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ponto-e-virgula
           Maio 2007 edição 2




     O CANTO DAS SEREIAS
        A sereia é representada na literatura, no cinema
      e na arte de diferentes formas. Conheça a história
    desta figura mitológica e a polêmica em torno de sua
                                      verdadeira imagem




                                        PLÍNIO MARCOS
                                O canhoto que escrevia com
                                 a mão direita, era avesso à
                                  escola e se tornou símbolo
                               da perseguição pela censura,
                               deixou-nos cerca de 40 obras
                                   teatrais, além de diversos
                                                outros textos




                               IMAGINAÇÃO A SERVIÇO
                                             DA DOR
                                  As engenhocas inventadas
                                  para arrancar confissões e
                               executar condenados durante
                                 a Idade Média percorrem o
                                país em exposição itinerante
ponto_e_virgula
[sumário]
                                                           MAIO 2007 EDIÇÃO 2




                                                                       ESCRITORES
                                                                      Adriana Seguro
                                                                      Carolina Moura
                                                                      Fernanda Dutra
                                                                       Juliana Sakae
 ESPAÇOS               NESTA EDIÇÃO
                                                                     Leonardo Gorges
                                                                         Luisa Frey
 04                    17
       Perfil                                                         Marina Veshagem
                            O Canto das Sereias                       Matheus Joffre

 06
                                                                       Pedro Santos
       Cinema                                                         Rodrigo Tonetti
                                                                        Thiago Bora
                       09
 08                         Imaginação a serviço da dor
       Literatura                                                        EDIÇÃO
                                                                    Fernanda Volkerling

 30                         “Atenção passageiros,                       Luisa Frey

                       14
       Entrevista                                                    Marina Veshagem
                            acomodem-se.
 28                         Por que vai demorar!”                     DIAGRAMAÇÃO
       Esporte                                                        Carolina Moura

                       22
 26
                                                                       Juliana Sakae
                             Ash-a-ee                                   Thiago Bora
       Viagem

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                                                                           CAPA
       Fotografia                                                        Thiago Bora


 36                                                                     ARTE FINAL
       Criação                                                         Juliana Sakae


 38                                                                       REVISÃO
       Causos&Coisas                                                   Adriana Seguro
                                                                      Lucas Sarmanho
                                                                        Maurício Tussi
                                                                       Rodrigo Tonetti




                                                                           ;
                                                                     Florianópolis - SC




                                                               www.revistapontoevirgula.com
[car ta ao leitor]




                                                            A
                                                                  ponto-e-vírgula nasceu no Dia da Men-
                                                                  tira, mas é verdade! Vamos continuar pu-
                                                                  blicando todo mês os textos e reportagens
                                                            com a maior concentração de ; por centímetro
                                                            quadrado.
                                                                  Se em abril trouxemos Pinóquio para os
                                                            mentirosos, o público de maio não perde em
                                                            nada; nosso escritor Matheus Joffre explorou
                                                            o Dia do Trabalho sob um novo olhar em sua
                                                            crônica: o da infância. E, com estes mesmos o-
                                                            lhos, o espaço de fotografia faz qualquer mãe
                                                 to da
                                          nçamen            babar. Inclusive as noivas ganharam espaço na
                                  ão de la oi de mentira!
                             oraç
                     Comem                                  seção Causos&Coisas, que conta as origens de
                                        não f
                                írgula:
                        nto-e-v                             algumas tradições do casamento.
                     po
                                                                  Além dos temas que você encontra em
                                                            toda edição, trazemos um pouco de mitologia,
                                                            na figura controversa da sereia; a história e po-
                                                            pularização do tropical açaí; o ambiente e as
                                                            histórias dos aeroportos em plena crise e uma
                                                            viagem ao passado, através dos instrumentos de
                                                            tortura da Idade Média.
                                                                  Leitura repleta de próclises e ênclises (vide
                                                            página 38) para todos os gostos!
                                                                                                 A Redação
[per fil]                                                                                                                                        4




 O                                                  Plínio Marcos
         garoto não suportava a escola.
         Canhoto, era forçado a escrever
         com a mão direita, o que dificulta-
 va o aprendizado. Plínio Marcos de Barros,
 nascido em Santos, em 29 de setembro de
 1935, levou quase 10 anos para comple-
                                                                                                     por Marina Veshagem
 tar o primário. Ironia ou não, anos depois
 se tornaria um dos maiores dramaturgos
                                                                                  O canhoto que escrevia com a
 que o Brasil já conheceu. Toda sua obra
                                                                                  mão direita, era avesso à escola e
 foi manuscrita – com a mão direita, claro.
                                                                                  se tornou símbolo da perseguição
       Ainda garoto, trabalha como fu-
                                                                                  pela censura, deixou-nos cerca de
 nileiro, vendedor de livros, estivador
 no cais de Santos, jogador de fute-                                              40 obras teatrais, além de diversos
 bol e também para a Aeronáutica.
                                                                                  outros textos
       Aos 16 anos, torna-se o palhaço
 Frajola e passa a atuar como humo-                                                                 nhar o pão de cada dia com o suor do
                                                     currado. Quando saiu, dois dias depois,
 rista e ator coadjuvante. Em 1958, ini-                                                            próprio rosto é terrível. Você tem a sen-
                                                     matou quatro dos caras que estavam
 cia uma verdadeira carreira de ator e                                                              sação de que é um exilado no seu próprio
                                                     com ele na cela. Fiquei tão chocado com
 diretor no teatro amador santista, com                                                             país. Eu sei bem como é isso. Penei. Penei
                                                     esse negócio todo que escrevi a Barrela.”
 forte influência do grupo de intelectuais                                                           muito. A minha sorte é que nunca cortei
                                                          O homem que nunca havia pensa-
 ao qual pertencia a jornalista e escri-                                                            os laços com as minhas raízes. Fui ca-
                                                     do em escrever produz, em 1958, a peça
 tora modernista Patrícia Galvão, a Pagu.                                                           melô. Voltei pra rua pra camelar. Não caí.
                                                     “Barrela”. Não houve preocupação com os
                                                                                                    Não bebi. Não chorei. Nem perdi o bom-
   E nasce o escritor...                             erros de português, nem com as palavras.
                                                                                                    humor. Mas, sofri mais do que a mãe do
                                                          “(...) Dei o nome de Barrela, que é a
             “Mas o destino daquele Plínio audaz e
                                                                                                    porco-espinho na hora do parto, impedi-
           provocador já estava traçado: não seria borra que sobra do sabão de cinzas e que, na
              apenas mais um escritor provinciano,                                                  do de trabalhar. E ignorado por colegas,
                                                     época, era a gíria que se usava para curra.”
        porém o grande dramaturgo a marcar com
                                                                                                    que se diziam de esquerda, nas rádios e
                                                          A      peça     é     montada     ape-
          seu texto vibrante e indignado toda uma
                                                                                                    nas televisões. Mas, deixa pra lá. Essa
                                                     nas uma vez, em 1959, e logo de-
                    fase de nossa história teatral”.
                                                                                                    sujeira sai no mijo, não tenho mágoas.”
            (Narciso de Andrade, poeta. O texto foi pois, censurada por vinte e um anos.
                                                                                                          Com a ajuda dos amigos, em 1966,
                                                          Em 1960, Plínio Marcos vai para
                      escrito pouco antes da morte
                                                                                                    Plínio escreve e decide atuar em uma
                                  de Plínio Marcos) São Paulo, onde inicia um trabalho dife-
                                                                                                    nova peça, de sua autoria, chama-
                                                     rente: torna-se vendedor de produtos
                                                                                                    da “Dois Perdidos numa Noite Suja”.
                                                     contrabandeados. Além disso, faz bi-
      “Houve um caso, em Santos, que cos em peças de teatro e suas obras                                  “Fiquei na moda. A Cacilda Becker,
 me chocou profundamente: um garoto foi permanecem vetadas pela censura.                            quando viu a peça, comentou: Incrível!
 preso por uma besteira e, na cadeia, foi                                                           Você conhece dez palavras e dez palavrões,
                                                          “Ser impedido de trabalhar, de ga-
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e escreveu uma peça genial. E várias                 o preço de nunca escrever para agradar os        da. É difícil ter espaço nos jornais, encon-
peças minhas piaram na parada: Na-                   poderosos. Há dezessete anos tenho minha         trar lugar para vender livro. Cheguei a ser
valha na Carne, Quando as Má-                        peça de estréia [Barrela] proibida. A solidão,   expulso de vários lugares. É uma brutali-
quinas Param, Homens de Papel.”                      a miséria, nada me abateu, nem me desviou        dade única. Eu nunca fui um escritor pro-
     O texto de “Dois Perdidos numa Noite            do meu caminho de crítico da sociedade, de       fissional, morreria de fome se fosse viver
Suja”, milagrosamente, é liberado pela               repórter incômodo e até provocador. Eu es-       dos meus livros. Teria que acabar fazen-
censura. A atriz Tônia Carrero, através de           tou no campo. Não corro. Não saio. E pago        do milhares de concessões. Mas, camelô,
seu prestígio e influências, é quem con-              qualquer preço pela pátria do meu povo.”         ah!, isso eu sou bom. Vendo meus livros,
segue a liberação da obra (com a condição                  Diante da insistência da censura, o dra-   dou autógrafos e prometo morrer logo
de atuar na peça). O mesmo não acontece              maturgo se dedica a outros formatos, como        para valorizar. Eu sou um escritor imor-
à peça “Navalha na Carne”, que é termi-              o romance. Além disso, continua atuando          tal, não da Academia Brasileira de Letras,
nantemente proibida pela Censura Federal.            como colunista em diversos jornais e revis-      mas porque não tenho onde cair morto.”
                                                     tas. Ele vende seus livros nas ruas, feiras            Plínio Marcos falece em São Paulo,
Os anos de chumbo...                                 de livros, restaurantes e portas de teatros.     em 19 de Novembro de 1999, de falência
                                                           No ano em que a peça “Barrela” com-        múltipla dos órgãos. Premiado em todas as
       “O Plínio Marcos era chamado de marginal
                                                     pleta vinte anos de proibição (1979), um         atividades às quais se dedicou, Plínio teve
               e quase todas as suas peças foram
                                                     grupo de teatro denominado “O Bando”             sua obra traduzida nas línguas francesa,
           montadas por atores famosos, ou ditos
                                                     inicia a montagem do espetáculo. No ano          espanhola, inglesa e alemã, estudada em
            globais. Ser marginal é escrever sobre
        marginais e excluídos? Não creio que seja    seguinte, o texto é liberado e os atores ini-    teses de sociolingüística, semiologia, psi-
          isso. (...) Suas peças foram censuradas
                                                     ciam a luta. O elenco vende os ingressos na      cologia da religião, dramaturgia e filosofia
            na época da ditadura e perdeu vários
                                                     rua, a preços reduzidos. Shows antes do es-      em universidades do Brasil e do exterior....
          empregos por causa disso, mas ganhou
                                                     petáculo e debates ao fim são os meios en-
             todos os prêmios possíveis e a mídia
                                                     contrados para levar as pessoas ao teatro.
           sempre o tratou com mimo e prestígio.”
                                                     E, graças ao trabalho dos atores, a tempo-
                 (Leo Lama, filho de Plínio Marcos)
                                                     rada é um sucesso – foi assistida por mais
                                                     de 60 mil pessoas –, o que garante a Plínio
     A partir de 1968, qualquer obra                 o Prêmio Mambembe de melhor produtor.
que leve o nome de Plínio Marcos é au-
tomaticamente    censurada.   A    dita-             Os últimos anos...
dura considera suas peças pornográ-
ficas e subversivas. O autor se torna                       A partir da década de 1980,
símbolo da perseguição pela censura.                 Plínio continua um trabalho de de-
     Nos anos que se seguem, Plínio                  bates e palestras em universidades,
é preso algumas vezes e liberado                     teatros, clubes e praças públicas, re-
por interferência de vários artistas.                alizado em diversas cidades do Brasil.
     “Eu, há dezessete anos [1973], sou                    “Sou um camelô da literatura. Hoje
um dramaturgo. Há dezessete anos pago                [1986] posso dizer que é muito difícil ain-
                                                                                                               *Fotos retiradas de www.pliniomarcos.com
[cinema]                                                                   6
                                 O cheiro invade as telonas em Per-
                                 fume e O Cheiro do Ralo. Mas e




Cinestesia
                                 se você puder sentir de verdade?



                                 C
                                        heiro de mulher. De perfume.
                                        De ralo. Imagine uma sala de
                                        cinema equipada com caixas de
                                 odor, além das imprescindíveis caixas
                                 de som. Essa idéia deve ter pairado
           por Adriana Seguro
                                 no pensamento de muitos especta-
                                 dores, após assistirem aos longas O
                                 Cheiro do Ralo e Perfume – A história
                                 de um assassino, ambos lançados
                                 este ano no Brasil. A imagem mental
                                 do dispositivo pode ser patética: um
                                 compartimento que expele, através de
                                 pequenos furos, jatos de odores corres-
                                 pondentes a objetos, pessoas e lugares.
                                      Visão, audição... e olfato. Pode
                                 parecer loucura, mas não é novidade.
                                 A sala de cinema Family, em Forest
                                 City, nos Estados Unidos, foi pioneira
                                 em combinar as sensações olfativas
                                 com as audiovisuais. Um ventilador es-
                                 palhou a fragrância da água de rosas
                                 contida em algodões e causou o efeito.
                                 Depois disso, já se tentou de várias
                                 formas criar um cinema com aromas.
                                 Cerca de 50 anos mais tarde, o siste-
                                 ma aromarama utilizava o ar condicio-
                                 nado para dispersar os cheiros, mas
                                 a difusão pela sala não era uniforme.


