante e corrido, o capitão Nasci- tomar remédios para dormir. em 1999) se faz quando nos lembramos,
mento pensa consigo (e conosco, espec- Capitão Nascimento é o herói. Iden- entre outros exemplos, do depoimento do
tadores): “Um policial tem que escolher: tificamo-nos com o personagem. O filme Chefe da Polícia Civil do Estado do Rio
ou se corrompe, ou se omite, ou vai para o mostra como um ser humano que tem de Janeiro na época, Hélio Luz: “Há um
a guerra”. Ele foi pra guerra. E para guer- que desempenhar um trabalho duro. Mas interesse por uma polícia que não seja
Tropa de Elite é dúbio. Não se pode to-
rear nos morros do Rio, a equipe dele pre- corrupta?” Não ter corrupção, lembra
cisa jogar o jogo que consideram o mais mar uma única posição. Aquele policial Hélio, é não poder parar em local proi-
eficiente para vencer o tráfico: agressi- que escolheu a guerra, contra a idéia de bido, é obedecer rigorosamente às leis.
vidade, energia, violência e, se precisar, se omitir ou se corromper, é cínico. É, deExiste esse interesse, de fato?
tortura. certo modo, a personificação do justicei- O filme joga a semente para refle-
No filme de José Padilha (mesmo di- ro. “Bota na conta do Papa”, diz ele, em tirmos sobre tráfico de drogas, pobreza,
retor de Ônibus 174) acompanhamos a vi- julgamento sumário de um jovem que, violência e corrupção. Alguns persona-
são de Nascimento, capitão do BOPE, que em seguida, é executado. gens entram como caricaturas do poli-
mora com a mulher grávida em um apar- cial covarde que consegue dinheiro de
tamento simples. Sua vida social é dire- formas ilícitas, que busca reduzir as es-
O
tamente interferida pelo trabalho. Chegar roteiro complexifica muitas situa- tatísticas de criminalidade em sua área
de madrugada e sair de manhã é algo ções e caricatura outras tantas. A jogando cadáveres nos espaços de atua-
obra de ficção que Tropa de Elite repre- ção de outros policiais.
comum para ele, até que decide escolher
um substituto e abandonar o BOPE. senta (“ficção com dados da realidade”,
Quem liga o espectador com a reali- argumenta o diretor) traz um sistema
dade a que o filme se propõe a mostrar é o policial podre e falido. Há roubos dentro
capitão, vivido por um agressivo Wagner da corporação, infinitos desacordos com
Moura, em um dos melhores papéis que a lei, acerto de contas entre os próprios
já interpretou nos cinemas. Os roteiris- policiais, pagamento de propina para que
tas Paulo Pimentel, Bráulio Mantovani a polícia realize o trabalho que, afinal,
e José Padilha elaboram o personagem, toda a sociedade espera que ela faça. (“O
deixando-o mais complexo. Ele tem um negócio da polícia não é proteger? Então,
modelo de pensamento totalitário, atira o sistema transformou a proteção num
para matar, se for preciso, e tortura para negócio”, explica o narrador Nascimen-
conseguir o que necessita. Além disso, to). A corrupção é dominante, inclusive
Nascimento é um homem can-
sado da guerra, da estupidez
dos governantes e do vício dos
playboys (“Quantas pessoas a
fotos: David Pichard
disponível em: tropadeeliteofilme.com.br
10. 10
foto: David Pichard
disponível em: tropadeeliteofilme.com.br
Padilha mostra essas cenas de modo a ra, como o corpo marcado por um tiro
produzir risos na platéia. É proposital, na cabeça.
cinema também é entretenimento. Mas Cinematograficamente falando, há
é rir do trágico e desumano mundo que momentos em que a ação se torna ma-
está mais perto do que podemos imagi- niqueísta: bandidos maus e policiais
nar. Que o diga Luciano Huck! bons. Nunca podemos nos esquecer de
O filme adota a visão de que o que a narrativa é do capitão Nascimen-
grande problema do Estado paralelo to, ou seja, estamos vendo sob o olhar
que atua nos grandes morros é fruto do dele. É ele quem nos dirige pelo filme.
consumo de drogas. Realmente, se pen- Em circunstâncias assim, torcemos pelo
sarmos que não existiria tráfico caso BOPE. Aí a glamourização da violência
é patente, como o é em Cidade de Deus.
não houvesse usuários, essa é uma rea-
lidade plausível. É ingenuidade, porém, Ela é agente do filme, participante direta
atribuir unicamente aos consumidores da história.
de drogas todos os problemas que as De qualquer forma, não se pode
dizer que Tropa de Elite é um estímulo
favelas enfrentam. É uma corrente de
fatores: a vida miserável das pessoas, à tortura. São nessas cenas, sobretudo
a ausência do poder do Estado, a che- da progressão que nos leva, sem fôle-
gada do poder paralelo dos traficantes, go, ao fim do filme, que somos expostos
que se relacionam com outras camadas ao horror da tortura. A polícia tortura.
da sociedade, os usuários de drogas. Joga o jogo dos bandidos. A violência
Cidade de Deus traz essa questão de contra a violência. Há razões de so-
modo mais verossímil quando mostra bra para nos preocuparmos. Pensando
a vida do morro pelos olhos de alguém bem, onde estamos vivendo? Tem gente
que mora lá. A visão mostrada por Tro- que pensa que não tem outro jeito. Que,
pa de Elite, ainda que superficial quan- se não jogarmos o mesmo jogo, iremos
do trata das questões do tráfico, não é perder para os bandidos. Defendem a
condenável pelo detalhe de que o filme violência. Gente que pensa como o ca-
de José Padilha se propõe a mostrar o pitão Nascimento. “O jeito é torturar,
ponto de vista do policial do BOPE. matar os marginais, ‘limpar’ os morros
do Brasil”, poderiam dizer. Um pensa-
mento não muito longe daquele de um
T apas no rosto e saco plástico para senhor austríaco, de bigodes espessos,
asfixiar. As cenas de tortura são que governou a Alemanha na Segunda
explícitas. O diretor não se priva em Guerra Mundial. ; Cena mostra parte do treinamento dado aos
filmar o sofrimento e os restos da guer- policiais que querem ingressar no BOPE
11. 11
[ m ús ica]
A
llan Freed, disk jokey e radialista
de programas de rhythm and blues
em Cleveland, Ohio, inventou, diga-
mos, o termo rock and roll – e foi um dos
principais responsáveis pela difusão do
estilo. Freed investiu na carência do pú-
blico jovem consumista por um novo tipo
de música, mais energética: percebeu o
potencial comercial da música negra.
