SlideShare uma empresa Scribd logo
1 de 14
Baixar para ler offline
135
REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA V. 18, Nº 36: 135-146 JUN. 2010
RESUMO
LIBERALISMO E FEMINISMO:
IGUALDADE DE GÊNERO EM CAROLE PATEMAN E
MARTHANUSSBAUM
Rev. Sociol. Polít., Curitiba, v. 18, n. 36, p. 135-146, jun. 2010Recebido em 27 de junho de 2009.
Aprovado em 22 de dezembro de 2009.
Ingrid Cyfer
O artigo discute a relação entre liberalismo e feminismo a partir de duas autoras feministas, Carole Pateman
e Martha Nussbaum. Trata-se de uma questão importante para o feminismo, para o qual são fundamentais
problemas associados às dicotomias público-privado e cultura-natureza – herdadas do liberalismo. Nesse
sentido, discutimos as posições de Carole Pateman e Martha Nussbaum referentes a esses problemas. A
escolha das autoras deveu-se ao fato de que ambas compartilham muitas premissas e conclusões, e por suas
divergências situarem-se principalmente ao redor de problemas em que o feminismo é acrescentado ao
liberalismo político. Assim sendo, fazer uma discussão entre as suas posições minimiza o risco de que a
análise do debate não vá muito além das críticas que diversas teorias dirigem ao liberalismo, podendo
funcionar, enfim, como uma boa porta de entrada para alguns dos pontos mais controversos da teoria
feminista contemporânea. Nussbaum e Pateman parecem coincidir a respeito da concepção de igualdade
de gênero. A crítica que ambas dirigem à relação entre natureza e cultura e ao formalismo da igualdade
abstrata torna evidente que nenhuma delas pretende atribuir o poder ou a opressão da mulher a desígnios
da natureza. Em ambas está muito claro que o que consideram relevante na organização de uma sociedade
justa quanto ao gênero é a forma como uma sociedade valora as diferenças biológicas, bem como as
implicações dessa valoração na distribuição de bens sociais. Nussbaum, porém, acredita que essa equação
seja possível dentro da teoria liberal, desde que esta seja submetida a transformações que eliminem detur-
pações teóricas decorrentes do conservadorismo dos primeiros filósofos liberais.
PALAVRAS-CHAVE: feminismo; teoria feminista; liberalismo político; igualdade de gênero; natureza e
cultura; público e privado.
I. INTRODUÇÃO
“Feminismo” é ao mesmo tempo um termo
maldito e impreciso. Maldito porque é na maior
parte dos casos associado à defesa de uma su-
posta superioridade feminina, que exprimiria o
mesmo sexismo do discurso que inferioriza as
mulheres. Outra crítica comum é a de que o fe-
minismo seria cego às diferenças biológicas entre
homens e mulheres devido a um inconformismo
injustificado e imponderado em relação às dife-
renças naturais, moralmente neutras. Diz-se ain-
da que o discurso feminista vitimaria a mulher na
medida em que responsabilizaria exclusivamente
o homem pela condição subalterna feminina. E,
finalmente, é bastante freqüente também associá-
lo a discursos moralistas que, em nome da igual-
dade, reprimiriam a sexualidade de homens e mu-
lheres ao identificar a sedução e a relação sexual
como locus de discriminação, nos quais a mulher
estaria reduzida à condição de objeto.
A maior parte dessas críticas poderia atingir
facilmente muitos alvos feministas. No entanto,
dificilmente abalariam uma significativa gama de
movimentos e teorias que se denominam feminis-
tas e, se fizessem-no, isso seria devido à impreci-
são do termo “feminista”, que mascara as inúme-
ras nuances e divergências comportadas pelo con-
ceito. A conseqüência dessa imprecisão é que as
discussões acerca da igualdade entre homens e
mulheres são freqüentemente deslegitimadas por
críticas que tomam o feminismo por um termo
unívoco. Diante disso, deve-se reconhecer que a
adequação conceitual e mesmo estratégica da in-
sistência no termo “feminismo” deve ser questio-
nada.
Com Simone de Beauvoir e Gayle Rubin, o
feminismo incorporou a idéia de que a identidade
feminina não é uma simples decorrência da biolo-
gia, mas sim uma condição apreendida ao longo
da vida na relação com o outro. Assim, as refle-
136
LIBERALISMOEFEMINISMO
xões acerca da igualdade de gênero passariam a
considerar concepções de identidades construídas
culturalmente, que estão além de uma essência
inscrita na anatomia. É preciso reconhecer que
não é exatamente isso que se observa em uma
parcela do discurso feminista, que focaliza unica-
mente um dos pólos da relação de gênero (a mu-
lher), e não na própria relação da qual emergem
as identidades masculina e feminina.
Por outro lado, há razões para que o termo per-
maneça. Além de ser uma herança histórica dos
movimentos e teorias pioneiros nessa discussão, é
também muitas vezes o único adjetivo que unifica
as inúmeras vertentes feministas. No campo da te-
oria política, há feminismos liberais, marxistas, pós-
modernos, existencialistas, e outros tantos. Identi-
ficar aquilo que há em comum entre eles não é uma
tarefa fácil, pois cada teoria irá propor seu próprio
entendimento de discriminação de gênero, bem
como suas próprias fórmulas para combatê-la.
O traço comum entre essas teorias não está
em princípios éticos ou em uma concepção de
política comum.A identidade entre elas restringe-
se a seu objeto. Boa parte das teorias políticas
qualificadas como feministas têm por objeto o
estudo da igualdade de gênero, ou seja, são teori-
as que investigam em que homens e mulheres de-
vem ser iguais, para que uma sociedade seja justa
quanto ao gênero.
Neste artigo serão discutidas as posições de
Carole Pateman e Martha Nussbaum acerca des-
se tema1. A escolha das autoras deveu-se ao fato
de que ambas compartilham muitas premissas e
conclusões; e por suas divergências situarem-se
principalmente ao redor de problemas em que o
feminismo é acrescentado ao liberalismo políti-
co2. Assim sendo, fazer uma discussão entre as
suas posições minimiza o risco de que a análise
do debate não vá muito além das críticas que di-
versas teorias dirigem ao liberalismo, podendo
funcionar, enfim, como uma boa porta de entrada
para alguns dos pontos mais controversos da teo-
ria feminista contemporânea.
II. FEMINISMO E LIBERALISMO
Um dos poucos pontos consensuais entre as
teorias políticas feministas é o bordão o pessoal é
político, ou seja, a idéia de que as circunstâncias
pessoais são estruturadas por fatores públicos
(PATEMAN, 1989). O sentido e a extensão que
esse bordão assume em cada uma delas, porém, é
bastante variável. As teorias liberais tenderão a
restringi-lo, uma vez que terão de combinar essa
idéia com a preservação do espaço privado, sob
pena de comprometerem sua identidade liberal.As
teorias não-liberais, por sua vez, têm geralmente
menos problemas em conciliá-lo com sua matriz
teórica; mas, de outro lado, dificilmente poderão
renunciar totalmente à noção liberal de autonomia
do sujeito, que tem sido palavra de ordem do
movimento feminista desde o século XIX.
Disso decorre que toda teoria feminista, inde-
pendentemente de como seja classificada, jamais
reproduzirá fielmente a sua origem teórica. O fe-
minismo apresenta tanto para teses que tendem
para o coletivismo quanto para o individualismo,
para o universalismo quanto para o relativismo,
problemas que lhes obrigam a fazer concessões
às teorias adversárias. Essas concessões, porém,
não serão referentes às mesmas questões nem
tampouco serão feitas em um mesmo grau. As
variações e combinações são inúmeras, o que ex-
plica a impressionante ramificação das teorias
políticas feministas contemporâneas
(KYMLICKA, 2006).
Entretanto, ainda que as ramificações sejam
muitas, o liberalismo político tem uma relação pri-
vilegiada com o discurso feminista, que desde sua
origem incorporou muitos de seus conceitos e
premissas. As primeiras feministas encontraram
na dicotomia liberal público-privado o argumento
1 A intenção do artigo é reconstruir e confrontar as posi-
ções de Nussbaum e Pateman. No entanto, elas não dialo-
gam diretamente. Nussbaum, porém, menciona Pateman
como uma autora adversária em nota de rodapé, aliando-a a
Allison Jaggar, sua interlocutora direta (NUSSBAUM,
1999, p. 384). Anne Phillips, em artigo em que discute o
feminismo liberal de Nussbaum, também reconhece em
Pateman uma tese que contesta a posição de Nussbaum
(PHILLIPS, 2001).
2 Nussbaum e Pateman utilizam a expressão “liberalismo
político”, mas não lhe atribuem exatamente o mesmo senti-
do. Pateman, ao sustentar que o liberalismo é necessaria-
mente patriarcal, assume John Locke como seu principal
interlocutor. Nussbaum, por sua vez, ao salientar as contri-
buições do liberalismo político para o feminismo inspira-
se no “liberalismo igualitário”, especialmente o deAmartya
Sen. Essa divergência explica em grande parte a oposição
entre as posições de Nussbaum e Pateman, conforme se
verá adiante.
137
REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA V. 18, Nº 36: 135-146 JUN. 2010
para salvaguardar um espaço em que a mulher
pudesse gerir sua conduta sem a interferência es-
tatal na distribuição de papéis sociais. Reivindica-
ções feministas típicas como o direito ao aborto,
ao trabalho, à liberdade sexual, entre outros, apa-
recem freqüentemente atreladas à noção de auto-
nomia, entendida principalmente como não-inter-
venção estatal na esfera da privacidade do sujeito.
No entanto, os limites do liberalismo político
para o feminismo tornar-se-iam evidentes já em
fins do século XIX. Elizabeth Cady Stanton, uma
das principais vozes do feminismo liberal da épo-
ca, foi alvo de críticas por reivindicar direitos para
as mulheres isolando-as do contexto que restrin-
ge seu acesso ao trabalho e à participação política
(BRYSSON, 1992). Sem questionar a distribui-
ção de tarefas e de poder na esfera doméstica, o
feminismo liberal do século XIX encontrava suas
próprias limitações.
Desde aquela época, a maior parte das críticas
dirigidas ao feminismo liberal tem como alvo a
dicotomia público-privado em sua versão clássi-
ca, com fundamento em Locke. Nessa vertente,
a linha divisória separa a sociedade civil do Esta-
do. A sociedade representa o espaço da liberdade
pessoal, a esfera em que os indivíduos experimen-
tariam a “independência perfeita”, uma vez que ali
estariam a salvo da coerção do Estado, restrita à
esfera pública.
Além dessa, há ainda outra forma de distinguir
o público do privado, segundo a qual os pólos
opostos correspondem não à sociedade civil e ao
Estado, mas ao social e ao pessoal. Na origem,
essa foi uma distinção proposta pelo romantismo
para se contrapor ao liberalismo, que não teria
reservado nenhuma esfera para a intimidade. Os
românticos afirmavam que mesmo a esfera social
não libera o indivíduo de forças coercitivas, uma
vez que as expectativas sociais constrangeriam
os sujeitos a representarem papéis. O comporta-
mento do indivíduo estaria, enfim, sob constante
vigilância e julgamento também na esfera social.
Os indivíduos, porém, diziam os românticos, pre-
cisam de tempo para si, precisam ter um espaço
em que possam abandonar todos os papéis da vida
civil, em que estejam protegidos do olhar e do
julgamento do grupo (político e social) a que per-
tencem. A esse espaço chamaram de esfera pes-
soal ou íntima, na qual estariam incluídas apenas
as relações de amizade e de amor (ROSENBLUM,
1987)
A reação de boa parte dos liberais diante do
discurso romântico foi a de incorporá-lo ao seu
projeto.Anoção de intimidade foi traduzida pelos
liberais como “direito à privacidade”, cuja identi-
ficação com o liberalismo tornou-se intensa a ponto
de ofuscar sua origem romântica (BENN &
GAUSS, 1999).
As duas versões da dicotomia público-privado
são problemáticas para o feminismo. A primeira,
como foi dito acima, porque assumiria que solu-
ções meramente formais, como o direito ao voto,
seriam medidas suficientes para emancipar as mu-
lheres de papéis subordinados. A segunda, por sua
vez, porque resguardaria da intervenção pública as
relações amorosas, familiares e sexuais, que são os
espaços em que a discriminação de gênero aparece
mais intensamente. As teorias feministas, por mais
diversas que possam ser suas concepções de igual-
dade, têm de lidar simultaneamente tanto com a
demanda pela reserva de um espaço de não-inter-
ferência social e estatal nas escolhas e na conduta
individual das mulheres, como com a demanda de
intervenção estatal na esfera privada quando é pre-
ciso evitar ou coibir práticas sexistas de grupos
sociais conservadores (NUSSBAUM, 1999).
As criminalizações da violência doméstica e,
em particular, do estupro marital estão entre as
discriminações de gênero que mais desafiam a
dicotomia público-privado, em qualquer de suas
versões. Afinal, mesmo na concepção mais res-
trita de privado do liberalismo de influência ro-
mântica, pode ser difícil justificar a intervenção
estatal em relações conjugais que pertencem à
esfera de intimidade (MACKINNON, 1987). De
outro lado, a fusão do publico e do privado tam-
bém apresenta problemas para o feminismo. Afi-
nal, como defender, por exemplo, a liberdade se-
xual feminina ou o direito ao aborto se não houver
limites à interferência estatal no controle do com-
portamento individual?
Como se vê, os debates acerca do feminismo
convergem para a dicotomia público-privado.
Pateman chega a afirmar que o feminismo define-
se por essa discussão (PATEMAN, 1989), uma
vez que a posição acerca daquela dicotomia ex-
primiria a concepção de igualdade que fundamen-
ta uma teoria feminista. Quanto mais abstrata e
formalista a concepção de igualdade, mais intensa
será a separação entre o público e o privado; ao
passo que, quanto mais focada na igualdade ma-
terial, mais essa separação terá de ser atenuada.
138
LIBERALISMOEFEMINISMO
As teorias de Pateman e de Nussbaum, res-
pectivamente, não estão em pólos diametralmente
opostos em relação a essa questão. Nenhuma de-
las defende a separação ou a fusão total entre o
público e o privado. No entanto, enquanto
Nussbaum sustenta que é possível e necessário
flexibilizar essa dicotomia sem comprometer idéi-
as basilares do liberalismo, como individualidade
e autonomia, Pateman acredita que o liberalismo
não sobrevive sem que essa oposição permaneça
forte, pois é precisamente nesse aspecto teórico
que o liberalismo revelaria seu comprometimento
histórico e ideológico com o conservadorismo
patriarcal.
III. A CRÍTICA DE PATEMAN À DICOTOMIA
PÚBLICO-PRIVADO
Embora reconheça que o feminismo tenha nas-
cido com o discurso liberal e que o ideal de liber-
dade e igualdade abstratas tenha sido a tônica do
movimento feminista por décadas, Pateman sus-
tenta que o liberalismo e o patriarcalismo sempre
estiveram mutuamente implicados. Segundo ela,
as teorias sobre o contrato social jamais estendeu
sua doutrina da liberdade e da igualdade universal
às mulheres (idem). As características atribuídas
ao “ser humano universal” eram características
masculinas. Apesar das marcantes diferenças en-
tre os contratualistas clássicos, a origem do polí-
tico em todos eles é um contrato social do qual as
mulheres são excluídas. A racionalidade e a liber-
dade não são atributos universais quanto ao gêne-
ro. Por isso, diz ela, o contrato social é também
um contrato sexual (PATEMAN, 1993, p. 69ss.).
Pateman sustenta que a sociedade civil, que
resulta do contrato social, está ancorada no
patriarcalismo. É a sujeição da mulher que garan-
te as condições para a fruição da liberdade no es-
paço público pelo homem. A “liberdade civil de-
pende do direito patriarcal” (idem, p. 19). Em
Locke, afirma Pateman, o fundamento patriarcal
da divisão entre os direito político e o patriarcal
aparece claramente.Ao definir a especificidade do
poder político, Locke assumiria que o caráter hi-
erárquico da relação entre marido e mulher não
seria político, mas natural (PATEMAN, 1989).
Isso fica claro quando ele distingue o poder polí-
tico do poder do “pai de família” no âmbito do-
méstico, afirmando que na esfera política o poder
seria convencional e, por isso, passível de ser
exercido sobre adultos; enquanto que o poder no
âmbito doméstico subordinaria os indivíduos às
ordens do chefe de família. Os indivíduos a que
Locke se refere não são apenas as crianças, uma
vez que ele assume que o papel dos maridos em
relação às mulheres está incluído em formas não
políticas de poder. A conseqüência disso seria a
exclusão da mulher da esfera pública, pois aquele
que é subordinado por natureza não poderia parti-
cipar do espaço que é governado por princípios
que universalizam a liberdade e a igualdade. De
outro lado, essa divisão implica também a exclu-
são da aplicabilidade desses princípios à única
esfera destinada à mulher, a doméstica (idem).
Pateman observa ainda que a esfera domésti-
ca não está incluída no conceito de público nem
no conceito de privado (social) de Locke. A soci-
edade civil teria abstraído o ambiente doméstico,
tornando-o invisível. Sinal disso estaria nas ex-
pressões “sociedade e estado”, “economia e polí-
tica”, “social e político” que muitas vezes são uti-
lizadas como equivalentes de “privado e público”,
respectivamente. O espaço familiar, onde se cons-
troem e reproduzem as identidades de gênero,
permaneceria esquecido na discussão teórica li-
beral (OKIN, 1989).
Para Pateman, esse esquecimento não foi ques-
tionado pelo feminismo liberal. As sufragistas do
século XIX teriam confrontado apenas a idéia de
que o espaço privado não seria a única esfera a
que a mulher deveria ter acesso. Não teriam, por-
tanto, chegado a questionar o espaço doméstico
como o lugar feminino por excelência (PATEMAN,
1989). Stuart Mill poderia ser alvo dessa mesma
crítica. O autor reivindicou reformas legais com
o objetivo de emancipar as mulheres do jugo de
seus maridos, e contribuiu para forjar o bordão
feminista “o pessoal é político” na medida em que
utiliza termos políticos quando qualifica a condi-
ção da mulher no espaço doméstico. Palavras como
“escravas”, “igualdade”, “liberdade” e “justiça”
foram trazidas para o âmbito doméstico por Mill.
No entanto, o autor sustenta que mesmo após as
reformas legais que equiparassem maridos e es-
posas, o casamento deveria continuar represen-
tando uma carreira para a mulher (idem; MILL,
1970).
Com essa idéia, afirma Pateman, Mill deixa
intacta a divisão de trabalho na esfera doméstica e
revela uma concepção de igualdade de gênero
meramente formal, porque parece acreditar na
suficiência da supressão de entraves legais para
garantir o acesso feminino à esfera pública. A di-
139
REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA V. 18, Nº 36: 135-146 JUN. 2010
visão do trabalho doméstico não é objeto de críti-
ca de Mill.Ao contrário, o autor afirma que a divi-
são tradicional é um acordo que convém tanto a
homens quanto a mulheres, sugerindo a justifica-
ção dessa repartição de tarefas na natureza (idem;
idem).
A íntima relação entre o privado e o natural
está, segundo Pateman, na base da interconexão
entre liberalismo e patriarcalismo, e aparece mes-
mo em liberais considerados feministas, como
Stuart Mill. O público e o privado podem, portan-
to, ser também denominados espaço da cultura e
da natureza, respectivamente, mas qualquer que
seja a nomenclatura utilizada, o espaço masculino
será o primeiro, e o feminino, o segundo.
A identificação do feminino com a natureza teria
três conseqüências. A primeira seria a desvalori-
zação das atividades consideradas femininas. Isso
porque teríamos herdado dos gregos o valor da
superação da existência meramente natural.Acul-
tura seria a expressão do potencial criativo dos
seres humanos, que os singulariza e distingue dos
animais (PATEMAN, 1989). A segunda conseqü-
ência, por sua vez, consiste em considerar essa
dicotomia inquestionável e imutável. Se for a na-
tureza que distribuiu as tarefas referentes à cria-
ção dos filhos, por exemplo, os seres humanos
não teriam muito a fazer a não ser adaptar à vida
em sociedade a distinção entre tarefas (e identida-
des) femininas e masculinas. Finalmente, a ter-
ceira conseqüência diz respeito à abstração histó-
rica implícita na dicotomia público-privado. Ao
considerá-la uma imposição da natureza, além de
imutável e amoral, a divisão entre o público e o
privado será assumida também como
descontextualizada. Assim, fundamentada na na-
tureza, a dicotomia obscureceria a relação entre
liberalismo e patriarcalismo, e a relação de ambos
com o capitalismo. Este último teria incorporado
a dicotomia público-privado à medida que se de-
senvolvia, concentrando tanto a teoria quanto a
prática políticas na esfera pública e civil, margi-
