O canhoto que se tornou um dos maiores dramaturgos brasileiros
1. ponto-e-virgula
Maio 2007 edição 2
O CANTO DAS SEREIAS
A sereia é representada na literatura, no cinema
e na arte de diferentes formas. Conheça a história
desta figura mitológica e a polêmica em torno de sua
verdadeira imagem
PLÍNIO MARCOS
O canhoto que escrevia com
a mão direita, era avesso à
escola e se tornou símbolo
da perseguição pela censura,
deixou-nos cerca de 40 obras
teatrais, além de diversos
outros textos
IMAGINAÇÃO A SERVIÇO
DA DOR
As engenhocas inventadas
para arrancar confissões e
executar condenados durante
a Idade Média percorrem o
país em exposição itinerante
2. ponto_e_virgula
[sumário]
MAIO 2007 EDIÇÃO 2
ESCRITORES
Adriana Seguro
Carolina Moura
Fernanda Dutra
Juliana Sakae
ESPAÇOS NESTA EDIÇÃO
Leonardo Gorges
Luisa Frey
04 17
Perfil Marina Veshagem
O Canto das Sereias Matheus Joffre
06
Pedro Santos
Cinema Rodrigo Tonetti
Thiago Bora
09
08 Imaginação a serviço da dor
Literatura EDIÇÃO
Fernanda Volkerling
30 “Atenção passageiros, Luisa Frey
14
Entrevista Marina Veshagem
acomodem-se.
28 Por que vai demorar!” DIAGRAMAÇÃO
Esporte Carolina Moura
22
26
Juliana Sakae
Ash-a-ee Thiago Bora
Viagem
35
CAPA
Fotografia Thiago Bora
36 ARTE FINAL
Criação Juliana Sakae
38 REVISÃO
Causos&Coisas Adriana Seguro
Lucas Sarmanho
Maurício Tussi
Rodrigo Tonetti
;
Florianópolis - SC
www.revistapontoevirgula.com
3. [car ta ao leitor]
A
ponto-e-vírgula nasceu no Dia da Men-
tira, mas é verdade! Vamos continuar pu-
blicando todo mês os textos e reportagens
com a maior concentração de ; por centímetro
quadrado.
Se em abril trouxemos Pinóquio para os
mentirosos, o público de maio não perde em
nada; nosso escritor Matheus Joffre explorou
o Dia do Trabalho sob um novo olhar em sua
crônica: o da infância. E, com estes mesmos o-
lhos, o espaço de fotografia faz qualquer mãe
to da
nçamen babar. Inclusive as noivas ganharam espaço na
ão de la oi de mentira!
oraç
Comem seção Causos&Coisas, que conta as origens de
não f
írgula:
nto-e-v algumas tradições do casamento.
po
Além dos temas que você encontra em
toda edição, trazemos um pouco de mitologia,
na figura controversa da sereia; a história e po-
pularização do tropical açaí; o ambiente e as
histórias dos aeroportos em plena crise e uma
viagem ao passado, através dos instrumentos de
tortura da Idade Média.
Leitura repleta de próclises e ênclises (vide
página 38) para todos os gostos!
A Redação
4. [per fil] 4
O Plínio Marcos
garoto não suportava a escola.
Canhoto, era forçado a escrever
com a mão direita, o que dificulta-
va o aprendizado. Plínio Marcos de Barros,
nascido em Santos, em 29 de setembro de
1935, levou quase 10 anos para comple-
por Marina Veshagem
tar o primário. Ironia ou não, anos depois
se tornaria um dos maiores dramaturgos
O canhoto que escrevia com a
que o Brasil já conheceu. Toda sua obra
mão direita, era avesso à escola e
foi manuscrita – com a mão direita, claro.
se tornou símbolo da perseguição
Ainda garoto, trabalha como fu-
pela censura, deixou-nos cerca de
nileiro, vendedor de livros, estivador
no cais de Santos, jogador de fute- 40 obras teatrais, além de diversos
bol e também para a Aeronáutica.
outros textos
Aos 16 anos, torna-se o palhaço
Frajola e passa a atuar como humo- nhar o pão de cada dia com o suor do
currado. Quando saiu, dois dias depois,
rista e ator coadjuvante. Em 1958, ini- próprio rosto é terrível. Você tem a sen-
matou quatro dos caras que estavam
cia uma verdadeira carreira de ator e sação de que é um exilado no seu próprio
com ele na cela. Fiquei tão chocado com
diretor no teatro amador santista, com país. Eu sei bem como é isso. Penei. Penei
esse negócio todo que escrevi a Barrela.”
forte influência do grupo de intelectuais muito. A minha sorte é que nunca cortei
O homem que nunca havia pensa-
ao qual pertencia a jornalista e escri- os laços com as minhas raízes. Fui ca-
do em escrever produz, em 1958, a peça
tora modernista Patrícia Galvão, a Pagu. melô. Voltei pra rua pra camelar. Não caí.
“Barrela”. Não houve preocupação com os
Não bebi. Não chorei. Nem perdi o bom-
E nasce o escritor... erros de português, nem com as palavras.
humor. Mas, sofri mais do que a mãe do
“(...) Dei o nome de Barrela, que é a
“Mas o destino daquele Plínio audaz e
porco-espinho na hora do parto, impedi-
provocador já estava traçado: não seria borra que sobra do sabão de cinzas e que, na
apenas mais um escritor provinciano, do de trabalhar. E ignorado por colegas,
época, era a gíria que se usava para curra.”
porém o grande dramaturgo a marcar com
que se diziam de esquerda, nas rádios e
A peça é montada ape-
seu texto vibrante e indignado toda uma
nas televisões. Mas, deixa pra lá. Essa
nas uma vez, em 1959, e logo de-
fase de nossa história teatral”.
sujeira sai no mijo, não tenho mágoas.”
(Narciso de Andrade, poeta. O texto foi pois, censurada por vinte e um anos.
Com a ajuda dos amigos, em 1966,
Em 1960, Plínio Marcos vai para
escrito pouco antes da morte
Plínio escreve e decide atuar em uma
de Plínio Marcos) São Paulo, onde inicia um trabalho dife-
nova peça, de sua autoria, chama-
rente: torna-se vendedor de produtos
da “Dois Perdidos numa Noite Suja”.
contrabandeados. Além disso, faz bi-
“Houve um caso, em Santos, que cos em peças de teatro e suas obras “Fiquei na moda. A Cacilda Becker,
me chocou profundamente: um garoto foi permanecem vetadas pela censura. quando viu a peça, comentou: Incrível!
preso por uma besteira e, na cadeia, foi Você conhece dez palavras e dez palavrões,
“Ser impedido de trabalhar, de ga-
5. 5
e escreveu uma peça genial. E várias o preço de nunca escrever para agradar os da. É difícil ter espaço nos jornais, encon-
peças minhas piaram na parada: Na- poderosos. Há dezessete anos tenho minha trar lugar para vender livro. Cheguei a ser
valha na Carne, Quando as Má- peça de estréia [Barrela] proibida. A solidão, expulso de vários lugares. É uma brutali-
quinas Param, Homens de Papel.” a miséria, nada me abateu, nem me desviou dade única. Eu nunca fui um escritor pro-
O texto de “Dois Perdidos numa Noite do meu caminho de crítico da sociedade, de fissional, morreria de fome se fosse viver
Suja”, milagrosamente, é liberado pela repórter incômodo e até provocador. Eu es- dos meus livros. Teria que acabar fazen-
censura. A atriz Tônia Carrero, através de tou no campo. Não corro. Não saio. E pago do milhares de concessões. Mas, camelô,
seu prestígio e influências, é quem con- qualquer preço pela pátria do meu povo.” ah!, isso eu sou bom. Vendo meus livros,
segue a liberação da obra (com a condição Diante da insistência da censura, o dra- dou autógrafos e prometo morrer logo
de atuar na peça). O mesmo não acontece maturgo se dedica a outros formatos, como para valorizar. Eu sou um escritor imor-
à peça “Navalha na Carne”, que é termi- o romance. Além disso, continua atuando tal, não da Academia Brasileira de Letras,
nantemente proibida pela Censura Federal. como colunista em diversos jornais e revis- mas porque não tenho onde cair morto.”