                                                                   ,
                                                      ~
                                Sinestesia é a relaçao de estimu-
                                los sensoriais diferentes; por e-
                                                 ~
                                xemplo, a visao com o olfato
7
Perfume                                       Perfume – A história de um assassino ( Alemanha/
                                                    França/Espanha, 2006. Direção: Tom Tykwer)
                                                   O filme conta a vida do órfão Jean-Baptiste ( Ben
                                             Whishaw), possuidor de uma sensibilidade olfativa ex-
                                               cepcional: ele é capaz de diferenciar todos os odores
                                                                                                               Nos anos 1980, o sistema
                                                à sua volta, e “farejar” a longas distâncias. Depois de
                                                                                                          odorama de John Waters oferecia
                                               aprender técnicas de perfumaria e superar o próprio
                                                                                                          cartões individuais de Polyester,
                                               mestre, produzindo deliciosas fragrâncias, o persona-
                                                                                                          em que os espectadores raspavam
                                              gem tem a idéia fixa de capturar odores permanente-
                                                mente, inclusive o do corpo humano. Não há limites        os números de determinada cena
                                                                                                          e sentiam o cheiro corresponden-
                                                para alcançar sua missão, e Jean-Baptiste inicia uma
                                             jornada à procura de belas mulheres para realizar suas       te. Mas além dos cartões disper-
                                                                               obcecadas experiências.    sarem a atenção de quem assistia,

                                                                  Os dois novos longas estimulam as narinas dos espectadores
                                                                                                          muitas vezes os odores eram es-
                                                                                                          catológicos, como cheiro de vômito.
O Cheiro do Ralo (Brasil, 2006. Direção: Heitor Dhalia)
Lourenço (Selton Mello) é um sujeito que compra objetos                                                         Recentemente, a evolução tec-
antigos e alimenta um prazer bizarro em humilhar os seus já                                               nológica possibilitou sistemas mais
decadentes clientes, necessitados de dinheiro. Ele compra de
                                                                                                          modernos. Em 2005, a sala IMAX, em
tudo, com um dinheiro que brota em uma caixinha; delicia-
                                                                                                          Viena, na Áustria, estreou um siste-
se ao explorar quem senta à sua frente, estabelecendo uma
                                                                                                          ma da empresa Yellow Point, contro-
relação de poder. O personagem parece gostar apenas de
                                                                                                          lado por computador. Logo depois, a
uma coisa: “a Bunda” o bumbum de uma garçonete (Paula
                      ,
                                                                                                          companhia japonesa NTT Communi-
Braun), pelo qual é aficcionado. Mas Lourenço não se satisfaz
                                                                                                          cations criou máquinas que, localiza-
com o consentimento da moça: quer pagar um preço para
                                                                                                          das embaixo das cadeiras da última
ver as nádegas. Além da “Bunda” o personagem possui outras
                                 ,
                                                                                                          fileira do cinema, emitem aromas ob-
duas obsessões: o cheiro que vem do banheiro de sua sala e
                                                                                                          tidos pela mistura de diversos óleos.
um olho adquirido em sua loja. Ele estabelece uma relação
                                                                                                          Mas a idéia está longe de ser coroada
neurótica com o olho, que diz ser de seu pai, e para o qual
                                                                                                          pelos cinéfilos de plantão. Os jatos
precisa mostrar certas coisas, como “a Bunda” Apesar de não
                                              .
                                                                                                          aromáticos criam uma atmosfera su-
se importar com os clientes, Lourenço faz questão de deixar
                                                                                                          focante na sala e há muitos especta-
claro que o mal cheiro da sala é por causa de um problema
                                                                                                          dores que preferem deixar o cheiro
no banheiro, com medo de que pensem ser ele quem exala
                                                                                                          a cargo de sua própria imaginação.
tal odor. “Esse cheiro que você está sentindo, não sou eu, é do
ralo” repete.
     ,
                                                                                 O Cheiro do Ralo
8
[ literatura ]

   Vôo Noturno                                                                               Antoine      de     Saint-Exupéry
                                                                                             (1900-1944), além de escritor,
      por Carolina Moura                                                                     foi piloto e participou da Segun-
                                                                                             da Guerra Mundial – morreu du-
 A história de um vôo pioneiro; a crônica de um vôo terreno. Impressões sobre o se-          rante uma missão de reconhe-
 gundo livro do escritor francês Antoine de Saint-Exupéry                                    cimento aéreo sobre Grenoble
                                                                                             e Annecy, na França. Durante



 O
                                                                                             a década de 1920, comandou a
          ônibus balançava. Vazio. Só assim     ção que abriga tantas vidas; mas que, aos
                                                                                             rota Paris-Buenos Aires da So-
          pude enxergar as páginas, sob um      poucos, banaliza-se. E não só sobre o vôo:
                                                                                             ciêté Latécoère (atual AirFrance),
          espectro de luz focado quase sobre    sobre a coragem do piloto, a austeridade
                                                                                             que tinha como ponto de reabas-
 o assento ao lado. Ainda escuro lá fora. En-   do patrão, a carência do inspetor e a es-
                                                                                             tecimento o Campo de Pouso do
 quanto lia sobre o dourado início da noite,    pera da jovem esposa. A luta, a esperança
                                                                                             Campeche, em Florianópolis.
 presenciava seu pálido fim. As palavras         e a perda desta, a morte. Todas as coisas
                                                                                                   Em Vôo Noturno, publica-
 embalavam-me e transformavam meu lân-          que constroem a vida: as estrelas entre as
                                                                                             do em 1931, o autor cita a es-
 guido movimento em vôo suave. E, não as        nuvens e a calmaria após a tempestade – e
                                                                                             cala na Ilha. Ainda hoje o bairro
 palavras, mas o vôo, umedecia meus olhos       o abismo depois dela.
                                                                                             do Campeche guarda a memória
 e pensamento. A própria leitura fazia-me             É o que leio, em outra viagem, en-
                                                                                             de Exupéry nos nomes de ruas
 voar além dela, desviando minha atenção        quanto o céu vai gradativamente perden-
                                                                                             e estabelecimentos, além das
 para as pequenas paisagens, privando-me        do a claridade e a noite nasce aos poucos.
                                                                                                      histórias contadas pelos
 de si. Tamanha é a sensibilidade com a         Ônibus cheio. Através das palavras,
                                                                                                          seus habitantes.
 qual Antoine de Saint-Exupéry – o escri-       agora vejo as estrelas, que se es-
                                                                                                                  A próxima e-
 tor – descreve o Vôo Noturno que todas as      condem por cima das nuvens
                                                                                                              dição da Ponto-e-
 sensações mundanas parecem entrar em           escuras. Vejo a claridade da lua
                                                                                                               Vírgula traz uma
 seu enredo, e completá-lo.                     sobre elas. Sinto-me mergu-
                                                                                                                reportagem so-
       Recria-se a sensação de voar aos que     lhando nas certezas do mun-
                                                                                                                 bre a passa-
 já voaram. Aos que nunca, talvez se crie a     do. Em queda rápida e se-
                                                                                                                 gem de Zé Perri
 fantasia – ainda mais intensa. Eis a per-      rena, como Saint-Exupéry – o
                                                                                                                 – como o escri-
 feita leitura de viagem. Como quisera es-      piloto – previu seu fim.
                                                                                                                tor era chama-
 tar voando e perceber, através do pioneiro
                                                                                                               do pelos nati-
 e entusiasta, a grandeza deste ato, desta
                                                                                                              vos – pela Ilha de
 conquista. Algo que se sente na primeira
                                                                                                            Santa Catarina.

                                                                            “Zé Perri”
 vez, com os olhos presos à janela, às luzes
 da noite brilhando como uma constela-
9




Imaginação a serviço da dor
As engenhocas inventadas para
                                                                            por Rodrigo Tonetti
arrancar confissões e executar
condenados durante a Idade Média
percorrem o país em exposição
itinerante




    C
                                                                imaturidade, inocência ou estômago fraco mesmo, não
           hego ao Teatro Álvaro de Carvalho (TAC), um
                                                                consegui ver todos os objetos. Lá pelo quinto deles, dei-
           pouco adiantado; a turma que me acompanhará
                                                                xei meus colegas passarem à frente para verem mais de
           na visita à Mostra Internacional de Instrumen-
                                                                perto; contentei-me com a visão de suas cabeças, en-
    tos de Tortura da Idade Média só chegará dentro de
                                                                quanto fazia questão de não prestar atenção à explica-
    30 minutos. Enquanto espero, alguns alunos de teatro
                                                                ção de como funcionava cada um dos 34 instrumentos.
    chegam para a aula. Tiram os sapatos e atravessam
                                                                      Com a chegada dos alunos do curso de História
    as cortinas verdes que separam o saguão da sala e
                                                                da UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina),
    o palco. Folheio um panfleto da exposição e troco al-
                                                                 descemos ao porão do TAC, local em que estão expos-
    gumas palavras com a coordenadora, Carla Andrade.
                                                                 tos os aparelhos. Carla assume um tom professoral. A
          Segundo ela, foram dez anos de pesquisa até re-
                                                                 didática consiste em explicar como funciona cada peça,
    unir os instrumentos de tortura. Em 1985, a Mostra
                                                                 separando-as em dois grupos básicos: as usadas para
    tornou-se itinerante na Europa. No final de 1997, veio
                                                                 obter confissão e as que tinham por objetivo a exe-
    para o Brasil para ficar apenas um ano, mas, devido
                                                                 cução. Também cataloga a quais tipos de crime cor-
     ao sucesso e à extensão territorial do país, já percorre
                                                                 respondiam, fazendo, quando possível, uma brincadei-
     cidades brasileiras há mais de nove anos. Confirmei,
                                                                 rinha para descontrair o clima pesado do porão. Ela
     assim, minha suspeita: havia já visitado a Mostra – par-
                                                                 avisa que o porão fica bem embaixo da sala em que está
     te dela – em Campo Grande, Mato Grosso do Sul. Na
                                                                 sendo realizada a aula de teatro. Ruídos da movimenta-
     época, cursava a 2ª série do Ensino Fundamental. Por
                                                                 ção dos alunos nos surpreendem durante toda a visita.
Instrumentos
                                                                                                                      10
                                                          Rodrigo Tonetti




  O
           balcão de estiramento, usado em interro-
           gatórios, é bastante conhecido por causa dos
           filmes (o que não chega nem perto da sensa-
  ção que a peça original desperta). O acusado era co-
  locado no balcão, com os pés presos nas algemas de
  ferro, as costas nos espinhos e as mãos amarradas
  à corda onde então se aplicava a tensão. O corpo
  poderia ser esticado em até 30 centímetros e, neste
  caso, o acusado não saía vivo do interrogatório. Es-
  ticando-se menos, havia a possibilidade da vítima
  sair viva, mas com mutilações nas pernas e braços.
        E como a imaginação do homem é fértil na
  hora de desenvolver técnicas e objetos para infligir
  sofrimento! Exemplo disso é a flauta do bagunceiro,
  usada para beberrões e músicos. Trata-se de uma
  tortura psicológica. O músico que não agradava ao
  rei era preso pelo pescoço e pelos dedos à flauta
  de ferro e então ficava na frente do castelo para
  mostrar ao povo que não possuía talentos musicais.
        Carla conta ainda como o conde Drácula con-
  seguiu deixar a morte por empalamento ainda mais
  terrível. A execução se dá através de um poste de
  madeira que perfura todo o corpo da pessoa, en-
  trando pelo ânus e saindo no pescoço, ao lado da
  garganta. A morte geralmente é instantânea, mas o
  conde desenvolveu uma técnica capaz de manter as
  pessoas vivas por até três horas depois do empala-
  mento. A peça exibida foi encontrada em seu castelo.
        O garrote é o instrumento mais recente da ex-
  posição, usado até 1975. O acusado senta em uma
  cadeira e é amarrado com o pescoço preso a uma
  argola de ferro dotada de um parafuso. Este para-
  fuso entra pela nuca da pessoa e sai na garganta.
                                                          Esmaga cabeça: apertando-
                                                                                      se o parafuso, comprimia-se
                                                                                                                  a
                                                          cabeça do condenado até que
                                                                                       o crânio se fraturasse
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                                                               Rodrigo Tonetti




        A morte não é necessariamente rá-
Instrumentos

        pida; a agonia podia ser prolongada
        de acordo com a vontade do carrasco.
              Outra peça encontrada ali é A virgem de
        Nuremberg, conhecida também como Dama
        de Ferro. O instrumento de execução foi usa-
        do pela primeira vez em 1515. A cabeça, en-
        talhada em madeira, e o corpo, todo de ferro,
        chamam a atenção pela suntuosidade. A bele-
        za externa contrasta com a crueldade que se
        revela por dentro. Facas são estrategicamente
        colocadas para que não atinjam nenhum ponto
        vital do condenado. Uma vez dentro do sar-
        cófago, leva-se em média três dias para morrer.
              Entre as práticas que me provocam mais re-
        pulsa está a evisceração, na qual é feito um corte
        profundo na barriga do ser humano, através do
        qual, auxiliado por uma corrente com um gan-
        cho na ponta, de meia em meia hora o carrasco
        retira uma víscera do condenado até matá-lo.
              Na internet, é possível encontrar in-
        formações sobre uma grande variedade de
        instrumentos de tortura e execução usa-
        dos na Idade Média Européia (www.geoci-
        ties.com/adtenebras/compendio.htm).

                                                             Virgem de Nuremberg ou
                                                                                        Dama de Ferro: como as fac
                                                                                                                      as do interior
                                                             do sarcófago não atingem pon
                                                                                          tos vitais, o condenado podia
                                                                                                                        levar até
                                                             três dias para morrer.
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                                                                                                                        Rodrigo Tonetti




Flauta do bagunceiro: tortura psicológica usada para
beberrões e músicos




     tinuidade da Prática
 Con
    A
          tortura foi amplamente usada na Inquisição, práticas e abriu sindicância para punir os responsáveis.
          na Segunda Guerra Mundial e nas ditaduras                   Também imagens de torturas infligidas a prisio-
          militares. Mas para Carla, embora a prática neiros iraquianos por soldados americanos, na prisão
    seja condenável e proibida – tanto na Constituição de de Abu Ghraib, causaram indignação no mundo todo.
    vários países quanto na Declaração dos Direitos Hu- E, além dos exemplos conhecidos, há aqueles que não
    manos –, ainda estamos um pouco longe de                             chegam à imprensa. Policiais que abusam da
    vermos seu fim. “Falo dos bandidos em rela-                           violência e fazendas que mantêm trabalha-
                                                        “Porque uma
    ção a nós, civis. Porque uma pessoa que se-                          dores escravos não podem ser considerados
                                                         pessoa que
    qüestra alguém e arranca uma orelha pra                              parte de um passado remoto. Foi para de-
                                                          seqüestra
    mandar pra família, isso é uma tortura.”, diz. alguém e arran- nunciar os crimes cometidos durante a dita-
         Mas não são apenas os bandidos que tor-       ca uma orelha dura militar e para lutar pela manutenção
    turam seus reféns. Em 20 de novembro de 2005 pra mandar pra dos Direitos Humanos que nasceu o Grupo
    o programa Fantástico, da TV Globo, levou ao ar                      Tortura Nunca Mais. “[Nossas] ações têm
                                                       família, isso é
    uma matéria em que sargentos de um quartel de                        como imperativo ético denunciar o que ocor-
                                                        uma tortura”
    Curitiba, recém-promovidos, eram torturados                          reu nas prisões durante a ditadura militar e
    por seus superiores. As agressões consistiam em                      o que ocorre na atualidade, como conseqüên-
    choques elétricos, aplicações de ferro de passar na pele, cia da preservação dos métodos e das práticas auto-
    afogamento com baldes d’água e chineladas na planta ritárias e arbitrárias, para que, algum dia, todos pos-
    dos pés. Os sargentos envolvidos declararam que eram samos dizer ‘Nunca Mais’ à tortura e à impunidade”,
    apenas “trotes”. O comando do exército condenou as afirmam em seu site (www.torturanuncamais-rj.org.br).
Impressões
                                                                                                                      13




 A
           estudante Camila Nascimento Azevedo achou a     ciência de que o mais terrível que conseguimos imagi-
           exposição chocante. “Você não pensa só no que   nar ainda está muito longe de alcançar a realidade.
           está vendo, no sofrimento das pessoas que es-         Para Álvaro Gonçalves Antunes Andreucci, profes-
           tavam ali, mas que muitas pessoas foram parar   sor de História Medieval da UFSC e de História do Siste-
 ali simplesmente por pensar de uma maneira diferente.”    ma Penal do Cesusc, mesmo conhecendo a maioria dos
       Camila tem um parente que foi torturado na épo-     instrumentos antes da visita, a impressão que se tem é
 ca da ditadura militar. Ela conta que seu tio, apesar     sempre chocante. “É desalentadora a capacidade que o
 de ter alguns amigos subversivos, não estava engaja-      ser humano tem de dilacerar outra pessoa, infligir dor ao
 do em nenhum movimento ou luta política. Um dia,          extremo em alguém, com requintes de crueldade”, diz.
 a polícia apareceu na casa em que ele morava, onde        Mas ele vê uma importante função social na exposição: o
 alguns amigos lhe faziam uma visita. Os policiais le-     choque pode servir de estímulo e inspiração para que as
 varam todos para a delegacia. Ele sofreu vários tipos     pessoas lutem contra os abusos de poder e a violência.
 de tortura. Entre eles, Camila lembra apenas que o tio          Os últimos instrumentos a serem explicados são
 levou choque no órgão genital. Depois da sessão de tor-   os cintos de castidade, usados mais para prevenir os es-
 tura, ela conta que os presos eram colocados numa         tupros e a reprodução dos escravos. Mas as peças eram
 cela pequena em que não era possível manter-se es-        de ferro e podiam machucar, além de não serem raras
 ticado. Sempre que dormiam, vinha um policial e os        as vezes em que os senhores deixavam seus escravos
 chutava para mantê-los acordados. Foi num desses          com a peça durante dias, fazendo com que eles fossem
 chutes que o tio de Camila xingou o policial, e o amigo   obrigados a fazer suas necessidades ali. Carla encerra
 que estava na cela ao lado o reconheceu pela voz. Sus-    sua fala com uma reflexão: “Eu queria que vocês avali-
 peita-se, então, que o amigo tenha feito algum acordo     assem o que nós, seres humanos, somos. Nós somos
 com os policiais para que soltassem o tio de Camila.      o único animal que mata por prazer, porque o animal
       Para a estudante Isabel Cristina Hentz, o que       selvagem mata ou para se defender ou para comer.”
 mais causa impacto é o fato de que todas as peças
 da exposição são autênticas. “Ficar imaginando que
 teve uma pessoa já numa cadeira dessas morrendo ali
 é...” Ela não completa a frase, mas não é necessário.
       A aproximação com a atrocidade é direta, comple-
 tamente diferente da distância que nos colocamos ao
 estudar sobre essas práticas ou ao ver a notícia de um
 crime bárbaro. É a materialidade que toca, incomoda.
 Esforçamo-nos para imaginar as dores que as pessoas
 que passaram por ali sofreram, mesmo tendo cons-
14