Começos, primeiros e mais algumas coisinhas
por Mauricio Tussi
12. 12
A data mais comumen- O sonho de encontrar um branco capaz de cantar
te aceita como a da criação como um negro havia sido realizado por Sam Phillips,
do rock é a do lançamento dono de um pequeno selo, até então, chamado Sun
da música “(We’re Gonna) Records. Em seu início de carreira, com os singles de
Rock Around The Clock de Thats All Right e Blue Moon of Kentucky, logo seguido
Bill Haley And The Comets”, por Good Rockin’ Tonight e I Don’t Care If The Sun
em 12 de abril de 1954. Ape- Don’t Shine, poucos poderiam acreditar que o Elvis
sar disso, dezenas de grava- Presley que ouviam no rádio era um branco. Obvia-
ções anteriores já apresen- mente, parecia mais saudável à sociedade conserva-
tavam um ou outro fator do dora e racista aceitar aquele tipo de música vindo de
que viria a se cristalizar no um rapaz com rosto de bom moço – hoje ele é o Rei do
novo estilo (o próprio Bill Rock...
Haley havia gravado no mes- Billy Furry foi o primeiro artista de rock inglês
mo ano, um pouco antes, a a ter alguma repercussão nos Estados Unidos, ainda
música “Shake Rattle and baseado nos conceitos comerciais do rock original,
Roll”). com músicas feitas por encomenda. Só que, na cidade
de Liverpool, estava tomando forma um movimento
cultural que acabou nomeando um fanzine local: o
ROCK IS BLACK! Mersey Beat. Dentre as bandas, destacavam-se Os
Cockroaches. (ahn??) Tsc, mentira! Eram Os Beatles.
Em 1966, com o single Substitute, o The Who fi-
Deve-se aos negros escravos trazidos nalmente levava o hard rock pela primeira vez ao topo
da África para as plantações de algo- das paradas (em grande parte devido à repercussão do
dão dos Estados Unidos a criação da quebra-quebra generalizado promovido após os shows
estrutura rítmica e melódica que seria
– pela banda, no palco, e pelo público, na platéia).
a base do rock. Os cantos entoados
Para muitos, Sgt Peppers é considerado o nasci-
pelos negros durante o trabalho, no
mento do rock progressivo (que não se prende a ne-
início do século XX, dariam origem ao
nhum conceito predefinido – apenas baseado na ex-
blues (do inglês, usado para desig-
perimentação e no ineditismo). Divide esta glória com
nar pessoa de pele escura, bem como
um outro álbum - curiosamente gravado no mesmo
tristeza ou melancolia). Então... foi o
estúdio e ao mesmo tempo - The Pipers At The Gates
blues que emprestou ao rock as tais
bases, junto com o jazz e o gospel. Of Dawn, da banda Pink Floyd, que havia ficado fa-
mosa pelas suas performances audiovisuais no un-
derground londrino, capitaneada pelo gênio movido a
LSD de Syd Barret.
13. 13
Em 1968, com o final da banda A cristalização do uso da imagem,
Yardbirds, Jimmy Page forma o New do teatro e da atitude como fator de mar-
Yardbirds, logo renomeado para Led Zep- keting tão ou mais importante do que a
pelin. A sonoridade da banda foi inédita, própria música veio com a banda amer-
e embora muito baseada no blues, era icana Kiss – que lançou seu álbum de
mais agressiva do que qualquer música estréia, auto-intitulado, em 1974. Os
anterior. Instrumentistas virtuosos, so- músicos tocavam maquiados, assumi-
los e improvisações de tempo indetermi- am personalidades de demônio, animal,
nado começavam a se destacar. homem espacial e deus. Voavam, cus-
O fim dos Beatles foi como o fim de piam fogo, vomitavam sangue e vendi-
uma era. A banda destacou a transição am discos, muitos discos – 500 mil no
entre o rock básico de letras simples dos primeiro: disco de ouro.
primeiros tempos ao Rock mais complexo O punk foi criado nos Estados Uni-
e sério, musicalmente e liricamente. Não dos e popularizado na Inglaterra – onde
mais apenas diversão e produto de con- logo viria a se tornar um movimento so-
sumo, o rock era definitivamente encar- cial do proletariado e não mais apenas
ado como expressão artística e social. um estilo musical. O som e o estilo in-
Inglaterra, Birmingham, 70. Sem re- fluenciaram bandas como Motörhead e
quintes musicais, o Black Sabbath grava- AC/DC.
va seu primeiro disco (conta a lenda que Bandas como The Police, Simple
em apenas dois dias), auto-intitulado, ex- Minds e Pretenders (e, um pouco mais
pandindo as fronteiras de peso no hard tarde, U2) adotariam um estilo que viria
rock e criando o que poderia ser o primeiro a ser conhecido como new wave, mais
disco definitivamente de heavy metal con- facilmente aceitável que o punk, quando
hecido do grande público. Ah, Black Sab- sua fórmula inicial já não surtia tanto
efeito comercialmente. ;
bath, Ozzy; Ozzy, Black Sabbath... Não
vou falar dele, mas está aí, bem citado.
14. a morte do autor
14
[ l i teratura]
a morte do autor
“A
escrita é o preto-e-branco aonde vem perder-se toda a identidade, a co-
a morte do autor
meçar precisamente pela do corpo que escreve.”, afirmou Roland Barthes
em seu ensaio A morte do autor (1968). Mas até que ponto escrever não
é justamente confundir-se com a obra, colar-se a ela de maneira que a voz de
Barthes, o mito quem escreve se torne o próprio discurso?
a morte do autor
e a linguagem Escrever é anular-se, destruir-se em nome de um propósito. Entretanto,
ao negar-se desta maneira, o autor reafirma sua crença em uma existência pos-
autônoma na
terior, uma existência através de sua escrita. O autor morre para dar lugar ao
construção do
texto, mas a morte não representa um sacrifício, e sim uma necessidade, uma
significado pré-condição: escrever só é possível onde a linguagem, e apenas ela, atua.
A descoberta e a afirmação do indivíduo, prin-
cipalmente a partir da Era Moderna, contribuíram
para que a figura do autor se transformasse em
uma extensão da obra. A crítica, então, intensificou
as associações entre a Literatura e as maneiras, as
atitudes de quem a produzia, “(...) como se, através
da alegoria mais ou menos transparente da ficção,
fosse sempre, afinal, a voz de uma só e mesma pes-
soa, o autor, que nos entregasse a sua confidência.”
(Barthes, 1968).
Historicamente, atribuía-se ao autor, até en-
tão, o papel de proprietário da obra. Era ele a auto-
ridade máxima, por excelência; aquele capaz de for-
necer certezas e de responder a todas as questões. A
partir da consciência de sua morte, porém, o autor
assume uma nova postura. Deixa de se agarrar ao
texto e passa a empurrá-lo para longe de si, como
se o indivíduo contaminasse a pureza da escrita.