tas. Ele vende seus livros nas ruas, feiras Plínio Marcos falece em São Paulo,
Os anos de chumbo... de livros, restaurantes e portas de teatros. em 19 de Novembro de 1999, de falência
No ano em que a peça “Barrela” com- múltipla dos órgãos. Premiado em todas as
“O Plínio Marcos era chamado de marginal
pleta vinte anos de proibição (1979), um atividades às quais se dedicou, Plínio teve
e quase todas as suas peças foram
grupo de teatro denominado “O Bando” sua obra traduzida nas línguas francesa,
montadas por atores famosos, ou ditos
inicia a montagem do espetáculo. No ano espanhola, inglesa e alemã, estudada em
globais. Ser marginal é escrever sobre
marginais e excluídos? Não creio que seja seguinte, o texto é liberado e os atores ini- teses de sociolingüística, semiologia, psi-
isso. (...) Suas peças foram censuradas
ciam a luta. O elenco vende os ingressos na cologia da religião, dramaturgia e filosofia
na época da ditadura e perdeu vários
rua, a preços reduzidos. Shows antes do es- em universidades do Brasil e do exterior....
empregos por causa disso, mas ganhou
petáculo e debates ao fim são os meios en-
todos os prêmios possíveis e a mídia
contrados para levar as pessoas ao teatro.
sempre o tratou com mimo e prestígio.”
E, graças ao trabalho dos atores, a tempo-
(Leo Lama, filho de Plínio Marcos)
rada é um sucesso – foi assistida por mais
de 60 mil pessoas –, o que garante a Plínio
A partir de 1968, qualquer obra o Prêmio Mambembe de melhor produtor.
que leve o nome de Plínio Marcos é au-
tomaticamente censurada. A dita- Os últimos anos...
dura considera suas peças pornográ-
ficas e subversivas. O autor se torna A partir da década de 1980,
símbolo da perseguição pela censura. Plínio continua um trabalho de de-
Nos anos que se seguem, Plínio bates e palestras em universidades,
é preso algumas vezes e liberado teatros, clubes e praças públicas, re-
por interferência de vários artistas. alizado em diversas cidades do Brasil.
“Eu, há dezessete anos [1973], sou “Sou um camelô da literatura. Hoje
um dramaturgo. Há dezessete anos pago [1986] posso dizer que é muito difícil ain-
*Fotos retiradas de www.pliniomarcos.com
6. [cinema] 6
O cheiro invade as telonas em Per-
fume e O Cheiro do Ralo. Mas e
Cinestesia
se você puder sentir de verdade?
C
heiro de mulher. De perfume.
De ralo. Imagine uma sala de
cinema equipada com caixas de
odor, além das imprescindíveis caixas
de som. Essa idéia deve ter pairado
por Adriana Seguro
no pensamento de muitos especta-
dores, após assistirem aos longas O
Cheiro do Ralo e Perfume – A história
de um assassino, ambos lançados
este ano no Brasil. A imagem mental
do dispositivo pode ser patética: um
compartimento que expele, através de
pequenos furos, jatos de odores corres-
pondentes a objetos, pessoas e lugares.
Visão, audição... e olfato. Pode
parecer loucura, mas não é novidade.
A sala de cinema Family, em Forest
City, nos Estados Unidos, foi pioneira
em combinar as sensações olfativas
com as audiovisuais. Um ventilador es-
palhou a fragrância da água de rosas
contida em algodões e causou o efeito.
Depois disso, já se tentou de várias
formas criar um cinema com aromas.
Cerca de 50 anos mais tarde, o siste-
ma aromarama utilizava o ar condicio-
nado para dispersar os cheiros, mas
a difusão pela sala não era uniforme.
,
~
Sinestesia é a relaçao de estimu-
los sensoriais diferentes; por e-
~
xemplo, a visao com o olfato
7. 7
Perfume Perfume – A história de um assassino ( Alemanha/
França/Espanha, 2006. Direção: Tom Tykwer)
O filme conta a vida do órfão Jean-Baptiste ( Ben
Whishaw), possuidor de uma sensibilidade olfativa ex-
cepcional: ele é capaz de diferenciar todos os odores
Nos anos 1980, o sistema
à sua volta, e “farejar” a longas distâncias. Depois de
odorama de John Waters oferecia
aprender técnicas de perfumaria e superar o próprio
cartões individuais de Polyester,
mestre, produzindo deliciosas fragrâncias, o persona-
em que os espectadores raspavam
gem tem a idéia fixa de capturar odores permanente-
mente, inclusive o do corpo humano. Não há limites os números de determinada cena
e sentiam o cheiro corresponden-
para alcançar sua missão, e Jean-Baptiste inicia uma
jornada à procura de belas mulheres para realizar suas te. Mas além dos cartões disper-
obcecadas experiências. sarem a atenção de quem assistia,
Os dois novos longas estimulam as narinas dos espectadores
muitas vezes os odores eram es-
catológicos, como cheiro de vômito.
O Cheiro do Ralo (Brasil, 2006. Direção: Heitor Dhalia)
Lourenço (Selton Mello) é um sujeito que compra objetos Recentemente, a evolução tec-
antigos e alimenta um prazer bizarro em humilhar os seus já nológica possibilitou sistemas mais
decadentes clientes, necessitados de dinheiro. Ele compra de
modernos. Em 2005, a sala IMAX, em
tudo, com um dinheiro que brota em uma caixinha; delicia-
Viena, na Áustria, estreou um siste-
se ao explorar quem senta à sua frente, estabelecendo uma
ma da empresa Yellow Point, contro-
relação de poder. O personagem parece gostar apenas de
lado por computador. Logo depois, a
uma coisa: “a Bunda” o bumbum de uma garçonete (Paula
,
companhia japonesa NTT Communi-
Braun), pelo qual é aficcionado. Mas Lourenço não se satisfaz
cations criou máquinas que, localiza-
com o consentimento da moça: quer pagar um preço para
das embaixo das cadeiras da última
ver as nádegas. Além da “Bunda” o personagem possui outras
,
fileira do cinema, emitem aromas ob-
duas obsessões: o cheiro que vem do banheiro de sua sala e
tidos pela mistura de diversos óleos.
um olho adquirido em sua loja. Ele estabelece uma relação
Mas a idéia está longe de ser coroada
neurótica com o olho, que diz ser de seu pai, e para o qual
pelos cinéfilos de plantão. Os jatos
precisa mostrar certas coisas, como “a Bunda” Apesar de não
.
aromáticos criam uma atmosfera su-
se importar com os clientes, Lourenço faz questão de deixar
focante na sala e há muitos especta-
claro que o mal cheiro da sala é por causa de um problema
dores que preferem deixar o cheiro
no banheiro, com medo de que pensem ser ele quem exala
a cargo de sua própria imaginação.
tal odor. “Esse cheiro que você está sentindo, não sou eu, é do
ralo” repete.