nalizando a esfera doméstica. O capitalismo não
teria, portanto, definido apenas uma divisão de
classes, mas também uma divisão sexual com a
qual se relaciona a primeira.
A divisão sexual do trabalho afastaria as mu-
lheres do mercado ou inseri-las-ia ali em condi-
ções desvantajosas, mas o liberalismo seria inca-
paz de diagnosticar como desigualdade de gênero
a desigualdade nas condições de inserção da mu-
lher no mercado de trabalho, uma vez que a gêne-
se dessa desigualdade estaria na divisão de traba-
lho no âmbito doméstico, que para a teoria liberal
não é política ou socialmente relevante. P e l a
mesma razão, o liberalismo tampouco forneceria
uma resposta para o problema da precariedade dos
trabalhos das mulheres que, por necessidade, es-
tão no mercado de trabalho, como é o caso das
mulheres da classe trabalhadora. Estas sempre ti-
veram de trabalhar, mas a elas foram destinadas
apenas tarefas mal remuneradas, desvalorizadas e
que muitas vezes são meras reproduções das ati-
vidades domésticas, tal como ocorre com os em-
pregos de babá, faxineira, empregada doméstica
etc. Portanto, no que se refere à condição femini-
na, a dicotomia público-privado teria a conseqü-
ência de, a um só tempo, confinar a mulher ao
espaço doméstico, subordiná-la economicamente
ao homem e/ou empobrecê-la, restringir sua par-
ticipação política e atribuir tudo isso a razões imu-
táveis de ordem metafísica (idem).
Em síntese, a conclusão de Pateman é a de
que o liberalismo está estruturalmente ligado ao
patriarcalismo e, por isso, a dicotomia público-
privado seria uma armadilha para o movimento
feminista. Armadilha porque à primeira vista ser-
ve-lhe aos propósitos da emancipação, mas logo
se revela um modelo de perpetuação da rigorosa
divisão sexual dos papéis sociais. O sujeito libe-
ral, ou seja, o indivíduo autônomo, singular e ca-
paz de possuir propriedades em nome próprio não
seria, portanto, um sujeito universal (do ponto de
vista do gênero), pois o argumento conservador e
patriarcal a respeito da natureza da mulher teria
sido incorporado pelo liberalismo em um de seus
elementos mais estruturais, a separação entre as
esferas pública e doméstica. Por isso, um femi-
nismo liberal padeceria de inconsistências
incontornáveis, uma vez que, aceitando a dicotomia
público-privado, não poderia evitar seu caráter
patriarcal e, aceitando o bordão feminista “o pes-
soal é político”, não poderia conciliá-lo com o li-
beralismo (OKIN, 1992).
Aidentificaçãoentreliberalismoepatriarcalismo
que Pateman sustenta pode ser atestada em Locke
e na maior parte dos autores liberais clássicos, até
mesmo em Stuart Mill. No entanto, isso não é
uma particularidade do liberalismo político. Os
autores clássicos no melhor dos casos calaram-
se e no pior deles opuseram-se abertamente à idéia
da igualdade de gênero.Ateoria política feminista
não é uma construção dos filósofos clássicos, mas
140
LIBERALISMOEFEMINISMO
uma interpretação de suas teorias para tomá-las
como fundamento da igualdade de gênero (idem).
Pateman tem razão quando denuncia as impli-
cações do liberalismo clássico na discriminação
de gênero. No entanto, isso ainda não é razão su-
ficiente para afastar o liberalismo da fundamenta-
ção da igualdade de gênero. Sem avançar para além
de Locke, ou mesmo de Mill, dificilmente o libe-
ralismo serviria à fundamentação de qualquer re-
lação de igualdade. O formalismo liberal já foi há
muito denunciado e, dentro do liberalismo con-
temporâneo, foram propostas fórmulas para a sua
superação.
O feminismo liberal percorreu esse mesmo
caminho, de modo que a maior parte dessas teori-
as está atualmente bem além de Locke. Para des-
cartar o liberalismo como fundamento da igualda-
de de gênero é preciso, portanto, analisar se o que
essas teorias contemporâneas acrescentam à sua
matriz teórica é suficiente para desfigurá-la por
completo ou não.
O argumento de Pateman de que o feminismo
não se compatibiliza com a separação estanque
entre o público e o privado é corroborado pela
maior parte das teorias feministas liberais contem-
porâneas. Entretanto, enquanto as feministas li-
berais flexibilizam a relação entre o público e o
privado, Pateman sustenta que o liberalismo não
sobrevive sem essa oposição fortemente marcada,
tanto por razões teóricas quanto ideológicas. Isso
não significa, porém, que Pateman defenda a fu-
são do público e do privado. Sua idéia é a de que
a crítica feminista adote uma perspectiva dialética
da vida social, de modo a evitar tanto a separação
estanque entre o público e o privado, quanto o
risco de o bordão “o pessoal é político” confundir
público e privado a ponto de não restar nenhuma
dimensão da vida humana preservada da exposi-
ção pública. A autora não sugere outra teoria polí-
tica em substituição ao liberalismo. Sua conclu-
são é a de que “o feminismo ainda aguarda a sua
filosofia” (PATEMAN, 1989).
IV. A DICOTOMIA PÚBLICO-PRIVADO NO
FEMINISMO LIBERAL DE MARTHA
NUSSBAUM
Nussbaum reconhece que as críticas de
Pateman sejam válidas para alguns autores libe-
rais, e que algumas delas deveriam ser incorpora-
das ao liberalismo político feminista. No entanto,
sua posição é a de que elas não seriam suficientes
para ruir a sustentação e a consistência do femi-
nismo liberal. Segundo ela, o liberalismo precisa
ser modificado pela crítica feminista, mas essas
mudanças não o descaracterizariam. Ao contrá-
rio, elas torná-lo-iam mais consistente com seus
próprios fundamentos. Para justificar essa posi-
ção, Nussbaum primeiramente define os contor-
nos do liberalismo em que apóia sua concepção
de igualdade de gênero, para então formular sua
defesa do liberalismo como fundamento da igual-
dade de gênero (NUSSBAUM, 1999).
Da teoria liberal (em particular a kantiana), a
autora extrai duas idéias centrais. A primeira é a
da igual dignidade entre os seres humanos e a se-
gunda, o poder de escolha moral do indivíduo
entendido como habilidade de planejar uma vida
de acordo com sua própria avaliação de fins. Des-
sas idéias decorreriam compromissos políticos que
a autora julga serem indispensáveis a uma teoria
feminista. O primeiro é o de não tornar diferenças
moralmente irrelevantes fontes sistemáticas de
hierarquia social. Assim, o liberalismo seria ne-
cessariamente crítico da discriminação racial, de
classe, de gênero, ao sistema de castas etc. Além
disso, o liberalismo opor-se-ia também a formas
de política cooperativas ou organicamente orga-
nizadas.Afinalidade da política liberal seria o bem-
comum, universal, sem privilegiar determinados
grupos em detrimento de outros. Esse bem-co-
mum, porém, jamais poderia perder de vista que
o fim último da política é o bem-estar dos indiví-
duos. Por fim, a política liberal estaria compro-
metida com a tolerância e com a diversidade, no
sentido de que não poderia se voltar a uma forma
particular de bem, fosse ela religiosa ou laica
(idem).
Nesse arcabouço, a autora identifica aquilo que
considera o conceito liberal mais valioso para o
feminismo: a autonomia do indivíduo. Tomando o
indivíduo como unidade básica do pensamento
político, a teoria liberal opor-se-ia à idéia de que o
indivíduo funde-se à coletividade, seja ela a co-
munidade política, seu grupo social ou mesmo a
família.
O liberalismo político, porém, tem sido objeto
de inúmeras críticas de teorias feministas influen-
tes, como a de Pateman. As críticas de Pateman
comentadas no item anterior referem-se a duas
questões centrais: a relação entre natureza e cul-
tura e o caráter abstrato da igualdade liberal. A
primeira questão seria tratada pelo liberalismo de
141
REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA V. 18, Nº 36: 135-146 JUN. 2010
forma a justificar em bases amorais e apolíticas a
distribuição de papéis no âmbito privado e público
e, dessa forma, torná-la imutável; enquanto que a
segunda cavaria um fosso entre a igualdade for-
mal e as hierarquias e desigualdades sociais, de
modo a afastá-las do campo de visão e ação das
políticas liberais.
As posições de Pateman e Nussbaum são muito
semelhantes no que se refere ao questionamento
da origem natural da distribuição de papéis. Em
ambas as autoras encontram-se críticas tanto ao
discurso conservador tradicional (antifeminista),
quanto a teorias feministas essencialistas, que de-
fendem uma espécie de “direito à identidade femi-
nina”. A valoração dos atributos femininos “natu-
rais” é a característica mais central do chamado
feminismo essencialista. Esses atributos são
freqüentemente relacionados à maternidade, en-
tendida como a experiência que define o femini-
no. Os hormônios são também assumidos como
fatores determinantes do comportamento da mu-
lher. A carência de testosterona diminuiria sua
agressividade e tornaria seu desejo sexual mais
domesticável; ao passo que o estrogênio torná-la-
ia propensa a assumir cuidados com crianças, a
ser mais emotiva e naturalmente inclinada ao pa-
cifismo (NUSSBAUM, 1997).
A idéia de que os hormônios determinam o
comportamento maternal (que aqui equivale a fe-
minino) baseia-se no aumento das taxas de
estrogênio no período pós-parto, que a prepararia
para assumir os cuidados de seu filho. Assim, as
quantidades maiores de estrogênio nas mulheres
(ao longo da vida) moldariam o comportamento
feminino, dotando-o dos atributos necessários para
a maternidade, ou seja, tornando-o mais terno do
que agressivo (idem).
Em relação a essa questão, Nussbaum obser-
va que as implicações do efetivo aumento das ta-
xas de estrogênio no período pós-parto são inter-
pretadas por essas teorias com um viés simplista
e ideológico. Afinal, o comportamento maternal
também inclui a agressividade, que ora é dirigida
a possíveis agressores de seus filhos, ora é dirigida
a seus próprios filhos3. Há muito já foi reconheci-
do, tanto científica quanto juridicamente, que o
período pós-parto pode gerar emoções confusas
e conflitantes, que incluem a depressão, o ódio, a
agressividade e também a ternura e o amor.
Embora o discurso tradicional e o feminismo
essencialista sustentem-se na mesma fundamen-
tação biológica dos comportamentos humanos, a
conseqüência política de ambos é distinta. O pri-
meiro conduz à marcada dicotomia entre público
e privado com todas as implicações éticas e polí-
ticas apontadas por Pateman. Já o segundo justi-
fica discursos que consideram que a igualdade de
gênero depende de que as diferenças naturais se-
jam eliminadas. Firestone, uma das feministas ra-
dicais mais influentes, chega a sustentar que a
igualdade de gênero requer que a reprodução na-
tural seja substituída pela artificial, de modo a abo-
lir a gravidez e, com isso, as desigualdades de
gênero que dela decorreriam.
As críticas de Pateman e Nussbaum acerca da
fundamentação natural das identidades do femini-
no e do masculino convergem para os mesmos
pontos. Ambas sustentam que o feminismo
essencialista reproduz a idéia tradicional de que a
subordinação da mulher é decretada pela nature-
za. Ambas as autoras estão de acordo com a idéia
de que a tradução da dicotomia público-privado
em cultural-natural revela um traço sexista do li-
beralismo político tradicional e também de algu-
mas vertentes do feminismo. No entanto, tanto
Nussbaum quanto Pateman rejeitam também a idéia
de que as características biológicas sejam
irrelevantes na definição das identidades sexuais.
Em ambas, está expressamente presente a idéia
de que biologia, embora não determine comporta-
mentos, cumpre um papel na delimitação do fe-
minino e do masculino, colocando limites na de-
signação do que seria característico de cada um
dessas representações.
Portanto, a identidade de gênero nessas auto-
ras seria resultante da interação entre as dimen-
sões biológica e cultural do ser humano. Disso
decorre que o feminismo em Pateman e Nussbaum
não fará reivindicações de reconhecimento de iden-
tidades nem tampouco de desconstrução do fe-
minino ou do masculino (NUSSBAUM, 1997;
PATEMAN, 1989). Em ambas o conceito de igual-
dade de gênero aplica-se à valoração dessas iden-
tidades e às implicações dessa valoração na distri-
buição de oportunidades entre homens e mulhe-
res. Essas oportunidades incluem a realização pes-
soal, a possibilidade de planejar a própria vida, a
3 O Direito brasileiro, por exemplo, considera o estado
puerperal como um atenuante no crime em que a mãe mata
seu filho (infanticídio).
142
LIBERALISMOEFEMINISMO
participação política e o acesso ao trabalho sem
custos adicionados em razão da identidade de gê-
nero. No entanto, Pateman sustenta que o
formalismo da igualdade liberal compromete-o com
políticas indiferentes às desigualdades sociais,
especialmente àquelas que decorrem da distribui-
ção de poder no espaço doméstico.
Nussbaum também parece estar de acordo com
Pateman neste ponto. Ela admite que é necessário
ir além da igualdade abstrata para garantir a igual-
dade de gênero. Os estatutos antidiscriminação e
as decisões judiciais neles baseados teriam se
mostrado insuficientes para evitar e combater a
restrição de oportunidades das mulheres em di-
versos setores da vida. Embora tenham efetiva-
mente promovido o acesso da mulher a esferas
que lhe eram proibidas, não teriam levado em conta
que a facilidade desse acesso vê-se afetada pela
interconexão entre a distribuição de tarefas no
espaço doméstico e público. Se no campo do tra-
balho, por exemplo, determinadas funções impu-
serem exigências que são mais facilmente ade-
quadas a pessoas que não são as principais res-
ponsáveis pelos cuidados de crianças em idade
pré-escolar, a divisão sexual de tarefas no âmbito
doméstico será determinante na competição pela
vaga de trabalho, ainda que formalmente não seja
imposta nenhuma restrição quanto ao sexo
(NUSSBAUM, 1999; MACKINNON, 1987).
Entretanto, sua visão crítica da igualdade abs-
trata não se estende ao liberalismo em todas as
suas versões. Nussbaum não estabelece uma re-
lação automática ou necessária entre ambos, e cita
concepções de igualdade de liberais igualitários
como Amartya Sen e Rawls, nas quais está pre-
sente a idéia de que a igualdade de oportunidades
exige pré-requisitos materiais, e que esses pré-
requisitos materiais devem variar conforme a po-
sição real dos sujeitos na sociedade.
Em síntese, Nussbaum e Pateman estão de
acordo quanto às implicações sexistas da dicotomia
público-privado na qual estão implícitas tanto a
fundamentação biológica da identidade sexual,
quanto a igualdade abstrata. No entanto, elas di-
vergem no que se refere à possibilidade de esse
problema ser superado dentro do liberalismo. En-
quanto Pateman considera que o feminismo não é
compatível com a dicotomia público-privado, e,
portanto, com o liberalismo, Nussbaum conside-
ra que o feminismo não pode prescindir de con-
ceitos - chave liberais chave como a autonomia e
a individualidade. A questão central desse debate,
portanto, diz respeito à possibilidade de ir-se além
da dicotomia liberal e ainda assim preservar a au-
tonomia e a individualidade.
A concepção de individualismo que Nussbaum
tem em mente sugere que a dicotomia público-
privado seja traduzida como esfera pública e es-
fera da intimidade. Isso porque Nussbaum de-
fende a substituição da idéia da dicotomia pela da
interdependência, o que suporia uma esfera pri-
vada mais reduzida do que a esfera social de Locke.
A idéia de interdependência difere da dicotomia
exatamente na definição da divisória entre o públi-
co e o privado. Ambas exigem a preservação de
uma esfera de não intervenção estatal, mas a no-
ção de interdependência traz para o debate públi-
co as desigualdades no interior de associações ci-
vis que em Locke estariam a salvo da ingerência
pública.
Os pontos comuns entre Nussbaum e Pateman
revelam que a primeira corrobora as críticas de
Pateman à dicotomia liberal concebida por Locke.
Portanto, para analisar a divergência entre ambas
acerca da relação entre a dicotomia público-pri-
vado e o feminismo, deve-se, avaliar se as críti-
cas de Pateman estender-se-iam também à ver-
são da dicotomia público-privado de influência
romântica, ou seja, se a separação entre intimida-
de e social também tornaria invisíveis as
assimetrias de poder no domínio doméstico.
O conceito de intimidade ou privacidade, como
foi dito, amplia a esfera de intervenção do Estado.
Todas as associações formais com outras pesso-
as, ao invés de serem localizadas na “esfera da
liberdade”, como em Locke, são consideradas
públicas. A esfera da intimidade, porém, imporia
uma barreira à regulação e ao controle da conduta
do indivíduo. Nesse arranjo seria, enfim, evitada
a fusão entre o público e o privado ao mesmo
tempo em que se validaria a submissão das asso-
ciações civis à regulação pública.
Entretanto, como foi dito anteriormente, mes-
mo essa versão da dicotomia público-privado
apresenta problemas para o feminismo. Se as re-
lações amorosas e de amizade forem totalmente
impermeáveis à intervenção estatal, o estupro
marital e a violência doméstica não poderiam ser
criminalizados, pois isso poderia ser entendido
como uma violação da privacidade. Kymlicka re-
lata que o “direito à privacidade” na Suprema Corte
dos Estados Unidos foi inicialmente celebrado pelo
143
REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA V. 18, Nº 36: 135-146 JUN. 2010
feminismo, mas que, posteriormente, o próprio
movimento feminista denunciaria esse direito como
uma justificativa para a negligência do Estado na
proteção dos direitos das mulheres (KYMLICKA,
2006).
A primeira decisão embasada no direito à pri-
vacidade é de 1965 (caso Griswold contra
Connecticut). Neste caso, discutiu-se uma lei que
negava o acesso de mulheres casadas a meios
anticoncepcionais. O tribunal decidiu que essa lei
seria nula por ferir o direito à privacidade, pois a
decisão de ter filhos ou não seria exclusiva do
casal. Em decisões posteriores, tornou-se evidente,
porém, que a proteção “das decisões do casal” da
intervenção estatal aprofundou a divisão entre o
público e o privado, despolitizando as desigualda-
des existentes nas relações intrafamiliares
(MACKINNON, 1987). O direito à privacidade
terminou, enfim, sendo uma barreira que protege
as famílias do “teste da justiça pública”
(KYMLICKA, 2006).
A interpretação do direito à privacidade como
privacidade conjugal tem por base uma concep-
ção coletivista da família. A família substitui o in-
divíduo como unidade básica do pensamento po-
lítico. O sujeito do direito à privacidade, portanto,
foi o casal, e não o indivíduo; a autonomia famili-
ar substituiu a autonomia individual. Segundo
Kymlicka, a concepção coletivista (familiar) de
privacidade não encontra fundamento na teoria li-
beral, mas sim em idéias pré-liberais a respeito da
naturalidade da família tradicional. A proteção da
família em nome do direito à privacidade teria sido
conseqüência da adoção da linguagem liberal da
privacidade pelos “protetores da domesticidade”
(idem). Assim, a medida adequada para combater
desigualdades de gênero no âmbito familiar não
estaria em abandonar o discurso liberal. Ao con-
trário, seria preciso aprofundá-lo até finalmente
dissociar o direito à privacidade da “autonomia
familiar”, retomando o indivíduo como o núcleo
fundamental.
Nussbaum parece entender a dicotomia priva-
do-público (de influência romântica) de forma
muito semelhante à de Kymlicka, vendo ali um
potencial para justificar a politização das relações
familiares. Isso fica claro quando a autora afirma
que os liberais clássicos teriam se revelado pouco
liberais quando conceberam o espaço doméstico
como uma esfera em que a mulher desaparece
como unidade. Por isso, diz Nussbaum, a teoria
feminista teria de ser ainda mais liberal do que o
liberalismo clássico, que teria servido ao
patriarcalismo por razões unicamente ideológicas
e não por limitações teóricas (NUSSBAUM, 1999).
Em síntese, a idéia fundamental de Nussbaum
é a de que o feminismo deve aprofundar a noção
de autonomia e de individualismo, e deve fazê-lo
com as ferramentas teóricas que o liberalismo
fornece. Contra essa idéia levantam-se inúmeras
teses. Uma das críticas mais contundentes refe-
re-se justamente à idéia de que a autonomia indi-
vidual como bem-social fundamental traz implici-
tamente dois problemas para as teorias que se pre-
tendem igualitárias: o egoísmo psicológico e o
solipsismo político.
O egoísmo psicológico consiste na caracteri-
zação do sujeito como alguém que age motivado
somente pelo auto-interesse. Esse sujeito não se-
ria capaz de ocupar-se do interesse dos demais