 “Atenção passageiros, acomodem-se,
 porque vai demorar!”
                   A crise aérea transformou o ambiente do aeroporto.
                Aqui, observações de uma passageira que mesmo assim
                                        conseguiu viajar algumas vezes



por Fernanda Dutra
                                                                                    Montagem: Juliana Sakae. “A Noite Estrelada” Van Gogh, Foto: Roberto Moreira




 É
        um exercício de paciência. Você        logo pôde viajar, muitos pães de quei- eram atualizadas. Havia um receio de di-
        sempre imagina uma espera mais         jo e um excesso de parágrafos lidos. zer a verdade: “Vai demorar, meu senhor”.
        longa do que realmente é. Assim             O primeiro incômodo é no check-            O receio é justificável. Não é difícil
 se prepara para enfrentar tédio, cansaço,     in. Quem chega mais cedo, consegue perder o controle diante da crise. Em
 sono e fome. E, ao contrário dos passagei-    pegar lugares nos vôos de horários mais dezembro, na sala de embarque de Con-
 ros de ponte-aérea, tenho algo que ajuda      cedo, que estão atrasados. Como                  gonhas, um passageiro idoso
                                                                                    Havia um
 a me conformar: mesmo que passe 12            muita gente desiste, sempre há                   começou a gritar com um fun-
                                                                                     receio de
 horas viajando de avião, sei, é inevitável,   lugar. Assim, se o primeiro des-                 cionário da TAM. O filho se colo-
                                                                                      dizer a
 de ônibus eu gastaria o triplo do tempo.      tino é Manaus, com conexão em                    cou ao lado do pai e, das agressões
      Minha primeira viagem durante a          São Paulo, é possível que o vôo verdade: “Vai verbais, partiram para empurrões
 crise foi no começo de novembro. Saí          se torne Florianópolis–Manaus,                   e socos. Aquela calma impassível,
                                                                                     demorar,
 correndo de casa, esqueci a escova de         com co-nexão em Curitiba, meu senhor” o sorriso colado no rosto, os ca-
 dentes e, quando cheguei no aeroporto,        São José do Rio Preto, Brasí-                    belos e a roupa aprumados. O
 descobri que não tinha nenhum avião na        lia, Rio de Janeiro e Salvador.                  jovem atendente se despojou de
 pista e dificilmente teria algum tão cedo.          Em novembro, a crise era novidade. toda a autoridade da figura impecável
      Foram sete horas no aeroporto de         Os passageiros se angustiavam em busca para brigar com pai e filho. As pessoas
 Florianópolis. Três emissoras de tele-        de informações, os atendentes das com- em volta, surpresas, demoraram a agir
 visão, uma equipe do Figueirense como         panhias aéreas pouco tinham a dizer. Di- e separar os três. Não consegui tirar da
 companhia de espera, uma única co-            ante do desconhecimento, as televisões que minha cabeça a gravata listrada jogada
 nhecida que teve mais sorte que eu e          informam sobre chegadas e partidas não no chão, como que um símbolo do caos.
15
      No mês de abril, passados cerca de       funcionando. Ouvi diversos sinais para                        UM GRANDE NEGÓCIO
seis meses, muita coisa tinha mudado. Já       chamar os comissários de bordo. Estava
não havia mais dezenas de passageiros          sentada perto de onde os funcionários fi-                       Não dá para esperar por amen-
                                                                                                       doim e barra de cereal ou sanduíche
cercando cada atendente. Os funcionários       cam e pude ouvi-los pedindo explicações
                                                                                                       de queijo e presunto, os habituais
de aeroportos                                                                     à comissária-che-
                                                                                                       lanches das companhias aéreas. As-
aprenderam a                                                                      fe. Um passageiro    sim, a única opção dos passagei-
agir diante do                                                                    se irritou e disse   ros são as lanchonetes dentro das
caos. As tele-                                                                    que não decolaria    salas de embarque. Um sanduíche
                                                                                                       natural pode custar até 15 reais.
visões são atua-                                                                  sem saber o que
                                                                                                       Um café pequeno chega aos $3,50.
lizadas,     mas                                                                  estava acontecen-
                                                                                                              Abrir lanchonetes e cafés é um
não só com as                                                                     do. A suspeita de    bom investimento. O grupo GRSA, do
usuais     men-                                                                   haver problemas      setor alimentício, aplicou R$1,8 milhão
sagens      “Em-                                                                  técnicos no avião    para ampliar a Casa do Pão de Queijo
                                                                                                       e abrir duas unidades do Café Ritazza
barque Imedi-                                                                     disseminou-se.
                                                                                                       no aeroporto de Congonhas, por onde
ato”, “Avião no                                                                   Os comentários de
                                                                                                       passam 70 mil consumidores por mês.
pátio”. As novas                                                                  que talvez o pro-    Os estabelecimentos ainda incluíram
frases são “Vôo                                                                   blema fosse mais     em sua estrutura mesas com peque-
atrasado”, “Sem                                                                   grave eram ditos     nos sofás e poltronas confortáveis,
                                                                                                       atentas ao incômodo da espera.
previsões”,                                                                       em voz alta, para
                                                Disponível em: www.estadao.com.br                             Com a crise aérea, o pro-
“Vôo cancela-                                                                     todos     ouvirem.
                                                                                                       jeto da Infraero de implantar shop-
do”. O passageiro não corre mais atrás de              Quando enfim a decolagem foi au-                 pings nos aeroportos ganhou força.
informações, sabendo que pouco adianta e       torizada, o capitão informou que o apa-                 Em nove capitais, o Aeroshopping
muito estressa. Senta, cansado, e espera.      relho responsável pela sustentação do ar                já funciona, sendo que em Brasí-
                                                                                                       lia e Porto Alegre até cinema Multi-
                                               condicionado quando o avião estivesse em
                                                                                                       plex tem. Mais sete aeroportos de-
                                               solo estava quebrado, mas não afetava as
Medo de voar                                                                                           vem ganhar shoppings neste ano.
                                               condições de vôo. A viagem foi tranqüila.


O
                                                       Manifestações de desconfiança dos
         acidente da Gol é marcante para
                                               passageiros e até mesmo de alguns fun-
         os que viajam de avião. Quem pre-
                                               cionários quanto às informações das
         cisa utilizar o transporte aéreo,
                                               companhias aéreas são cada vez mais
procura não lembrar. Mas a imprensa tem
                                               comuns. Grandes jornais e emissoras de
denunciado a precariedade da estrutura
                                               televisão questionaram sobre a existên-
aeroportuária brasileira. O conhecimento
                                               cia de um buraco negro no espaço aéreo,
das falhas da Infraero, somado à tensão da
                                               ou seja, uma área em que não é possível
crise aérea, acaba por trazer à tona o medo.
                                               monitorar os aviões. A Infraero promete
      Em um dos vôos que peguei, enquan-
                                               investimento, mudanças. Mas até ago-
to esperávamos a autorização para deco-
                                               ra não se notam melhorias estruturais.
lar, o ar condicionado do avião não estava
                                                                                                                                          Montagem: Juliana Sakae.
                                                                                                                            “A Noite Estrelada” Van Gogh, Foto: AFP
16
                                          para ela. Ela fala com experiência, ges-                               para o Natal, era quase meia-noite. O vôo
Amizade de sala de embarque
                                          ticulando, serena. Então, ele enfim ouve                                para São Luiz do Maranhão foi chamado


H
        á quem prefira ouvir música, o chamado do vôo e se despede. Deseja                                        e a sala de embarque tomada pelo ba-
        ler, comer. Outros aproveitam o boa sorte e ele sorri em agradecimento.                                  rulho de palmas e gritos de comemora-
                                                Quem toma o mesmo vôo acaba                                      ção. Parecia festa de família: os passagei-
        tempo para conhecer pessoas. O
primeiro assunto é o que existe em co- por se unir. Em busca das mesmas in-                                      ros se cumprimentavam e se abraçavam.
mum: a espera. “Quantas horas você está formações, os passageiros se ajudam.                                     Era o fim de uma espera de dez horas.
                                                No aeroporto de Brasília, a im-
esperando, vai para onde, fazer o quê?”.
     Um jovem conversa com uma senho- pressão que dá é a de que grandes ami-
ra. Ele fala sorrindo, com o dorso virado zades foram feitas. Faltavam dez dias



        Cronologia da Crise Aérea
                                                                                                                      14 de novembro de 2006
  29 de setembro de 2006                                                                                              O aquartelamento
                                                                            29 de outubro de 2006
                                         21 de outubro de 2006
  Acidente do jato Legacy                                                                                             Controladores que trabalham no turno
                                                                            Operação padrão
                                         Pane no sistema
  O vôo 1907 da Gol, de Manaus                                                                                        da madrugada foram impedidos pela
                                                                            Ao invés de controlar 20 vôos, os
                                         Os aparelhos da torre
  para Brasília, se choca com o                                                                                       Aeronáutica de voltar para casa e os 149
                                                                            controladores passaram a 14, como
                                         de controle de Curitiba,
  jato Legacy. Das 154 pessoas a                                                                                      funcionários do setor foram convoca-
                                                                            nas regras internacionais de avia-
                                         Cindacta-2, entraram em
  bordo do vôo doméstico, não há                                                                                      dos ao trabalho, sob pena de prisão. O
                                                                            ção. Em um final de semana, mais
                                         pane. Na região Sul, 146
  sobreviventes. Em investigações                                                                                     aquartelamento durou 20 horas, mas não
                                                                            de 600 vôos foram atrasados e a
                                         vôos foram atrasados em
  posteriores, surge a suspeita de                                                                                    impediu atrasos.
                                                                            espera chegou a 20 horas em alguns
                                         até três horas.
  culpa dos controladores de vôo.                                           aeroportos.



                                                                                                                             30 de março de 2007
                                                                                   24 de março de 2006
                                                                                                                             Motim dos controladores
                                     21 de dezembro de 2006                        Nevoeiro
5 de dezembro de 2006                                                                                                        A paralisação começou na torre
                                     Apagão da TAM                                 Durante três dias, o aeroporto
Pane de rádio                                                                                                                de comando de Brasília e afetou o
                                     Atrasos e cancelamentos de vôos no            de Cumbica (SP) fica fechado
Equipamentos da torre de                                                                                                     controle aéreo do país. Todos os
                                     país inteiro, devido à chuva em Con-          devido a chuvas e nevoeiro. O
controle de Brasília sofreram                                                                                                aeroportos ficaram fechados. Os
                                     gonhas e a seis aviões da TAM em              aparelho que permitiria pouso e
pane. Assim, vôos e decola-                                                                                                  controladores exigem melhores
                                     manutenção. 340.000 passageiros               decolagem está quebrado. Vôos
gens tiveram que ser suspen-                                                                                                 condições de trabalho, a desmili-
                                     deixaram de embarcar pela prática de          têm de ser desviados para
sos por um período de quatro                                                                                                 tarização do tráfego aéreo, a me-
                                     overbooking da TAM, que controla 48%          outros aeroportos e a espera
horas, além de 200 vôos                                                                                                      lhoria de equipamentos e a criação
                                     dos vôos domésticos no país.                  chega a 23 horas.
cancelados.                                                                                                                  de uma carreira para a categoria.
17




       A sereia é
    representada
   na literatura,
 no cinema e na
  arte de formas
      diferentes.
       Conheça a
   história desta
figura mitológica
    e a polêmica
     em torno de
  sua verdadeira
        imagem.