,
O Cheiro do Ralo
8. 8
[ literatura ]
Vôo Noturno Antoine de Saint-Exupéry
(1900-1944), além de escritor,
por Carolina Moura foi piloto e participou da Segun-
da Guerra Mundial – morreu du-
A história de um vôo pioneiro; a crônica de um vôo terreno. Impressões sobre o se- rante uma missão de reconhe-
gundo livro do escritor francês Antoine de Saint-Exupéry cimento aéreo sobre Grenoble
e Annecy, na França. Durante
O
a década de 1920, comandou a
ônibus balançava. Vazio. Só assim ção que abriga tantas vidas; mas que, aos
rota Paris-Buenos Aires da So-
pude enxergar as páginas, sob um poucos, banaliza-se. E não só sobre o vôo:
ciêté Latécoère (atual AirFrance),
espectro de luz focado quase sobre sobre a coragem do piloto, a austeridade
que tinha como ponto de reabas-
o assento ao lado. Ainda escuro lá fora. En- do patrão, a carência do inspetor e a es-
tecimento o Campo de Pouso do
quanto lia sobre o dourado início da noite, pera da jovem esposa. A luta, a esperança
Campeche, em Florianópolis.
presenciava seu pálido fim. As palavras e a perda desta, a morte. Todas as coisas
Em Vôo Noturno, publica-
embalavam-me e transformavam meu lân- que constroem a vida: as estrelas entre as
do em 1931, o autor cita a es-
guido movimento em vôo suave. E, não as nuvens e a calmaria após a tempestade – e
cala na Ilha. Ainda hoje o bairro
palavras, mas o vôo, umedecia meus olhos o abismo depois dela.
do Campeche guarda a memória
e pensamento. A própria leitura fazia-me É o que leio, em outra viagem, en-
de Exupéry nos nomes de ruas
voar além dela, desviando minha atenção quanto o céu vai gradativamente perden-
e estabelecimentos, além das
para as pequenas paisagens, privando-me do a claridade e a noite nasce aos poucos.
histórias contadas pelos
de si. Tamanha é a sensibilidade com a Ônibus cheio. Através das palavras,
seus habitantes.
qual Antoine de Saint-Exupéry – o escri- agora vejo as estrelas, que se es-
A próxima e-
tor – descreve o Vôo Noturno que todas as condem por cima das nuvens
dição da Ponto-e-
sensações mundanas parecem entrar em escuras. Vejo a claridade da lua
Vírgula traz uma
seu enredo, e completá-lo. sobre elas. Sinto-me mergu-
reportagem so-
Recria-se a sensação de voar aos que lhando nas certezas do mun-
bre a passa-
já voaram. Aos que nunca, talvez se crie a do. Em queda rápida e se-
gem de Zé Perri
fantasia – ainda mais intensa. Eis a per- rena, como Saint-Exupéry – o
– como o escri-
feita leitura de viagem. Como quisera es- piloto – previu seu fim.
tor era chama-
tar voando e perceber, através do pioneiro
do pelos nati-
e entusiasta, a grandeza deste ato, desta
vos – pela Ilha de
conquista. Algo que se sente na primeira
Santa Catarina.
“Zé Perri”
vez, com os olhos presos à janela, às luzes
da noite brilhando como uma constela-
9. 9
Imaginação a serviço da dor
As engenhocas inventadas para
por Rodrigo Tonetti
arrancar confissões e executar
condenados durante a Idade Média
percorrem o país em exposição
itinerante
C
imaturidade, inocência ou estômago fraco mesmo, não
hego ao Teatro Álvaro de Carvalho (TAC), um
consegui ver todos os objetos. Lá pelo quinto deles, dei-
pouco adiantado; a turma que me acompanhará
xei meus colegas passarem à frente para verem mais de
na visita à Mostra Internacional de Instrumen-
perto; contentei-me com a visão de suas cabeças, en-
tos de Tortura da Idade Média só chegará dentro de
quanto fazia questão de não prestar atenção à explica-
30 minutos. Enquanto espero, alguns alunos de teatro
ção de como funcionava cada um dos 34 instrumentos.
chegam para a aula. Tiram os sapatos e atravessam
Com a chegada dos alunos do curso de História
as cortinas verdes que separam o saguão da sala e
da UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina),
o palco. Folheio um panfleto da exposição e troco al-
descemos ao porão do TAC, local em que estão expos-
gumas palavras com a coordenadora, Carla Andrade.
tos os aparelhos. Carla assume um tom professoral. A
Segundo ela, foram dez anos de pesquisa até re-
didática consiste em explicar como funciona cada peça,
unir os instrumentos de tortura. Em 1985, a Mostra
separando-as em dois grupos básicos: as usadas para
tornou-se itinerante na Europa. No final de 1997, veio
obter confissão e as que tinham por objetivo a exe-
para o Brasil para ficar apenas um ano, mas, devido
cução. Também cataloga a quais tipos de crime cor-
ao sucesso e à extensão territorial do país, já percorre
respondiam, fazendo, quando possível, uma brincadei-
cidades brasileiras há mais de nove anos. Confirmei,
rinha para descontrair o clima pesado do porão. Ela
assim, minha suspeita: havia já visitado a Mostra – par-
avisa que o porão fica bem embaixo da sala em que está
te dela – em Campo Grande, Mato Grosso do Sul. Na
sendo realizada a aula de teatro. Ruídos da movimenta-
época, cursava a 2ª série do Ensino Fundamental. Por
ção dos alunos nos surpreendem durante toda a visita.
10. Instrumentos
10
Rodrigo Tonetti
O
balcão de estiramento, usado em interro-
gatórios, é bastante conhecido por causa dos
filmes (o que não chega nem perto da sensa-
ção que a peça original desperta). O acusado era co-
locado no balcão, com os pés presos nas algemas de
ferro, as costas nos espinhos e as mãos amarradas
à corda onde então se aplicava a tensão. O corpo
poderia ser esticado em até 30 centímetros e, neste
caso, o acusado não saía vivo do interrogatório. Es-
ticando-se menos, havia a possibilidade da vítima
sair viva, mas com mutilações nas pernas e braços.
E como a imaginação do homem é fértil na
hora de desenvolver técnicas e objetos para infligir
sofrimento! Exemplo disso é a flauta do bagunceiro,
usada para beberrões e músicos. Trata-se de uma
tortura psicológica. O músico que não agradava ao
rei era preso pelo pescoço e pelos dedos à flauta
de ferro e então ficava na frente do castelo para
mostrar ao povo que não possuía talentos musicais.
Carla conta ainda como o conde Drácula con-
seguiu deixar a morte por empalamento ainda mais
terrível. A execução se dá através de um poste de
madeira que perfura todo o corpo da pessoa, en-
trando pelo ânus e saindo no pescoço, ao lado da
garganta. A morte geralmente é instantânea, mas o
conde desenvolveu uma técnica capaz de manter as
pessoas vivas por até três horas depois do empala-
mento. A peça exibida foi encontrada em seu castelo.
O garrote é o instrumento mais recente da ex-
posição, usado até 1975. O acusado senta em uma
cadeira e é amarrado com o pescoço preso a uma
argola de ferro dotada de um parafuso. Este para-
fuso entra pela nuca da pessoa e sai na garganta.
Esmaga cabeça: apertando-
se o parafuso, comprimia-se
a
cabeça do condenado até que
o crânio se fraturasse
11. 11
Rodrigo Tonetti
A morte não é necessariamente rá-
Instrumentos
pida; a agonia podia ser prolongada
de acordo com a vontade do carrasco.