membros do grupo. Não existiria entre os seres
humanos qualquer empatia ou sentido de solidari-
edade (JAGGAR, 1983). Nussbaum concorda que
isso poderia ser dito das teses de Hobbes e
Bentham, mas afirma que não funciona para inú-
meras outras teorias liberais que costumam ser
objeto dessa mesma crítica. Segundo ela,Amartya
Sen e Rawls teriam de ser excluídos desse grupo,
já que em ambos está explicitamente presente a
idéia de vinculação entre indivíduos. Em Sen isso
fica claro quando critica o utilitarismo por subes-
timar a importância da empatia e do compromis-
so como motivos da ação, enquanto que em Rawls
essa mesma idéia fica clara com a caracterização
dos sujeitos na posição original, que devem assu-
mir a perspectiva de todos4 (NUSSBAUM, 1999).
Mesmo o utilitarismo e o kantismo, mais fre-
qüente e facilmente associados a essa crítica, não
poderiam ser acusados de egoísmo psicológico.
Em defesa do utilitarismo, Nussbaum salienta que
a maximização da utilidade de todos requer gran-
des sacrifícios individuais e, em favor de Kant, a
autora sustenta o fato de que a imperfeição dos
deveres de benevolência é decorrente do fato de
os sujeitos tenderem a privilegiar as pessoas mais
próximas e queridas, em prejuízo de um
4 Nussbaum cita como exemplo o budismo que, mesmo
sem considerar o sujeito como uma unidade destacada dos
demais, considera o indivíduo auto-suficiente a ponto de
poder ser indiferente a fatos (NUSSBAUM, 1999).
144
LIBERALISMOEFEMINISMO
universalismo humanista, que somente a razão
poderia fundamentar.
O solipsismo político, por sua vez, relaciona-
se à suposição de que os indivíduos seriam auto-
suficientes. Nussbaum, porém, observa que essa
idéia não é necessariamente vinculada ao indivi-
dualismo. Além disso, ela acrescenta que mesmo
que a psicologia do liberalismo considerasse o in-
divíduo auto-suficiente, essa seria uma aposta
normativa e não uma descrição da realidade.
O significado do individualismo no liberalismo,
enfim, seria o de que a pessoa não se funde à coleti-
vidadeaindaquefaçapartedela.Nussbaumsalienta,
porém, que isso não implicaria numa concepção
“atomista” de sujeito, que desconsideraria os laços
que unem as pessoas, mas apenas que a distribuição
justaderecursoseoportunidadesdevelevaremconta
a condição de cada pessoa individualmente.
Entendido dessa forma, Nussbaum conclui que
o individualismo liberal representa um importante
instrumento do feminismo, uma vez que a
individuação do sujeito confronta a idéia de que a
mulher confunda-se com a unidade familiar e que,
por isso, seu valor estaria condicionado apenas à
sua contribuição enquanto reprodutoras e
“cuidadoras” (caregivers), ou seja, condicionado
à representação das personagens com a qual a
família tradicional define-a.
Apesar de a individualidade entendida como
separação (separateness) funcionar para contes-
tar a identificação do espaço privado com o lugar
feminino por excelência, ela apresenta também li-
mitações significativas para o feminismo. Confor-
me observa Anne Phillips, a individualidade em
Nussbaum é pensada isoladamente do contexto
social da qual ela emerge. A separação de cada
indivíduo, diz Phillips, é algo mais complexo do
que reconhecer que temos mentes e corpos indi-
viduais (PHILLIPS, 2001, p. 254).
A ênfase na separação (“separateness”) refor-
ça a idéia que Pateman insistentemente contesta: a
interpretação da autonomia como liberdade de es-
colha. Referindo-se a Locke, Pateman afirma que
essa liberdade está diretamente ligada à idéia de
propriedade, mais precisamente a ser “proprietá-
rio de si mesmo”. Isso significa que ser livre é ser
o único a ter direitos sobre si, é ser livre para
fazer e definir seu modo e seu plano de vida. É,
enfim, ser livre para fazer escolhas (PATEMAN,
1993, p. 88; PHILLIPS, 2001, p. 254).
Para o liberalismo a capacidade de fazer esco-
lhas é central. Por isso, a junção entre o feminis-
mo e o liberalismo pode conduzir à idéia de que o
gênero é também uma escolha. A tentativa de
Nussbaum de desnaturalizar a identidade femini-
na e a masculina sugere que o gênero é contin-
gente porque podemos escolhê-lo. Mas essa idéia,
conforme salienta Phillips, negligencia as limita-
ções que nossa condição social impõe à nossa
possibilidade de escolher nossas posições e pa-
péis na sociedade em que vivemos (PHILLIPS,
2001, p. 256). Grande parte da crítica feminista
ao liberalismo ataca justamente esse ponto.Ainda
que o feminismo mais recente tenha insistido na
idéia de que o corpo não determina o gênero, isso
não significa dizer que o corpo não importa. Ao
contrário, para o feminismo o corpo é um con-
texto e esse contexto cumpre um papel decisivo
na definição de quem somos. Nosso corpo não é
um invólucro do núcleo de nosso self. Ele tam-
bém é parte constitutiva dele.Além do mais, mes-
mo que pudéssemos distanciar-nos de nosso cor-
po, não poderíamos evitar que os “outros” conti-
nuassem associando-nos a ele Nosso corpo é um
importante aspecto do contexto em que a identi-
dade de gênero é formada. Esse contexto, por sua
vez, não é nossa propriedade. Nossa identidade
social não é uma invenção ou uma escolha total-
mente nossa. O gênero, enfim, não está em nos-
sas mãos para dispormos dele ou a respeito dele
como quisermos. Confiar nisso, diz Phillips, não
é apenas ingênuo, é perigoso.Afinal, a centralidade
da autonomia na teoria de Nussbaum minimiza as
pressões sociais que limitam nossas escolhas. Essa
minimização, por sua vez, sugere que qualquer
condição que não seja fruto de uma livre-escolha
é um fracasso e, ainda mais grave, sugere tam-
bém que nos casos em que haveria essa livre-es-
colha, nós somos totalmente responsáveis pelo que
vier a ocorrer. Enfim, a força da autonomia na
teoria de Nussbaum, apesar de suas tentativas de
afastar-se do racionalismo moderno, traz nova-
mente à tona a ficção do agente abstrato e racio-
nal, um agente que a própria Nussbaum admite
ser concebido a partir de valores identificados com
o masculino (idem; NUSSBAUM, 1999, p. 71).
Confiar em nossa capacidade de assumir o con-
trole total sobre nossa vida é uma ilusão que pode
ser perigosa. Para Phillips, Nussbaum falha ao
colocar a autonomia como a questão central da
igualdade de gênero porque isso minimiza as pres-
sões sociais que limitam nossas escolhas. A auto-
145
REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA V. 18, Nº 36: 135-146 JUN. 2010
nomia está diretamente ligada à responsabilidade.
Por isso, não levar devidamente em conta a força
dessas pressões sugere que qualquer situação que
não resulte de uma livre-escolha é um sinal de
fracasso pelo qual somos responsáveis (PHILLIPS,
2001, p. 257).
V. CONCLUSÕES
O liberalismo abarca diversas posições políti-
cas que muitas vezes fundamentam regimes pro-
fundamente distintos entre si. Essa pluralidade,
como já foi salientado anteriormente, é também
característica das teorias feministas, num grau
ainda maior. Assim, para pensar o potencial do
liberalismo na fundamentação do feminismo, é
preciso identificar tanto o núcleo do liberalismo
quanto o da concepção de igualdade que se toma
como ponto de partida em uma teoria política fe-
minista.
Nussbaum e Pateman parecem coincidir a res-
peito da concepção de igualdade de gênero. A crí-
tica que ambas dirigem à relação entre natureza e
cultura e ao formalismo da igualdade abstrata tor-
na evidente que nenhuma delas pretende atribuir o
poder ou a opressão da mulher a desígnios da
natureza. Em ambas está muito claro que o que
consideram relevante na organização de uma so-
ciedade justa quanto ao gênero é a forma como
uma sociedade valora as diferenças biológicas, bem
como as implicações dessa valoração na distribui-
ção de bens sociais. Quanto à igualdade abstrata,
os argumentos também são os mesmos. Apesar
de definir-se como liberal, Nussbaum está de acor-
do com Pateman acerca do curto alcance da igual-
dade abstrata no combate a desigualdades soci-
ais.
Dessa base comum, resultam concepções se-
melhantes sobre a relação entre público e privado.
A idéia de Nussbaum de que uma teoria feminista
deva considerá-los interdependentes (e não opos-
tos) em muito se assemelha à relação entre o pú-
blico e o privado defendida por Pateman. Em ou-
tras palavras: tanto Pateman quanto Nussbaum
entendem que o feminismo precisa tornar a esfe-
ra privada permeável à intervenção pública sem
sacrificar a individualidade e a intimidade.
Nussbaum, porém, acredita que essa equação
seja possível dentro da teoria liberal, desde que
esta seja submetida a transformações que elimi-
nem deturpações teóricas decorrentes do
conservadorismo dos primeiros filósofos liberais.
A autora sustenta, ainda, que insistir no liberalis-
mo (modificado pela crítica feminista) é indispen-
sável para o feminismo, pois este não sobrevive
sem a concepção de autonomia e individualidade
liberais. Pateman, por sua vez, embora não acre-
dite que a consistência da teoria liberal sobreviva
às modificações exigidas pelo feminismo,
tampouco parece abrir mão da idéia de autonomia
do indivíduo.
As divergências entre Nussbaum e Pateman
desaguam, enfim, não tanto no potencial do libe-
ralismo para o feminismo já que, quando criticam
ou defendem o liberalismo, elas referem-se a uma
tradição filosófica muito ampla privilegiando au-
tores distintos como interlocutores. O ponto cen-
tral aqui parece estar, sim, no modo em que cada
uma delas entende a interdependência entre o pú-
blico e o privado. Mas essa concepção de
interdependência não é devidamente explicitada por
nenhuma delas.
Nesse aspecto, a contribuição de Hannah
Pitikin pode sugerir algumas combinações impor-
tantes entre os argumentos e preocupações de
Nussbaum e Pateman. Pitikin sustenta que o pú-
blico e o privado relacionam-se porque as ques-
tões que atingem a esfera pública somente o fa-
zem porque afetam os indivíduos em suas vidas
cotidianas na esfera privada. As demandas e insa-
tisfações da dona de casa, por exemplo, são vivi-
das como uma experiência individual e excepcio-
nal somente até que cada dona de casa perceba
que sua situação é compartilhada por outras mu-
lheres. Nesse momento, as questões individuais,
sentidas na concretude da vida privada, tomam
uma forma coletiva e podem aspirar ao status de
questão de interesse público (PITKIN, 1981, p.
348).
Os argumentos de Nussbaum e Pateman su-
gerem que elas subscreveriam essa relação entre
o público e o privado. Isso indica que, apesar dos
contrastes de suas respectivas posições acerca do
liberalismo e da autonomia, suas concepções de
política estão bem mais próximas. Por isso, o ca-
minho para o livre-trânsito das mulheres do espa-
ço privado para o público em condições de igual-
dade com os homens parece estar antes numa
reflexão acerca da concepção de política do que
da de autonomia. E para isso, Pateman parece ser
um melhor guia do que Nussbaum.
146
LIBERALISMOEFEMINISMO
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Ingrid Cyfer (ingridcy@gmail.com) é Doutora em Ciência Política pela Universidade de São Paulo, USP.
BENN, S. & GAUSS, G. (eds.). 1983. Public and
Private in Social Life. New York: St. Martin.
BRYSSON, V. 1992. Feminist Political Theory.
London: Macmillan.
JAGGAR,A. 1983. Feminist Politics and Human
Nature. Totowa: Rowman and Allanheld.
KYMLICKA, W. 2006. Filosofia política con-
temporânea. São Paulo: M. Fontes.
MACKINNON, C. 1987. Feminism Unmodified:
Discourses on Life and Law. Cambridge,
Mass.: Harvard University.
MILL, S. 1970. The Subjection of Women. In:
ROSSI, A. (ed.). Essays on Sex Equality. Chi-
cago: University of Chicago.
NUSSABUM, M. 1997. Construction of Love,
Desire and Care. In: ESTLUND, D. M. &
NUSSBAUM, M. C. (eds.). Sex, Preference,
and the Family: Essays on Law and Nature.
New York: Oxford University.
_____. 1999. Sex and Social Justice. Oxford:
Oxford University.
OKIN, S.1989. Justice, Gender, and the Family.
Chicago: University of Chicago.
_____. 1992. Women in Western Political Thought.
Princeton: Princeton University.
PATEMAN, C. 1989. The Disorder of Women.
Stanford: Stanford University.
_____. 1993. O contrato sexual. Rio de Janeiro:
Paz e Terra.
PHILLIPS, A. 2001. Feminism and Liberalism
Revisited: Has Martha Nussbaum Got It Right?
Constellations, New York, v. 8, n. 2, p. 249-
266. Disponível em: http://
www.newschool.edu/uploadedFiles/TCDS/
Democracy_and_Diversity_Institutes/
Phillips_Feminism%20and%20Liberalism.pdf.
Acesso em: 24.abr.2010.
PITKIN, H. 1981. Justice: On Relating Private
and Public. Political Theory, London, v. 9, n.
3, p. 327-352, Aug.
ROSENBLUM, N. 1987. Another Liberalism:
Romanticism and the Reconstruction of Libe-
ral Thought. Cambridge, Mass.: Harvard
University.
297
REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA V. 18, Nº 36: 295-300 JUN. 2010
FEMINISTS AND THE DIVERSITY OF REPUBLICAN ALTERNATIVES
Carla Cecília Rodrigues Almeida and José Antônio Martins
This article analyzes the critical move of certain feminists toward republicanism and explores the
hypothesis that such a move represents important points of contact with a current of popular
republicanism. Based on classical authors and adopting specific criteria for looking at the constitutive
diversity of republicanism, we seek a way to define this current and as well as the aristocratic one
which serves as its counterpoint. Our hypothesis is based, on the one hand, on analysis of feminist
critiques of certain current formulations which, to a greater or lesser extent, share the republican
ideal that contemporary society must endow public life with renewed meaning. On the other hand, it
draws from particular proposals that have been elaborated in order to appropriate this ideal. Our
analysis then makes it possible to suggest that the concerns that characterize the popular republican
current offer more promising sources for combining the ideal of a renewed public sphere with
demands for justice. Through this focus, we emphasize feminist contributions to democratic theory.
KEYWORDS: feminist theory; popular republicanism; aristocratic republicanism; democratic theory.
* * *
LIBERALISM AND FEMINISM: GENDER EQUALITY IN CAROLE PATEMAN AND
MARTHA NUSSBAUM
Ingrid Cyfer
This article discusses the relationship between liberalism and feminism through the work of two
feminist scholars, Carole Pateman and Martha Nussbaum. This is an important issue for feminism,
and one in which the problems associated with public-private and nature-culture dichotomies, inherited
from liberalism, are fundamental. In this regard, we will discuss Carole Pateman and Martha
Nussbaum’s positions on the matter. Our choice of authors is due to the fact that both share many of
same premises and conclusions, and because their divergences are located primarily around problems
in which feminism is “added on” to political liberalism. Thus, in carrying out a discussion through both
positions, we minimize the risk that the analysis of the debate move little beyond the critique that
numerous theories have directed toward liberalism, and offer what can be a fruitful entry into one of
the most controversial points in contemporary feminist theory. Nussbaum and Pateman seem to
coincide regarding their conception of gender equality. In the criticism that both of them direct
toward the nature-culture relationship and to the formalism of abstract equality, it becomes evident
that neither seeks to attribute either power or the oppression of women to nature’s designs. In both
authors, it is very clear that what they consider relevant for the organization of a just society in terms
of gender is the way in which a society places value on biological differences and what implications
this has for the distribution of social goods. Nussbaum, however, believes that this equation can be
dealt with within liberal theory, as long as it is subjected to changes which free it from theoretical
problems linked to the conservative stance of the first liberal philosophers.
KEYWORDS: feminism; feminist theory; political liberalism; gender equality; nature and culture;
public and private.
* * *
DIPLOMACY AND DOMESTIC POLITICS: THE LOGIC OF THE TWO-LEVEL GAMES
Robert Putnam
Domestic politics and international relations are often inextricably entangled, but existing theories
(particularly state-centric theories) do not adequately account for these linkages. When national
leaders must win ratification (formal or informal) from their constituents for an international agreement,
their negotiating behavior reflects the simultaneous imperatives of both a domestic political game
305
REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA V. 18, Nº 36: 303-309 JUN. 2010
corps par rapport à leur propre sexualité et capacité de reproduction, soit dans les situations qui font
réference à la liberté pour consentir la prostitution, location de l’utérus, etc.
MOTS-CLES: John Locke; liberté; propriété; libéralisme; théorie féministe.
* * *
LES FÉMINISTES ET LA DIVERSITÉ DES ALTERNATIVES RÉPUBLICAINES
Carla Cecília Rodrigues Almeida et José Antônio Martins
L’article analyse l’approche critique de quelques féministes au républicanisme et explore l’hypothèse
de que tel approche exprime des points de contact importants avec la branche républicaine populaire.
En se basant sur des auteurs classiques et en adoptant un critère spécifique pour approcher la
diversité constitutive du républicanisme, nous définissons les contours de la branche et de celle qui lui
sert de contrepoint : la branche aristocratique. Notre hypothèse s’est basée d’un côté, sur l’analyse
des critiques féministes à quelques formulations courantes qui, en certaine mesure, partagent l’idéal
républicain de que la société contemporaine a besoin de créer un nouveau sens pour la vie publique.
De l’autre côté, elle est basée sur les propositions qu’elles mêmes élaborent pour s’approprier de
l’idéal. Cette analyse nous permet de suggérer que les préocupations qui caractérisent la branche
républicaine populaire, offrent des sources plus prometeuses pour qu’on puisse combiner l’idéal de
revitalisation de l’esphère publique avec les éxigences de justice. A partir de là, nous mettons en
évidence les contributions que les féministes ont apporté à la théorie démocratique.
MOTS-CLES: théorie féministe; républicanisme populaire; républicanisme aristocratique; théorie
démocratique.
* * *
LIBÉRALISME ET FÉMINISME: ÉGALITÉ DE GENRE EN CAROLE PATEMAN ET
MARTHA NUSSBAUM
Ingrid Cyfer
L’article discute la relation entre le libéralisme et le féminisme à partir de deux auteurs féministes,
Carole Pateman et Martha Nussbaum. Il s’agit d’une question importante pour le féminisme, pour
lequel ce sont des problèmes fondamentaux associés aux dichotomies publiques et privés, culture et
nature – héritées du libéralisme. Dans ce sens, nous discutons les positions de Carole Pateman et
Martha Nussbaum qui font réference à ces problèmes. Le choix des auteurs est due au fait que
toutes les deux partagent beaucoup d’hypothèses et des conclusions, et aussi car leurs différences
se situent principalement autour de problèmes où le féminisme est ajouté au libéralisme politique.
Ainsi, faire une discussion entre leurs positions, minimise le risque de que l’analyse du débat n’aille
pas plus loin que les critiques lesquelles plusieurs théories dirigent au libéralisme, pouvant fonctionner,
enfin, comme une bonne porte d’entrée pour quelques uns des points les plus controversés de la
théorie féministe contemporaine. Nussbaum et Pateman semblent coïncider par rapport à la conception
de l’égalité de genre. La critique que toutes les deux dirigent à la relation entre la nature et la culture
et au formalisme de l’égalité abstraite, rend évident que aucune des deux a l’intention d’attribuer le
pouvoir ou l’oppression de la femme aux objectifs de la nature. Chez toutes les deux, il est très clair
que ce que c’est consideré pertinent dans l’organization d’une société juste par rapport au genre,
c’est la forme dont une société valorise les différences biologiques, tout comme les implications de
cette valorisation dans la distribution de biens sociaux. Mais, Nussbaum, croit que cette équation est
possible dans la théorie libérale, tandis que celle-ci doit être soumise à des transformations qui
éliminent des déformations théoriques qui suivent le conservatisme des premiers philosophes libéraux.
MOTS-CLES: féminisme, théorie féministe; libéralisme politique; égalité de genre; nature et culture;
publique; privé.
* * *