Walter Benjamin, em seu texto O Narrador (1936),
caracteriza a narrativa como aquilo que não se tra-
duz em mais palavras: “Metade da arte narrativa
ilustrações:
a.pizarro
15. 15
O afastamento
da “voz que
narra” reconduz
está em evitar explicações. Heródoto não ex-
plica nada. Sóbria concisão salva da análise
psicológica”.
a obra em
Já no séc. XVIII, Stéphane Mallarmé pro-
curou desenvolver uma linguagem que falasse
por si só, anulando completamente a presen-
ça “daquele que escreve”. Também Paul Va-
léry, no séc. XX, buscou o caráter puramente
direção ao
lingüístico da literatura, denunciando as ma-
nifestações subjetivas do autor no texto.
O afastamento da “voz que narra” recon-
duz a obra em direção ao texto. A escrita deixa
de ser manifestação do sujeito e se abre a um
processo de pluralização de sentidos a par-
tir da linguagem. Em outro de seus ensaios,
Da obra ao texto (1971), Barthes afirma que
“perdida a origem, a causa tutelar, a intenção
fundadora e o direito de propriedade simbó-
lica, o texto, separado e autotélico, pratica o
recuo infinito do significado”.
Todavia, uma vez anulada a presença do
autor, “a unidade de um texto não está na sua
origem, mas no seu destino, e este destino já
não pode ser pessoal” (Barthes, 1971). O es-
16. A partir da consciência 16
paço antes ocupado pela origem (autor), passa a ser preenchido
pelo destino (leitor). Manuel Gusmão, em seu ensaio Anonimato
ou alterização?(1998), afirma que “O leitor tende então a surgir
de sua morte, porém, o
como uma maneira ainda de figurar o texto: destino sem destina-
dor e no fundo sem destinatário; reunião das várias culturas que
o texto é”.
Com a origem afastada, toda a significação se transfere para
o lugar onde a escrita é percebida, onde a “voz que narra” é uma
voz sem nome, inexplorada – o leitor. Já não se pretende decifrar
autor assume uma nova
o texto, nem dar a ele o sen-
tido restrito de quem o escre-
veu. Entretanto, o surgimento
desta escrita ilimitada, deste
espaço de múltiplas extensões,
postura. Deixa de
que contradiz a manifestação
de uma cultura única e passa
a compreender toda a possi-
bilidade de sentido da lingua-
gem, só é possível onde houver
a anulação do mito anterior:
“o nascimento do leitor tem de
pagar-se com a morte do Au-
tor” (Barthes, 1968). ;
17. 17
por Marina Veshagem
E contam as más línguas que
política e religião não combinam...
do pai. Entrar para a vida religiosa era, na época, uma forma
segura de ascender socialmente. Foi como Caneca virou frei.
Agora, de como virou político, pouco se sabe.
O importante é que Caneca esteve envolvido com a Revo-
lução Pernambuca- na (1817) e com a Federação do Equador
(1824). Participou ativamente do primeiro movimento, no
qual foi proclamada uma República e organizado o primeiro
governo independen- te na região. Após a derrota da revolu-
ção, o frei foi preso e, em 1921, libertado pelo movimento
constitucionalista em Portugal.
Frei Caneca foi um dos líderes, juntamente com Ci-
priano Barata da Fede- ração do Equador – outro movimento
D
republicano e, desta vez, também separatista –, em Per-
izem que a História não aconteceu exatamente como fica- nambuco. Diz Evaldo Cabral de Mello, historiador brasilei-
mos sabendo. Dizem também que muitos de nossos pro- ro, que “frei Caneca su- bestimava os meios à disposição da
fessores inventam estórias dentro da História, só para que Corte do Rio, superes- timando, por outro lado, a vontade
nos interessemos por ela. Estivesse minha professora omitindo local de resistência ao despotismo fluminense (...) de 2 de
grandes pontos-chaves da história, ou criando estórias agradá- julho em diante a história da Confederação se tornou a narra-
veis e divertidas, garanto que elas não eram assim tão afáveis, tiva de uma derrota”. Em 12 de setembro de 1824, Recife foi
tampouco mentirosas. ocupada e a derrota se concretizou.
A primeira peculiaridade histórica da qual me lembro é a de Frei Caneca, num ímpeto de falta de fé (ou de ciência
frei Caneca. Homem curioso, esse frei. Foi religioso (como o nome política da realidade) fugiu com parte das tropas para o inte-
adotado escancara) e também político (aí entra o paradoxo, nada rior de Pernambuco. De nada adiantou. Em 29 de novem-
incomum na História). Não se sabe se ele adquiriu mais visibili- bro daquele mesmo ano da derrota, foi preso pelos soldados
dade como religioso ou político – se é que é possível separar de imperiais, levado novamen- te para o Recife e condenado à
maneira dicotômica os dois – o que se explica mais adiante. Filho forca.
de um tanoeiro – aquele que faz ou conserta vasilhas de aduela, E aqui começa a pe- culiaridade capciosa. Preso, Ca
como barris, cubas, dornas, pipas e tinas –, o frei herdou o apelido neca gozava de muito prestí- gio da população local, o que
18. 18
resultou na grande liberdade de entrar e sair do cárcere quando
bem entendesse. Na véspera do enforcamento, era costume deixar
o condenado escolher seu jantar. E, na primeira vez em que camin-
hava para a morte (sim, houve mais de uma!), o frei se alimentou
muito bem. No dia fatídico, foi despojado do hábito religioso e levado
à forca.
A multidão, em coro, quase que coreografada, gritava a todo
pulmão: “O Caneca não! O Caneca não!”. Já no local do sacrifício,
o carrasco – encarregado de puxar o banquinho sob os pés do frei e
finalizar o ritual – parou, pensativo. Após o momento de conflito, o
homem se recusou a executar a ação. A população enlouqueceu de
alegria e a cerimônia foi adiada.
A segunda e a terceira tentativas de enforcamento não foram
diferentes. O jantar caprichado era seguido do coro a gritar “O Can-
eca não!” e da negativa de cada carrasco em sacrificar o querido
frei. A mando de Dom Pedro I, intervindo direto do Rio de Janeiro,
mudou-se a tática. O frei seria fuzilado.
Dessa, Caneca não teria escapatória. Nem os gritos “O Caneca
não! O Caneca não!”, nem a recusa de carrascos, nada evitaria o des-
tino dele. Com a estratégia de não deixar culpados, vários homens
dispararam suas armas na direção do réu, mas em apenas uma
delas houve pólvora de verdade. Dessa forma, ninguém soube – ou
se preferiu não saber - quem realmente havia matado frei Caneca.