por Juliana Sakae


                    “Ulisses e as Sereias”
                    Herbert James Draper, 1909
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A
       o sul da Espanha, à beira do Medi-     tão Ulisses, aconselha ela que se amarre     sexual original intrínseco à figura mito-
       terrâneo, conhecem-na por Sirena.      ao mastro do navio com todas as cordas;      lógica criada antes de Cristo somem no
       O rio que atravessa o penhasco do      mas, antes, deve ordenar aos marinheiros     conto de Hans Christian Andersen para
Vale do Reno a tem por Loreley. No encon-     que coloquem cera em seus ouvidos e não      virar história infantil. Na literatura, a in-
tro das águas do Rio Negro e Solimões, na     o desamarrem sob hipótese alguma. Ulis-      gênua pequena sereia morre – transfor-
Amazônia, é chamada de Yara. A sereia         ses passa, então, por um local cheio de      ma-se em espuma, por amor ao príncipe,
é uma figura mitológica, nascida deusa         “sereias rodeadas de ossos humanos pu-       enquanto Yara, Sirena, Loreley e Ondina
grega, com corpo de ave e cabeça de mu-       trefeitos cobertos por pele seca”. O canto   buscam vingança à figura masculina de-
lher. A beleza sedutora conhecida hoje, de    sirênico das mulheres, apelando à sensu-     vido à violência anterior. A versão anima-
                                                                                           da da Walt Disney para o cinema modifi-
corpo semi-nu e cauda de peixe, nada tem      alidade, enfeitiça-o. O capitão debate-se
em comum com a criatura da Antigüidade.       e implora aos marinheiros que desfaçam       cou o fim para um “felizes para sempre”.
       Diz a lenda que de uma briga entre     as amarras. Com os conselhos da deusa
o herói Hércules e o deus Aqueloo – um        Circe, entretanto, o navio passa a salvo
peixe com cauda de cobra, nasceram três       pelas vingativas sereias.
sereias: Leucotea, a deusa branca; Lígia,     Sereia no Cinema
a de voz clara e Parténope, a virgem. Hér-
cules, na luta, teria arrancado o chifre de        A saga de Ulisses serve de inspira-
Aqueloo; do sangue derramado saíram           ção para lenda de Sinbad, trazida ao ci-
                                              nema pelo Estúdio Walt Disney em 2003.
três criaturas metade pássaro, metade
mulher. A única característica em co-         Os elementos da história são fiéis ao livro
                                                                                            O Canto das Sereias
mum com a sereia do século XXI é o seu        “Odisséia”: uma deusa conselheira, se-
                                                                                            Tem-te, honra dos Aqueus,
canto, chamado sirênico. A voz, aguda e       reias tentando enfeitiçar marinheiros e a
harmoniosa, enfeitiça o sexo masculino e      sensualidade delas misturada ao desejo        famoso Ulisses;
o atrai à morte.                              de vingança. Na versão cinematográfica
                                                                                            Nenhum passa daqui, sem que
                                              de “Sinbad – A Lenda dos Sete Mares”, po-
Sereia na Literatura                                                                        das bocas
                                              rém, os marujos são salvos pela presença
                                                                                            Nos ouça a melodia, e com
     A origem da sereia aquática se deu       de uma mulher na expedição, a quem o
                                                                                            deleite
no mesmo país da voadora. Homero, fi-          canto das sereias não faz efeito. A adap-
                                                                                            E instruído se vai. Consta-nos
gura da literatura grega, descreveu em        tação da mitologia grega original para o
“Odisséia” uma forma de sereia diferen-       cinema trouxe sempre elementos novos.         quanto
te de Leucotea, Lígia e Parténope. O li-      Desde conchas que escondem os seios
                                                                                            O céu vos molestou na larga
vro conta a aventura de Ulisses voltando      até a personalidade, como no famoso “Pe-
                                                                                            Tróia,
                                              quena Sereia”, lançado pelo mesmo estú-
para sua terra natal, Ilha de Ítaca, após
                                                                                            Quanto se faz nos conta n’alma
a Guerra de Tróia. No caminho, o nave-        dio de Sinbad, em 1989. O filme conta
                                                                                            terra
gador é informado por Circe, “a divina        a história de uma sereia pré-adolescente
                                                                                            (“Odisséia”, Canto XII, Homero)
entre as deusas”, que irá encontrar cria-     – boazinha – que quer subir à superfície e
turas mortais chamadas sereias. Ao capi-      virar humana. O desejo vingativo e apelo
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                                                                                            Sereia”, alguns artistas buscam a criação
                                                                                            de um ser cuja existência seja próxima
  A Pequena Sereia de Andersen                  Loreley, a sereia alemã
                                                                                            do real. O escultor Juan Cabana, fasci-
 A pequena sereia de Andersen apaixo-           No Vale do Reno, na Alemanha, há uma
                                                                                            nado por criaturas estranhas, tem uma
 na-se por um príncipe náufrago e bus-          rocha chamada “Loreley”. Devido a seu
                                                                                            longa coleção das chamadas “sereias fiji”.
 ca viver como mortal ao seu lado. Para         tamanho, o local produz eco, o que está
                                                                                            Essa criação artística, originada nas Ilhas
 isso, a sereia doa sua voz a uma bruxa,        associado ao canto da sereia de uma an-
                                                                                            Fiji por japoneses, é a escultura de se-
 que lhe dará, em troca, a forma huma-          tiga lenda. Segundo Clemens Brentano,
                                                                                            reia com material orgânico, como partes
 na. Mas, para que esse estado se torne         o primeiro homem a escrever seu teste-
                                                                                            de peixe. Originalmente, os artistas cos-
 perpétuo, a pré-adolescente deve fazer         munho, uma mulher teria cometido sui-
                                                                                            turavam cabeça de macaco em corpo de
 com que o príncipe se apaixone por ela,        cídio nas águas do Rio Reno por um amor
                                                                                            peixe e, através da fotografia, difundiam
 o que não acontece. A sereia, agora me-        não correspondido. Transformada em se-
                                                                                            a “existência” da criatura. Juan Cabana
 nina e muda, quer retornar ao oceano;          reia, Loreley passa os dias cantando sua
                                                                                            ficou conhecido após o tsunami de 2004,
 para isso, terá de matar o príncipe. Por       tristeza. Brentano, assim como os poe-
                                                                                            quando correu pela internet um “acha-
 amor, a sereia não o faz, transformando-       tas Heinrich Heine e Friedrich Silchers,
                                                                                            do arqueológico”: uma sereia fossilizada,
 se em espuma.                                  ouviu o canto ao passar pela rocha. A se-
                                                                                            do tamanho da palma da mão, teria sido
                                                reia, com sua voz, atrai os homens para
                                                                                            encontrada em Chennai, na Índia. A foto
                                                a morte, como vingança por seu amor
  Iara, a sereia brasileira                                                                 fora retirada do site do artista e, junto
                                                não correspondido.
                                                                                            com um texto criativo, percorreu milhares
 A lenda indígena, registrada pelos pri-
                                                                                            de caixas de e-mails. Outras sereias fo-
 meiros portugueses que navegaram o                  é repetida na lenda brasileira         ram “encontradas” pelo mundo, inclusive
 rio Amazonas, conta que existia uma linda mulher
                                                     (Yara), alemã (Loreley), espa-         no Brasil (ver vídeo: www.youtube.com/
 chamada Yara. Os cabelos eram longos e escuros,
                                                     nhola (Sirena) e africana. Em          watch?v=dICCBKqbm1M). Brincadeiras
 os olhos castanhos. Sua beleza e conduta exemplar
                                                     1909, o inglês Herbert James           assim, porém, parecem não incomodar
 geravam inveja na aldeia. Era, também, a preferida
                                                     Draper representou a sereia            o autor (veja entrevista). Cabana diz que
 do Tupã. Um dia, à beira do Rio Negro, Yara perce-
                                                     dos mares de Ulisses: mu-              sua intenção é, justamente, a de retornar
 beu a presença de homens, que a violentaram. A
                                                     lheres sensuais com rabo de            à crença em sereias e monstros marinhos.
 índia, desmaiada pela dor da agressão, foi jogada
                                                     peixe sobem ao navio grego                   Walmor Corrêa, artista florianopo-
 no encontro das águas do rio Negro e Solimões. Se-
                                                     enfeitiçando os marujos com            litano radicado em Porto Alegre, tam-
 gundo a lenda, Yara então ganhou a cauda de peixe.
                                                     seu canto. Já John William             bém busca uma representação realista
 Assim, não mais poderia ser abusada sexualmente.
                                                     Waterhouse, também inglês,             da sereia. Ao
 De qualquer forma, manteve o tronco de mulher, por
                                                     pintou dez anos antes a mes-           viajar à Amazô-
 vingança: com meio corpo à superfície, a sereia atrai
                                                     ma cena de Homero, porém               nia, Corrêa per-
 os homens para dentro do rio e os conduz à morte.
                                                     sem a mesma beleza sirênica            cebeu a forte
                                                     de Draper. Baseado na mi-              crença dos ha-
Sereia na Arte                            tologia dos deuses gregos, Waterhouse             bitantes por len-
Cabelos claros ou negros, cauda de peixe retratou o navio de Ulisses sendo ata-             das mitológicas.
ou de cobra, corpo de mulher ou de pás- cado por três sereias com corpo de ave.                   Começou
saro. A idéia clássica, da mulher sensual        Embora a mais famosa versão seja a         a criar a série
com cauda de peixe e cabelos compridos, representada pela Disney em “A Pequena              Unheimlich      -
20
Imaginário Popular Brasileiro. Nela, cria a

                                                 ENTREVISTA
anatomia de seres inexistentes, como a sereia                                             Juan Cabana é considerado
                                                                                          o artista mais polêmico
Ondina, sereia da mitologia alemã junto com
                                                                                          na criação em cima da
Loreley. Através de estudos, pesquisa e até
                                                                                          mitologia. Cabana produz
visita a médicos e biológos, Corrêa esboça no    Ponto-e-Vírgula - Como você se sente
                                                                                          suas esculturas com
papel o funcionamento do organismo de cria-      com sua obra popularizada ao redor
                                                                                          pedaços de peixe e afirma
turas. A anatomia como forma de expressão        do mundo não como arte, mas como
                                                                                          que o lugar de suas obras é,
                                                 uma possível criatura real?
artística é inspirada nas obras de Leonardo
                                                                                          sim, na praia.
                                                 Cabana - As pessoas, sem meu conhe-
DaVinci. O artista italiano produziu 600 fo-
                                                 cimento, retiram fotos do meu web-
lhas com milhares de desenhos a partir da
                                                 site (www.thefeejeemermaid.com) e
dissecação de animais. O resultado de Wal-
                                                 criam histórias da descoberta de se-
mor Corrêa é curioso; é possível acreditar em    reias e monstros marinhos em outras
uma possível existência do ser desenhado         partes do mundo. Minha intenção é
na tela. Os órgãos, especificados na lateral,    trazer de volta a crença em sereias e
detalham a obra como se esta fosse, por últi-    monstros. Minhas criações são feitas
                                                 usando pele, dentes e ossos de peixe
mo, arte. Fosse, sim, a réplica de uma sereia
                                                                                                                “Antiga Sereia”,
                                                 de verdade. Poderia ser mais real que
Ondina dissecada, assim como em Da Vinci.
                                                                                                                  da coleção de
                                                 isto? Recebo e-mails quase todos os
       A arte pode ser um meio de represen-
                                                                                                                  Juan Cabana
                                                 dias, de pessoas de todas as idades,
tação de lendas e mitologias. Assim foi nos
                                                 questionando-me se sereias realmen-
quadros de Draper, como sereias aquáticas,       te existem.
ou de Waterhouse, como sereias com asas,         ;- Você coloca sua criação em lugares
e nos filmes de “Sinbad” e “A Pequena Se-        que são considerados, na mitologia, o
reia”. Mas também pode contribuir na ma-         habitat natural delas.
                                                 Cabana - Sim, tento encontrar um ce-
nutenção da crença nesta mitologia, como
                                                 nário natural para as minhas sereias.
o livro de Homero, como Walmor Corrêa e
                                                 Viajei por toda Flórida procurando pe-
Juan Cabana ou como os peixes com ca-
                                                 las melhores praias para as sereias.
beças de macaco das Ilhas Fiji. O canto da
                                                 ;- O que você acha da reação das pes-
sereia, porém, já não fascina mais. Rafael       soas ao ver uma sereia em uma praia
Gubert tem quatro anos, mora na cidade de        e não em um museu?
Blumenau em meio a prédios que beiram o          Cabana - Bom, a sereia fica melhor
Rio Itajaí-Açu. Para infelicidade de Cabana,     na praia, mas isto apenas para tirar
                                                                                          Retirado do site: www.thefeejeemermaid.com
                                                 fotografia (normalmente está deserto
Walmor e – provavelmente – Homero, Ra-
                                                 quando tiro fotos). Já as sereias no     Cabana - Geralmente de mim mesmo.
fael diz: “sereia nem existe, só nos livros!”.
                                                 museu podem ser vistas por muitas        Se você procurar na minha galeria de
Osvaldo Pereira, 60 anos, é pescador de
                                                 pessoas, é isto que quero. Meu sonho     sereias, vai ver que elas são diferen-
camarão da praia do Balneário de Floria-
                                                 é abrir o Museu de Sereias e Mons-       tes, originais. Eu tento não repetir a
nópolis. Ele afirma que “sereia nunca exis-      tros Marinhos, o único do mundo com      obra. Gosto também de estudar dese-
tiu nem nunca vai existir”. Mesmo assim,         criaturas produzidas com peixe de        nhos antigos de monstros marinhos
ressalta: “se pescar um dia, eu aviso”....       verdade.                                 assim como mapas ancestrais. Tinha
                                                 ;- Onde você encontra inspiração para    uma época que todo mundo acredita-
                                                 este tipo de arte?                       va que eles eram reais.
21
ENTREVISTA
Walmor Corrêa, catarinense radicado no Rio Grande do Sul, expôs sua obra
no Equador, Áustria, Estados Unidos, Chile, Argentina, mas no Brasil ainda é
pouco reconhecido. Formado em arquitetura, Corrêa cria através de estudos,
pesquisas e, muitas vezes, consulta a médicos e biólogos.

Ponto-e-vírgula - Como surgiu a idéia de     visualizados. Portanto, uma quantidade
criar a anatomia de criaturas lendárias?     considerável de leitura é a primeira parte
Corrêa - Na série Unheimlich - Imáginario    do projeto. Depois, com o auxílio dos es-
Popular Brasileiro, respondo a perguntas     boços, uma visita a especialistas médicos
que fiz à natureza quando criança de acor-    e biólogos ajuda a concluir este processo
do com a minha própria interpretação dos     criativo. Também foi necessário viajar até
                                                                                           “Ondina”,
paradigmas da ciência. A idéia surgiu em     os lugares onde a tradição oral mantém
                                                                                           desenhada
uma viagem à Amazônia onde muitos ha-        vivas estas lendas, onde é possível coletar   por Walmor
bitantes daquela região cultuam algumas      as estórias e os dados a partir dos quais,    Corrêa
lendas. Estas obras também estão relacio-    tenho mais subsídios para o meu traba-
nadas com obras dos artistas viajantes do    lho.
século passado, que sempre me desperta-       ;- Você acredita ser possível existir uma
ram interesse e foram desde sempre moti-     criatura como a sereia?
vo de pesquisa em meu trabalho. Em suas      Corrêa - Em 9 de novembro de 2006 nas-
anotações sobre as expedições ao novo        ceu um “bebê-sereia”, na província de Hu-
mundo, citavam a existência de seres fan-    nan, no sul da China.
tásticos como Afonso dÉscrangnolle-Tau-       ; - Qual foi sua experiência mais interes-
nay, “(...) um peixe quem tem pedras no      sante entre as criações?
lugar dos miolos, um peixe monstro que       Corrêa - A Cachorra da Palmeira, por ser
não tem intestinos,um molusco que mens-      uma lenda recente. Diz-se que quando o
trua como as mulheres(...)” - Monstros e     Padre Cícero faleceu, em Juazeiro, no Ce-
Monstrengos do Brasil.                       ará, toda a população local ficou de luto
;- Como funciona o processo de criação de    pela morte do sacerdote. Menos uma moça
uma obra sua? Entre concepção, pesqui-       que, desolada com a perda de uma cachor-
sa, desenho...                               rinha de estimação, afirmou que preferia
Corrêa - Como um artista tem liberdade       vestir o luto pelo seu animalzinho e não
suficiente para explorar profundamente        pelo santo homem. Minutos após proferir
seu trabalho, antes de partir para a tela,   tais palavras, como um castigo de Deus,
é feito um estudo bastante minucioso.        a menina começou a uivar, morder e a
Através da pesquisa de diferentes fontes é   correr, vindo em seguida a se transformar
possível que estes animais comecem a ser     numa cadela, a Cachorra da Palmeira.
Ash-a-ee
                                                                                                22




         por Pedro Santos

A história da fruta amazônica que já conquistou o Brasil e tem tudo para
seduzir o mundo, com ou sem granola.