Mais conteúdo relacionado

Mais procurados

Conflitos sociais e politica
Conflitos sociais e politicaConflitos sociais e politica
Conflitos sociais e politica
Rodrigo Ribeiro
 
Anderson, perry. a crise da crise do marxismo cópia
Anderson, perry. a crise da crise do marxismo   cópiaAnderson, perry. a crise da crise do marxismo   cópia
Anderson, perry. a crise da crise do marxismo cópia
TAmires Iwanczuk
 
2 violência de gênero
2 violência de gênero  2 violência de gênero
2 violência de gênero
Rozeluz
 
O partidismo ufano de francisco assis set_2014
O partidismo ufano de francisco assis set_2014O partidismo ufano de francisco assis set_2014
O partidismo ufano de francisco assis set_2014
Elisio Estanque
 
Há uma concepção utópica no pensamento marxista (revisado maio 2012)
Há uma concepção utópica no pensamento marxista (revisado maio 2012)Há uma concepção utópica no pensamento marxista (revisado maio 2012)
Há uma concepção utópica no pensamento marxista (revisado maio 2012)
GabrielaMansur
 
Democracia Racial E Multiculturalismo. A Ambivalente Singularidade Cultural B...
Democracia Racial E Multiculturalismo. A Ambivalente Singularidade Cultural B...Democracia Racial E Multiculturalismo. A Ambivalente Singularidade Cultural B...
Democracia Racial E Multiculturalismo. A Ambivalente Singularidade Cultural B...
janioguga
 
Respostas ambiguidade folha
Respostas   ambiguidade folhaRespostas   ambiguidade folha
Respostas ambiguidade folha
Diego Prezia
 

Mais procurados (19)

Perry anderson A crise do marxismo
Perry anderson    A crise do marxismoPerry anderson    A crise do marxismo
Perry anderson A crise do marxismo
 
Conflitos sociais e politica
Conflitos sociais e politicaConflitos sociais e politica
Conflitos sociais e politica
 
A praxe e o novo tribalismo 22.out.14
A praxe e o novo tribalismo 22.out.14A praxe e o novo tribalismo 22.out.14
A praxe e o novo tribalismo 22.out.14
 
Transfeminismo: Teoria e Práticas
Transfeminismo: Teoria e PráticasTransfeminismo: Teoria e Práticas
Transfeminismo: Teoria e Práticas
 
Formações ideológicas na cultura brasileira - Alfredo Bosi.
Formações ideológicas na cultura brasileira - Alfredo Bosi.Formações ideológicas na cultura brasileira - Alfredo Bosi.
Formações ideológicas na cultura brasileira - Alfredo Bosi.
 
Margareth rago o anarquismo e a história
Margareth rago o anarquismo e a históriaMargareth rago o anarquismo e a história
Margareth rago o anarquismo e a história
 
Anderson, perry. a crise da crise do marxismo cópia
Anderson, perry. a crise da crise do marxismo   cópiaAnderson, perry. a crise da crise do marxismo   cópia
Anderson, perry. a crise da crise do marxismo cópia
 
VIEIRIA, Carlos Eduardo & OLIVEIRA, Marcus A. T. Thompson e Gramsci. História...
VIEIRIA, Carlos Eduardo & OLIVEIRA, Marcus A. T. Thompson e Gramsci. História...VIEIRIA, Carlos Eduardo & OLIVEIRA, Marcus A. T. Thompson e Gramsci. História...
VIEIRIA, Carlos Eduardo & OLIVEIRA, Marcus A. T. Thompson e Gramsci. História...
 
Resposta à Santos 2015.
Resposta à Santos 2015.Resposta à Santos 2015.
Resposta à Santos 2015.
 
Resposta para Santos 15.
Resposta para Santos 15.Resposta para Santos 15.
Resposta para Santos 15.
 
2 violência de gênero
2 violência de gênero  2 violência de gênero
2 violência de gênero
 
O partidismo ufano de francisco assis set_2014
O partidismo ufano de francisco assis set_2014O partidismo ufano de francisco assis set_2014
O partidismo ufano de francisco assis set_2014
 
Res1 rev6
Res1 rev6Res1 rev6
Res1 rev6
 
Ee_publico_entrevista-1
  Ee_publico_entrevista-1  Ee_publico_entrevista-1
Ee_publico_entrevista-1
 
Entrevista de-chartier-com-bourdieu
Entrevista de-chartier-com-bourdieuEntrevista de-chartier-com-bourdieu
Entrevista de-chartier-com-bourdieu
 
Há uma concepção utópica no pensamento marxista (revisado maio 2012)
Há uma concepção utópica no pensamento marxista (revisado maio 2012)Há uma concepção utópica no pensamento marxista (revisado maio 2012)
Há uma concepção utópica no pensamento marxista (revisado maio 2012)
 
Democracia Racial E Multiculturalismo. A Ambivalente Singularidade Cultural B...
Democracia Racial E Multiculturalismo. A Ambivalente Singularidade Cultural B...Democracia Racial E Multiculturalismo. A Ambivalente Singularidade Cultural B...
Democracia Racial E Multiculturalismo. A Ambivalente Singularidade Cultural B...
 
Zombaria como-arma-anti-feminista
Zombaria como-arma-anti-feministaZombaria como-arma-anti-feminista
Zombaria como-arma-anti-feminista
 
Respostas ambiguidade folha
Respostas   ambiguidade folhaRespostas   ambiguidade folha
Respostas ambiguidade folha
 

Destaque

Disculpas
DisculpasDisculpas
Disculpas
Apala .
 