Outra peça encontrada ali é A virgem de
Nuremberg, conhecida também como Dama
de Ferro. O instrumento de execução foi usa-
do pela primeira vez em 1515. A cabeça, en-
talhada em madeira, e o corpo, todo de ferro,
chamam a atenção pela suntuosidade. A bele-
za externa contrasta com a crueldade que se
revela por dentro. Facas são estrategicamente
colocadas para que não atinjam nenhum ponto
vital do condenado. Uma vez dentro do sar-
cófago, leva-se em média três dias para morrer.
Entre as práticas que me provocam mais re-
pulsa está a evisceração, na qual é feito um corte
profundo na barriga do ser humano, através do
qual, auxiliado por uma corrente com um gan-
cho na ponta, de meia em meia hora o carrasco
retira uma víscera do condenado até matá-lo.
Na internet, é possível encontrar in-
formações sobre uma grande variedade de
instrumentos de tortura e execução usa-
dos na Idade Média Européia (www.geoci-
ties.com/adtenebras/compendio.htm).
Virgem de Nuremberg ou
Dama de Ferro: como as fac
as do interior
do sarcófago não atingem pon
tos vitais, o condenado podia
levar até
três dias para morrer.
12. 12
Rodrigo Tonetti
Flauta do bagunceiro: tortura psicológica usada para
beberrões e músicos
tinuidade da Prática
Con
A
tortura foi amplamente usada na Inquisição, práticas e abriu sindicância para punir os responsáveis.
na Segunda Guerra Mundial e nas ditaduras Também imagens de torturas infligidas a prisio-
militares. Mas para Carla, embora a prática neiros iraquianos por soldados americanos, na prisão
seja condenável e proibida – tanto na Constituição de de Abu Ghraib, causaram indignação no mundo todo.
vários países quanto na Declaração dos Direitos Hu- E, além dos exemplos conhecidos, há aqueles que não
manos –, ainda estamos um pouco longe de chegam à imprensa. Policiais que abusam da
vermos seu fim. “Falo dos bandidos em rela- violência e fazendas que mantêm trabalha-
“Porque uma
ção a nós, civis. Porque uma pessoa que se- dores escravos não podem ser considerados
pessoa que
qüestra alguém e arranca uma orelha pra parte de um passado remoto. Foi para de-
seqüestra
mandar pra família, isso é uma tortura.”, diz. alguém e arran- nunciar os crimes cometidos durante a dita-
Mas não são apenas os bandidos que tor- ca uma orelha dura militar e para lutar pela manutenção
turam seus reféns. Em 20 de novembro de 2005 pra mandar pra dos Direitos Humanos que nasceu o Grupo
o programa Fantástico, da TV Globo, levou ao ar Tortura Nunca Mais. “[Nossas] ações têm
família, isso é
uma matéria em que sargentos de um quartel de como imperativo ético denunciar o que ocor-
uma tortura”
Curitiba, recém-promovidos, eram torturados reu nas prisões durante a ditadura militar e
por seus superiores. As agressões consistiam em o que ocorre na atualidade, como conseqüên-
choques elétricos, aplicações de ferro de passar na pele, cia da preservação dos métodos e das práticas auto-
afogamento com baldes d’água e chineladas na planta ritárias e arbitrárias, para que, algum dia, todos pos-
dos pés. Os sargentos envolvidos declararam que eram samos dizer ‘Nunca Mais’ à tortura e à impunidade”,
apenas “trotes”. O comando do exército condenou as afirmam em seu site (www.torturanuncamais-rj.org.br).
13. Impressões
13
A
estudante Camila Nascimento Azevedo achou a ciência de que o mais terrível que conseguimos imagi-
exposição chocante. “Você não pensa só no que nar ainda está muito longe de alcançar a realidade.
está vendo, no sofrimento das pessoas que es- Para Álvaro Gonçalves Antunes Andreucci, profes-
tavam ali, mas que muitas pessoas foram parar sor de História Medieval da UFSC e de História do Siste-
ali simplesmente por pensar de uma maneira diferente.” ma Penal do Cesusc, mesmo conhecendo a maioria dos
Camila tem um parente que foi torturado na épo- instrumentos antes da visita, a impressão que se tem é
ca da ditadura militar. Ela conta que seu tio, apesar sempre chocante. “É desalentadora a capacidade que o
de ter alguns amigos subversivos, não estava engaja- ser humano tem de dilacerar outra pessoa, infligir dor ao
do em nenhum movimento ou luta política. Um dia, extremo em alguém, com requintes de crueldade”, diz.
a polícia apareceu na casa em que ele morava, onde Mas ele vê uma importante função social na exposição: o
alguns amigos lhe faziam uma visita. Os policiais le- choque pode servir de estímulo e inspiração para que as
varam todos para a delegacia. Ele sofreu vários tipos pessoas lutem contra os abusos de poder e a violência.
de tortura. Entre eles, Camila lembra apenas que o tio Os últimos instrumentos a serem explicados são
levou choque no órgão genital. Depois da sessão de tor- os cintos de castidade, usados mais para prevenir os es-
tura, ela conta que os presos eram colocados numa tupros e a reprodução dos escravos. Mas as peças eram
cela pequena em que não era possível manter-se es- de ferro e podiam machucar, além de não serem raras
ticado. Sempre que dormiam, vinha um policial e os as vezes em que os senhores deixavam seus escravos
chutava para mantê-los acordados. Foi num desses com a peça durante dias, fazendo com que eles fossem
chutes que o tio de Camila xingou o policial, e o amigo obrigados a fazer suas necessidades ali. Carla encerra
que estava na cela ao lado o reconheceu pela voz. Sus- sua fala com uma reflexão: “Eu queria que vocês avali-
peita-se, então, que o amigo tenha feito algum acordo assem o que nós, seres humanos, somos. Nós somos
com os policiais para que soltassem o tio de Camila. o único animal que mata por prazer, porque o animal
Para a estudante Isabel Cristina Hentz, o que selvagem mata ou para se defender ou para comer.”
mais causa impacto é o fato de que todas as peças
da exposição são autênticas. “Ficar imaginando que
teve uma pessoa já numa cadeira dessas morrendo ali
é...” Ela não completa a frase, mas não é necessário.
A aproximação com a atrocidade é direta, comple-
tamente diferente da distância que nos colocamos ao
estudar sobre essas práticas ou ao ver a notícia de um
crime bárbaro. É a materialidade que toca, incomoda.
Esforçamo-nos para imaginar as dores que as pessoas
que passaram por ali sofreram, mesmo tendo cons-
14. 14
“Atenção passageiros, acomodem-se,
porque vai demorar!”
A crise aérea transformou o ambiente do aeroporto.