I
   açã é filha do cacique. A tribo está cres-      contrado ao pé da planta. Rosto sereno, olhos
   cendo, os alimentos escasseiam. “A vida        inertes voltados para cima. Da palmeira,
   está difícil, não conseguimos comida”, re-     saíam cachos com pequenos frutos pretos,
clamam os índios da tribo. O cacique, Itaki,      que são apanhados a mando do cacique.
não vê outra escolha: “a partir deste dia, toda   Amassados em vasos de barros, davam um
criança que nascer será sacrificada”. O que        vinho avermelhado. Essa foi a solução para a
ele não desconfiava era que a regra teria de       tribo, que dali em diante não teria mais pro-
ser aplicada à sua própria família: Iaçã está     blemas com a falta de alimentos e nenhuma
grávida. Tempos depois, ela dá à luz. A cri-      criança teria de ser sacrificada outra vez. A
ança é uma menina linda que, assim como           lenda é amazônica. No lugar em que se pas-
todos os outros recém-nascidos da tribo, é as-    sou a história, hoje se localiza a cidade de
sassinada. Iaçã não se contém. Chora todas        Belém, no Pará.
as noites e pede, ininterruptamente, ao deus            E o fruto foi batizado pela inversão do
Tupã que mostre uma maneira para resolver         nome da índia Iaçã - em tupi, yasa´i quer di-
a falta de comida na tribo, o que evitaria a      zer “planta que chora”. O alimento que salvou
morte de outras crianças. Em uma noite de         a tribo é o açaí. O gosto natural do açaí não
luar vistoso, ela ouve um barulho. Choro de       é uma opção muito acessível para quem não
criança.                                          mora próxima a uma Euterpe oleracea, tam-
      Sai correndo de sua oca em direção ao       bém conhecida como açaizeiro. Essa palmei-
som. Não acredita no que vê. É sua filha, ao       ra é nativa das várzeas da região amazônica,
pé de uma palmeira alta e esguia. Correu.         e cada tronco pode gerar até quatro cachos,
Abra-çou. Sorriu... Chorou. A filha desapa-        que, por sua vez, produzem de três a seis qui-
rece e Iaçã abraça-se à palmeira. Fica ali por    los de açaí. O fruto é característico: pequeno,
dias e dias, até que perde todas as forças, cai   arredondado e arroxeado - ainda existe o açaí
e morre. No dia seguinte, o corpo dela é en-      branco, menos conhecido em outros lugares
23
                                                                         O Pará é o maior produtor de açaí do mundo. Em 2005, a
                                                                   produção brasileira somou 104.874 toneladas, das quais 87,8%
     O caroço é proporcionalmente grande, deixando pouco es-
                                                                   foram coletadas no Pará – o que dá 92.088 toneladas. Os dados
paço para a polpa, que representa 17% do peso total. O açaizeiro
                                                                   são do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, o IBGE. A
é uma planta em que praticamente tudo pode ser aproveitado.
                                                                   propósito, os paraenses têm o hábito de misturar açaí à farinha de
As fibras podem ser destinadas a esteiras, chapéus e sacolas.
                                                                   tapioca para acompanhar o arroz, o peixe frito, o charque e pratos
     O estipe é aproveitado como lenha ou matéria-prima para
                                                                   da culinária regional, além dos sucos e do açaí servido em tigelas.
a construção de casebres e pontes. As folhas são usadas como
                                                                   É difícil, com palavras, explicar o gosto que o fruto in natura tem.
coberturas de casas, adubo, ração animal e são transformadas
                                                                   Podemos dizer que é algo próximo, digamos, ao amargo, mas não
em vassouras. Com as raízes, fabricam-se alguns remédios. E,
                                                                   ácido. Acontece que a fruta decompõe-se muito rápido. Por isso,
com os frutos, cultivam-se medicamentos, álcool, adubo, ali-
                                                                   em lugares mais distantes das regiões produtoras é mais comum
mentos e o vinho.
                                                                   a polpa congelada, servida em uma tigela depois de ser batida no
                                                                   liquidificador com outras frutas.
          Tabela nutricional para 100g de açaí
                                                                         Para fazer o açaí na tigela, os ingredientes mais típicos são a
                                                                   polpa do açaí, o xarope de guaraná – que “adocica” e é energético –,
                                                                   a banana e a granola (mistura de pedaços de frutas secas, passas,
                                                                   amêndoas, aveias e outros cereais). O resultado é um alimento que
        Valor energético ......................... 274 kcal
                                                                   cada vez conquista mais adeptos em diferentes lugares do Brasil e
        Cálcio......................................... 286 mg     do mundo. Uma antiga fruta amazônica que se popularizou, por
                                                                   quê? Como explicar a “febre” que o açaí na tigela anda causando por
        Fibras ....................................... 34 mg
                                                                   aí? As respostas passam por algumas hipóteses. Carmen Trindade,
        Proteínas ................................... 13 mg        professora da área de Engenharia de Alimentos, na Universidade de
                                                                   São Paulo (USP), supõe que um dos motivos da divulgação favorável
        Sódio.......................................... 56,4 mg
                                                                   do açaí está na própria natureza do alimento. “É uma fruta exótica,
        Potássio .................................... 932 mg       com cor bastante atraente”, diz.
                                                                         Outra hipótese levantada pela professora é o sucesso que a
        Magnésio.................................... 174 mg
                                                                   floresta amazônica faz mundo afora. “O mundo resolveu cultuar
                                                                   a floresta amazônica e, obviamente, tudo o que vem dela. Assim,
        Vitamina C ................................. 17 mcg
                                                                   a aceitação dos produtos amazônicos é enorme”. De fato, o fruto
        Vitamina E ................................. 45 mcg
                                                                   começa a fazer sucesso em outros países, onde não é apenas usado
                                                                   como alimento, mas transformado em xampus, sabonetes e cremes;
        Ferro ......................................... 26 mg
                                                                   tudo à base de açaí. Em 2005, os Estados Unidos faturaram 3,8
        Fósforo ....................................... 227 mg     milhões de dólares com produtos originados do fruto.
                                                                         E não é só nos EUA: “Já fomos procurados por pesquisadores
        Lipídios ...................................... 17 g
                                                                   alemães interessados em estudar toda a cadeia produtiva da fruta,
        Glicídios ..................................... 36,6 g     tamanho o sucesso que ela tem feito por lá”, diz Carmen, que é
                                                                   apreciadora do típico açaí na tigela, com granola, é claro.
O canhoto que se tornou um dos maiores dramaturgos brasileiros
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O canhoto que se tornou um dos maiores dramaturgos brasileiros