Lateral Time
Lateral TimeLateral Time
Lateral Time
dusty96
 
The Reindeer Herder's Day in Russia
The Reindeer Herder's Day in RussiaThe Reindeer Herder's Day in Russia
The Reindeer Herder's Day in Russia
maditabalnco
 
پیش بینی زیان مالی
پیش بینی زیان مالیپیش بینی زیان مالی
پیش بینی زیان مالی
Nima afzalpour
 
A práxis educomunicativa
A práxis educomunicativaA práxis educomunicativa
A práxis educomunicativa
Marcelo CORREIA
 
EVOLUCIÓN HISTÓRICA DE LAS METROPOLIS URBANAS
EVOLUCIÓN HISTÓRICA DE LAS METROPOLIS URBANASEVOLUCIÓN HISTÓRICA DE LAS METROPOLIS URBANAS
EVOLUCIÓN HISTÓRICA DE LAS METROPOLIS URBANAS
Lenin Quilisimba
 
EL PERÚ EN EL CONTEXTO DE UN MUNDO GLOBALIZADO.
EL PERÚ EN EL CONTEXTO DE UN MUNDO GLOBALIZADO.EL PERÚ EN EL CONTEXTO DE UN MUNDO GLOBALIZADO.
EL PERÚ EN EL CONTEXTO DE UN MUNDO GLOBALIZADO.
Eder Paredes
 

Destaque (20)

Turma Da Monica Cidadania
Turma Da Monica   CidadaniaTurma Da Monica   Cidadania
Turma Da Monica Cidadania
 
Productos sesion uno
Productos sesion unoProductos sesion uno
Productos sesion uno
 
Angel de la guarda
Angel de la guardaAngel de la guarda
Angel de la guarda
 
Disculpas
DisculpasDisculpas
Disculpas
 
Lateral Time
Lateral TimeLateral Time
Lateral Time
 
Presentation challah-fdl-original
Presentation   challah-fdl-originalPresentation   challah-fdl-original
Presentation challah-fdl-original
 
Carta aberta Sinepe-SC - Set 2015
Carta aberta  Sinepe-SC - Set 2015Carta aberta  Sinepe-SC - Set 2015
Carta aberta Sinepe-SC - Set 2015
 
Google Paga X Trabajar Así
Google Paga X Trabajar AsíGoogle Paga X Trabajar Así
Google Paga X Trabajar Así
 
The Reindeer Herder's Day in Russia
The Reindeer Herder's Day in RussiaThe Reindeer Herder's Day in Russia
The Reindeer Herder's Day in Russia
 
پیش بینی زیان مالی
پیش بینی زیان مالیپیش بینی زیان مالی
پیش بینی زیان مالی
 
Otras Victorias
Otras  VictoriasOtras  Victorias
Otras Victorias
 
P&p
P&pP&p
P&p
 
Peter Van Geit's talk on the success of Chennai Trekking Club at TEDxChennai ...
Peter Van Geit's talk on the success of Chennai Trekking Club at TEDxChennai ...Peter Van Geit's talk on the success of Chennai Trekking Club at TEDxChennai ...
Peter Van Geit's talk on the success of Chennai Trekking Club at TEDxChennai ...
 
A práxis educomunicativa
A práxis educomunicativaA práxis educomunicativa
A práxis educomunicativa
 
Minimalizm
MinimalizmMinimalizm
Minimalizm
 
P de ponto 2012_01
P de ponto 2012_01P de ponto 2012_01
P de ponto 2012_01
 
EVOLUCIÓN HISTÓRICA DE LAS METROPOLIS URBANAS
EVOLUCIÓN HISTÓRICA DE LAS METROPOLIS URBANASEVOLUCIÓN HISTÓRICA DE LAS METROPOLIS URBANAS
EVOLUCIÓN HISTÓRICA DE LAS METROPOLIS URBANAS
 
Deficientes: vantagens da inclusão
Deficientes: vantagens da inclusãoDeficientes: vantagens da inclusão
Deficientes: vantagens da inclusão
 
EL PERÚ EN EL CONTEXTO DE UN MUNDO GLOBALIZADO.
EL PERÚ EN EL CONTEXTO DE UN MUNDO GLOBALIZADO.EL PERÚ EN EL CONTEXTO DE UN MUNDO GLOBALIZADO.
EL PERÚ EN EL CONTEXTO DE UN MUNDO GLOBALIZADO.
 
Lineamientos curriculares preescolar - "La visión del niño desde sus dimensi...
Lineamientos curriculares preescolar -  "La visión del niño desde sus dimensi...Lineamientos curriculares preescolar -  "La visión del niño desde sus dimensi...
Lineamientos curriculares preescolar - "La visión del niño desde sus dimensi...
 

Semelhante a Liberalismo e feminismo

281960 ideologia degenero_perigose_alcances_conferenciaepiscopalperuana
281960 ideologia degenero_perigose_alcances_conferenciaepiscopalperuana281960 ideologia degenero_perigose_alcances_conferenciaepiscopalperuana
281960 ideologia degenero_perigose_alcances_conferenciaepiscopalperuana
Emerson de Oliveira
 
GÊNERO NA TEORIA SOCIAL Papéis, interações e instituições.
GÊNERO NA TEORIA SOCIAL Papéis, interações e instituições.GÊNERO NA TEORIA SOCIAL Papéis, interações e instituições.
GÊNERO NA TEORIA SOCIAL Papéis, interações e instituições.
Juliana Anacleto
 
Preconceito Contra Homossexualidades - Marco Aurélio Máximo Prado.pdf
Preconceito Contra Homossexualidades - Marco Aurélio Máximo Prado.pdfPreconceito Contra Homossexualidades - Marco Aurélio Máximo Prado.pdf
Preconceito Contra Homossexualidades - Marco Aurélio Máximo Prado.pdf
VIEIRA RESENDE
 
Um olhar sobre gênero e identidade
Um olhar sobre gênero e identidadeUm olhar sobre gênero e identidade
Um olhar sobre gênero e identidade
pibiduergsmontenegro
 
Sociologia: origens, contexto histórico, político e social Os mestres fundado...
Sociologia: origens, contexto histórico, político e social Os mestres fundado...Sociologia: origens, contexto histórico, político e social Os mestres fundado...
Sociologia: origens, contexto histórico, político e social Os mestres fundado...
Rogerio Silva
 

Semelhante a Liberalismo e feminismo (20)

Conceito de gênero.
Conceito de gênero.Conceito de gênero.
Conceito de gênero.
 
281960 ideologia degenero_perigose_alcances_conferenciaepiscopalperuana
281960 ideologia degenero_perigose_alcances_conferenciaepiscopalperuana281960 ideologia degenero_perigose_alcances_conferenciaepiscopalperuana
281960 ideologia degenero_perigose_alcances_conferenciaepiscopalperuana
 
GÊNERO NA TEORIA SOCIAL Papéis, interações e instituições.
GÊNERO NA TEORIA SOCIAL Papéis, interações e instituições.GÊNERO NA TEORIA SOCIAL Papéis, interações e instituições.
GÊNERO NA TEORIA SOCIAL Papéis, interações e instituições.
 
Preconceito Contra Homossexualidades - Marco Aurélio Máximo Prado.pdf
Preconceito Contra Homossexualidades - Marco Aurélio Máximo Prado.pdfPreconceito Contra Homossexualidades - Marco Aurélio Máximo Prado.pdf
Preconceito Contra Homossexualidades - Marco Aurélio Máximo Prado.pdf
 
Elementos da teoria da estruturação
Elementos da teoria da estruturaçãoElementos da teoria da estruturação
Elementos da teoria da estruturação
 
RELAÇÕES DE GÊNERO: FONTES, METODOLOGIAS E POTENCIALIDADES DE PESQUISA EM HIS...
RELAÇÕES DE GÊNERO: FONTES, METODOLOGIAS E POTENCIALIDADES DE PESQUISA EM HIS...RELAÇÕES DE GÊNERO: FONTES, METODOLOGIAS E POTENCIALIDADES DE PESQUISA EM HIS...
RELAÇÕES DE GÊNERO: FONTES, METODOLOGIAS E POTENCIALIDADES DE PESQUISA EM HIS...
 
Ideologia sociologia do conhecimento
Ideologia   sociologia do conhecimentoIdeologia   sociologia do conhecimento
Ideologia sociologia do conhecimento
 
Gênero feminino no século XXI: Os feminismos e as múltiplas formas de coexist...
Gênero feminino no século XXI: Os feminismos e as múltiplas formas de coexist...Gênero feminino no século XXI: Os feminismos e as múltiplas formas de coexist...
Gênero feminino no século XXI: Os feminismos e as múltiplas formas de coexist...
 
Ideologias de gênero e novas opções sexuais.pdf
Ideologias de gênero e novas opções sexuais.pdfIdeologias de gênero e novas opções sexuais.pdf
Ideologias de gênero e novas opções sexuais.pdf
 
Mulher e Polítca: reflexões sobre a participação da mulher na política
Mulher e Polítca: reflexões sobre a participação da mulher na políticaMulher e Polítca: reflexões sobre a participação da mulher na política
Mulher e Polítca: reflexões sobre a participação da mulher na política
 
GÊNERO E SEXUALIDADE NAS PEDAGOGIAS CULTURAIS: IMPLICAÇÕES PARA A EDUCAÇÃO IN...
GÊNERO E SEXUALIDADE NAS PEDAGOGIAS CULTURAIS: IMPLICAÇÕES PARA A EDUCAÇÃO IN...GÊNERO E SEXUALIDADE NAS PEDAGOGIAS CULTURAIS: IMPLICAÇÕES PARA A EDUCAÇÃO IN...
GÊNERO E SEXUALIDADE NAS PEDAGOGIAS CULTURAIS: IMPLICAÇÕES PARA A EDUCAÇÃO IN...
 
A identidade lésbica a partir de Rich, Falquet, Almeida e Preciado.
A identidade lésbica a partir de Rich, Falquet, Almeida e Preciado.A identidade lésbica a partir de Rich, Falquet, Almeida e Preciado.
A identidade lésbica a partir de Rich, Falquet, Almeida e Preciado.
 
Por um modelo agonístico de democracia
Por um modelo agonístico de democracia Por um modelo agonístico de democracia
Por um modelo agonístico de democracia
 
VI ENAPS - Tribuna de Debates - Texto feminista - Zilmar Alverita
VI ENAPS - Tribuna de Debates - Texto feminista - Zilmar AlveritaVI ENAPS - Tribuna de Debates - Texto feminista - Zilmar Alverita
VI ENAPS - Tribuna de Debates - Texto feminista - Zilmar Alverita
 
Feminism premisses
Feminism premissesFeminism premisses
Feminism premisses
 
Feminism premisses
Feminism premissesFeminism premisses
Feminism premisses
 
Um olhar sobre gênero e identidade
Um olhar sobre gênero e identidadeUm olhar sobre gênero e identidade
Um olhar sobre gênero e identidade
 
A Mulher na Teledramaturgia Mexicana: Representações no Visível e Invisível
A Mulher na Teledramaturgia Mexicana: Representações no Visível e InvisívelA Mulher na Teledramaturgia Mexicana: Representações no Visível e Invisível
A Mulher na Teledramaturgia Mexicana: Representações no Visível e Invisível
 
5247 20092-1-pb
5247 20092-1-pb5247 20092-1-pb
5247 20092-1-pb
 
Sociologia: origens, contexto histórico, político e social Os mestres fundado...
Sociologia: origens, contexto histórico, político e social Os mestres fundado...Sociologia: origens, contexto histórico, político e social Os mestres fundado...
Sociologia: origens, contexto histórico, político e social Os mestres fundado...
 

Mais de Míriam Martinho (6)

VII Encontro Brasileiro de Lésbicas e Homossexuais
VII Encontro Brasileiro de Lésbicas e HomossexuaisVII Encontro Brasileiro de Lésbicas e Homossexuais
VII Encontro Brasileiro de Lésbicas e Homossexuais
 
Prazer sem medo (sobre saúde e sexualidade para mulheres lésbicas)
Prazer sem medo (sobre saúde e sexualidade para mulheres lésbicas)Prazer sem medo (sobre saúde e sexualidade para mulheres lésbicas)
Prazer sem medo (sobre saúde e sexualidade para mulheres lésbicas)
 
Entrevistacassandraccc
EntrevistacassandracccEntrevistacassandraccc
Entrevistacassandraccc
 
Http _www.camara.gov.br_proposicoes_web_prop_mostrarintegra;jsessionid=9b6c1...
Http  _www.camara.gov.br_proposicoes_web_prop_mostrarintegra;jsessionid=9b6c1...Http  _www.camara.gov.br_proposicoes_web_prop_mostrarintegra;jsessionid=9b6c1...
Http _www.camara.gov.br_proposicoes_web_prop_mostrarintegra;jsessionid=9b6c1...
 
Questões de Saúde Lésbica
Questões de Saúde LésbicaQuestões de Saúde Lésbica
Questões de Saúde Lésbica
 
Livreto 19 de Agosto, Dia do Orgulho das Lesbianas no Brasil
Livreto 19 de Agosto, Dia do Orgulho das Lesbianas no BrasilLivreto 19 de Agosto, Dia do Orgulho das Lesbianas no Brasil
Livreto 19 de Agosto, Dia do Orgulho das Lesbianas no Brasil
 

Último

8 Aula de predicado verbal e nominal - Predicativo do sujeito
8 Aula de predicado verbal e nominal - Predicativo do sujeito8 Aula de predicado verbal e nominal - Predicativo do sujeito
8 Aula de predicado verbal e nominal - Predicativo do sujeito
tatianehilda
 
Considerando as pesquisas de Gallahue, Ozmun e Goodway (2013) os bebês até an...
Considerando as pesquisas de Gallahue, Ozmun e Goodway (2013) os bebês até an...Considerando as pesquisas de Gallahue, Ozmun e Goodway (2013) os bebês até an...
Considerando as pesquisas de Gallahue, Ozmun e Goodway (2013) os bebês até an...
azulassessoria9
 
Expansão Marítima- Descobrimentos Portugueses século XV
Expansão Marítima- Descobrimentos Portugueses século XVExpansão Marítima- Descobrimentos Portugueses século XV
Expansão Marítima- Descobrimentos Portugueses século XV
lenapinto
 
QUIZ ensino fundamental 8º ano revisão geral
QUIZ ensino fundamental 8º ano revisão geralQUIZ ensino fundamental 8º ano revisão geral
QUIZ ensino fundamental 8º ano revisão geral
AntonioVieira539017
 
Artigo Científico - Estrutura e Formatação.ppt
Artigo Científico - Estrutura e Formatação.pptArtigo Científico - Estrutura e Formatação.ppt
Artigo Científico - Estrutura e Formatação.ppt
RogrioGonalves41
 

Último (20)

classe gramatical Substantivo apresentação..pptx
classe gramatical Substantivo apresentação..pptxclasse gramatical Substantivo apresentação..pptx
classe gramatical Substantivo apresentação..pptx
 
Currículo - Ícaro Kleisson - Tutor acadêmico.pdf
Currículo - Ícaro Kleisson - Tutor acadêmico.pdfCurrículo - Ícaro Kleisson - Tutor acadêmico.pdf
Currículo - Ícaro Kleisson - Tutor acadêmico.pdf
 
Apresentação ISBET Jovem Aprendiz e Estágio 2023.pdf
Apresentação ISBET Jovem Aprendiz e Estágio 2023.pdfApresentação ISBET Jovem Aprendiz e Estágio 2023.pdf
Apresentação ISBET Jovem Aprendiz e Estágio 2023.pdf
 
Introdução às Funções 9º ano: Diagrama de flexas, Valor numérico de uma funçã...
Introdução às Funções 9º ano: Diagrama de flexas, Valor numérico de uma funçã...Introdução às Funções 9º ano: Diagrama de flexas, Valor numérico de uma funçã...
Introdução às Funções 9º ano: Diagrama de flexas, Valor numérico de uma funçã...
 
Renascimento Cultural na Idade Moderna PDF
Renascimento Cultural na Idade Moderna PDFRenascimento Cultural na Idade Moderna PDF
Renascimento Cultural na Idade Moderna PDF
 
Sistema de Bibliotecas UCS - Cantos do fim do século
Sistema de Bibliotecas UCS  - Cantos do fim do séculoSistema de Bibliotecas UCS  - Cantos do fim do século
Sistema de Bibliotecas UCS - Cantos do fim do século
 
M0 Atendimento – Definição, Importância .pptx
M0 Atendimento – Definição, Importância .pptxM0 Atendimento – Definição, Importância .pptx
M0 Atendimento – Definição, Importância .pptx
 
8 Aula de predicado verbal e nominal - Predicativo do sujeito
8 Aula de predicado verbal e nominal - Predicativo do sujeito8 Aula de predicado verbal e nominal - Predicativo do sujeito
8 Aula de predicado verbal e nominal - Predicativo do sujeito
 
Considerando as pesquisas de Gallahue, Ozmun e Goodway (2013) os bebês até an...
Considerando as pesquisas de Gallahue, Ozmun e Goodway (2013) os bebês até an...Considerando as pesquisas de Gallahue, Ozmun e Goodway (2013) os bebês até an...
Considerando as pesquisas de Gallahue, Ozmun e Goodway (2013) os bebês até an...
 
Expansão Marítima- Descobrimentos Portugueses século XV
Expansão Marítima- Descobrimentos Portugueses século XVExpansão Marítima- Descobrimentos Portugueses século XV
Expansão Marítima- Descobrimentos Portugueses século XV
 
Monoteísmo, Politeísmo, Panteísmo 7 ANO2.pptx
Monoteísmo, Politeísmo, Panteísmo 7 ANO2.pptxMonoteísmo, Politeísmo, Panteísmo 7 ANO2.pptx
Monoteísmo, Politeísmo, Panteísmo 7 ANO2.pptx
 
Camadas da terra -Litosfera conteúdo 6º ano
Camadas da terra -Litosfera  conteúdo 6º anoCamadas da terra -Litosfera  conteúdo 6º ano
Camadas da terra -Litosfera conteúdo 6º ano
 
Plano de aula Nova Escola períodos simples e composto parte 1.pptx
Plano de aula Nova Escola períodos simples e composto parte 1.pptxPlano de aula Nova Escola períodos simples e composto parte 1.pptx
Plano de aula Nova Escola períodos simples e composto parte 1.pptx
 
Polígonos, Diagonais de um Polígono, SOMA DOS ANGULOS INTERNOS DE UM POLÍGON...
Polígonos, Diagonais de um Polígono, SOMA DOS ANGULOS INTERNOS DE UM  POLÍGON...Polígonos, Diagonais de um Polígono, SOMA DOS ANGULOS INTERNOS DE UM  POLÍGON...
Polígonos, Diagonais de um Polígono, SOMA DOS ANGULOS INTERNOS DE UM POLÍGON...
 