Pouco antes de ser fuzilado, Caneca compôs um poema:
“Tem fim a vida daquele
Que a pátria não soube amar;
A vida do patriota
Não pode o tempo acabar”
O religioso, o qual a política levou à morte, não conseguiu se
livrar desta através da religião. Por mais que juntas, política e re-
ligião, o tenham tornado amado entre a população pernambucana
– que tinha anseios políticos, sim, mas venerava mais o lado “frei”
de Caneca –, esse povo religioso não se fez ouvir e perdeu seu maior
defensor. ;
20. 20
Q uando terminei de ler A Montanha Mágica, de Thomas Mann, senti que
tinha envelhecido alguns anos, tantas foram as lições que tirei. O livro
alemão faz parte da linha de “romances de formação” (Bildungsroman),
que narram o processo de aprendizagem de um personagem. Outros livros clas-
sificados assim são O apanhador no campo de centeio, do americano J. D.
Salinger, O ateneu, de Raul Pompéia e Os anos de aprendizagem de Wilhelm
Meister, de Goethe. Por centrarem a narrativa no desenvolvimento do indiví-
duo, no confronto do “eu” com acontecimentos exteriores, talvez seja mais fácil
enxergar reflexões neste estilo romance. Mann e Goethe são comumente cita-
dos como filósofos, além de literatos.
Para Adorno (filósofo alemão), a arte moderna - e a literatura pode entrar
neste termo - contém um enigma e a resolução deste levaria à reflexão, à filoso-
fia. A busca de respostas levaria a mais perguntas, e a obra de arte teria senti-
do a partir daí. Para a arte tradicional o sentido surgia a partir de um conceito
definido, como uma representação dele.
O professor Rafael Carmolinga, do curso de Letras da Universidade
Federal de Santa Catarina (UFSC), caracteriza a Literatura como uma forma
de reflexão jocosa, divertida, enquanto a Filosofia é séria, acadêmica. A segunda
é considerada ciência, por isso tem como objetivo a instrução, e para que isso
ocorra, há a cobrança do aprendizado. A Literatura trata dos mesmos temas de
uma forma mais gostosa, prazerosa.
Educação
Q uando questionei o professor Carmolinga sobre o distanciamento entre Filo-
sofia e Literatura nas universidades, ele me respondeu com uma pergunta:
“Você sabia que antes do Regime Militar (1964-1985), as faculdades de Letras e
Filosofia eram um único curso? Os militares perceberam o perigo da literatura
reflexiva”. De fato, na Universidade de São Paulo, criada em 1934, os cursos de
Letras e Filosofia fazem parte da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Huma-
nas. Em universidades mais novas - como as federais de Santa Catarina, Mato
Grosso, Goiás, Acre - estes cursos estão em centros acadêmicos diferentes. No
Brasil, a confluência das duas áreas está restrita a cursos de pós-graduação,
ainda que algumas faculdades ofereçam disciplinas na graduação.
21. 21
No jornal online Opção, José Maria e Silva critica o Colóquio Filosofia e Literatura or-
ganizado pela Universidade Católica de Goiás em 2000. Silva disse que entre platéia e pa-
lestrantes havia um claro distanciamento. Eram intelectuais falando sobre Focault, Derrida,
Deleuze, nomes consagrados da Filosofia, e a platéia pedindo a palavra para declarar “Litera-
tura é amor! Filosofia é amor!”, como narra o crítico em seu texto.
Outros colóquios foram realizados nos anos seguintes, mas em breve pesquisa pela
internet percebe-se a falta de divulgação. A academia se mantém distante da sociedade e
Filosofia e Literatura aparecem juntas na mídia somente quando se trata de best-sellers,
como O mundo de Sofia, de Jostein Gaarder.
“Nenhum homem jamais foi um grande poeta, sem ser ao mesmo
tempo um profundo filósofo”, S. T. Coleridge (poeta inglês), em
tradução livre
Um, nenhum e cem mil, Pirandello
Um dia, a mulher de Vitangelo Moscarda lhe faz notar que o nariz dele pende para um
lado, é imperfeito. A partir daí, o protagonista passa por uma crise de identidade. Se não
podemos nos ver enquanto agimos, naturalmente, não conseguimos associar nossa perso-
nalidade ao nosso corpo. No entanto, quem convive conosco não consegue dissociar corpo e
alma e isso se reflete na concepção que cada um tem de nós. Além disso, Moscarda chega à
conclusão de que somos mais de cem mil. Somos o que cada um vê de nós, o que pensamos
que os outros vêem de nós e o que pensamos que somos. Um, nenhum e cem mil é conside-
rado o romance mais complexo do italiano Luigi Pirandello.
O mundo de Sofia, Jostein Gaarder
O romance de Jostein Gaarder virou best-seller e trouxe a Filosofia à mídia e às conver-
sas cotidianas. O norueguês nos apresenta a história de Sofia, que começa a receber bilhetes
anônimos com questionamentos como “Quem é você?”, “De onde você veio?” ou “Como come-
çou o mundo?”. O livro é quase um curso de História da Filosofia. Conta desde os gregos à
filosofia moderna, com Hegel e até o Big Bang e outras teorias de surgimento do universo.
22. 22
O filósofo do Ser: Fernando Pessoa
O poeta português é mais conhecido pelos seus
heterônimos, escritores criados por ele, com
data de nascimento, profissão, história e livros,
como Alberto Caeiro e Álvaro de Campos. No
entanto, o conteúdo filosófico de seus livros
oferecem muitos enigmas ao leitor.
O período de maior atividade literária de Pes-
soa foi o início do século XX, mesma época que
Darwin, Marx, Freud. É um momento de inten-
so questionamento da tradição, e os valores
A montanha mágica, Thomas Mann ocidentais são postos em dúvida. Assim, para
Hans Castorp é um jovem, burguês e engenheiro da capital, que o escritor “a verdade tem uma forma parado-
vive na Europa antes da Primeira Guerra. Castorp vai visitar o primo xal”. A decadência da verdade e da razão leva
no sanatório Berghof, localizado nos Alpes suíços. A visita que seria Pessoa a valorizar as sensações e os sonhos, o
de três semanas se prolonga por sete anos. O livro acompanha o de- que também pode ser lido nos heterônimos.
senvolvimento da doença de Castorp e de seu intelecto, como é típico “SÍMBOLOS? Estou farto de símbolos...
dos romances de formação. No entanto, os grandes momentos filosó- Mas dizem que tudo é símbolo.