Aqui, observações de uma passageira que mesmo assim
conseguiu viajar algumas vezes
por Fernanda Dutra
Montagem: Juliana Sakae. “A Noite Estrelada” Van Gogh, Foto: Roberto Moreira
É
um exercício de paciência. Você logo pôde viajar, muitos pães de quei- eram atualizadas. Havia um receio de di-
sempre imagina uma espera mais jo e um excesso de parágrafos lidos. zer a verdade: “Vai demorar, meu senhor”.
longa do que realmente é. Assim O primeiro incômodo é no check- O receio é justificável. Não é difícil
se prepara para enfrentar tédio, cansaço, in. Quem chega mais cedo, consegue perder o controle diante da crise. Em
sono e fome. E, ao contrário dos passagei- pegar lugares nos vôos de horários mais dezembro, na sala de embarque de Con-
ros de ponte-aérea, tenho algo que ajuda cedo, que estão atrasados. Como gonhas, um passageiro idoso
Havia um
a me conformar: mesmo que passe 12 muita gente desiste, sempre há começou a gritar com um fun-
receio de
horas viajando de avião, sei, é inevitável, lugar. Assim, se o primeiro des- cionário da TAM. O filho se colo-
dizer a
de ônibus eu gastaria o triplo do tempo. tino é Manaus, com conexão em cou ao lado do pai e, das agressões
Minha primeira viagem durante a São Paulo, é possível que o vôo verdade: “Vai verbais, partiram para empurrões
crise foi no começo de novembro. Saí se torne Florianópolis–Manaus, e socos. Aquela calma impassível,
demorar,
correndo de casa, esqueci a escova de com co-nexão em Curitiba, meu senhor” o sorriso colado no rosto, os ca-
dentes e, quando cheguei no aeroporto, São José do Rio Preto, Brasí- belos e a roupa aprumados. O
descobri que não tinha nenhum avião na lia, Rio de Janeiro e Salvador. jovem atendente se despojou de
pista e dificilmente teria algum tão cedo. Em novembro, a crise era novidade. toda a autoridade da figura impecável
Foram sete horas no aeroporto de Os passageiros se angustiavam em busca para brigar com pai e filho. As pessoas
Florianópolis. Três emissoras de tele- de informações, os atendentes das com- em volta, surpresas, demoraram a agir
visão, uma equipe do Figueirense como panhias aéreas pouco tinham a dizer. Di- e separar os três. Não consegui tirar da
companhia de espera, uma única co- ante do desconhecimento, as televisões que minha cabeça a gravata listrada jogada
nhecida que teve mais sorte que eu e informam sobre chegadas e partidas não no chão, como que um símbolo do caos.
15. 15
No mês de abril, passados cerca de funcionando. Ouvi diversos sinais para UM GRANDE NEGÓCIO
seis meses, muita coisa tinha mudado. Já chamar os comissários de bordo. Estava
não havia mais dezenas de passageiros sentada perto de onde os funcionários fi- Não dá para esperar por amen-
doim e barra de cereal ou sanduíche
cercando cada atendente. Os funcionários cam e pude ouvi-los pedindo explicações
de queijo e presunto, os habituais
de aeroportos à comissária-che-
lanches das companhias aéreas. As-
aprenderam a fe. Um passageiro sim, a única opção dos passagei-
agir diante do se irritou e disse ros são as lanchonetes dentro das
caos. As tele- que não decolaria salas de embarque. Um sanduíche
natural pode custar até 15 reais.
visões são atua- sem saber o que
Um café pequeno chega aos $3,50.
lizadas, mas estava acontecen-
Abrir lanchonetes e cafés é um
não só com as do. A suspeita de bom investimento. O grupo GRSA, do
usuais men- haver problemas setor alimentício, aplicou R$1,8 milhão
sagens “Em- técnicos no avião para ampliar a Casa do Pão de Queijo
e abrir duas unidades do Café Ritazza
barque Imedi- disseminou-se.
no aeroporto de Congonhas, por onde
ato”, “Avião no Os comentários de
passam 70 mil consumidores por mês.
pátio”. As novas que talvez o pro- Os estabelecimentos ainda incluíram
frases são “Vôo blema fosse mais em sua estrutura mesas com peque-
atrasado”, “Sem grave eram ditos nos sofás e poltronas confortáveis,
atentas ao incômodo da espera.
previsões”, em voz alta, para
Disponível em: www.estadao.com.br Com a crise aérea, o pro-
“Vôo cancela- todos ouvirem.
jeto da Infraero de implantar shop-
do”. O passageiro não corre mais atrás de Quando enfim a decolagem foi au- pings nos aeroportos ganhou força.
informações, sabendo que pouco adianta e torizada, o capitão informou que o apa- Em nove capitais, o Aeroshopping
muito estressa. Senta, cansado, e espera. relho responsável pela sustentação do ar já funciona, sendo que em Brasí-
lia e Porto Alegre até cinema Multi-
condicionado quando o avião estivesse em
plex tem. Mais sete aeroportos de-
solo estava quebrado, mas não afetava as
Medo de voar vem ganhar shoppings neste ano.
condições de vôo. A viagem foi tranqüila.
O
Manifestações de desconfiança dos
acidente da Gol é marcante para
passageiros e até mesmo de alguns fun-
os que viajam de avião. Quem pre-
cionários quanto às informações das
cisa utilizar o transporte aéreo,
companhias aéreas são cada vez mais
procura não lembrar. Mas a imprensa tem
comuns. Grandes jornais e emissoras de
denunciado a precariedade da estrutura
televisão questionaram sobre a existên-
aeroportuária brasileira. O conhecimento
cia de um buraco negro no espaço aéreo,
das falhas da Infraero, somado à tensão da
ou seja, uma área em que não é possível
crise aérea, acaba por trazer à tona o medo.
monitorar os aviões. A Infraero promete
Em um dos vôos que peguei, enquan-
investimento, mudanças. Mas até ago-
to esperávamos a autorização para deco-
ra não se notam melhorias estruturais.
lar, o ar condicionado do avião não estava
Montagem: Juliana Sakae.
“A Noite Estrelada” Van Gogh, Foto: AFP
16. 16
para ela. Ela fala com experiência, ges- para o Natal, era quase meia-noite. O vôo
Amizade de sala de embarque
ticulando, serena. Então, ele enfim ouve para São Luiz do Maranhão foi chamado
H
á quem prefira ouvir música, o chamado do vôo e se despede. Deseja e a sala de embarque tomada pelo ba-
ler, comer. Outros aproveitam o boa sorte e ele sorri em agradecimento. rulho de palmas e gritos de comemora-
Quem toma o mesmo vôo acaba ção. Parecia festa de família: os passagei-
tempo para conhecer pessoas. O
primeiro assunto é o que existe em co- por se unir. Em busca das mesmas in- ros se cumprimentavam e se abraçavam.
mum: a espera. “Quantas horas você está formações, os passageiros se ajudam. Era o fim de uma espera de dez horas.
No aeroporto de Brasília, a im-
esperando, vai para onde, fazer o quê?”.
Um jovem conversa com uma senho- pressão que dá é a de que grandes ami-
ra. Ele fala sorrindo, com o dorso virado zades foram feitas. Faltavam dez dias
Cronologia da Crise Aérea
14 de novembro de 2006
29 de setembro de 2006 O aquartelamento
29 de outubro de 2006
21 de outubro de 2006
Acidente do jato Legacy Controladores que trabalham no turno
Operação padrão
Pane no sistema
O vôo 1907 da Gol, de Manaus da madrugada foram impedidos pela
Ao invés de controlar 20 vôos, os
Os aparelhos da torre
para Brasília, se choca com o Aeronáutica de voltar para casa e os 149
controladores passaram a 14, como
de controle de Curitiba,
jato Legacy. Das 154 pessoas a funcionários do setor foram convoca-
nas regras internacionais de avia-
Cindacta-2, entraram em
bordo do vôo doméstico, não há dos ao trabalho, sob pena de prisão. O
ção. Em um final de semana, mais
pane. Na região Sul, 146
sobreviventes. Em investigações aquartelamento durou 20 horas, mas não
de 600 vôos foram atrasados e a
vôos foram atrasados em
posteriores, surge a suspeita de impediu atrasos.
espera chegou a 20 horas em alguns
até três horas.
culpa dos controladores de vôo. aeroportos.