A Revolução Francesa. Liberdade, Igualdade e Fraternidade são os direitos que...
A Revolução Francesa. Liberdade, Igualdade e Fraternidade são os direitos que...A Revolução Francesa. Liberdade, Igualdade e Fraternidade são os direitos que...
A Revolução Francesa. Liberdade, Igualdade e Fraternidade são os direitos que...
 
Cartão de crédito e fatura do cartão.pptx
Cartão de crédito e fatura do cartão.pptxCartão de crédito e fatura do cartão.pptx
Cartão de crédito e fatura do cartão.pptx
 
Conflitos entre: ISRAEL E PALESTINA.pdf
Conflitos entre:  ISRAEL E PALESTINA.pdfConflitos entre:  ISRAEL E PALESTINA.pdf
Conflitos entre: ISRAEL E PALESTINA.pdf
 
QUIZ ensino fundamental 8º ano revisão geral
QUIZ ensino fundamental 8º ano revisão geralQUIZ ensino fundamental 8º ano revisão geral
QUIZ ensino fundamental 8º ano revisão geral
 
Artigo Científico - Estrutura e Formatação.ppt
Artigo Científico - Estrutura e Formatação.pptArtigo Científico - Estrutura e Formatação.ppt
Artigo Científico - Estrutura e Formatação.ppt
 
Cópia de AULA 2- ENSINO FUNDAMENTAL ANOS INICIAIS - LÍNGUA PORTUGUESA.pptx
Cópia de AULA 2- ENSINO FUNDAMENTAL ANOS INICIAIS - LÍNGUA PORTUGUESA.pptxCópia de AULA 2- ENSINO FUNDAMENTAL ANOS INICIAIS - LÍNGUA PORTUGUESA.pptx
Cópia de AULA 2- ENSINO FUNDAMENTAL ANOS INICIAIS - LÍNGUA PORTUGUESA.pptx
 