ficos do livro estão nos embates de dois amigos de Castorp: o velho
Todos me dizem nada.” Álvaro de Campos (Poe-
italiano Settembrini e o jovem jesuíta Naphta. Os dois são cultos, mas de Álvaro de Campos)
mas representam pensamentos diferentes. Enquanto Settembrini
Para Cláudia Grijó Vilarouca, mestre em Teoria
acredita na civilização, é racionalista, democrata, Naphta crê que a
Literária, a relatividade não significava a falta
violência e o terror são os transformadores do mundo, é fascinado de fundamentos e Pessoa foi buscar no Ser, na
pelo irracional e acredita que a fé é superior ao intelecto, é a melhor existência, estes fundamentos. A linguagem
forma de atingir o conhecimento. As discussões entre estes dois filó- poética, por permitir a liberdade e as novas
sofos que procuram sempre influenciar Castorp não levam à conclu- significações, era o lugar perfeito para Pessoa
são alguma, o que demonstra, segundo o artigo do professor Richard desenvolver a concepção de um Ser múltiplo,
Miskolci, a defesa de Mann da conciliação entre as duas partes. ; de acordo com Cláudia Vilarouca. Estas idéias
estão relacionadas ao pensamento do filósofo
alemão Heidegger.
23. [e ntrevist a ] ilustração: a.pizarro
por Adriana Seguro
D
o outro lado da linha, a voz sábia, de tom
inconfundível. Um dia após o lançamento de
Experiência Neoconcreta: Momento-limite da
Arte e da nova edição de Relâmpagos – Dizer o Ver,
a ponto-e-vírgula pingue-pongueou com o poeta
e pensador Ferreira Gullar. Respostas bem expli-
cadas, quase didáticas, revelam o homem de idéias,
sempre a pensar e descobrir o mundo.
“ Todos ponto-e-vírgula - O livro Relâmpagos traz tanto textos inédi-
nós tos como da década de 50...
Ferreira Gullar - Esse livro nasceu de um texto que escrevi
somos sobre os móbiles de Calder. Quando reli o texto achei que era
diferente das outras coisas que costumava escrever sobre arte.
invenções “ Não é um texto de crítico de arte; é um texto criativo. Então fui
de nós atrás de outros que fizessem semelhança com esse para criar
um livro que não fosse de crítica de arte, mas da identificação
mesmos com a obra de arte, emocionado com a arte.
; - Como o senhor elege as obras que vai analisar?
Gullar - Eu fui a São Paulo e havia uma exposição de quadros
da Maria Helena Vieira da Silva, uma pintora portuguesa exce-
Ferreira Gullar lente que morou no Brasil. Eu vi e achei tão bonita, uma pin-
conta como tura tão criativa e de tanta qualidade, que resolvi escrever um
se inventou artigo. E esse é o critério que adoto: ou alguma coisa que me
na arte, na toca por sua beleza, ou - então - alguma coisa que me desperta
poesia e no uma visão crítica ou uma nova maneira de ver questões quanto
à arte contemporânea. Eu sou motivado por fatores dessa na-
jornalismo... e
tureza, que a própria exposição faculta.
fala de política foto: jbonline.terra.com.br
24. 24
; - Por que o Neoconcretismo pode ser considerado momento- E depois, o Poema Enterrado, que era uma sala no fundo do
limite da arte? chão, onde você penetrava com o corpo no poema. Essas expe-
Gullar - Ele é uma experiência limite, não quer dizer que seja riências estão no limite da linguagem artística e literária. Não
a maior e mais importante. As vanguardas européias surgiram se tem notícia de que em alguma Literatura do mundo tenha
no começo do século XX, foram se desenvolvendo ao longo do sido feito um poema em que a pessoa entra no poema. Então,
século e depois passaram para outros países. Até o surgimen- é uma coisa limite, que não se conhecia. É claro que isso em si
“
to do Movimento Neoconcreto, elas não tinham não é valor. Fazer uma coisa que nunca ninguém
Fazer uma
chegado ao ponto-limite a que a experiência ne- fez, por si mesma, não significa uma grande coisa.
oconcreta levou, que foi o de destruir os gêne-
coisa que nunca A qualidade expressiva no Poema Enterrado, ou
decorre do que a pessoa
ros artísticos. Destruir não, violar os limites que experimenta ao entrar
caracterizavam os gêneros artísticos, a ponto de ninguém fez, quando lê ou manuseia o livro-poema. Agora, que
com a Lygia (Clark) e o Hélio Oiticica chegar-se foi uma coisa inovadora, foi.
a uma zona em que já não se sabe se aquilo por si mesma,
é arte ou não. A própria Lygia dizia, depois de não significa ; - E qual foi a reação das pessoas ao Poema En-
“ terrado?
passar da “fase dos bichos” e ampliar sua expe-
riência no terreno da sensorialidade, que aquilo uma grande Gullar – Ele foi construído, mas no mesmo dia da
já não era arte. Ela inclusive procurou utilizar inauguração houve uma tempestade no Rio que
coisa
aquilo como uma espécie de terapia, de trata- inundou o poema. Depois, eu soube que foi re-
mento psíquico. Tanto que ela dizia que aque- construído no mesmo local, na casa da família do
les objetos relacionais contribuíam para uma Hélio Oiticica.
reconstituição do eu. É de fato uma experiência
; - O senhor não chegou a ver?
que se chega ao limite, em que se discute até
Gullar - Eu não cheguei a ver. Então, a experiên-
que ponto isso já é arte ou se já é outra coisa.
cia, eu imagino que é meio ritual, uma coisa que
; - Então, o que o senhor fez naquela época é era o que eu pretendia quando imaginei o poema.
arte? Mas os poemas espaciais, há pouco exibidos no
Gullar - O que nós fizemos era evidentemente Parque Imperial... As pessoas os manuseavam e
arte, ou pretendia ser. O que eu digo é que o gostavam muito, porque eles são bonitos, têm co-
movimento chegou a um limite. Por exemplo, res ligadas ao significado daquelas formas e são
eu era um poeta e fazia poemas como qualquer interessantes, porque possibilitam a participação
poeta faz, utilizando linguagem comum, de todo do leitor no próprio fazer do poema. Esse livro que
mundo. Mas fui me desenvolvendo durante a eu publiquei agora tem a reprodução fotográfica
minha participação no Movimento Neoconcre- de todos esses poemas espaciais, que são muito
to. Eu criei o livro-poema, um livro muito dife- pouco conhecidos. E os livros-poema só agora es-
rente de todos os que existem. Depois, os poe- tão sendo editados, quase 50 anos depois de te-
mas espaciais, que já não são nem livro mais. rem sido feitos.