30 de março de 2007
24 de março de 2006
Motim dos controladores
21 de dezembro de 2006 Nevoeiro
5 de dezembro de 2006 A paralisação começou na torre
Apagão da TAM Durante três dias, o aeroporto
Pane de rádio de comando de Brasília e afetou o
Atrasos e cancelamentos de vôos no de Cumbica (SP) fica fechado
Equipamentos da torre de controle aéreo do país. Todos os
país inteiro, devido à chuva em Con- devido a chuvas e nevoeiro. O
controle de Brasília sofreram aeroportos ficaram fechados. Os
gonhas e a seis aviões da TAM em aparelho que permitiria pouso e
pane. Assim, vôos e decola- controladores exigem melhores
manutenção. 340.000 passageiros decolagem está quebrado. Vôos
gens tiveram que ser suspen- condições de trabalho, a desmili-
deixaram de embarcar pela prática de têm de ser desviados para
sos por um período de quatro tarização do tráfego aéreo, a me-
overbooking da TAM, que controla 48% outros aeroportos e a espera
horas, além de 200 vôos lhoria de equipamentos e a criação
dos vôos domésticos no país. chega a 23 horas.
cancelados. de uma carreira para a categoria.
17. 17
A sereia é
representada
na literatura,
no cinema e na
arte de formas
diferentes.
Conheça a
história desta
figura mitológica
e a polêmica
em torno de
sua verdadeira
imagem.
por Juliana Sakae
“Ulisses e as Sereias”
Herbert James Draper, 1909
18. 18
A
o sul da Espanha, à beira do Medi- tão Ulisses, aconselha ela que se amarre sexual original intrínseco à figura mito-
terrâneo, conhecem-na por Sirena. ao mastro do navio com todas as cordas; lógica criada antes de Cristo somem no
O rio que atravessa o penhasco do mas, antes, deve ordenar aos marinheiros conto de Hans Christian Andersen para
Vale do Reno a tem por Loreley. No encon- que coloquem cera em seus ouvidos e não virar história infantil. Na literatura, a in-
tro das águas do Rio Negro e Solimões, na o desamarrem sob hipótese alguma. Ulis- gênua pequena sereia morre – transfor-
Amazônia, é chamada de Yara. A sereia ses passa, então, por um local cheio de ma-se em espuma, por amor ao príncipe,
é uma figura mitológica, nascida deusa “sereias rodeadas de ossos humanos pu- enquanto Yara, Sirena, Loreley e Ondina
grega, com corpo de ave e cabeça de mu- trefeitos cobertos por pele seca”. O canto buscam vingança à figura masculina de-
lher. A beleza sedutora conhecida hoje, de sirênico das mulheres, apelando à sensu- vido à violência anterior. A versão anima-
da da Walt Disney para o cinema modifi-
corpo semi-nu e cauda de peixe, nada tem alidade, enfeitiça-o. O capitão debate-se
em comum com a criatura da Antigüidade. e implora aos marinheiros que desfaçam cou o fim para um “felizes para sempre”.
Diz a lenda que de uma briga entre as amarras. Com os conselhos da deusa
o herói Hércules e o deus Aqueloo – um Circe, entretanto, o navio passa a salvo
peixe com cauda de cobra, nasceram três pelas vingativas sereias.
sereias: Leucotea, a deusa branca; Lígia, Sereia no Cinema
a de voz clara e Parténope, a virgem. Hér-
cules, na luta, teria arrancado o chifre de A saga de Ulisses serve de inspira-
Aqueloo; do sangue derramado saíram ção para lenda de Sinbad, trazida ao ci-
nema pelo Estúdio Walt Disney em 2003.
três criaturas metade pássaro, metade
mulher. A única característica em co- Os elementos da história são fiéis ao livro
O Canto das Sereias
mum com a sereia do século XXI é o seu “Odisséia”: uma deusa conselheira, se-
Tem-te, honra dos Aqueus,
canto, chamado sirênico. A voz, aguda e reias tentando enfeitiçar marinheiros e a
harmoniosa, enfeitiça o sexo masculino e sensualidade delas misturada ao desejo famoso Ulisses;
o atrai à morte. de vingança. Na versão cinematográfica
Nenhum passa daqui, sem que
de “Sinbad – A Lenda dos Sete Mares”, po-
Sereia na Literatura das bocas
rém, os marujos são salvos pela presença
Nos ouça a melodia, e com
A origem da sereia aquática se deu de uma mulher na expedição, a quem o
deleite
no mesmo país da voadora. Homero, fi- canto das sereias não faz efeito. A adap-
E instruído se vai. Consta-nos
gura da literatura grega, descreveu em tação da mitologia grega original para o
“Odisséia” uma forma de sereia diferen- cinema trouxe sempre elementos novos. quanto
te de Leucotea, Lígia e Parténope. O li- Desde conchas que escondem os seios
O céu vos molestou na larga
vro conta a aventura de Ulisses voltando até a personalidade, como no famoso “Pe-
Tróia,
quena Sereia”, lançado pelo mesmo estú-
para sua terra natal, Ilha de Ítaca, após
Quanto se faz nos conta n’alma
a Guerra de Tróia. No caminho, o nave- dio de Sinbad, em 1989. O filme conta
terra
gador é informado por Circe, “a divina a história de uma sereia pré-adolescente
(“Odisséia”, Canto XII, Homero)
entre as deusas”, que irá encontrar cria- – boazinha – que quer subir à superfície e
turas mortais chamadas sereias. Ao capi- virar humana. O desejo vingativo e apelo
19. 19
Sereia”, alguns artistas buscam a criação
de um ser cuja existência seja próxima
A Pequena Sereia de Andersen Loreley, a sereia alemã
do real. O escultor Juan Cabana, fasci-
A pequena sereia de Andersen apaixo- No Vale do Reno, na Alemanha, há uma
nado por criaturas estranhas, tem uma
na-se por um príncipe náufrago e bus- rocha chamada “Loreley”. Devido a seu
longa coleção das chamadas “sereias fiji”.
ca viver como mortal ao seu lado. Para tamanho, o local produz eco, o que está
Essa criação artística, originada nas Ilhas
isso, a sereia doa sua voz a uma bruxa, associado ao canto da sereia de uma an-
Fiji por japoneses, é a escultura de se-
que lhe dará, em troca, a forma huma- tiga lenda. Segundo Clemens Brentano,
reia com material orgânico, como partes
na. Mas, para que esse estado se torne o primeiro homem a escrever seu teste-
de peixe. Originalmente, os artistas cos-
perpétuo, a pré-adolescente deve fazer munho, uma mulher teria cometido sui-
turavam cabeça de macaco em corpo de
com que o príncipe se apaixone por ela, cídio nas águas do Rio Reno por um amor
peixe e, através da fotografia, difundiam
o que não acontece. A sereia, agora me- não correspondido. Transformada em se-
a “existência” da criatura. Juan Cabana
nina e muda, quer retornar ao oceano; reia, Loreley passa os dias cantando sua
ficou conhecido após o tsunami de 2004,
para isso, terá de matar o príncipe. Por tristeza. Brentano, assim como os poe-
quando correu pela internet um “acha-
amor, a sereia não o faz, transformando- tas Heinrich Heine e Friedrich Silchers,
do arqueológico”: uma sereia fossilizada,
se em espuma. ouviu o canto ao passar pela rocha. A se-
do tamanho da palma da mão, teria sido
reia, com sua voz, atrai os homens para
encontrada em Chennai, na Índia. A foto
a morte, como vingança por seu amor
Iara, a sereia brasileira fora retirada do site do artista e, junto
não correspondido.
com um texto criativo, percorreu milhares
A lenda indígena, registrada pelos pri-
de caixas de e-mails. Outras sereias fo-
meiros portugueses que navegaram o é repetida na lenda brasileira ram “encontradas” pelo mundo, inclusive
rio Amazonas, conta que existia uma linda mulher
(Yara), alemã (Loreley), espa- no Brasil (ver vídeo: www.youtube.com/
chamada Yara. Os cabelos eram longos e escuros,
nhola (Sirena) e africana. Em watch?v=dICCBKqbm1M). Brincadeiras
os olhos castanhos. Sua beleza e conduta exemplar
1909, o inglês Herbert James assim, porém, parecem não incomodar
geravam inveja na aldeia. Era, também, a preferida
Draper representou a sereia o autor (veja entrevista). Cabana diz que
do Tupã. Um dia, à beira do Rio Negro, Yara perce-
dos mares de Ulisses: mu- sua intenção é, justamente, a de retornar
beu a presença de homens, que a violentaram. A
lheres sensuais com rabo de à crença em sereias e monstros marinhos.