Liberalismo e feminismo

  • 1. 135 REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA V. 18, Nº 36: 135-146 JUN. 2010 RESUMO LIBERALISMO E FEMINISMO: IGUALDADE DE GÊNERO EM CAROLE PATEMAN E MARTHANUSSBAUM Rev. Sociol. Polít., Curitiba, v. 18, n. 36, p. 135-146, jun. 2010Recebido em 27 de junho de 2009. Aprovado em 22 de dezembro de 2009. Ingrid Cyfer O artigo discute a relação entre liberalismo e feminismo a partir de duas autoras feministas, Carole Pateman e Martha Nussbaum. Trata-se de uma questão importante para o feminismo, para o qual são fundamentais problemas associados às dicotomias público-privado e cultura-natureza – herdadas do liberalismo. Nesse sentido, discutimos as posições de Carole Pateman e Martha Nussbaum referentes a esses problemas. A escolha das autoras deveu-se ao fato de que ambas compartilham muitas premissas e conclusões, e por suas divergências situarem-se principalmente ao redor de problemas em que o feminismo é acrescentado ao liberalismo político. Assim sendo, fazer uma discussão entre as suas posições minimiza o risco de que a análise do debate não vá muito além das críticas que diversas teorias dirigem ao liberalismo, podendo funcionar, enfim, como uma boa porta de entrada para alguns dos pontos mais controversos da teoria feminista contemporânea. Nussbaum e Pateman parecem coincidir a respeito da concepção de igualdade de gênero. A crítica que ambas dirigem à relação entre natureza e cultura e ao formalismo da igualdade abstrata torna evidente que nenhuma delas pretende atribuir o poder ou a opressão da mulher a desígnios da natureza. Em ambas está muito claro que o que consideram relevante na organização de uma sociedade justa quanto ao gênero é a forma como uma sociedade valora as diferenças biológicas, bem como as implicações dessa valoração na distribuição de bens sociais. Nussbaum, porém, acredita que essa equação seja possível dentro da teoria liberal, desde que esta seja submetida a transformações que eliminem detur- pações teóricas decorrentes do conservadorismo dos primeiros filósofos liberais. PALAVRAS-CHAVE: feminismo; teoria feminista; liberalismo político; igualdade de gênero; natureza e cultura; público e privado. I. INTRODUÇÃO “Feminismo” é ao mesmo tempo um termo maldito e impreciso. Maldito porque é na maior parte dos casos associado à defesa de uma su- posta superioridade feminina, que exprimiria o mesmo sexismo do discurso que inferioriza as mulheres. Outra crítica comum é a de que o fe- minismo seria cego às diferenças biológicas entre homens e mulheres devido a um inconformismo injustificado e imponderado em relação às dife- renças naturais, moralmente neutras. Diz-se ain- da que o discurso feminista vitimaria a mulher na medida em que responsabilizaria exclusivamente o homem pela condição subalterna feminina. E, finalmente, é bastante freqüente também associá- lo a discursos moralistas que, em nome da igual- dade, reprimiriam a sexualidade de homens e mu- lheres ao identificar a sedução e a relação sexual como locus de discriminação, nos quais a mulher estaria reduzida à condição de objeto. A maior parte dessas críticas poderia atingir facilmente muitos alvos feministas. No entanto, dificilmente abalariam uma significativa gama de movimentos e teorias que se denominam feminis- tas e, se fizessem-no, isso seria devido à impreci- são do termo “feminista”, que mascara as inúme- ras nuances e divergências comportadas pelo con- ceito. A conseqüência dessa imprecisão é que as discussões acerca da igualdade entre homens e mulheres são freqüentemente deslegitimadas por críticas que tomam o feminismo por um termo unívoco. Diante disso, deve-se reconhecer que a adequação conceitual e mesmo estratégica da in- sistência no termo “feminismo” deve ser questio- nada. Com Simone de Beauvoir e Gayle Rubin, o feminismo incorporou a idéia de que a identidade feminina não é uma simples decorrência da biolo- gia, mas sim uma condição apreendida ao longo da vida na relação com o outro. Assim, as refle-
  • 2. 136 LIBERALISMOEFEMINISMO xões acerca da igualdade de gênero passariam a considerar concepções de identidades construídas culturalmente, que estão além de uma essência inscrita na anatomia. É preciso reconhecer que não é exatamente isso que se observa em uma parcela do discurso feminista, que focaliza unica- mente um dos pólos da relação de gênero (a mu- lher), e não na própria relação da qual emergem as identidades masculina e feminina. Por outro lado, há razões para que o termo per- maneça. Além de ser uma herança histórica dos movimentos e teorias pioneiros nessa discussão, é também muitas vezes o único adjetivo que unifica as inúmeras vertentes feministas. No campo da te- oria política, há feminismos liberais, marxistas, pós- modernos, existencialistas, e outros tantos. Identi- ficar aquilo que há em comum entre eles não é uma tarefa fácil, pois cada teoria irá propor seu próprio entendimento de discriminação de gênero, bem como suas próprias fórmulas para combatê-la. O traço comum entre essas teorias não está em princípios éticos ou em uma concepção de política comum.A identidade entre elas restringe- se a seu objeto. Boa parte das teorias políticas qualificadas como feministas têm por objeto o estudo da igualdade de gênero, ou seja, são teori- as que investigam em que homens e mulheres de- vem ser iguais, para que uma sociedade seja justa quanto ao gênero. Neste artigo serão discutidas as posições de Carole Pateman e Martha Nussbaum acerca des- se tema1. A escolha das autoras deveu-se ao fato de que ambas compartilham muitas premissas e conclusões; e por suas divergências situarem-se principalmente ao redor de problemas em que o feminismo é acrescentado ao liberalismo políti- co2. Assim sendo, fazer uma discussão entre as suas posições minimiza o risco de que a análise do debate não vá muito além das críticas que di- versas teorias dirigem ao liberalismo, podendo funcionar, enfim, como uma boa porta de entrada para alguns dos pontos mais controversos da teo- ria feminista contemporânea. II. FEMINISMO E LIBERALISMO Um dos poucos pontos consensuais entre as teorias políticas feministas é o bordão o pessoal é político, ou seja, a idéia de que as circunstâncias pessoais são estruturadas por fatores públicos (PATEMAN, 1989). O sentido e a extensão que esse bordão assume em cada uma delas, porém, é bastante variável. As teorias liberais tenderão a restringi-lo, uma vez que terão de combinar essa idéia com a preservação do espaço privado, sob pena de comprometerem sua identidade liberal.As teorias não-liberais, por sua vez, têm geralmente menos problemas em conciliá-lo com sua matriz teórica; mas, de outro lado, dificilmente poderão renunciar totalmente à noção liberal de autonomia do sujeito, que tem sido palavra de ordem do movimento feminista desde o século XIX. Disso decorre que toda teoria feminista, inde- pendentemente de como seja classificada, jamais reproduzirá fielmente a sua origem teórica. O fe- minismo apresenta tanto para teses que tendem para o coletivismo quanto para o individualismo, para o universalismo quanto para o relativismo, problemas que lhes obrigam a fazer concessões às teorias adversárias. Essas concessões, porém, não serão referentes às mesmas questões nem tampouco serão feitas em um mesmo grau. As variações e combinações são inúmeras, o que ex- plica a impressionante ramificação das teorias políticas feministas contemporâneas (KYMLICKA, 2006). Entretanto, ainda que as ramificações sejam muitas, o liberalismo político tem uma relação pri- vilegiada com o discurso feminista, que desde sua origem incorporou muitos de seus conceitos e premissas. As primeiras feministas encontraram na dicotomia liberal público-privado o argumento 1 A intenção do artigo é reconstruir e confrontar as posi- ções de Nussbaum e Pateman. No entanto, elas não dialo- gam diretamente. Nussbaum, porém, menciona Pateman como uma autora adversária em nota de rodapé, aliando-a a Allison Jaggar, sua interlocutora direta (NUSSBAUM, 1999, p. 384). Anne Phillips, em artigo em que discute o feminismo liberal de Nussbaum, também reconhece em Pateman uma tese que contesta a posição de Nussbaum (PHILLIPS, 2001). 2 Nussbaum e Pateman utilizam a expressão “liberalismo político”, mas não lhe atribuem exatamente o mesmo senti- do. Pateman, ao sustentar que o liberalismo é necessaria- mente patriarcal, assume John Locke como seu principal interlocutor. Nussbaum, por sua vez, ao salientar as contri- buições do liberalismo político para o feminismo inspira- se no “liberalismo igualitário”, especialmente o deAmartya Sen. Essa divergência explica em grande parte a oposição entre as posições de Nussbaum e Pateman, conforme se verá adiante.
  • 3. 137 REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA V. 18, Nº 36: 135-146 JUN. 2010 para salvaguardar um espaço em que a mulher pudesse gerir sua conduta sem a interferência es- tatal na distribuição de papéis sociais. Reivindica- ções feministas típicas como o direito ao aborto, ao trabalho, à liberdade sexual, entre outros, apa- recem freqüentemente atreladas à noção de auto- nomia, entendida principalmente como não-inter- venção estatal na esfera da privacidade do sujeito. No entanto, os limites do liberalismo político para o feminismo tornar-se-iam evidentes já em fins do século XIX. Elizabeth Cady Stanton, uma das principais vozes do feminismo liberal da épo- ca, foi alvo de críticas por reivindicar direitos para as mulheres isolando-as do contexto que restrin- ge seu acesso ao trabalho e à participação política (BRYSSON, 1992). Sem questionar a distribui- ção de tarefas e de poder na esfera doméstica, o feminismo liberal do século XIX encontrava suas próprias limitações. Desde aquela época, a maior parte das críticas dirigidas ao feminismo liberal tem como alvo a dicotomia público-privado em sua versão clássi- ca, com fundamento em Locke. Nessa vertente, a linha divisória separa a sociedade civil do Esta- do. A sociedade representa o espaço da liberdade pessoal, a esfera em que os indivíduos experimen- tariam a “independência perfeita”, uma vez que ali estariam a salvo da coerção do Estado, restrita à esfera pública. Além dessa, há ainda outra forma de distinguir o público do privado, segundo a qual os pólos opostos correspondem não à sociedade civil e ao Estado, mas ao social e ao pessoal. Na origem, essa foi uma distinção proposta pelo romantismo para se contrapor ao liberalismo, que não teria reservado nenhuma esfera para a intimidade. Os românticos afirmavam que mesmo a esfera social não libera o indivíduo de forças coercitivas, uma vez que as expectativas sociais constrangeriam os sujeitos a representarem papéis. O comporta- mento do indivíduo estaria, enfim, sob constante vigilância e julgamento também na esfera social. Os indivíduos, porém, diziam os românticos, pre- cisam de tempo para si, precisam ter um espaço em que possam abandonar todos os papéis da vida civil, em que estejam protegidos do olhar e do julgamento do grupo (político e social) a que per- tencem. A esse espaço chamaram de esfera pes- soal ou íntima, na qual estariam incluídas apenas as relações de amizade e de amor (ROSENBLUM, 1987) A reação de boa parte dos liberais diante do discurso romântico foi a de incorporá-lo ao seu projeto.Anoção de intimidade foi traduzida pelos liberais como “direito à privacidade”, cuja identi- ficação com o liberalismo tornou-se intensa a ponto de ofuscar sua origem romântica (BENN & GAUSS, 1999). As duas versões da dicotomia público-privado são problemáticas para o feminismo. A primeira, como foi dito acima, porque assumiria que solu- ções meramente formais, como o direito ao voto, seriam medidas suficientes para emancipar as mu- lheres de papéis subordinados. A segunda, por sua vez, porque resguardaria da intervenção pública as relações amorosas, familiares e sexuais, que são os espaços em que a discriminação de gênero aparece mais intensamente. As teorias feministas, por mais diversas que possam ser suas concepções de igual- dade, têm de lidar simultaneamente tanto com a demanda pela reserva de um espaço de não-inter- ferência social e estatal nas escolhas e na conduta individual das mulheres, como com a demanda de intervenção estatal na esfera privada quando é pre- ciso evitar ou coibir práticas sexistas de grupos sociais conservadores (NUSSBAUM, 1999). As criminalizações da violência doméstica e, em particular, do estupro marital estão entre as discriminações de gênero que mais desafiam a dicotomia público-privado, em qualquer de suas versões. Afinal, mesmo na concepção mais res- trita de privado do liberalismo de influência ro- mântica, pode ser difícil justificar a intervenção estatal em relações conjugais que pertencem à esfera de intimidade (MACKINNON, 1987). De outro lado, a fusão do publico e do privado tam- bém apresenta problemas para o feminismo. Afi- nal, como defender, por exemplo, a liberdade se- xual feminina ou o direito ao aborto se não houver limites à interferência estatal no controle do com- portamento individual? Como se vê, os debates acerca do feminismo convergem para a dicotomia público-privado. Pateman chega a afirmar que o feminismo define- se por essa discussão (PATEMAN, 1989), uma vez que a posição acerca daquela dicotomia ex- primiria a concepção de igualdade que fundamen- ta uma teoria feminista. Quanto mais abstrata e formalista a concepção de igualdade, mais intensa será a separação entre o público e o privado; ao passo que, quanto mais focada na igualdade ma- terial, mais essa separação terá de ser atenuada.
  • 4. 138 LIBERALISMOEFEMINISMO As teorias de Pateman e de Nussbaum, res- pectivamente, não estão em pólos diametralmente opostos em relação a essa questão. Nenhuma de- las defende a separação ou a fusão total entre o público e o privado. No entanto, enquanto Nussbaum sustenta que é possível e necessário flexibilizar essa dicotomia sem comprometer idéi- as basilares do liberalismo, como individualidade e autonomia, Pateman acredita que o liberalismo não sobrevive sem que essa oposição permaneça forte, pois é precisamente nesse aspecto teórico que o liberalismo revelaria seu comprometimento histórico e ideológico com o conservadorismo patriarcal. III. A CRÍTICA DE PATEMAN À DICOTOMIA PÚBLICO-PRIVADO Embora reconheça que o feminismo tenha nas- cido com o discurso liberal e que o ideal de liber- dade e igualdade abstratas tenha sido a tônica do movimento feminista por décadas, Pateman sus- tenta que o liberalismo e o patriarcalismo sempre estiveram mutuamente implicados. Segundo ela, as teorias sobre o contrato social jamais estendeu sua doutrina da liberdade e da igualdade universal às mulheres (idem). As características atribuídas ao “ser humano universal” eram características masculinas. Apesar das marcantes diferenças en- tre os contratualistas clássicos, a origem do polí- tico em todos eles é um contrato social do qual as mulheres são excluídas. A racionalidade e a liber- dade não são atributos universais quanto ao gêne- ro. Por isso, diz ela, o contrato social é também um contrato sexual (PATEMAN, 1993, p. 69ss.). Pateman sustenta que a sociedade civil, que resulta do contrato social, está ancorada no patriarcalismo. É a sujeição da mulher que garan- te as condições para a fruição da liberdade no es- paço público pelo homem. A “liberdade civil de- pende do direito patriarcal” (idem, p. 19). Em Locke, afirma Pateman, o fundamento patriarcal da divisão entre os direito político e o patriarcal aparece claramente.Ao definir a especificidade do poder político, Locke assumiria que o caráter hi- erárquico da relação entre marido e mulher não seria político, mas natural (PATEMAN, 1989). Isso fica claro quando ele distingue o poder polí- tico do poder do “pai de família” no âmbito do- méstico, afirmando que na esfera política o poder seria convencional e, por isso, passível de ser exercido sobre adultos; enquanto que o poder no âmbito doméstico subordinaria os indivíduos às ordens do chefe de família. Os indivíduos a que Locke se refere não são apenas as crianças, uma vez que ele assume que o papel dos maridos em relação às mulheres está incluído em formas não políticas de poder. A conseqüência disso seria a exclusão da mulher da esfera pública, pois aquele que é subordinado por natureza não poderia parti- cipar do espaço que é governado por princípios que universalizam a liberdade e a igualdade. De outro lado, essa divisão implica também a exclu- são da aplicabilidade desses princípios à única esfera destinada à mulher, a doméstica (idem). Pateman observa ainda que a esfera domésti- ca não está incluída no conceito de público nem no conceito de privado (social) de Locke. A soci- edade civil teria abstraído o ambiente doméstico, tornando-o invisível. Sinal disso estaria nas ex- pressões “sociedade e estado”, “economia e polí- tica”, “social e político” que muitas vezes são uti- lizadas como equivalentes de “privado e público”, respectivamente. O espaço familiar, onde se cons- troem e reproduzem as identidades de gênero, permaneceria esquecido na discussão teórica li- beral (OKIN, 1989). Para Pateman, esse esquecimento não foi ques- tionado pelo feminismo liberal. As sufragistas do século XIX teriam confrontado apenas a idéia de que o espaço privado não seria a única esfera a que a mulher deveria ter acesso. Não teriam, por- tanto, chegado a questionar o espaço doméstico como o lugar feminino por excelência (PATEMAN, 1989). Stuart Mill poderia ser alvo dessa mesma crítica. O autor reivindicou reformas legais com o objetivo de emancipar as mulheres do jugo de seus maridos, e contribuiu para forjar o bordão feminista “o pessoal é político” na medida em que utiliza termos políticos quando qualifica a condi- ção da mulher no espaço doméstico. Palavras como “escravas”, “igualdade”, “liberdade” e “justiça” foram trazidas para o âmbito doméstico por Mill. No entanto, o autor sustenta que mesmo após as reformas legais que equiparassem maridos e es- posas, o casamento deveria continuar represen- tando uma carreira para a mulher (idem; MILL, 1970). Com essa idéia, afirma Pateman, Mill deixa intacta a divisão de trabalho na esfera doméstica e revela uma concepção de igualdade de gênero meramente formal, porque parece acreditar na suficiência da supressão de entraves legais para garantir o acesso feminino à esfera pública. A di-
  • 5. 139 REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA V. 18, Nº 36: 135-146 JUN. 2010 visão do trabalho doméstico não é objeto de críti- ca de Mill.Ao contrário, o autor afirma que a divi- são tradicional é um acordo que convém tanto a homens quanto a mulheres, sugerindo a justifica- ção dessa repartição de tarefas na natureza (idem; idem). A íntima relação entre o privado e o natural está, segundo Pateman, na base da interconexão entre liberalismo e patriarcalismo, e aparece mes- mo em liberais considerados feministas, como Stuart Mill. O público e o privado podem, portan- to, ser também denominados espaço da cultura e da natureza, respectivamente, mas qualquer que seja a nomenclatura utilizada, o espaço masculino será o primeiro, e o feminino, o segundo. A identificação do feminino com a natureza teria três conseqüências. A primeira seria a desvalori- zação das atividades consideradas femininas. Isso porque teríamos herdado dos gregos o valor da superação da existência meramente natural.Acul- tura seria a expressão do potencial criativo dos seres humanos, que os singulariza e distingue dos animais (PATEMAN, 1989). A segunda conseqü- ência, por sua vez, consiste em considerar essa dicotomia inquestionável e imutável. Se for a na- tureza que distribuiu as tarefas referentes à cria- ção dos filhos, por exemplo, os seres humanos não teriam muito a fazer a não ser adaptar à vida em sociedade a distinção entre tarefas (e identida- des) femininas e masculinas. Finalmente, a ter- ceira conseqüência diz respeito à abstração histó- rica implícita na dicotomia público-privado. Ao considerá-la uma imposição da natureza, além de imutável e amoral, a divisão entre o público e o privado será assumida também como descontextualizada. Assim, fundamentada na na- tureza, a dicotomia obscureceria a relação entre liberalismo e patriarcalismo, e a relação de ambos com o capitalismo. Este último teria incorporado a dicotomia público-privado à medida que se de- senvolvia, concentrando tanto a teoria quanto a prática políticas na esfera pública e civil, margi- nalizando a esfera doméstica. O capitalismo não teria, portanto, definido apenas uma divisão de classes, mas também uma divisão sexual com a qual se relaciona a primeira. A divisão sexual do trabalho afastaria as mu- lheres do mercado ou inseri-las-ia ali em condi- ções desvantajosas, mas o liberalismo seria inca- paz de diagnosticar como desigualdade de gênero a desigualdade nas condições de inserção da mu- lher no mercado de trabalho, uma vez que a gêne- se dessa desigualdade estaria na divisão de traba- lho no âmbito doméstico, que para a teoria liberal não é política ou socialmente relevante. P e l a mesma razão, o liberalismo tampouco forneceria uma resposta para o problema da precariedade dos trabalhos das mulheres que, por necessidade, es- tão no mercado de trabalho, como é o caso das mulheres da classe trabalhadora. Estas sempre ti- veram de trabalhar, mas a elas foram destinadas apenas tarefas mal remuneradas, desvalorizadas e que muitas vezes são meras reproduções das ati- vidades domésticas, tal como ocorre com os em- pregos de babá, faxineira, empregada doméstica etc. Portanto, no que se refere à condição femini- na, a dicotomia público-privado teria a conseqü- ência de, a um só tempo, confinar a mulher ao espaço doméstico, subordiná-la economicamente ao homem e/ou empobrecê-la, restringir sua par- ticipação política e atribuir tudo isso a razões imu- táveis de ordem metafísica (idem). Em síntese, a conclusão de Pateman é a de que o liberalismo está estruturalmente ligado ao patriarcalismo e, por isso, a dicotomia público- privado seria uma armadilha para o movimento feminista. Armadilha porque à primeira vista ser- ve-lhe aos propósitos da emancipação, mas logo se revela um modelo de perpetuação da rigorosa divisão sexual dos papéis sociais. O sujeito libe- ral, ou seja, o indivíduo autônomo, singular e ca- paz de possuir propriedades em nome próprio não seria, portanto, um sujeito universal (do ponto de vista do gênero), pois o argumento conservador e patriarcal a respeito da natureza da mulher teria sido incorporado pelo liberalismo em um de seus elementos mais estruturais, a separação entre as esferas pública e doméstica. Por isso, um femi- nismo liberal padeceria de inconsistências incontornáveis, uma vez que, aceitando a dicotomia público-privado, não poderia evitar seu caráter patriarcal e, aceitando o bordão feminista “o pes- soal é político”, não poderia conciliá-lo com o li- beralismo (OKIN, 1992). Aidentificaçãoentreliberalismoepatriarcalismo que Pateman sustenta pode ser atestada em Locke e na maior parte dos autores liberais clássicos, até mesmo em Stuart Mill. No entanto, isso não é uma particularidade do liberalismo político. Os autores clássicos no melhor dos casos calaram- se e no pior deles opuseram-se abertamente à idéia da igualdade de gênero.Ateoria política feminista não é uma construção dos filósofos clássicos, mas