25. 25
; - Por que agora? ; - O senhor diz que nasceu poeta e que quem nasce poeta
Gullar - Porque um dia tinha que ser feito. Eu decidi fazer esse pode ou não descobrir essa vocação. Se não descobrisse esse
talento, quão diferente o senhor acha que seria a sua vida?
livro sobre o Neoconcretismo, porque achei que, como um dos
Gullar - O que eu acho é o seguinte: as pessoas nascem com
principais integrantes e formulador das idéias do movimento,
era necessário o meu depoimento sobre o que aconteceu. determinadas habilidades. Quem não tem habilidade para jo-
gar futebol, não vai ser um Robinho. Pra ser Robinho, tem que
; - O senhor acha que foi a época mais ousada de sua poesia? nascer com as qualidades que ele tem. Agora, você tem as qua-
Gullar - Veja bem, pode até ser mais ousada, mas eu não meço lidades, mas tem que se inventar a partir delas. Se ficar sen-
a qualidade das coisas simplesmente pela ousadia. Eu acho tado na calçada, olhando o passarinho voar, você não vai fazer
que aquilo foi um período da minha experiência como poeta, de nada. Não basta nascer com as qualidades. É preciso também
fato, muito interessante. Quando voltei a me envolver com isso, se inventar, como poeta, ou como jogador de futebol, ou como
me encantei de novo e cheguei até a inventar mais dois ou três arquiteto, ou como músico. Você tem que criar a partir das
poemas espaciais. Fiquei empolgado, vi que aquilo tinha uma qualidades que trouxe com você. Agora, eu acho muito difícil
expressão ainda viva que eu podia explorar, e me vieram idéias uma pessoa nascer poeta e não escrever. Eu acho que pelo
que pus em prática. Então, é isso. As coisas não são também próprio fato de nascer com aquelas qualidades, ao ler na escola
ortodoxas assim, não têm que obedecer a normas escritas; a os poemas de Gonçalves Dias, de Raimundo Correia e depois
vida é conseqüência de circunstâncias e acasos. A vida não Drummond, ele vai acabar se identificando com alguns deles e
está toda planejada, com um fator determinante que não podia descobrir que tem a ver com aquilo, que é capaz de criar uma
ser de outra forma. A vida é uma invenção; a arte também. coisa naquele mundo. E é assim, eu acho muito difícil não
acontecer.
; - Como o senhor descobriu essa ne-
cessidade?
Gullar - Na escola, eu fiz uma reda-
ção, a professora me deu 9,5 e elogiou
na turma. Eu achei: “Bom, se ela está
achando tão bom, eu acho que sirvo
para escrever.” Então, eu resolvi o que
vou fazer da vida... Porque a gente
nasce e, em 13, 14 anos, você sabe o
que vai ser na vida? Não sabe! Você
“
está ali, mas pode ser qualquer coisa.
Eu acho muito Você é o quê? Cozinheiro, jogador de
“ futebol, poeta, empregado de loja ou
difícil uma pessoa nascer um quitandeiro, como meu pai, o que
poeta e não escrever você é?
26. 26
“ Eu estava no exílio
; - Ser poeta é saber escrever poesia ou é também
uma forma diferente de viver e de se relacionar com o
em Buenos Aires e
mundo?
Gullar - Quando diz “tem vocação”, não é só saber escrever;
escrevi o poema [Poema Sujo]
“
é uma porção de coisas juntas. O cara pode saber escrever,
como se fizesse a última
mas pode virar jornalista ou outro profissional que usa o
escrever como meio de trabalho. A poesia, a Literatura é
coisa na vida
outra coisa. É preciso outras qualidades, além de simples-
mente saber escrever. Saber escrever já é um pouco a pre-
sença dessas qualidades, porque quando a professora elo- embora, assustadas com a tempestade que estava se forman-
giou o meu trabalho, não foi só porque... Pelo contrário, tinha do no horizonte. Foi aí que decidi escrever esse poema como
até erro de português, ela não me deu dez porque tinha dois se fosse a última coisa. Eu não sei o que vai acontecer comigo,
erros de português. Mas o que chamou a atenção dela foram as vou dizer o que me resta dizer.
idéias e a forma como eu as expus. Então havia ali uma coisa
; - São situações extremas que levam à criação poética?
que não havia nas redações dos outros colegas, entendeu?
Gullar - Não, não. Isso aí é um momento especial, felizmente
; - Quantos anos o senhor tinha? não é preciso isso pra escrever. Escreve-se por muitas outras
Gullar - Treze anos, por aí... razões. O simples cheiro de uma tangerina me fez escrever um
longo poema. O olhar, o sorriso de uma moça. Eu passando
; - O Poema Sujo (1975) é um marco em sua obra. Vinícius de pela rua, a vi no ponto de ônibus, sorrindo... Não sabia quem
Moraes disse que o poema, “sem omitir nenhuma palavra ou era e me fez escrever um poema. Os poemas nascem de qual-
ato considerados feios ou obscenos pela moral burguesa, car- quer fato, dependendo do impacto que ele provoca no poeta.
rega uma extraordinária pureza de intenções e de sentido”.
Gullar - O Vinícius era um grande poeta, um homem de grande ; - Hoje, depois de mais de 60 anos de poesia, ela mudou o
sensibilidade e percebeu essas qualidades que acredito que o senhor?
poema realmente tenha. O poema foi escrito em circunstâncias Gullar - Mudou, porque todos nós somos invenções de nós mes-
muito especiais: eu estava no exílio em Buenos Aires e escrevi mos. E nós nos inventamos, inclusive, através do que fazemos
o poema como se fizesse a última coisa na vida. Uma vez que e do que criamos. Eu me invento também através dos meus
eu estava numa situação difícil, porque era exilado, não tinha poemas. Meus poemas não são só literatura, eles são parte do
mais documento para sair daquele país, estava quase ilegal. mundo imaginário que eu criei para mim. O poema acrescenta
Perón (Juan Domingo Perón, presidente da Argentina) tinha o meu mundo imaginário às coisas que eu crio ao escrevê-lo.
morrido. A presidente era a viúva dele, Isabelita, que não tinha Então, nesse sentido, ele muda a vida. E muda a vida dos ou-
pulso para governar o país na situação que estava. Já começa- tros, porque se incorpora à vida, revela pro cara que lê uma coi-
va a haver ameaças de um golpe para derrubá-la e eu me sen- sa que ele nunca tinha percebido. A boa poesia, a poesia verda-
tia cada vez mais inseguro. Podia acontecer comigo qualquer deira muda o mundo. Não no sentido da revolução, de derrubar
coisa, as pessoas começavam a sumir, outras começaram a ir a ditadura, de mudar o regime social, aí não muda.