  • 1. ponto-e-virgula Maio 2007 edição 2 O CANTO DAS SEREIAS A sereia é representada na literatura, no cinema e na arte de diferentes formas. Conheça a história desta figura mitológica e a polêmica em torno de sua verdadeira imagem PLÍNIO MARCOS O canhoto que escrevia com a mão direita, era avesso à escola e se tornou símbolo da perseguição pela censura, deixou-nos cerca de 40 obras teatrais, além de diversos outros textos IMAGINAÇÃO A SERVIÇO DA DOR As engenhocas inventadas para arrancar confissões e executar condenados durante a Idade Média percorrem o país em exposição itinerante
  • 2. ponto_e_virgula [sumário] MAIO 2007 EDIÇÃO 2 ESCRITORES Adriana Seguro Carolina Moura Fernanda Dutra Juliana Sakae ESPAÇOS NESTA EDIÇÃO Leonardo Gorges Luisa Frey 04 17 Perfil Marina Veshagem O Canto das Sereias Matheus Joffre 06 Pedro Santos Cinema Rodrigo Tonetti Thiago Bora 09 08 Imaginação a serviço da dor Literatura EDIÇÃO Fernanda Volkerling 30 “Atenção passageiros, Luisa Frey 14 Entrevista Marina Veshagem acomodem-se. 28 Por que vai demorar!” DIAGRAMAÇÃO Esporte Carolina Moura 22 26 Juliana Sakae Ash-a-ee Thiago Bora Viagem 35 CAPA Fotografia Thiago Bora 36 ARTE FINAL Criação Juliana Sakae 38 REVISÃO Causos&Coisas Adriana Seguro Lucas Sarmanho Maurício Tussi Rodrigo Tonetti ; Florianópolis - SC www.revistapontoevirgula.com
  • 3. [car ta ao leitor] A ponto-e-vírgula nasceu no Dia da Men- tira, mas é verdade! Vamos continuar pu- blicando todo mês os textos e reportagens com a maior concentração de ; por centímetro quadrado. Se em abril trouxemos Pinóquio para os mentirosos, o público de maio não perde em nada; nosso escritor Matheus Joffre explorou o Dia do Trabalho sob um novo olhar em sua crônica: o da infância. E, com estes mesmos o- lhos, o espaço de fotografia faz qualquer mãe to da nçamen babar. Inclusive as noivas ganharam espaço na ão de la oi de mentira! oraç Comem seção Causos&Coisas, que conta as origens de não f írgula: nto-e-v algumas tradições do casamento. po Além dos temas que você encontra em toda edição, trazemos um pouco de mitologia, na figura controversa da sereia; a história e po- pularização do tropical açaí; o ambiente e as histórias dos aeroportos em plena crise e uma viagem ao passado, através dos instrumentos de tortura da Idade Média. Leitura repleta de próclises e ênclises (vide página 38) para todos os gostos! A Redação
  • 4. [per fil] 4 O Plínio Marcos garoto não suportava a escola. Canhoto, era forçado a escrever com a mão direita, o que dificulta- va o aprendizado. Plínio Marcos de Barros, nascido em Santos, em 29 de setembro de 1935, levou quase 10 anos para comple- por Marina Veshagem tar o primário. Ironia ou não, anos depois se tornaria um dos maiores dramaturgos O canhoto que escrevia com a que o Brasil já conheceu. Toda sua obra mão direita, era avesso à escola e foi manuscrita – com a mão direita, claro. se tornou símbolo da perseguição Ainda garoto, trabalha como fu- pela censura, deixou-nos cerca de nileiro, vendedor de livros, estivador no cais de Santos, jogador de fute- 40 obras teatrais, além de diversos bol e também para a Aeronáutica. outros textos Aos 16 anos, torna-se o palhaço Frajola e passa a atuar como humo- nhar o pão de cada dia com o suor do currado. Quando saiu, dois dias depois, rista e ator coadjuvante. Em 1958, ini- próprio rosto é terrível. Você tem a sen- matou quatro dos caras que estavam cia uma verdadeira carreira de ator e sação de que é um exilado no seu próprio com ele na cela. Fiquei tão chocado com diretor no teatro amador santista, com país. Eu sei bem como é isso. Penei. Penei esse negócio todo que escrevi a Barrela.” forte influência do grupo de intelectuais muito. A minha sorte é que nunca cortei O homem que nunca havia pensa- ao qual pertencia a jornalista e escri- os laços com as minhas raízes. Fui ca- do em escrever produz, em 1958, a peça tora modernista Patrícia Galvão, a Pagu. melô. Voltei pra rua pra camelar. Não caí. “Barrela”. Não houve preocupação com os Não bebi. Não chorei. Nem perdi o bom- E nasce o escritor... erros de português, nem com as palavras. humor. Mas, sofri mais do que a mãe do “(...) Dei o nome de Barrela, que é a “Mas o destino daquele Plínio audaz e porco-espinho na hora do parto, impedi- provocador já estava traçado: não seria borra que sobra do sabão de cinzas e que, na apenas mais um escritor provinciano, do de trabalhar. E ignorado por colegas, época, era a gíria que se usava para curra.” porém o grande dramaturgo a marcar com que se diziam de esquerda, nas rádios e A peça é montada ape- seu texto vibrante e indignado toda uma nas televisões. Mas, deixa pra lá. Essa nas uma vez, em 1959, e logo de- fase de nossa história teatral”. sujeira sai no mijo, não tenho mágoas.” (Narciso de Andrade, poeta. O texto foi pois, censurada por vinte e um anos. Com a ajuda dos amigos, em 1966, Em 1960, Plínio Marcos vai para escrito pouco antes da morte Plínio escreve e decide atuar em uma de Plínio Marcos) São Paulo, onde inicia um trabalho dife- nova peça, de sua autoria, chama- rente: torna-se vendedor de produtos da “Dois Perdidos numa Noite Suja”. contrabandeados. Além disso, faz bi- “Houve um caso, em Santos, que cos em peças de teatro e suas obras “Fiquei na moda. A Cacilda Becker, me chocou profundamente: um garoto foi permanecem vetadas pela censura. quando viu a peça, comentou: Incrível! preso por uma besteira e, na cadeia, foi Você conhece dez palavras e dez palavrões, “Ser impedido de trabalhar, de ga-
  • 5. 5 e escreveu uma peça genial. E várias o preço de nunca escrever para agradar os da. É difícil ter espaço nos jornais, encon- peças minhas piaram na parada: Na- poderosos. Há dezessete anos tenho minha trar lugar para vender livro. Cheguei a ser valha na Carne, Quando as Má- peça de estréia [Barrela] proibida. A solidão, expulso de vários lugares. É uma brutali- quinas Param, Homens de Papel.” a miséria, nada me abateu, nem me desviou dade única. Eu nunca fui um escritor pro- O texto de “Dois Perdidos numa Noite do meu caminho de crítico da sociedade, de fissional, morreria de fome se fosse viver Suja”, milagrosamente, é liberado pela repórter incômodo e até provocador. Eu es- dos meus livros. Teria que acabar fazen- censura. A atriz Tônia Carrero, através de tou no campo. Não corro. Não saio. E pago do milhares de concessões. Mas, camelô, seu prestígio e influências, é quem con- qualquer preço pela pátria do meu povo.” ah!, isso eu sou bom. Vendo meus livros, segue a liberação da obra (com a condição Diante da insistência da censura, o dra- dou autógrafos e prometo morrer logo de atuar na peça). O mesmo não acontece maturgo se dedica a outros formatos, como para valorizar. Eu sou um escritor imor- à peça “Navalha na Carne”, que é termi- o romance. Além disso, continua atuando tal, não da Academia Brasileira de Letras, nantemente proibida pela Censura Federal. como colunista em diversos jornais e revis- mas porque não tenho onde cair morto.” tas. Ele vende seus livros nas ruas, feiras Plínio Marcos falece em São Paulo, Os anos de chumbo... de livros, restaurantes e portas de teatros. em 19 de Novembro de 1999, de falência No ano em que a peça “Barrela” com- múltipla dos órgãos. Premiado em todas as “O Plínio Marcos era chamado de marginal pleta vinte anos de proibição (1979), um atividades às quais se dedicou, Plínio teve e quase todas as suas peças foram grupo de teatro denominado “O Bando” sua obra traduzida nas línguas francesa, montadas por atores famosos, ou ditos inicia a montagem do espetáculo. No ano espanhola, inglesa e alemã, estudada em globais. Ser marginal é escrever sobre marginais e excluídos? Não creio que seja seguinte, o texto é liberado e os atores ini- teses de sociolingüística, semiologia, psi- isso. (...) Suas peças foram censuradas ciam a luta. O elenco vende os ingressos na cologia da religião, dramaturgia e filosofia na época da ditadura e perdeu vários rua, a preços reduzidos. Shows antes do es- em universidades do Brasil e do exterior.... empregos por causa disso, mas ganhou petáculo e debates ao fim são os meios en- todos os prêmios possíveis e a mídia contrados para levar as pessoas ao teatro. sempre o tratou com mimo e prestígio.” E, graças ao trabalho dos atores, a tempo- (Leo Lama, filho de Plínio Marcos) rada é um sucesso – foi assistida por mais de 60 mil pessoas –, o que garante a Plínio A partir de 1968, qualquer obra o Prêmio Mambembe de melhor produtor. que leve o nome de Plínio Marcos é au- tomaticamente censurada. A dita- Os últimos anos... dura considera suas peças pornográ- ficas e subversivas. O autor se torna A partir da década de 1980, símbolo da perseguição pela censura. Plínio continua um trabalho de de- Nos anos que se seguem, Plínio bates e palestras em universidades, é preso algumas vezes e liberado teatros, clubes e praças públicas, re- por interferência de vários artistas. alizado em diversas cidades do Brasil. “Eu, há dezessete anos [1973], sou “Sou um camelô da literatura. Hoje um dramaturgo. Há dezessete anos pago [1986] posso dizer que é muito difícil ain- *Fotos retiradas de www.pliniomarcos.com
  • 6. [cinema] 6 O cheiro invade as telonas em Per- fume e O Cheiro do Ralo. Mas e Cinestesia se você puder sentir de verdade? C heiro de mulher. De perfume. De ralo. Imagine uma sala de cinema equipada com caixas de odor, além das imprescindíveis caixas de som. Essa idéia deve ter pairado por Adriana Seguro no pensamento de muitos especta- dores, após assistirem aos longas O Cheiro do Ralo e Perfume – A história de um assassino, ambos lançados este ano no Brasil. A imagem mental do dispositivo pode ser patética: um compartimento que expele, através de pequenos furos, jatos de odores corres- pondentes a objetos, pessoas e lugares. Visão, audição... e olfato. Pode parecer loucura, mas não é novidade. A sala de cinema Family, em Forest City, nos Estados Unidos, foi pioneira em combinar as sensações olfativas com as audiovisuais. Um ventilador es- palhou a fragrância da água de rosas contida em algodões e causou o efeito. Depois disso, já se tentou de várias formas criar um cinema com aromas. Cerca de 50 anos mais tarde, o siste- ma aromarama utilizava o ar condicio- nado para dispersar os cheiros, mas a difusão pela sala não era uniforme. , ~ Sinestesia é a relaçao de estimu- los sensoriais diferentes; por e- ~ xemplo, a visao com o olfato
  • 7. 7 Perfume Perfume – A história de um assassino ( Alemanha/ França/Espanha, 2006. Direção: Tom Tykwer) O filme conta a vida do órfão Jean-Baptiste ( Ben Whishaw), possuidor de uma sensibilidade olfativa ex- cepcional: ele é capaz de diferenciar todos os odores Nos anos 1980, o sistema à sua volta, e “farejar” a longas distâncias. Depois de odorama de John Waters oferecia aprender técnicas de perfumaria e superar o próprio cartões individuais de Polyester, mestre, produzindo deliciosas fragrâncias, o persona- em que os espectadores raspavam gem tem a idéia fixa de capturar odores permanente- mente, inclusive o do corpo humano. Não há limites os números de determinada cena e sentiam o cheiro corresponden- para alcançar sua missão, e Jean-Baptiste inicia uma jornada à procura de belas mulheres para realizar suas te. Mas além dos cartões disper- obcecadas experiências. sarem a atenção de quem assistia, Os dois novos longas estimulam as narinas dos espectadores muitas vezes os odores eram es- catológicos, como cheiro de vômito. O Cheiro do Ralo (Brasil, 2006. Direção: Heitor Dhalia) Lourenço (Selton Mello) é um sujeito que compra objetos Recentemente, a evolução tec- antigos e alimenta um prazer bizarro em humilhar os seus já nológica possibilitou sistemas mais decadentes clientes, necessitados de dinheiro. Ele compra de modernos. Em 2005, a sala IMAX, em tudo, com um dinheiro que brota em uma caixinha; delicia- Viena, na Áustria, estreou um siste- se ao explorar quem senta à sua frente, estabelecendo uma ma da empresa Yellow Point, contro- relação de poder. O personagem parece gostar apenas de lado por computador. Logo depois, a uma coisa: “a Bunda” o bumbum de uma garçonete (Paula , companhia japonesa NTT Communi- Braun), pelo qual é aficcionado. Mas Lourenço não se satisfaz cations criou máquinas que, localiza- com o consentimento da moça: quer pagar um preço para das embaixo das cadeiras da última ver as nádegas. Além da “Bunda” o personagem possui outras , fileira do cinema, emitem aromas ob- duas obsessões: o cheiro que vem do banheiro de sua sala e tidos pela mistura de diversos óleos. um olho adquirido em sua loja. Ele estabelece uma relação Mas a idéia está longe de ser coroada neurótica com o olho, que diz ser de seu pai, e para o qual pelos cinéfilos de plantão. Os jatos precisa mostrar certas coisas, como “a Bunda” Apesar de não . aromáticos criam uma atmosfera su- se importar com os clientes, Lourenço faz questão de deixar focante na sala e há muitos especta- claro que o mal cheiro da sala é por causa de um problema dores que preferem deixar o cheiro no banheiro, com medo de que pensem ser ele quem exala a cargo de sua própria imaginação. tal odor. “Esse cheiro que você está sentindo, não sou eu, é do ralo” repete. , O Cheiro do Ralo
  • 8. 8 [ literatura ] Vôo Noturno Antoine de Saint-Exupéry (1900-1944), além de escritor, por Carolina Moura foi piloto e participou da Segun- da Guerra Mundial – morreu du- A história de um vôo pioneiro; a crônica de um vôo terreno. Impressões sobre o se- rante uma missão de reconhe- gundo livro do escritor francês Antoine de Saint-Exupéry cimento aéreo sobre Grenoble e Annecy, na França. Durante O a década de 1920, comandou a ônibus balançava. Vazio. Só assim ção que abriga tantas vidas; mas que, aos rota Paris-Buenos Aires da So- pude enxergar as páginas, sob um poucos, banaliza-se. E não só sobre o vôo: ciêté Latécoère (atual AirFrance), espectro de luz focado quase sobre sobre a coragem do piloto, a austeridade que tinha como ponto de reabas- o assento ao lado. Ainda escuro lá fora. En- do patrão, a carência do inspetor e a es- tecimento o Campo de Pouso do quanto lia sobre o dourado início da noite, pera da jovem esposa. A luta, a esperança Campeche, em Florianópolis. presenciava seu pálido fim. As palavras e a perda desta, a morte. Todas as coisas Em Vôo Noturno, publica- embalavam-me e transformavam meu lân- que constroem a vida: as estrelas entre as do em 1931, o autor cita a es- guido movimento em vôo suave. E, não as nuvens e a calmaria após a tempestade – e cala na Ilha. Ainda hoje o bairro palavras, mas o vôo, umedecia meus olhos o abismo depois dela. do Campeche guarda a memória e pensamento. A própria leitura fazia-me É o que leio, em outra viagem, en- de Exupéry nos nomes de ruas voar além dela, desviando minha atenção quanto o céu vai gradativamente perden- e estabelecimentos, além das para as pequenas paisagens, privando-me do a claridade e a noite nasce aos poucos. histórias contadas pelos de si. Tamanha é a sensibilidade com a Ônibus cheio. Através das palavras, seus habitantes. qual Antoine de Saint-Exupéry – o escri- agora vejo as estrelas, que se es- A próxima e- tor – descreve o Vôo Noturno que todas as condem por cima das nuvens dição da Ponto-e- sensações mundanas parecem entrar em escuras. Vejo a claridade da lua Vírgula traz uma seu enredo, e completá-lo. sobre elas. Sinto-me mergu- reportagem so- Recria-se a sensação de voar aos que lhando nas certezas do mun- bre a passa- já voaram. Aos que nunca, talvez se crie a do. Em queda rápida e se- gem de Zé Perri fantasia – ainda mais intensa. Eis a per- rena, como Saint-Exupéry – o – como o escri- feita leitura de viagem. Como quisera es- piloto – previu seu fim. tor era chama- tar voando e perceber, através do pioneiro do pelos nati- e entusiasta, a grandeza deste ato, desta vos – pela Ilha de conquista. Algo que se sente na primeira Santa Catarina. “Zé Perri” vez, com os olhos presos à janela, às luzes da noite brilhando como uma constela-
  • 9. 9 Imaginação a serviço da dor As engenhocas inventadas para por Rodrigo Tonetti arrancar confissões e executar condenados durante a Idade Média percorrem o país em exposição itinerante C imaturidade, inocência ou estômago fraco mesmo, não hego ao Teatro Álvaro de Carvalho (TAC), um consegui ver todos os objetos. Lá pelo quinto deles, dei- pouco adiantado; a turma que me acompanhará xei meus colegas passarem à frente para verem mais de na visita à Mostra Internacional de Instrumen- perto; contentei-me com a visão de suas cabeças, en- tos de Tortura da Idade Média só chegará dentro de quanto fazia questão de não prestar atenção à explica- 30 minutos. Enquanto espero, alguns alunos de teatro ção de como funcionava cada um dos 34 instrumentos. chegam para a aula. Tiram os sapatos e atravessam Com a chegada dos alunos do curso de História as cortinas verdes que separam o saguão da sala e da UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina), o palco. Folheio um panfleto da exposição e troco al- descemos ao porão do TAC, local em que estão expos- gumas palavras com a coordenadora, Carla Andrade. tos os aparelhos. Carla assume um tom professoral. A Segundo ela, foram dez anos de pesquisa até re- didática consiste em explicar como funciona cada peça, unir os instrumentos de tortura. Em 1985, a Mostra separando-as em dois grupos básicos: as usadas para tornou-se itinerante na Europa. No final de 1997, veio obter confissão e as que tinham por objetivo a exe- para o Brasil para ficar apenas um ano, mas, devido cução. Também cataloga a quais tipos de crime cor- ao sucesso e à extensão territorial do país, já percorre respondiam, fazendo, quando possível, uma brincadei- cidades brasileiras há mais de nove anos. Confirmei, rinha para descontrair o clima pesado do porão. Ela assim, minha suspeita: havia já visitado a Mostra – par- avisa que o porão fica bem embaixo da sala em que está te dela – em Campo Grande, Mato Grosso do Sul. Na sendo realizada a aula de teatro. Ruídos da movimenta- época, cursava a 2ª série do Ensino Fundamental. Por ção dos alunos nos surpreendem durante toda a visita.