índia, desmaiada pela dor da agressão, foi jogada
peixe sobem ao navio grego Walmor Corrêa, artista florianopo-
no encontro das águas do rio Negro e Solimões. Se-
enfeitiçando os marujos com litano radicado em Porto Alegre, tam-
gundo a lenda, Yara então ganhou a cauda de peixe.
seu canto. Já John William bém busca uma representação realista
Assim, não mais poderia ser abusada sexualmente.
Waterhouse, também inglês, da sereia. Ao
De qualquer forma, manteve o tronco de mulher, por
pintou dez anos antes a mes- viajar à Amazô-
vingança: com meio corpo à superfície, a sereia atrai
ma cena de Homero, porém nia, Corrêa per-
os homens para dentro do rio e os conduz à morte.
sem a mesma beleza sirênica cebeu a forte
de Draper. Baseado na mi- crença dos ha-
Sereia na Arte tologia dos deuses gregos, Waterhouse bitantes por len-
Cabelos claros ou negros, cauda de peixe retratou o navio de Ulisses sendo ata- das mitológicas.
ou de cobra, corpo de mulher ou de pás- cado por três sereias com corpo de ave. Começou
saro. A idéia clássica, da mulher sensual Embora a mais famosa versão seja a a criar a série
com cauda de peixe e cabelos compridos, representada pela Disney em “A Pequena Unheimlich -
20. 20
Imaginário Popular Brasileiro. Nela, cria a
ENTREVISTA
anatomia de seres inexistentes, como a sereia Juan Cabana é considerado
o artista mais polêmico
Ondina, sereia da mitologia alemã junto com
na criação em cima da
Loreley. Através de estudos, pesquisa e até
mitologia. Cabana produz
visita a médicos e biológos, Corrêa esboça no Ponto-e-Vírgula - Como você se sente
suas esculturas com
papel o funcionamento do organismo de cria- com sua obra popularizada ao redor
pedaços de peixe e afirma
turas. A anatomia como forma de expressão do mundo não como arte, mas como
que o lugar de suas obras é,
uma possível criatura real?
artística é inspirada nas obras de Leonardo
sim, na praia.
Cabana - As pessoas, sem meu conhe-
DaVinci. O artista italiano produziu 600 fo-
cimento, retiram fotos do meu web-
lhas com milhares de desenhos a partir da
site (www.thefeejeemermaid.com) e
dissecação de animais. O resultado de Wal-
criam histórias da descoberta de se-
mor Corrêa é curioso; é possível acreditar em reias e monstros marinhos em outras
uma possível existência do ser desenhado partes do mundo. Minha intenção é
na tela. Os órgãos, especificados na lateral, trazer de volta a crença em sereias e
detalham a obra como se esta fosse, por últi- monstros. Minhas criações são feitas
usando pele, dentes e ossos de peixe
mo, arte. Fosse, sim, a réplica de uma sereia
“Antiga Sereia”,
de verdade. Poderia ser mais real que
Ondina dissecada, assim como em Da Vinci.
da coleção de
isto? Recebo e-mails quase todos os
A arte pode ser um meio de represen-
Juan Cabana
dias, de pessoas de todas as idades,
tação de lendas e mitologias. Assim foi nos
questionando-me se sereias realmen-
quadros de Draper, como sereias aquáticas, te existem.
ou de Waterhouse, como sereias com asas, ;- Você coloca sua criação em lugares
e nos filmes de “Sinbad” e “A Pequena Se- que são considerados, na mitologia, o
reia”. Mas também pode contribuir na ma- habitat natural delas.
Cabana - Sim, tento encontrar um ce-
nutenção da crença nesta mitologia, como
nário natural para as minhas sereias.
o livro de Homero, como Walmor Corrêa e
Viajei por toda Flórida procurando pe-
Juan Cabana ou como os peixes com ca-
las melhores praias para as sereias.
beças de macaco das Ilhas Fiji. O canto da
;- O que você acha da reação das pes-
sereia, porém, já não fascina mais. Rafael soas ao ver uma sereia em uma praia
Gubert tem quatro anos, mora na cidade de e não em um museu?
Blumenau em meio a prédios que beiram o Cabana - Bom, a sereia fica melhor
Rio Itajaí-Açu. Para infelicidade de Cabana, na praia, mas isto apenas para tirar
Retirado do site: www.thefeejeemermaid.com
fotografia (normalmente está deserto
Walmor e – provavelmente – Homero, Ra-
quando tiro fotos). Já as sereias no Cabana - Geralmente de mim mesmo.
fael diz: “sereia nem existe, só nos livros!”.
museu podem ser vistas por muitas Se você procurar na minha galeria de
Osvaldo Pereira, 60 anos, é pescador de
pessoas, é isto que quero. Meu sonho sereias, vai ver que elas são diferen-
camarão da praia do Balneário de Floria-
é abrir o Museu de Sereias e Mons- tes, originais. Eu tento não repetir a
nópolis. Ele afirma que “sereia nunca exis- tros Marinhos, o único do mundo com obra. Gosto também de estudar dese-
tiu nem nunca vai existir”. Mesmo assim, criaturas produzidas com peixe de nhos antigos de monstros marinhos
ressalta: “se pescar um dia, eu aviso”.... verdade. assim como mapas ancestrais. Tinha
;- Onde você encontra inspiração para uma época que todo mundo acredita-
este tipo de arte? va que eles eram reais.
21. 21
ENTREVISTA
Walmor Corrêa, catarinense radicado no Rio Grande do Sul, expôs sua obra
no Equador, Áustria, Estados Unidos, Chile, Argentina, mas no Brasil ainda é
pouco reconhecido. Formado em arquitetura, Corrêa cria através de estudos,
pesquisas e, muitas vezes, consulta a médicos e biólogos.