27. 27
; - E a poesia em si? A sua poesia mudou ; - O que o senhor tem escrito hoje?
muito. Gullar - A coisa que eu menos escrevo é
Gullar – Eu sou um dos poetas que mais muda- poesia, porque não é uma coisa que se faça
ram durante a sua carreira. Mas acredito que por encomenda. Não é: “hoje eu vou escrever
há uma coerência nessas mudanças. Eu não um poema”, não existe isso. A poesia é uma
planejo essas mudanças, elas vêm em função coisa que acontece ou não acontece. Você
da minha própria vida, das próprias coisas que tem que estar predisposto, evidentemente,
acontecem e da própria poesia que eu escrevo. mas não depende da sua vontade. Agora,
De repente, se percebo que determinado rumo crônica, eu arrumo um assunto e escrevo.
que segui já acabou, que não dá mais para se- Passo, às vezes, meses sem escrever um
guir naquela direção, eu paro. Aí começa, mais poema, e às vezes pego e escrevo cinco de
tarde, sem eu saber como, uma outra coisa, ou- uma vez. Não tem lógica e nem é determi-
tro caminho que se abre. Eu começo a inventar nado por minha vontade. Eu também faço
crítica de arte; escrevo para a Folha [colu-
uma outra maneira. Então tem uma coerência,
na dominical no caderno Ilustrada]; escre-
porque sou eu mesmo, com as minhas idéias,
minha experiência de vida, minha experiência vo artigos que jornais e revistas me pedem,
literária. Mas sempre surge uma mudança, de sobre isso, sobre aquilo; faço palestras; dou
modo que meus livros são sempre diferentes. cursos sobre arte. A coisa que mais gosto
Não é de propósito. Uma coisa que não pas- de escrever é poesia, que eu menos faço.
sa pela minha cabeça é: “tenho que fazer uma
“
; - E no jornalismo, o senhor entrou por
coisa diferente de todo mundo”.
Não é: acaso?
; - O senhor já sentiu falta da universidade? Gullar - Como o que eu sei fazer é escrever,
‘hoje eu
Gullar - Não, porque eu estudei. Talvez, se ti- era fatal que a minha profissão fosse escre-
vesse uma formação universitária, eu não ti- ver, né? Então o jornalismo surgiu como
vou escrever
vesse certas lacunas no meu conhecimento. uma coisa natural. Eu tinha que ganhar a
um poema’não
,
Mas procurei estudar aquilo que me interes- minha vida e não era com poesia. Então,
sava e me interesso por muitas coisas. Procu- passei a escrever para jornais. Eu sempre
existe isso.
rei completar o meu conhecimento em coisas gostei de trabalhar de jornalista e escre-
A poesia é
que são necessárias para você ter uma visão ver crônicas. Tenho prazer em fazer isso,
do mundo, da sua época. Não é imprescindível porque é uma oportunidade de expressar
uma coisa
a universidade para estudar. Eu me incompa- minhas opiniões sobre questões de caráter
tibilizei com negócio de escola, fiquei com raiva social, político, artístico, sobre as coisas
que
“
e saí para estudar por minha conta. Sempre que estou permanentemente pensando. É o
acontece
achei que tem que ler, procurar pensar e en- meu ganha-pão, mas é também uma coisa
tender as coisas. que me gratifica.
ou não acontece
28. 28
“ O povo tem que ; - O senhor ainda vai à sua Gullar - Tem que reivindicar. O povo tem que tomar consci-
tomar consciência, cidade natal, São Luís do ência das coisas, porque pode acontecer uma coisa grave no
Maranhão? Brasil, que é o populismo. O Lula, nesse sentido, pode se tor-
porque pode Gullar – Tão cedo não irei. nar uma ameaça. O “salvador da pátria” é um perigo, porque é
acontecer uma Excluí avião da minha vida, uma coisa antidemocrática. O regime democrático pressupõe
não estou para me estressar. a alternância no poder. Se você começa a criar um tipo de lí-
coisa grave no “ Acho que avião é uma coisa der que fala às grandes massas, que dá a Bolsa-Família, que
que está cada vez pior. Os ae- pega o dinheiro do Estado e usa para comprar a opinião das
Brasil, que é o roportos estão gigantescos, as pessoas... O que o Lula está fazendo é isso. Ele dá para as
populismo multidões cada vez maiores; pessoas necessitadas; os pobres, os aposentados ganham uma
para fazer o check in são filas série de vantagens. O cara fica grato, achando que ele é o pai
gigantescas. E agora tem o dos pobres, o salvador e tal. A democracia se caracteriza pela
terrorismo. Eu fui à Espanha diversidade de opiniões, mas se alguém passa a ter o controle
e tive que tirar até o cinturão da maioria da população e pode se eleger, reeleger e depois
da calça. Ficar com a calça na eleger seu substituto, você pode entrar num caminho perigoso.
mão, porque tem que exami- Na Venezuela está acontecendo isso. O presidente Chávez está
nar tudo para saber se o cara mudando a constituição e vai se re- A entrevista completa
está com uma bomba. Não dá eleger infinitamente. Ele comprou a você encontra a partir
para entrar nisso. “Ô, loco”, maioria com o dinheiro do petróleo. de 10 de novembro
viver nesse mundo. Para quê? E quem não gosta não tem vez... Fe- no Blog da Redação -
Passear? Isso não é passe- chou a emissora de televisão princi- revistapontoevirgula.
pal do país e ainda ameaça os jornais, wordpress.com
ar, né? Por necessidade, você
pode até enfrentar uma coi- dizendo que aqueles que criticaram o
sa daquelas. Agora, por mero governo são inimigos do povo. [riso
nervoso] Então, porque ele é o defen-
passeio, eu vou sair para ficar
duas horas numa fila, para fi- sor do povo, se alguém se opõe a ele,
carem me examinando tudo, tem que ser inimigo do povo. Não dá,
me botarem com as calças na pô! É claro que o Brasil não é igual
mão e ainda pôr na minha ca- à Venezuela. Aqui não dá para fazer
beça a idéia de que vai ter uma bomba dentro do avião? Então, exatamente isso, mas pode fazer uma
eu entro em pânico no avião, o que é isso? Não, eu tô fora, não coisa parecida. Mas aí nós vamos bri-
quero saber disso. gar. Eu, particularmente, se ele fizer
isso, vou brigar! Ah, vou! Não só eu;
; - O senhor sempre teve opinião forte. Nesse cenário político muita gente. Não pode, o governo está
gastando cada vez mais dinheiro. ;
de corrupção, o senhor acha que ao povo brasileiro falta se
contrariar, ter mais atitude?
foto: cronopios.com.br
29. 29
[ v i agem] fotos: Carolina Moura
Adoro essa varanda de madrugada
por Carolina Moura
02:35
O apartamento com adesivo do Lula acabou de apagar as luzes. O computador
fica ligado, com uma foto grande e brilhante. Uma pessoa no lado esquerdo; à direi-
ta, o que acredito ser um barco.