  • 10. Instrumentos 10 Rodrigo Tonetti O balcão de estiramento, usado em interro- gatórios, é bastante conhecido por causa dos filmes (o que não chega nem perto da sensa- ção que a peça original desperta). O acusado era co- locado no balcão, com os pés presos nas algemas de ferro, as costas nos espinhos e as mãos amarradas à corda onde então se aplicava a tensão. O corpo poderia ser esticado em até 30 centímetros e, neste caso, o acusado não saía vivo do interrogatório. Es- ticando-se menos, havia a possibilidade da vítima sair viva, mas com mutilações nas pernas e braços. E como a imaginação do homem é fértil na hora de desenvolver técnicas e objetos para infligir sofrimento! Exemplo disso é a flauta do bagunceiro, usada para beberrões e músicos. Trata-se de uma tortura psicológica. O músico que não agradava ao rei era preso pelo pescoço e pelos dedos à flauta de ferro e então ficava na frente do castelo para mostrar ao povo que não possuía talentos musicais. Carla conta ainda como o conde Drácula con- seguiu deixar a morte por empalamento ainda mais terrível. A execução se dá através de um poste de madeira que perfura todo o corpo da pessoa, en- trando pelo ânus e saindo no pescoço, ao lado da garganta. A morte geralmente é instantânea, mas o conde desenvolveu uma técnica capaz de manter as pessoas vivas por até três horas depois do empala- mento. A peça exibida foi encontrada em seu castelo. O garrote é o instrumento mais recente da ex- posição, usado até 1975. O acusado senta em uma cadeira e é amarrado com o pescoço preso a uma argola de ferro dotada de um parafuso. Este para- fuso entra pela nuca da pessoa e sai na garganta. Esmaga cabeça: apertando- se o parafuso, comprimia-se a cabeça do condenado até que o crânio se fraturasse
  • 11. 11 Rodrigo Tonetti A morte não é necessariamente rá- Instrumentos pida; a agonia podia ser prolongada de acordo com a vontade do carrasco. Outra peça encontrada ali é A virgem de Nuremberg, conhecida também como Dama de Ferro. O instrumento de execução foi usa- do pela primeira vez em 1515. A cabeça, en- talhada em madeira, e o corpo, todo de ferro, chamam a atenção pela suntuosidade. A bele- za externa contrasta com a crueldade que se revela por dentro. Facas são estrategicamente colocadas para que não atinjam nenhum ponto vital do condenado. Uma vez dentro do sar- cófago, leva-se em média três dias para morrer. Entre as práticas que me provocam mais re- pulsa está a evisceração, na qual é feito um corte profundo na barriga do ser humano, através do qual, auxiliado por uma corrente com um gan- cho na ponta, de meia em meia hora o carrasco retira uma víscera do condenado até matá-lo. Na internet, é possível encontrar in- formações sobre uma grande variedade de instrumentos de tortura e execução usa- dos na Idade Média Européia (www.geoci- ties.com/adtenebras/compendio.htm). Virgem de Nuremberg ou Dama de Ferro: como as fac as do interior do sarcófago não atingem pon tos vitais, o condenado podia levar até três dias para morrer.
  • 12. 12 Rodrigo Tonetti Flauta do bagunceiro: tortura psicológica usada para beberrões e músicos tinuidade da Prática Con A tortura foi amplamente usada na Inquisição, práticas e abriu sindicância para punir os responsáveis. na Segunda Guerra Mundial e nas ditaduras Também imagens de torturas infligidas a prisio- militares. Mas para Carla, embora a prática neiros iraquianos por soldados americanos, na prisão seja condenável e proibida – tanto na Constituição de de Abu Ghraib, causaram indignação no mundo todo. vários países quanto na Declaração dos Direitos Hu- E, além dos exemplos conhecidos, há aqueles que não manos –, ainda estamos um pouco longe de chegam à imprensa. Policiais que abusam da vermos seu fim. “Falo dos bandidos em rela- violência e fazendas que mantêm trabalha- “Porque uma ção a nós, civis. Porque uma pessoa que se- dores escravos não podem ser considerados pessoa que qüestra alguém e arranca uma orelha pra parte de um passado remoto. Foi para de- seqüestra mandar pra família, isso é uma tortura.”, diz. alguém e arran- nunciar os crimes cometidos durante a dita- Mas não são apenas os bandidos que tor- ca uma orelha dura militar e para lutar pela manutenção turam seus reféns. Em 20 de novembro de 2005 pra mandar pra dos Direitos Humanos que nasceu o Grupo o programa Fantástico, da TV Globo, levou ao ar Tortura Nunca Mais. “[Nossas] ações têm família, isso é uma matéria em que sargentos de um quartel de como imperativo ético denunciar o que ocor- uma tortura” Curitiba, recém-promovidos, eram torturados reu nas prisões durante a ditadura militar e por seus superiores. As agressões consistiam em o que ocorre na atualidade, como conseqüên- choques elétricos, aplicações de ferro de passar na pele, cia da preservação dos métodos e das práticas auto- afogamento com baldes d’água e chineladas na planta ritárias e arbitrárias, para que, algum dia, todos pos- dos pés. Os sargentos envolvidos declararam que eram samos dizer ‘Nunca Mais’ à tortura e à impunidade”, apenas “trotes”. O comando do exército condenou as afirmam em seu site (www.torturanuncamais-rj.org.br).
  • 13. Impressões 13 A estudante Camila Nascimento Azevedo achou a ciência de que o mais terrível que conseguimos imagi- exposição chocante. “Você não pensa só no que nar ainda está muito longe de alcançar a realidade. está vendo, no sofrimento das pessoas que es- Para Álvaro Gonçalves Antunes Andreucci, profes- tavam ali, mas que muitas pessoas foram parar sor de História Medieval da UFSC e de História do Siste- ali simplesmente por pensar de uma maneira diferente.” ma Penal do Cesusc, mesmo conhecendo a maioria dos Camila tem um parente que foi torturado na épo- instrumentos antes da visita, a impressão que se tem é ca da ditadura militar. Ela conta que seu tio, apesar sempre chocante. “É desalentadora a capacidade que o de ter alguns amigos subversivos, não estava engaja- ser humano tem de dilacerar outra pessoa, infligir dor ao do em nenhum movimento ou luta política. Um dia, extremo em alguém, com requintes de crueldade”, diz. a polícia apareceu na casa em que ele morava, onde Mas ele vê uma importante função social na exposição: o alguns amigos lhe faziam uma visita. Os policiais le- choque pode servir de estímulo e inspiração para que as varam todos para a delegacia. Ele sofreu vários tipos pessoas lutem contra os abusos de poder e a violência. de tortura. Entre eles, Camila lembra apenas que o tio Os últimos instrumentos a serem explicados são levou choque no órgão genital. Depois da sessão de tor- os cintos de castidade, usados mais para prevenir os es- tura, ela conta que os presos eram colocados numa tupros e a reprodução dos escravos. Mas as peças eram cela pequena em que não era possível manter-se es- de ferro e podiam machucar, além de não serem raras ticado. Sempre que dormiam, vinha um policial e os as vezes em que os senhores deixavam seus escravos chutava para mantê-los acordados. Foi num desses com a peça durante dias, fazendo com que eles fossem chutes que o tio de Camila xingou o policial, e o amigo obrigados a fazer suas necessidades ali. Carla encerra que estava na cela ao lado o reconheceu pela voz. Sus- sua fala com uma reflexão: “Eu queria que vocês avali- peita-se, então, que o amigo tenha feito algum acordo assem o que nós, seres humanos, somos. Nós somos com os policiais para que soltassem o tio de Camila. o único animal que mata por prazer, porque o animal Para a estudante Isabel Cristina Hentz, o que selvagem mata ou para se defender ou para comer.” mais causa impacto é o fato de que todas as peças da exposição são autênticas. “Ficar imaginando que teve uma pessoa já numa cadeira dessas morrendo ali é...” Ela não completa a frase, mas não é necessário. A aproximação com a atrocidade é direta, comple- tamente diferente da distância que nos colocamos ao estudar sobre essas práticas ou ao ver a notícia de um crime bárbaro. É a materialidade que toca, incomoda. Esforçamo-nos para imaginar as dores que as pessoas que passaram por ali sofreram, mesmo tendo cons-
  • 14. 14 “Atenção passageiros, acomodem-se, porque vai demorar!” A crise aérea transformou o ambiente do aeroporto. Aqui, observações de uma passageira que mesmo assim conseguiu viajar algumas vezes por Fernanda Dutra Montagem: Juliana Sakae. “A Noite Estrelada” Van Gogh, Foto: Roberto Moreira É um exercício de paciência. Você logo pôde viajar, muitos pães de quei- eram atualizadas. Havia um receio de di- sempre imagina uma espera mais jo e um excesso de parágrafos lidos. zer a verdade: “Vai demorar, meu senhor”. longa do que realmente é. Assim O primeiro incômodo é no check- O receio é justificável. Não é difícil se prepara para enfrentar tédio, cansaço, in. Quem chega mais cedo, consegue perder o controle diante da crise. Em sono e fome. E, ao contrário dos passagei- pegar lugares nos vôos de horários mais dezembro, na sala de embarque de Con- ros de ponte-aérea, tenho algo que ajuda cedo, que estão atrasados. Como gonhas, um passageiro idoso Havia um a me conformar: mesmo que passe 12 muita gente desiste, sempre há começou a gritar com um fun- receio de horas viajando de avião, sei, é inevitável, lugar. Assim, se o primeiro des- cionário da TAM. O filho se colo- dizer a de ônibus eu gastaria o triplo do tempo. tino é Manaus, com conexão em cou ao lado do pai e, das agressões Minha primeira viagem durante a São Paulo, é possível que o vôo verdade: “Vai verbais, partiram para empurrões crise foi no começo de novembro. Saí se torne Florianópolis–Manaus, e socos. Aquela calma impassível, demorar, correndo de casa, esqueci a escova de com co-nexão em Curitiba, meu senhor” o sorriso colado no rosto, os ca- dentes e, quando cheguei no aeroporto, São José do Rio Preto, Brasí- belos e a roupa aprumados. O descobri que não tinha nenhum avião na lia, Rio de Janeiro e Salvador. jovem atendente se despojou de pista e dificilmente teria algum tão cedo. Em novembro, a crise era novidade. toda a autoridade da figura impecável Foram sete horas no aeroporto de Os passageiros se angustiavam em busca para brigar com pai e filho. As pessoas Florianópolis. Três emissoras de tele- de informações, os atendentes das com- em volta, surpresas, demoraram a agir visão, uma equipe do Figueirense como panhias aéreas pouco tinham a dizer. Di- e separar os três. Não consegui tirar da companhia de espera, uma única co- ante do desconhecimento, as televisões que minha cabeça a gravata listrada jogada nhecida que teve mais sorte que eu e informam sobre chegadas e partidas não no chão, como que um símbolo do caos.
  • 15. 15 No mês de abril, passados cerca de funcionando. Ouvi diversos sinais para UM GRANDE NEGÓCIO seis meses, muita coisa tinha mudado. Já chamar os comissários de bordo. Estava não havia mais dezenas de passageiros sentada perto de onde os funcionários fi- Não dá para esperar por amen- doim e barra de cereal ou sanduíche cercando cada atendente. Os funcionários cam e pude ouvi-los pedindo explicações de queijo e presunto, os habituais de aeroportos à comissária-che- lanches das companhias aéreas. As- aprenderam a fe. Um passageiro sim, a única opção dos passagei- agir diante do se irritou e disse ros são as lanchonetes dentro das caos. As tele- que não decolaria salas de embarque. Um sanduíche natural pode custar até 15 reais. visões são atua- sem saber o que Um café pequeno chega aos $3,50. lizadas, mas estava acontecen- Abrir lanchonetes e cafés é um não só com as do. A suspeita de bom investimento. O grupo GRSA, do usuais men- haver problemas setor alimentício, aplicou R$1,8 milhão sagens “Em- técnicos no avião para ampliar a Casa do Pão de Queijo e abrir duas unidades do Café Ritazza barque Imedi- disseminou-se. no aeroporto de Congonhas, por onde ato”, “Avião no Os comentários de passam 70 mil consumidores por mês. pátio”. As novas que talvez o pro- Os estabelecimentos ainda incluíram frases são “Vôo blema fosse mais em sua estrutura mesas com peque- atrasado”, “Sem grave eram ditos nos sofás e poltronas confortáveis, atentas ao incômodo da espera. previsões”, em voz alta, para Disponível em: www.estadao.com.br Com a crise aérea, o pro- “Vôo cancela- todos ouvirem. jeto da Infraero de implantar shop- do”. O passageiro não corre mais atrás de Quando enfim a decolagem foi au- pings nos aeroportos ganhou força. informações, sabendo que pouco adianta e torizada, o capitão informou que o apa- Em nove capitais, o Aeroshopping muito estressa. Senta, cansado, e espera. relho responsável pela sustentação do ar já funciona, sendo que em Brasí- lia e Porto Alegre até cinema Multi- condicionado quando o avião estivesse em plex tem. Mais sete aeroportos de- solo estava quebrado, mas não afetava as Medo de voar vem ganhar shoppings neste ano. condições de vôo. A viagem foi tranqüila. O Manifestações de desconfiança dos acidente da Gol é marcante para passageiros e até mesmo de alguns fun- os que viajam de avião. Quem pre- cionários quanto às informações das cisa utilizar o transporte aéreo, companhias aéreas são cada vez mais procura não lembrar. Mas a imprensa tem comuns. Grandes jornais e emissoras de denunciado a precariedade da estrutura televisão questionaram sobre a existên- aeroportuária brasileira. O conhecimento cia de um buraco negro no espaço aéreo, das falhas da Infraero, somado à tensão da ou seja, uma área em que não é possível crise aérea, acaba por trazer à tona o medo. monitorar os aviões. A Infraero promete Em um dos vôos que peguei, enquan- investimento, mudanças. Mas até ago- to esperávamos a autorização para deco- ra não se notam melhorias estruturais. lar, o ar condicionado do avião não estava Montagem: Juliana Sakae. “A Noite Estrelada” Van Gogh, Foto: AFP
  • 16. 16 para ela. Ela fala com experiência, ges- para o Natal, era quase meia-noite. O vôo Amizade de sala de embarque ticulando, serena. Então, ele enfim ouve para São Luiz do Maranhão foi chamado H á quem prefira ouvir música, o chamado do vôo e se despede. Deseja e a sala de embarque tomada pelo ba- ler, comer. Outros aproveitam o boa sorte e ele sorri em agradecimento. rulho de palmas e gritos de comemora- Quem toma o mesmo vôo acaba ção. Parecia festa de família: os passagei- tempo para conhecer pessoas. O primeiro assunto é o que existe em co- por se unir. Em busca das mesmas in- ros se cumprimentavam e se abraçavam. mum: a espera. “Quantas horas você está formações, os passageiros se ajudam. Era o fim de uma espera de dez horas. No aeroporto de Brasília, a im- esperando, vai para onde, fazer o quê?”. Um jovem conversa com uma senho- pressão que dá é a de que grandes ami- ra. Ele fala sorrindo, com o dorso virado zades foram feitas. Faltavam dez dias Cronologia da Crise Aérea 14 de novembro de 2006 29 de setembro de 2006 O aquartelamento 29 de outubro de 2006 21 de outubro de 2006 Acidente do jato Legacy Controladores que trabalham no turno Operação padrão Pane no sistema O vôo 1907 da Gol, de Manaus da madrugada foram impedidos pela Ao invés de controlar 20 vôos, os Os aparelhos da torre para Brasília, se choca com o Aeronáutica de voltar para casa e os 149 controladores passaram a 14, como de controle de Curitiba, jato Legacy. Das 154 pessoas a funcionários do setor foram convoca- nas regras internacionais de avia- Cindacta-2, entraram em bordo do vôo doméstico, não há dos ao trabalho, sob pena de prisão. O ção. Em um final de semana, mais pane. Na região Sul, 146 sobreviventes. Em investigações aquartelamento durou 20 horas, mas não de 600 vôos foram atrasados e a vôos foram atrasados em posteriores, surge a suspeita de impediu atrasos. espera chegou a 20 horas em alguns até três horas. culpa dos controladores de vôo. aeroportos. 30 de março de 2007 24 de março de 2006 Motim dos controladores 21 de dezembro de 2006 Nevoeiro 5 de dezembro de 2006 A paralisação começou na torre Apagão da TAM Durante três dias, o aeroporto Pane de rádio de comando de Brasília e afetou o Atrasos e cancelamentos de vôos no de Cumbica (SP) fica fechado Equipamentos da torre de controle aéreo do país. Todos os país inteiro, devido à chuva em Con- devido a chuvas e nevoeiro. O controle de Brasília sofreram aeroportos ficaram fechados. Os gonhas e a seis aviões da TAM em aparelho que permitiria pouso e pane. Assim, vôos e decola- controladores exigem melhores manutenção. 340.000 passageiros decolagem está quebrado. Vôos gens tiveram que ser suspen- condições de trabalho, a desmili- deixaram de embarcar pela prática de têm de ser desviados para sos por um período de quatro tarização do tráfego aéreo, a me- overbooking da TAM, que controla 48% outros aeroportos e a espera horas, além de 200 vôos lhoria de equipamentos e a criação dos vôos domésticos no país. chega a 23 horas. cancelados. de uma carreira para a categoria.
  • 17. 17 A sereia é representada na literatura, no cinema e na arte de formas diferentes. Conheça a história desta figura mitológica e a polêmica em torno de sua verdadeira imagem. por Juliana Sakae “Ulisses e as Sereias” Herbert James Draper, 1909