Ponto-e-vírgula - Como surgiu a idéia de visualizados. Portanto, uma quantidade
criar a anatomia de criaturas lendárias? considerável de leitura é a primeira parte
Corrêa - Na série Unheimlich - Imáginario do projeto. Depois, com o auxílio dos es-
Popular Brasileiro, respondo a perguntas boços, uma visita a especialistas médicos
que fiz à natureza quando criança de acor- e biólogos ajuda a concluir este processo
do com a minha própria interpretação dos criativo. Também foi necessário viajar até
“Ondina”,
paradigmas da ciência. A idéia surgiu em os lugares onde a tradição oral mantém
desenhada
uma viagem à Amazônia onde muitos ha- vivas estas lendas, onde é possível coletar por Walmor
bitantes daquela região cultuam algumas as estórias e os dados a partir dos quais, Corrêa
lendas. Estas obras também estão relacio- tenho mais subsídios para o meu traba-
nadas com obras dos artistas viajantes do lho.
século passado, que sempre me desperta- ;- Você acredita ser possível existir uma
ram interesse e foram desde sempre moti- criatura como a sereia?
vo de pesquisa em meu trabalho. Em suas Corrêa - Em 9 de novembro de 2006 nas-
anotações sobre as expedições ao novo ceu um “bebê-sereia”, na província de Hu-
mundo, citavam a existência de seres fan- nan, no sul da China.
tásticos como Afonso dÉscrangnolle-Tau- ; - Qual foi sua experiência mais interes-
nay, “(...) um peixe quem tem pedras no sante entre as criações?
lugar dos miolos, um peixe monstro que Corrêa - A Cachorra da Palmeira, por ser
não tem intestinos,um molusco que mens- uma lenda recente. Diz-se que quando o
trua como as mulheres(...)” - Monstros e Padre Cícero faleceu, em Juazeiro, no Ce-
Monstrengos do Brasil. ará, toda a população local ficou de luto
;- Como funciona o processo de criação de pela morte do sacerdote. Menos uma moça
uma obra sua? Entre concepção, pesqui- que, desolada com a perda de uma cachor-
sa, desenho... rinha de estimação, afirmou que preferia
Corrêa - Como um artista tem liberdade vestir o luto pelo seu animalzinho e não
suficiente para explorar profundamente pelo santo homem. Minutos após proferir
seu trabalho, antes de partir para a tela, tais palavras, como um castigo de Deus,
é feito um estudo bastante minucioso. a menina começou a uivar, morder e a
Através da pesquisa de diferentes fontes é correr, vindo em seguida a se transformar
possível que estes animais comecem a ser numa cadela, a Cachorra da Palmeira.
22. Ash-a-ee
22
por Pedro Santos
A história da fruta amazônica que já conquistou o Brasil e tem tudo para
seduzir o mundo, com ou sem granola.
I
açã é filha do cacique. A tribo está cres- contrado ao pé da planta. Rosto sereno, olhos
cendo, os alimentos escasseiam. “A vida inertes voltados para cima. Da palmeira,
está difícil, não conseguimos comida”, re- saíam cachos com pequenos frutos pretos,
clamam os índios da tribo. O cacique, Itaki, que são apanhados a mando do cacique.
não vê outra escolha: “a partir deste dia, toda Amassados em vasos de barros, davam um
criança que nascer será sacrificada”. O que vinho avermelhado. Essa foi a solução para a
ele não desconfiava era que a regra teria de tribo, que dali em diante não teria mais pro-
ser aplicada à sua própria família: Iaçã está blemas com a falta de alimentos e nenhuma
grávida. Tempos depois, ela dá à luz. A cri- criança teria de ser sacrificada outra vez. A
ança é uma menina linda que, assim como lenda é amazônica. No lugar em que se pas-
todos os outros recém-nascidos da tribo, é as- sou a história, hoje se localiza a cidade de
sassinada. Iaçã não se contém. Chora todas Belém, no Pará.
as noites e pede, ininterruptamente, ao deus E o fruto foi batizado pela inversão do
Tupã que mostre uma maneira para resolver nome da índia Iaçã - em tupi, yasa´i quer di-
a falta de comida na tribo, o que evitaria a zer “planta que chora”. O alimento que salvou
morte de outras crianças. Em uma noite de a tribo é o açaí. O gosto natural do açaí não
luar vistoso, ela ouve um barulho. Choro de é uma opção muito acessível para quem não
criança. mora próxima a uma Euterpe oleracea, tam-
Sai correndo de sua oca em direção ao bém conhecida como açaizeiro. Essa palmei-
som. Não acredita no que vê. É sua filha, ao ra é nativa das várzeas da região amazônica,
pé de uma palmeira alta e esguia. Correu. e cada tronco pode gerar até quatro cachos,
Abra-çou. Sorriu... Chorou. A filha desapa- que, por sua vez, produzem de três a seis qui-
rece e Iaçã abraça-se à palmeira. Fica ali por los de açaí. O fruto é característico: pequeno,
dias e dias, até que perde todas as forças, cai arredondado e arroxeado - ainda existe o açaí
e morre. No dia seguinte, o corpo dela é en- branco, menos conhecido em outros lugares
23. 23
O Pará é o maior produtor de açaí do mundo. Em 2005, a
produção brasileira somou 104.874 toneladas, das quais 87,8%
O caroço é proporcionalmente grande, deixando pouco es-
foram coletadas no Pará – o que dá 92.088 toneladas. Os dados
paço para a polpa, que representa 17% do peso total. O açaizeiro
são do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, o IBGE. A
é uma planta em que praticamente tudo pode ser aproveitado.
propósito, os paraenses têm o hábito de misturar açaí à farinha de
As fibras podem ser destinadas a esteiras, chapéus e sacolas.
tapioca para acompanhar o arroz, o peixe frito, o charque e pratos
O estipe é aproveitado como lenha ou matéria-prima para
da culinária regional, além dos sucos e do açaí servido em tigelas.
a construção de casebres e pontes. As folhas são usadas como
É difícil, com palavras, explicar o gosto que o fruto in natura tem.
coberturas de casas, adubo, ração animal e são transformadas
Podemos dizer que é algo próximo, digamos, ao amargo, mas não
em vassouras. Com as raízes, fabricam-se alguns remédios. E,
ácido. Acontece que a fruta decompõe-se muito rápido. Por isso,
com os frutos, cultivam-se medicamentos, álcool, adubo, ali-
em lugares mais distantes das regiões produtoras é mais comum
mentos e o vinho.
a polpa congelada, servida em uma tigela depois de ser batida no
liquidificador com outras frutas.
Tabela nutricional para 100g de açaí
Para fazer o açaí na tigela, os ingredientes mais típicos são a
polpa do açaí, o xarope de guaraná – que “adocica” e é energético –,
a banana e a granola (mistura de pedaços de frutas secas, passas,
amêndoas, aveias e outros cereais). O resultado é um alimento que
Valor energético ......................... 274 kcal
cada vez conquista mais adeptos em diferentes lugares do Brasil e
Cálcio......................................... 286 mg do mundo. Uma antiga fruta amazônica que se popularizou, por
quê? Como explicar a “febre” que o açaí na tigela anda causando por
Fibras ....................................... 34 mg
aí? As respostas passam por algumas hipóteses. Carmen Trindade,
Proteínas ................................... 13 mg professora da área de Engenharia de Alimentos, na Universidade de
São Paulo (USP), supõe que um dos motivos da divulgação favorável
Sódio.......................................... 56,4 mg
do açaí está na própria natureza do alimento. “É uma fruta exótica,
Potássio .................................... 932 mg com cor bastante atraente”, diz.
Outra hipótese levantada pela professora é o sucesso que a
Magnésio.................................... 174 mg
floresta amazônica faz mundo afora. “O mundo resolveu cultuar
a floresta amazônica e, obviamente, tudo o que vem dela. Assim,
Vitamina C ................................. 17 mcg
a aceitação dos produtos amazônicos é enorme”. De fato, o fruto
Vitamina E ................................. 45 mcg
começa a fazer sucesso em outros países, onde não é apenas usado
como alimento, mas transformado em xampus, sabonetes e cremes;
Ferro ......................................... 26 mg
tudo à base de açaí. Em 2005, os Estados Unidos faturaram 3,8
Fósforo ....................................... 227 mg milhões de dólares com produtos originados do fruto.
E não é só nos EUA: “Já fomos procurados por pesquisadores
Lipídios ...................................... 17 g
alemães interessados em estudar toda a cadeia produtiva da fruta,
Glicídios ..................................... 36,6 g tamanho o sucesso que ela tem feito por lá”, diz Carmen, que é
apreciadora do típico açaí na tigela, com granola, é claro.