As luzes do andar acima continuam acesas. No andar seguinte, mas do lado oposto, também.
O bondinho, sorriso de palhaço, passa lento e melancólico. Pára, com os carros
que o seguem. Alguém subiu, alguém desceu?
Não encontro agora a sacada onde a pouco se pendurou mais uma roupa no varal,
no prédio gasto mais ao fundo. Foram todos engolidos pela escuridão.
Live music, do CD pirata, se encaixa perfeitamente à visão dos dois rapazes cami-
nhando na Brasil.
Não é figura de linguagem: num rápido desviar de olhos, desaparecem. Você aí, sozi-
nho, não vai fugir. Jogou algo no lixo? Se abaixou para pegar algo? Acompanhei-o até
sair do meu alcance.
Quem são as pessoas na varanda em frente? Sim, no “andar acima”, onde as luzes
permaneceram.
Motociclistas abastecendo no posto. Brilham o BR amarelo e verde, “Hotel”, “BIS” e o
nome de um restaurante que tenho preguiça de forçar os olhos para enxergar.
As pessoas conversam. Não façam isso; apenas sintam a noite.
Lembro das pessoas às quais não preciso dizer uma palavra... Mas não sinto falta. A
única coisa que me agrada nessa cidade é a noite. Quieta. Vazia. Interrompida de vez
em quando por um carro tocando axé; hoje ainda não.
E elas entraram.
Voyerismo aqui é esporte. Não posso contar as janelas que se voltam para mim.
Passa outro bondinho. Um pouco mais apressado, quase nada. E pára no mesmo
lugar; sim, deve ser uma sinaleira. Ninguém subiu, ninguém desceu.
Você não vai desligar esse computador? Pelo menos o monitor!
Os vidros que pretendem fechar a varanda refletem janelas que desconheço. Azule-
jos e mármores de prédios também. Refletem. E eu espero... não sei pelo quê. A noite
aqui sempre me faz esperar.
30. 30
A cidade que jurei odiar, e que não posso passar
as férias sem ir
Um milhão de pessoas. Eu nunca entendi como toda essa
gente passa a temporada em uma praia tão poluída – e, o
fato de passarem, é outro ponto negativo para a cidade. Fila
nos supermercados, falta de água, areia ou shopping lotados
– dependendo se chove ou faz sol. Eu digo que detesto aque-
la cidade, mas é só o tempo esquentar que tenho vontade de
visitá-la. Aqui estão algumas de minhas experiências, ao lon-
go de anos, no balneário mais freqüentado de Santa Catarina.
Avenida Atlântica De carro, na temporada, é terrível.
Mas compensa ir a pé, caminhando pela beira-mar. É gosto-
so e até mais rápido, já que (quase) tudo é perto. Outra op-
ção é pegar o bondinho, que sobe (em direção ao norte) pela
Atlântica e desce pela Avenida Brasil (paralela) – mas sai um
pouco caro: R$ 2,50, a última vez que fui. E não pode ter
vergonha de andar num veículo com cara de palhaço.
Entretenimento Na única vez que fui ao boliche, meta-
de da cidade ficou sem luz. Não recomendo.
Vida Noturna Fico na casa da minha avó, o que quer
que eu diga? A pizza do Maria`s é boa; confira o número de
tele-entrega. O filme vem diretamente do camelódromo.
31. 31
Camelódromo O paraíso não só dos produtos piratas.
Cosméticos, utensílios de cozinha, artigos de decoração e ele-
trônicos podem ser encontrados, pechinchados e comparados
entre os vários boxes. Também se encontram roupas, malas
de viagem, brinquedos, bijuterias, ferramentas...
Parque Unipraias Além das águas poluídas da baía,
existem praias limpas e bonitas. Uma estrada liga todas elas,
proporcionando fácil acesso àqueles que não ousam entrar
nas águas vindas do rio Camboriú. Laranjeiras, Estaleiro, Ta-
quaras... E também a praia do Pinho, de nudismo.
Bondinho Desambiguação:. O termo pode se referir ao veí-
culo sorridente que cruza as ruas da cidade, ou à imitação do
bondinho do Pão-de-açúcar, mais uma tentativa de assemelhar
Balneário Camboriú ao Rio (tem também o Cristo, “com cha-
péu”, e os calçadões ladrilhados). O teleférico sai da Barra Sul
e sobe em direção à Estação Mata Atlântica do Parque Uni-
praias, no alto do Morro Aguada. Lá se encontram informações
sobre os projetos de preservação do Parque, área para prática
de arvorismo e locais para apresentações culturais. De lá, o
bondinho desce para a praia de Laranjeiras (surpreendente-
mente, de águas muito limpas).
Parapente Uma das minhas últimas experiências em Bal-
neário Camboriú, e uma das mais legais. O Morro do Careca
(localizado além da Barra Norte) conta com uma estrutura
para saltos de parapente e vários instrutores, que fazem o vôo
duplo. Meu pai já foi instrutor e queria que o resto da família
experimentasse a sensação de voar. Ele diz que não pode voltar
a saltar, ou vai se viciar de novo. Realmente, é muito gostoso.
Mas peça para o instrutor ser mais radical, o meu passeio foi
muito light. Nem senti o frio na barriga.
A noite Na varanda do apartamento, de madrugada. É a
;
melhor parte.
32. 32
[f otografi a ]
AMPA
por Juliana Sakae
caetano
veloso
Alguma coisa acontece no meu coração
Que só quando cruzo a ipiranga e a avenida são joão
É que quando eu cheguei por aqui eu nada entendi
Da dura poesia concreta de tuas esquinas
Da deselegância discreta de tuas meninas
Ainda não havia para mim rita lee, a tua mais completa tradução
Alguma coisa acontece no meu coração
Que só quando cruzo a ipiranga e a avenida são joão
Quando eu te encarei frente a frente não vi o meu rosto
Chamei de mau gosto o que vi
De mau gosto, mau gosto
É que narciso acha feio o que não é espelho
E a mente apavora o que ainda não é mesmo velho
Nada do que não era antes quando não somos mutantes
33. 33
AMPA
E foste um difícil começo
Afasto o que não conheço
E quem vem de outro sonho feliz de cidade
Aprende de pressa a chamar-te de realidade
Porque és o avesso do avesso do avesso do avesso
Do povo oprimido nas filas, nas vilas, favelas
Da força da grana que ergue e destrói coisas belas
Da feia fumaça que sobe apagando as estrelas
Eu vejo surgir teus poetas dos campos e espaços
Tuas oficinas florestas, teus deuses da chuva
Panaméricas de áfricas utópicas, túmulo do samba
Mais possível novo quilombo de zumbi
E os novos baianos passeiam na tua garoa
E os novos baianos te podem curtir numa boa.
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