  • 18. 18 A o sul da Espanha, à beira do Medi- tão Ulisses, aconselha ela que se amarre sexual original intrínseco à figura mito- terrâneo, conhecem-na por Sirena. ao mastro do navio com todas as cordas; lógica criada antes de Cristo somem no O rio que atravessa o penhasco do mas, antes, deve ordenar aos marinheiros conto de Hans Christian Andersen para Vale do Reno a tem por Loreley. No encon- que coloquem cera em seus ouvidos e não virar história infantil. Na literatura, a in- tro das águas do Rio Negro e Solimões, na o desamarrem sob hipótese alguma. Ulis- gênua pequena sereia morre – transfor- Amazônia, é chamada de Yara. A sereia ses passa, então, por um local cheio de ma-se em espuma, por amor ao príncipe, é uma figura mitológica, nascida deusa “sereias rodeadas de ossos humanos pu- enquanto Yara, Sirena, Loreley e Ondina grega, com corpo de ave e cabeça de mu- trefeitos cobertos por pele seca”. O canto buscam vingança à figura masculina de- lher. A beleza sedutora conhecida hoje, de sirênico das mulheres, apelando à sensu- vido à violência anterior. A versão anima- da da Walt Disney para o cinema modifi- corpo semi-nu e cauda de peixe, nada tem alidade, enfeitiça-o. O capitão debate-se em comum com a criatura da Antigüidade. e implora aos marinheiros que desfaçam cou o fim para um “felizes para sempre”. Diz a lenda que de uma briga entre as amarras. Com os conselhos da deusa o herói Hércules e o deus Aqueloo – um Circe, entretanto, o navio passa a salvo peixe com cauda de cobra, nasceram três pelas vingativas sereias. sereias: Leucotea, a deusa branca; Lígia, Sereia no Cinema a de voz clara e Parténope, a virgem. Hér- cules, na luta, teria arrancado o chifre de A saga de Ulisses serve de inspira- Aqueloo; do sangue derramado saíram ção para lenda de Sinbad, trazida ao ci- nema pelo Estúdio Walt Disney em 2003. três criaturas metade pássaro, metade mulher. A única característica em co- Os elementos da história são fiéis ao livro O Canto das Sereias mum com a sereia do século XXI é o seu “Odisséia”: uma deusa conselheira, se- Tem-te, honra dos Aqueus, canto, chamado sirênico. A voz, aguda e reias tentando enfeitiçar marinheiros e a harmoniosa, enfeitiça o sexo masculino e sensualidade delas misturada ao desejo famoso Ulisses; o atrai à morte. de vingança. Na versão cinematográfica Nenhum passa daqui, sem que de “Sinbad – A Lenda dos Sete Mares”, po- Sereia na Literatura das bocas rém, os marujos são salvos pela presença Nos ouça a melodia, e com A origem da sereia aquática se deu de uma mulher na expedição, a quem o deleite no mesmo país da voadora. Homero, fi- canto das sereias não faz efeito. A adap- E instruído se vai. Consta-nos gura da literatura grega, descreveu em tação da mitologia grega original para o “Odisséia” uma forma de sereia diferen- cinema trouxe sempre elementos novos. quanto te de Leucotea, Lígia e Parténope. O li- Desde conchas que escondem os seios O céu vos molestou na larga vro conta a aventura de Ulisses voltando até a personalidade, como no famoso “Pe- Tróia, quena Sereia”, lançado pelo mesmo estú- para sua terra natal, Ilha de Ítaca, após Quanto se faz nos conta n’alma a Guerra de Tróia. No caminho, o nave- dio de Sinbad, em 1989. O filme conta terra gador é informado por Circe, “a divina a história de uma sereia pré-adolescente (“Odisséia”, Canto XII, Homero) entre as deusas”, que irá encontrar cria- – boazinha – que quer subir à superfície e turas mortais chamadas sereias. Ao capi- virar humana. O desejo vingativo e apelo
  • 19. 19 Sereia”, alguns artistas buscam a criação de um ser cuja existência seja próxima A Pequena Sereia de Andersen Loreley, a sereia alemã do real. O escultor Juan Cabana, fasci- A pequena sereia de Andersen apaixo- No Vale do Reno, na Alemanha, há uma nado por criaturas estranhas, tem uma na-se por um príncipe náufrago e bus- rocha chamada “Loreley”. Devido a seu longa coleção das chamadas “sereias fiji”. ca viver como mortal ao seu lado. Para tamanho, o local produz eco, o que está Essa criação artística, originada nas Ilhas isso, a sereia doa sua voz a uma bruxa, associado ao canto da sereia de uma an- Fiji por japoneses, é a escultura de se- que lhe dará, em troca, a forma huma- tiga lenda. Segundo Clemens Brentano, reia com material orgânico, como partes na. Mas, para que esse estado se torne o primeiro homem a escrever seu teste- de peixe. Originalmente, os artistas cos- perpétuo, a pré-adolescente deve fazer munho, uma mulher teria cometido sui- turavam cabeça de macaco em corpo de com que o príncipe se apaixone por ela, cídio nas águas do Rio Reno por um amor peixe e, através da fotografia, difundiam o que não acontece. A sereia, agora me- não correspondido. Transformada em se- a “existência” da criatura. Juan Cabana nina e muda, quer retornar ao oceano; reia, Loreley passa os dias cantando sua ficou conhecido após o tsunami de 2004, para isso, terá de matar o príncipe. Por tristeza. Brentano, assim como os poe- quando correu pela internet um “acha- amor, a sereia não o faz, transformando- tas Heinrich Heine e Friedrich Silchers, do arqueológico”: uma sereia fossilizada, se em espuma. ouviu o canto ao passar pela rocha. A se- do tamanho da palma da mão, teria sido reia, com sua voz, atrai os homens para encontrada em Chennai, na Índia. A foto a morte, como vingança por seu amor Iara, a sereia brasileira fora retirada do site do artista e, junto não correspondido. com um texto criativo, percorreu milhares A lenda indígena, registrada pelos pri- de caixas de e-mails. Outras sereias fo- meiros portugueses que navegaram o é repetida na lenda brasileira ram “encontradas” pelo mundo, inclusive rio Amazonas, conta que existia uma linda mulher (Yara), alemã (Loreley), espa- no Brasil (ver vídeo: www.youtube.com/ chamada Yara. Os cabelos eram longos e escuros, nhola (Sirena) e africana. Em watch?v=dICCBKqbm1M). Brincadeiras os olhos castanhos. Sua beleza e conduta exemplar 1909, o inglês Herbert James assim, porém, parecem não incomodar geravam inveja na aldeia. Era, também, a preferida Draper representou a sereia o autor (veja entrevista). Cabana diz que do Tupã. Um dia, à beira do Rio Negro, Yara perce- dos mares de Ulisses: mu- sua intenção é, justamente, a de retornar beu a presença de homens, que a violentaram. A lheres sensuais com rabo de à crença em sereias e monstros marinhos. índia, desmaiada pela dor da agressão, foi jogada peixe sobem ao navio grego Walmor Corrêa, artista florianopo- no encontro das águas do rio Negro e Solimões. Se- enfeitiçando os marujos com litano radicado em Porto Alegre, tam- gundo a lenda, Yara então ganhou a cauda de peixe. seu canto. Já John William bém busca uma representação realista Assim, não mais poderia ser abusada sexualmente. Waterhouse, também inglês, da sereia. Ao De qualquer forma, manteve o tronco de mulher, por pintou dez anos antes a mes- viajar à Amazô- vingança: com meio corpo à superfície, a sereia atrai ma cena de Homero, porém nia, Corrêa per- os homens para dentro do rio e os conduz à morte. sem a mesma beleza sirênica cebeu a forte de Draper. Baseado na mi- crença dos ha- Sereia na Arte tologia dos deuses gregos, Waterhouse bitantes por len- Cabelos claros ou negros, cauda de peixe retratou o navio de Ulisses sendo ata- das mitológicas. ou de cobra, corpo de mulher ou de pás- cado por três sereias com corpo de ave. Começou saro. A idéia clássica, da mulher sensual Embora a mais famosa versão seja a a criar a série com cauda de peixe e cabelos compridos, representada pela Disney em “A Pequena Unheimlich -
  • 20. 20 Imaginário Popular Brasileiro. Nela, cria a ENTREVISTA anatomia de seres inexistentes, como a sereia Juan Cabana é considerado o artista mais polêmico Ondina, sereia da mitologia alemã junto com na criação em cima da Loreley. Através de estudos, pesquisa e até mitologia. Cabana produz visita a médicos e biológos, Corrêa esboça no Ponto-e-Vírgula - Como você se sente suas esculturas com papel o funcionamento do organismo de cria- com sua obra popularizada ao redor pedaços de peixe e afirma turas. A anatomia como forma de expressão do mundo não como arte, mas como que o lugar de suas obras é, uma possível criatura real? artística é inspirada nas obras de Leonardo sim, na praia. Cabana - As pessoas, sem meu conhe- DaVinci. O artista italiano produziu 600 fo- cimento, retiram fotos do meu web- lhas com milhares de desenhos a partir da site (www.thefeejeemermaid.com) e dissecação de animais. O resultado de Wal- criam histórias da descoberta de se- mor Corrêa é curioso; é possível acreditar em reias e monstros marinhos em outras uma possível existência do ser desenhado partes do mundo. Minha intenção é na tela. Os órgãos, especificados na lateral, trazer de volta a crença em sereias e detalham a obra como se esta fosse, por últi- monstros. Minhas criações são feitas usando pele, dentes e ossos de peixe mo, arte. Fosse, sim, a réplica de uma sereia “Antiga Sereia”, de verdade. Poderia ser mais real que Ondina dissecada, assim como em Da Vinci. da coleção de isto? Recebo e-mails quase todos os A arte pode ser um meio de represen- Juan Cabana dias, de pessoas de todas as idades, tação de lendas e mitologias. Assim foi nos questionando-me se sereias realmen- quadros de Draper, como sereias aquáticas, te existem. ou de Waterhouse, como sereias com asas, ;- Você coloca sua criação em lugares e nos filmes de “Sinbad” e “A Pequena Se- que são considerados, na mitologia, o reia”. Mas também pode contribuir na ma- habitat natural delas. Cabana - Sim, tento encontrar um ce- nutenção da crença nesta mitologia, como nário natural para as minhas sereias. o livro de Homero, como Walmor Corrêa e Viajei por toda Flórida procurando pe- Juan Cabana ou como os peixes com ca- las melhores praias para as sereias. beças de macaco das Ilhas Fiji. O canto da ;- O que você acha da reação das pes- sereia, porém, já não fascina mais. Rafael soas ao ver uma sereia em uma praia Gubert tem quatro anos, mora na cidade de e não em um museu? Blumenau em meio a prédios que beiram o Cabana - Bom, a sereia fica melhor Rio Itajaí-Açu. Para infelicidade de Cabana, na praia, mas isto apenas para tirar Retirado do site: www.thefeejeemermaid.com fotografia (normalmente está deserto Walmor e – provavelmente – Homero, Ra- quando tiro fotos). Já as sereias no Cabana - Geralmente de mim mesmo. fael diz: “sereia nem existe, só nos livros!”. museu podem ser vistas por muitas Se você procurar na minha galeria de Osvaldo Pereira, 60 anos, é pescador de pessoas, é isto que quero. Meu sonho sereias, vai ver que elas são diferen- camarão da praia do Balneário de Floria- é abrir o Museu de Sereias e Mons- tes, originais. Eu tento não repetir a nópolis. Ele afirma que “sereia nunca exis- tros Marinhos, o único do mundo com obra. Gosto também de estudar dese- tiu nem nunca vai existir”. Mesmo assim, criaturas produzidas com peixe de nhos antigos de monstros marinhos ressalta: “se pescar um dia, eu aviso”.... verdade. assim como mapas ancestrais. Tinha ;- Onde você encontra inspiração para uma época que todo mundo acredita- este tipo de arte? va que eles eram reais.
  • 21. 21 ENTREVISTA Walmor Corrêa, catarinense radicado no Rio Grande do Sul, expôs sua obra no Equador, Áustria, Estados Unidos, Chile, Argentina, mas no Brasil ainda é pouco reconhecido. Formado em arquitetura, Corrêa cria através de estudos, pesquisas e, muitas vezes, consulta a médicos e biólogos. Ponto-e-vírgula - Como surgiu a idéia de visualizados. Portanto, uma quantidade criar a anatomia de criaturas lendárias? considerável de leitura é a primeira parte Corrêa - Na série Unheimlich - Imáginario do projeto. Depois, com o auxílio dos es- Popular Brasileiro, respondo a perguntas boços, uma visita a especialistas médicos que fiz à natureza quando criança de acor- e biólogos ajuda a concluir este processo do com a minha própria interpretação dos criativo. Também foi necessário viajar até “Ondina”, paradigmas da ciência. A idéia surgiu em os lugares onde a tradição oral mantém desenhada uma viagem à Amazônia onde muitos ha- vivas estas lendas, onde é possível coletar por Walmor bitantes daquela região cultuam algumas as estórias e os dados a partir dos quais, Corrêa lendas. Estas obras também estão relacio- tenho mais subsídios para o meu traba- nadas com obras dos artistas viajantes do lho. século passado, que sempre me desperta- ;- Você acredita ser possível existir uma ram interesse e foram desde sempre moti- criatura como a sereia? vo de pesquisa em meu trabalho. Em suas Corrêa - Em 9 de novembro de 2006 nas- anotações sobre as expedições ao novo ceu um “bebê-sereia”, na província de Hu- mundo, citavam a existência de seres fan- nan, no sul da China. tásticos como Afonso dÉscrangnolle-Tau- ; - Qual foi sua experiência mais interes- nay, “(...) um peixe quem tem pedras no sante entre as criações? lugar dos miolos, um peixe monstro que Corrêa - A Cachorra da Palmeira, por ser não tem intestinos,um molusco que mens- uma lenda recente. Diz-se que quando o trua como as mulheres(...)” - Monstros e Padre Cícero faleceu, em Juazeiro, no Ce- Monstrengos do Brasil. ará, toda a população local ficou de luto ;- Como funciona o processo de criação de pela morte do sacerdote. Menos uma moça uma obra sua? Entre concepção, pesqui- que, desolada com a perda de uma cachor- sa, desenho... rinha de estimação, afirmou que preferia Corrêa - Como um artista tem liberdade vestir o luto pelo seu animalzinho e não suficiente para explorar profundamente pelo santo homem. Minutos após proferir seu trabalho, antes de partir para a tela, tais palavras, como um castigo de Deus, é feito um estudo bastante minucioso. a menina começou a uivar, morder e a Através da pesquisa de diferentes fontes é correr, vindo em seguida a se transformar possível que estes animais comecem a ser numa cadela, a Cachorra da Palmeira.
  • 22. Ash-a-ee 22 por Pedro Santos A história da fruta amazônica que já conquistou o Brasil e tem tudo para seduzir o mundo, com ou sem granola. I açã é filha do cacique. A tribo está cres- contrado ao pé da planta. Rosto sereno, olhos cendo, os alimentos escasseiam. “A vida inertes voltados para cima. Da palmeira, está difícil, não conseguimos comida”, re- saíam cachos com pequenos frutos pretos, clamam os índios da tribo. O cacique, Itaki, que são apanhados a mando do cacique. não vê outra escolha: “a partir deste dia, toda Amassados em vasos de barros, davam um criança que nascer será sacrificada”. O que vinho avermelhado. Essa foi a solução para a ele não desconfiava era que a regra teria de tribo, que dali em diante não teria mais pro- ser aplicada à sua própria família: Iaçã está blemas com a falta de alimentos e nenhuma grávida. Tempos depois, ela dá à luz. A cri- criança teria de ser sacrificada outra vez. A ança é uma menina linda que, assim como lenda é amazônica. No lugar em que se pas- todos os outros recém-nascidos da tribo, é as- sou a história, hoje se localiza a cidade de sassinada. Iaçã não se contém. Chora todas Belém, no Pará. as noites e pede, ininterruptamente, ao deus E o fruto foi batizado pela inversão do Tupã que mostre uma maneira para resolver nome da índia Iaçã - em tupi, yasa´i quer di- a falta de comida na tribo, o que evitaria a zer “planta que chora”. O alimento que salvou morte de outras crianças. Em uma noite de a tribo é o açaí. O gosto natural do açaí não luar vistoso, ela ouve um barulho. Choro de é uma opção muito acessível para quem não criança. mora próxima a uma Euterpe oleracea, tam- Sai correndo de sua oca em direção ao bém conhecida como açaizeiro. Essa palmei- som. Não acredita no que vê. É sua filha, ao ra é nativa das várzeas da região amazônica, pé de uma palmeira alta e esguia. Correu. e cada tronco pode gerar até quatro cachos, Abra-çou. Sorriu... Chorou. A filha desapa- que, por sua vez, produzem de três a seis qui- rece e Iaçã abraça-se à palmeira. Fica ali por los de açaí. O fruto é característico: pequeno, dias e dias, até que perde todas as forças, cai arredondado e arroxeado - ainda existe o açaí e morre. No dia seguinte, o corpo dela é en- branco, menos conhecido em outros lugares
  • 23. 23 O Pará é o maior produtor de açaí do mundo. Em 2005, a produção brasileira somou 104.874 toneladas, das quais 87,8% O caroço é proporcionalmente grande, deixando pouco es- foram coletadas no Pará – o que dá 92.088 toneladas. Os dados paço para a polpa, que representa 17% do peso total. O açaizeiro são do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, o IBGE. A é uma planta em que praticamente tudo pode ser aproveitado. propósito, os paraenses têm o hábito de misturar açaí à farinha de As fibras podem ser destinadas a esteiras, chapéus e sacolas. tapioca para acompanhar o arroz, o peixe frito, o charque e pratos O estipe é aproveitado como lenha ou matéria-prima para da culinária regional, além dos sucos e do açaí servido em tigelas. a construção de casebres e pontes. As folhas são usadas como É difícil, com palavras, explicar o gosto que o fruto in natura tem. coberturas de casas, adubo, ração animal e são transformadas Podemos dizer que é algo próximo, digamos, ao amargo, mas não em vassouras. Com as raízes, fabricam-se alguns remédios. E, ácido. Acontece que a fruta decompõe-se muito rápido. Por isso, com os frutos, cultivam-se medicamentos, álcool, adubo, ali- em lugares mais distantes das regiões produtoras é mais comum mentos e o vinho. a polpa congelada, servida em uma tigela depois de ser batida no liquidificador com outras frutas. Tabela nutricional para 100g de açaí Para fazer o açaí na tigela, os ingredientes mais típicos são a polpa do açaí, o xarope de guaraná – que “adocica” e é energético –, a banana e a granola (mistura de pedaços de frutas secas, passas, amêndoas, aveias e outros cereais). O resultado é um alimento que Valor energético ......................... 274 kcal cada vez conquista mais adeptos em diferentes lugares do Brasil e Cálcio......................................... 286 mg do mundo. Uma antiga fruta amazônica que se popularizou, por quê? Como explicar a “febre” que o açaí na tigela anda causando por Fibras ....................................... 34 mg aí? As respostas passam por algumas hipóteses. Carmen Trindade, Proteínas ................................... 13 mg professora da área de Engenharia de Alimentos, na Universidade de São Paulo (USP), supõe que um dos motivos da divulgação favorável Sódio.......................................... 56,4 mg do açaí está na própria natureza do alimento. “É uma fruta exótica, Potássio .................................... 932 mg com cor bastante atraente”, diz. Outra hipótese levantada pela professora é o sucesso que a Magnésio.................................... 174 mg floresta amazônica faz mundo afora. “O mundo resolveu cultuar a floresta amazônica e, obviamente, tudo o que vem dela. Assim, Vitamina C ................................. 17 mcg a aceitação dos produtos amazônicos é enorme”. De fato, o fruto Vitamina E ................................. 45 mcg começa a fazer sucesso em outros países, onde não é apenas usado como alimento, mas transformado em xampus, sabonetes e cremes; Ferro ......................................... 26 mg tudo à base de açaí. Em 2005, os Estados Unidos faturaram 3,8 Fósforo ....................................... 227 mg milhões de dólares com produtos originados do fruto. E não é só nos EUA: “Já fomos procurados por pesquisadores Lipídios ...................................... 17 g alemães interessados em estudar toda a cadeia produtiva da fruta, Glicídios ..................................... 36,6 g tamanho o sucesso que ela tem feito por lá”, diz Carmen, que é apreciadora do típico açaí na tigela, com granola, é claro.