  • 6. 140 LIBERALISMOEFEMINISMO uma interpretação de suas teorias para tomá-las como fundamento da igualdade de gênero (idem). Pateman tem razão quando denuncia as impli- cações do liberalismo clássico na discriminação de gênero. No entanto, isso ainda não é razão su- ficiente para afastar o liberalismo da fundamenta- ção da igualdade de gênero. Sem avançar para além de Locke, ou mesmo de Mill, dificilmente o libe- ralismo serviria à fundamentação de qualquer re- lação de igualdade. O formalismo liberal já foi há muito denunciado e, dentro do liberalismo con- temporâneo, foram propostas fórmulas para a sua superação. O feminismo liberal percorreu esse mesmo caminho, de modo que a maior parte dessas teori- as está atualmente bem além de Locke. Para des- cartar o liberalismo como fundamento da igualda- de de gênero é preciso, portanto, analisar se o que essas teorias contemporâneas acrescentam à sua matriz teórica é suficiente para desfigurá-la por completo ou não. O argumento de Pateman de que o feminismo não se compatibiliza com a separação estanque entre o público e o privado é corroborado pela maior parte das teorias feministas liberais contem- porâneas. Entretanto, enquanto as feministas li- berais flexibilizam a relação entre o público e o privado, Pateman sustenta que o liberalismo não sobrevive sem essa oposição fortemente marcada, tanto por razões teóricas quanto ideológicas. Isso não significa, porém, que Pateman defenda a fu- são do público e do privado. Sua idéia é a de que a crítica feminista adote uma perspectiva dialética da vida social, de modo a evitar tanto a separação estanque entre o público e o privado, quanto o risco de o bordão “o pessoal é político” confundir público e privado a ponto de não restar nenhuma dimensão da vida humana preservada da exposi- ção pública. A autora não sugere outra teoria polí- tica em substituição ao liberalismo. Sua conclu- são é a de que “o feminismo ainda aguarda a sua filosofia” (PATEMAN, 1989). IV. A DICOTOMIA PÚBLICO-PRIVADO NO FEMINISMO LIBERAL DE MARTHA NUSSBAUM Nussbaum reconhece que as críticas de Pateman sejam válidas para alguns autores libe- rais, e que algumas delas deveriam ser incorpora- das ao liberalismo político feminista. No entanto, sua posição é a de que elas não seriam suficientes para ruir a sustentação e a consistência do femi- nismo liberal. Segundo ela, o liberalismo precisa ser modificado pela crítica feminista, mas essas mudanças não o descaracterizariam. Ao contrá- rio, elas torná-lo-iam mais consistente com seus próprios fundamentos. Para justificar essa posi- ção, Nussbaum primeiramente define os contor- nos do liberalismo em que apóia sua concepção de igualdade de gênero, para então formular sua defesa do liberalismo como fundamento da igual- dade de gênero (NUSSBAUM, 1999). Da teoria liberal (em particular a kantiana), a autora extrai duas idéias centrais. A primeira é a da igual dignidade entre os seres humanos e a se- gunda, o poder de escolha moral do indivíduo entendido como habilidade de planejar uma vida de acordo com sua própria avaliação de fins. Des- sas idéias decorreriam compromissos políticos que a autora julga serem indispensáveis a uma teoria feminista. O primeiro é o de não tornar diferenças moralmente irrelevantes fontes sistemáticas de hierarquia social. Assim, o liberalismo seria ne- cessariamente crítico da discriminação racial, de classe, de gênero, ao sistema de castas etc. Além disso, o liberalismo opor-se-ia também a formas de política cooperativas ou organicamente orga- nizadas.Afinalidade da política liberal seria o bem- comum, universal, sem privilegiar determinados grupos em detrimento de outros. Esse bem-co- mum, porém, jamais poderia perder de vista que o fim último da política é o bem-estar dos indiví- duos. Por fim, a política liberal estaria compro- metida com a tolerância e com a diversidade, no sentido de que não poderia se voltar a uma forma particular de bem, fosse ela religiosa ou laica (idem). Nesse arcabouço, a autora identifica aquilo que considera o conceito liberal mais valioso para o feminismo: a autonomia do indivíduo. Tomando o indivíduo como unidade básica do pensamento político, a teoria liberal opor-se-ia à idéia de que o indivíduo funde-se à coletividade, seja ela a co- munidade política, seu grupo social ou mesmo a família. O liberalismo político, porém, tem sido objeto de inúmeras críticas de teorias feministas influen- tes, como a de Pateman. As críticas de Pateman comentadas no item anterior referem-se a duas questões centrais: a relação entre natureza e cul- tura e o caráter abstrato da igualdade liberal. A primeira questão seria tratada pelo liberalismo de
  • 7. 141 REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA V. 18, Nº 36: 135-146 JUN. 2010 forma a justificar em bases amorais e apolíticas a distribuição de papéis no âmbito privado e público e, dessa forma, torná-la imutável; enquanto que a segunda cavaria um fosso entre a igualdade for- mal e as hierarquias e desigualdades sociais, de modo a afastá-las do campo de visão e ação das políticas liberais. As posições de Pateman e Nussbaum são muito semelhantes no que se refere ao questionamento da origem natural da distribuição de papéis. Em ambas as autoras encontram-se críticas tanto ao discurso conservador tradicional (antifeminista), quanto a teorias feministas essencialistas, que de- fendem uma espécie de “direito à identidade femi- nina”. A valoração dos atributos femininos “natu- rais” é a característica mais central do chamado feminismo essencialista. Esses atributos são freqüentemente relacionados à maternidade, en- tendida como a experiência que define o femini- no. Os hormônios são também assumidos como fatores determinantes do comportamento da mu- lher. A carência de testosterona diminuiria sua agressividade e tornaria seu desejo sexual mais domesticável; ao passo que o estrogênio torná-la- ia propensa a assumir cuidados com crianças, a ser mais emotiva e naturalmente inclinada ao pa- cifismo (NUSSBAUM, 1997). A idéia de que os hormônios determinam o comportamento maternal (que aqui equivale a fe- minino) baseia-se no aumento das taxas de estrogênio no período pós-parto, que a prepararia para assumir os cuidados de seu filho. Assim, as quantidades maiores de estrogênio nas mulheres (ao longo da vida) moldariam o comportamento feminino, dotando-o dos atributos necessários para a maternidade, ou seja, tornando-o mais terno do que agressivo (idem). Em relação a essa questão, Nussbaum obser- va que as implicações do efetivo aumento das ta- xas de estrogênio no período pós-parto são inter- pretadas por essas teorias com um viés simplista e ideológico. Afinal, o comportamento maternal também inclui a agressividade, que ora é dirigida a possíveis agressores de seus filhos, ora é dirigida a seus próprios filhos3. Há muito já foi reconheci- do, tanto científica quanto juridicamente, que o período pós-parto pode gerar emoções confusas e conflitantes, que incluem a depressão, o ódio, a agressividade e também a ternura e o amor. Embora o discurso tradicional e o feminismo essencialista sustentem-se na mesma fundamen- tação biológica dos comportamentos humanos, a conseqüência política de ambos é distinta. O pri- meiro conduz à marcada dicotomia entre público e privado com todas as implicações éticas e polí- ticas apontadas por Pateman. Já o segundo justi- fica discursos que consideram que a igualdade de gênero depende de que as diferenças naturais se- jam eliminadas. Firestone, uma das feministas ra- dicais mais influentes, chega a sustentar que a igualdade de gênero requer que a reprodução na- tural seja substituída pela artificial, de modo a abo- lir a gravidez e, com isso, as desigualdades de gênero que dela decorreriam. As críticas de Pateman e Nussbaum acerca da fundamentação natural das identidades do femini- no e do masculino convergem para os mesmos pontos. Ambas sustentam que o feminismo essencialista reproduz a idéia tradicional de que a subordinação da mulher é decretada pela nature- za. Ambas as autoras estão de acordo com a idéia de que a tradução da dicotomia público-privado em cultural-natural revela um traço sexista do li- beralismo político tradicional e também de algu- mas vertentes do feminismo. No entanto, tanto Nussbaum quanto Pateman rejeitam também a idéia de que as características biológicas sejam irrelevantes na definição das identidades sexuais. Em ambas, está expressamente presente a idéia de que biologia, embora não determine comporta- mentos, cumpre um papel na delimitação do fe- minino e do masculino, colocando limites na de- signação do que seria característico de cada um dessas representações. Portanto, a identidade de gênero nessas auto- ras seria resultante da interação entre as dimen- sões biológica e cultural do ser humano. Disso decorre que o feminismo em Pateman e Nussbaum não fará reivindicações de reconhecimento de iden- tidades nem tampouco de desconstrução do fe- minino ou do masculino (NUSSBAUM, 1997; PATEMAN, 1989). Em ambas o conceito de igual- dade de gênero aplica-se à valoração dessas iden- tidades e às implicações dessa valoração na distri- buição de oportunidades entre homens e mulhe- res. Essas oportunidades incluem a realização pes- soal, a possibilidade de planejar a própria vida, a 3 O Direito brasileiro, por exemplo, considera o estado puerperal como um atenuante no crime em que a mãe mata seu filho (infanticídio).
  • 8. 142 LIBERALISMOEFEMINISMO participação política e o acesso ao trabalho sem custos adicionados em razão da identidade de gê- nero. No entanto, Pateman sustenta que o formalismo da igualdade liberal compromete-o com políticas indiferentes às desigualdades sociais, especialmente àquelas que decorrem da distribui- ção de poder no espaço doméstico. Nussbaum também parece estar de acordo com Pateman neste ponto. Ela admite que é necessário ir além da igualdade abstrata para garantir a igual- dade de gênero. Os estatutos antidiscriminação e as decisões judiciais neles baseados teriam se mostrado insuficientes para evitar e combater a restrição de oportunidades das mulheres em di- versos setores da vida. Embora tenham efetiva- mente promovido o acesso da mulher a esferas que lhe eram proibidas, não teriam levado em conta que a facilidade desse acesso vê-se afetada pela interconexão entre a distribuição de tarefas no espaço doméstico e público. Se no campo do tra- balho, por exemplo, determinadas funções impu- serem exigências que são mais facilmente ade- quadas a pessoas que não são as principais res- ponsáveis pelos cuidados de crianças em idade pré-escolar, a divisão sexual de tarefas no âmbito doméstico será determinante na competição pela vaga de trabalho, ainda que formalmente não seja imposta nenhuma restrição quanto ao sexo (NUSSBAUM, 1999; MACKINNON, 1987). Entretanto, sua visão crítica da igualdade abs- trata não se estende ao liberalismo em todas as suas versões. Nussbaum não estabelece uma re- lação automática ou necessária entre ambos, e cita concepções de igualdade de liberais igualitários como Amartya Sen e Rawls, nas quais está pre- sente a idéia de que a igualdade de oportunidades exige pré-requisitos materiais, e que esses pré- requisitos materiais devem variar conforme a po- sição real dos sujeitos na sociedade. Em síntese, Nussbaum e Pateman estão de acordo quanto às implicações sexistas da dicotomia público-privado na qual estão implícitas tanto a fundamentação biológica da identidade sexual, quanto a igualdade abstrata. No entanto, elas di- vergem no que se refere à possibilidade de esse problema ser superado dentro do liberalismo. En- quanto Pateman considera que o feminismo não é compatível com a dicotomia público-privado, e, portanto, com o liberalismo, Nussbaum conside- ra que o feminismo não pode prescindir de con- ceitos - chave liberais chave como a autonomia e a individualidade. A questão central desse debate, portanto, diz respeito à possibilidade de ir-se além da dicotomia liberal e ainda assim preservar a au- tonomia e a individualidade. A concepção de individualismo que Nussbaum tem em mente sugere que a dicotomia público- privado seja traduzida como esfera pública e es- fera da intimidade. Isso porque Nussbaum de- fende a substituição da idéia da dicotomia pela da interdependência, o que suporia uma esfera pri- vada mais reduzida do que a esfera social de Locke. A idéia de interdependência difere da dicotomia exatamente na definição da divisória entre o públi- co e o privado. Ambas exigem a preservação de uma esfera de não intervenção estatal, mas a no- ção de interdependência traz para o debate públi- co as desigualdades no interior de associações ci- vis que em Locke estariam a salvo da ingerência pública. Os pontos comuns entre Nussbaum e Pateman revelam que a primeira corrobora as críticas de Pateman à dicotomia liberal concebida por Locke. Portanto, para analisar a divergência entre ambas acerca da relação entre a dicotomia público-pri- vado e o feminismo, deve-se, avaliar se as críti- cas de Pateman estender-se-iam também à ver- são da dicotomia público-privado de influência romântica, ou seja, se a separação entre intimida- de e social também tornaria invisíveis as assimetrias de poder no domínio doméstico. O conceito de intimidade ou privacidade, como foi dito, amplia a esfera de intervenção do Estado. Todas as associações formais com outras pesso- as, ao invés de serem localizadas na “esfera da liberdade”, como em Locke, são consideradas públicas. A esfera da intimidade, porém, imporia uma barreira à regulação e ao controle da conduta do indivíduo. Nesse arranjo seria, enfim, evitada a fusão entre o público e o privado ao mesmo tempo em que se validaria a submissão das asso- ciações civis à regulação pública. Entretanto, como foi dito anteriormente, mes- mo essa versão da dicotomia público-privado apresenta problemas para o feminismo. Se as re- lações amorosas e de amizade forem totalmente impermeáveis à intervenção estatal, o estupro marital e a violência doméstica não poderiam ser criminalizados, pois isso poderia ser entendido como uma violação da privacidade. Kymlicka re- lata que o “direito à privacidade” na Suprema Corte dos Estados Unidos foi inicialmente celebrado pelo
  • 9. 143 REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA V. 18, Nº 36: 135-146 JUN. 2010 feminismo, mas que, posteriormente, o próprio movimento feminista denunciaria esse direito como uma justificativa para a negligência do Estado na proteção dos direitos das mulheres (KYMLICKA, 2006). A primeira decisão embasada no direito à pri- vacidade é de 1965 (caso Griswold contra Connecticut). Neste caso, discutiu-se uma lei que negava o acesso de mulheres casadas a meios anticoncepcionais. O tribunal decidiu que essa lei seria nula por ferir o direito à privacidade, pois a decisão de ter filhos ou não seria exclusiva do casal. Em decisões posteriores, tornou-se evidente, porém, que a proteção “das decisões do casal” da intervenção estatal aprofundou a divisão entre o público e o privado, despolitizando as desigualda- des existentes nas relações intrafamiliares (MACKINNON, 1987). O direito à privacidade terminou, enfim, sendo uma barreira que protege as famílias do “teste da justiça pública” (KYMLICKA, 2006). A interpretação do direito à privacidade como privacidade conjugal tem por base uma concep- ção coletivista da família. A família substitui o in- divíduo como unidade básica do pensamento po- lítico. O sujeito do direito à privacidade, portanto, foi o casal, e não o indivíduo; a autonomia famili- ar substituiu a autonomia individual. Segundo Kymlicka, a concepção coletivista (familiar) de privacidade não encontra fundamento na teoria li- beral, mas sim em idéias pré-liberais a respeito da naturalidade da família tradicional. A proteção da família em nome do direito à privacidade teria sido conseqüência da adoção da linguagem liberal da privacidade pelos “protetores da domesticidade” (idem). Assim, a medida adequada para combater desigualdades de gênero no âmbito familiar não estaria em abandonar o discurso liberal. Ao con- trário, seria preciso aprofundá-lo até finalmente dissociar o direito à privacidade da “autonomia familiar”, retomando o indivíduo como o núcleo fundamental. Nussbaum parece entender a dicotomia priva- do-público (de influência romântica) de forma muito semelhante à de Kymlicka, vendo ali um potencial para justificar a politização das relações familiares. Isso fica claro quando a autora afirma que os liberais clássicos teriam se revelado pouco liberais quando conceberam o espaço doméstico como uma esfera em que a mulher desaparece como unidade. Por isso, diz Nussbaum, a teoria feminista teria de ser ainda mais liberal do que o liberalismo clássico, que teria servido ao patriarcalismo por razões unicamente ideológicas e não por limitações teóricas (NUSSBAUM, 1999). Em síntese, a idéia fundamental de Nussbaum é a de que o feminismo deve aprofundar a noção de autonomia e de individualismo, e deve fazê-lo com as ferramentas teóricas que o liberalismo fornece. Contra essa idéia levantam-se inúmeras teses. Uma das críticas mais contundentes refe- re-se justamente à idéia de que a autonomia indi- vidual como bem-social fundamental traz implici- tamente dois problemas para as teorias que se pre- tendem igualitárias: o egoísmo psicológico e o solipsismo político. O egoísmo psicológico consiste na caracteri- zação do sujeito como alguém que age motivado somente pelo auto-interesse. Esse sujeito não se- ria capaz de ocupar-se do interesse dos demais membros do grupo. Não existiria entre os seres humanos qualquer empatia ou sentido de solidari- edade (JAGGAR, 1983). Nussbaum concorda que isso poderia ser dito das teses de Hobbes e Bentham, mas afirma que não funciona para inú- meras outras teorias liberais que costumam ser objeto dessa mesma crítica. Segundo ela,Amartya Sen e Rawls teriam de ser excluídos desse grupo, já que em ambos está explicitamente presente a idéia de vinculação entre indivíduos. Em Sen isso fica claro quando critica o utilitarismo por subes- timar a importância da empatia e do compromis- so como motivos da ação, enquanto que em Rawls essa mesma idéia fica clara com a caracterização dos sujeitos na posição original, que devem assu- mir a perspectiva de todos4 (NUSSBAUM, 1999). Mesmo o utilitarismo e o kantismo, mais fre- qüente e facilmente associados a essa crítica, não poderiam ser acusados de egoísmo psicológico. Em defesa do utilitarismo, Nussbaum salienta que a maximização da utilidade de todos requer gran- des sacrifícios individuais e, em favor de Kant, a autora sustenta o fato de que a imperfeição dos deveres de benevolência é decorrente do fato de os sujeitos tenderem a privilegiar as pessoas mais próximas e queridas, em prejuízo de um 4 Nussbaum cita como exemplo o budismo que, mesmo sem considerar o sujeito como uma unidade destacada dos demais, considera o indivíduo auto-suficiente a ponto de poder ser indiferente a fatos (NUSSBAUM, 1999).
  • 10. 144 LIBERALISMOEFEMINISMO universalismo humanista, que somente a razão poderia fundamentar. O solipsismo político, por sua vez, relaciona- se à suposição de que os indivíduos seriam auto- suficientes. Nussbaum, porém, observa que essa idéia não é necessariamente vinculada ao indivi- dualismo. Além disso, ela acrescenta que mesmo que a psicologia do liberalismo considerasse o in- divíduo auto-suficiente, essa seria uma aposta normativa e não uma descrição da realidade. O significado do individualismo no liberalismo, enfim, seria o de que a pessoa não se funde à coleti- vidadeaindaquefaçapartedela.Nussbaumsalienta, porém, que isso não implicaria numa concepção “atomista” de sujeito, que desconsideraria os laços que unem as pessoas, mas apenas que a distribuição justaderecursoseoportunidadesdevelevaremconta a condição de cada pessoa individualmente. Entendido dessa forma, Nussbaum conclui que o individualismo liberal representa um importante instrumento do feminismo, uma vez que a individuação do sujeito confronta a idéia de que a mulher confunda-se com a unidade familiar e que, por isso, seu valor estaria condicionado apenas à sua contribuição enquanto reprodutoras e “cuidadoras” (caregivers), ou seja, condicionado à representação das personagens com a qual a família tradicional define-a. Apesar de a individualidade entendida como separação (separateness) funcionar para contes- tar a identificação do espaço privado com o lugar feminino por excelência, ela apresenta também li- mitações significativas para o feminismo. Confor- me observa Anne Phillips, a individualidade em Nussbaum é pensada isoladamente do contexto social da qual ela emerge. A separação de cada indivíduo, diz Phillips, é algo mais complexo do que reconhecer que temos mentes e corpos indi- viduais (PHILLIPS, 2001, p. 254). A ênfase na separação (“separateness”) refor- ça a idéia que Pateman insistentemente contesta: a interpretação da autonomia como liberdade de es- colha. Referindo-se a Locke, Pateman afirma que essa liberdade está diretamente ligada à idéia de propriedade, mais precisamente a ser “proprietá- rio de si mesmo”. Isso significa que ser livre é ser o único a ter direitos sobre si, é ser livre para fazer e definir seu modo e seu plano de vida. É, enfim, ser livre para fazer escolhas (PATEMAN, 1993, p. 88; PHILLIPS, 2001, p. 254). Para o liberalismo a capacidade de fazer esco- lhas é central. Por isso, a junção entre o feminis- mo e o liberalismo pode conduzir à idéia de que o gênero é também uma escolha. A tentativa de Nussbaum de desnaturalizar a identidade femini- na e a masculina sugere que o gênero é contin- gente porque podemos escolhê-lo. Mas essa idéia, conforme salienta Phillips, negligencia as limita- ções que nossa condição social impõe à nossa possibilidade de escolher nossas posições e pa- péis na sociedade em que vivemos (PHILLIPS, 2001, p. 256). Grande parte da crítica feminista ao liberalismo ataca justamente esse ponto.Ainda que o feminismo mais recente tenha insistido na idéia de que o corpo não determina o gênero, isso não significa dizer que o corpo não importa. Ao contrário, para o feminismo o corpo é um con- texto e esse contexto cumpre um papel decisivo na definição de quem somos. Nosso corpo não é um invólucro do núcleo de nosso self. Ele tam- bém é parte constitutiva dele.Além do mais, mes- mo que pudéssemos distanciar-nos de nosso cor- po, não poderíamos evitar que os “outros” conti- nuassem associando-nos a ele Nosso corpo é um importante aspecto do contexto em que a identi- dade de gênero é formada. Esse contexto, por sua vez, não é nossa propriedade. Nossa identidade social não é uma invenção ou uma escolha total- mente nossa. O gênero, enfim, não está em nos- sas mãos para dispormos dele ou a respeito dele como quisermos. Confiar nisso, diz Phillips, não é apenas ingênuo, é perigoso.Afinal, a centralidade da autonomia na teoria de Nussbaum minimiza as pressões sociais que limitam nossas escolhas. Essa minimização, por sua vez, sugere que qualquer condição que não seja fruto de uma livre-escolha é um fracasso e, ainda mais grave, sugere tam- bém que nos casos em que haveria essa livre-es- colha, nós somos totalmente responsáveis pelo que vier a ocorrer. Enfim, a força da autonomia na teoria de Nussbaum, apesar de suas tentativas de afastar-se do racionalismo moderno, traz nova- mente à tona a ficção do agente abstrato e racio- nal, um agente que a própria Nussbaum admite ser concebido a partir de valores identificados com o masculino (idem; NUSSBAUM, 1999, p. 71). Confiar em nossa capacidade de assumir o con- trole total sobre nossa vida é uma ilusão que pode ser perigosa. Para Phillips, Nussbaum falha ao colocar a autonomia como a questão central da igualdade de gênero porque isso minimiza as pres- sões sociais que limitam nossas escolhas. A auto-
  • 11. 145 REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA V. 18, Nº 36: 135-146 JUN. 2010 nomia está diretamente ligada à responsabilidade. Por isso, não levar devidamente em conta a força dessas pressões sugere que qualquer situação que não resulte de uma livre-escolha é um sinal de fracasso pelo qual somos responsáveis (PHILLIPS, 2001, p. 257). V. CONCLUSÕES O liberalismo abarca diversas posições políti- cas que muitas vezes fundamentam regimes pro- fundamente distintos entre si. Essa pluralidade, como já foi salientado anteriormente, é também característica das teorias feministas, num grau ainda maior. Assim, para pensar o potencial do liberalismo na fundamentação do feminismo, é preciso identificar tanto o núcleo do liberalismo quanto o da concepção de igualdade que se toma como ponto de partida em uma teoria política fe- minista. Nussbaum e Pateman parecem coincidir a res- peito da concepção de igualdade de gênero. A crí- tica que ambas dirigem à relação entre natureza e cultura e ao formalismo da igualdade abstrata tor- na evidente que nenhuma delas pretende atribuir o poder ou a opressão da mulher a desígnios da natureza. Em ambas está muito claro que o que consideram relevante na organização de uma so- ciedade justa quanto ao gênero é a forma como uma sociedade valora as diferenças biológicas, bem como as implicações dessa valoração na distribui- ção de bens sociais. Quanto à igualdade abstrata, os argumentos também são os mesmos. Apesar de definir-se como liberal, Nussbaum está de acor- do com Pateman acerca do curto alcance da igual- dade abstrata no combate a desigualdades soci- ais. Dessa base comum, resultam concepções se- melhantes sobre a relação entre público e privado. A idéia de Nussbaum de que uma teoria feminista deva considerá-los interdependentes (e não opos- tos) em muito se assemelha à relação entre o pú- blico e o privado defendida por Pateman. Em ou- tras palavras: tanto Pateman quanto Nussbaum entendem que o feminismo precisa tornar a esfe- ra privada permeável à intervenção pública sem sacrificar a individualidade e a intimidade. Nussbaum, porém, acredita que essa equação seja possível dentro da teoria liberal, desde que esta seja submetida a transformações que elimi- nem deturpações teóricas decorrentes do conservadorismo dos primeiros filósofos liberais. A autora sustenta, ainda, que insistir no liberalis- mo (modificado pela crítica feminista) é indispen- sável para o feminismo, pois este não sobrevive sem a concepção de autonomia e individualidade liberais. Pateman, por sua vez, embora não acre- dite que a consistência da teoria liberal sobreviva às modificações exigidas pelo feminismo, tampouco parece abrir mão da idéia de autonomia do indivíduo. As divergências entre Nussbaum e Pateman desaguam, enfim, não tanto no potencial do libe- ralismo para o feminismo já que, quando criticam ou defendem o liberalismo, elas referem-se a uma tradição filosófica muito ampla privilegiando au- tores distintos como interlocutores. O ponto cen- tral aqui parece estar, sim, no modo em que cada uma delas entende a interdependência entre o pú- blico e o privado. Mas essa concepção de interdependência não é devidamente explicitada por nenhuma delas. Nesse aspecto, a contribuição de Hannah Pitikin pode sugerir algumas combinações impor- tantes entre os argumentos e preocupações de Nussbaum e Pateman. Pitikin sustenta que o pú- blico e o privado relacionam-se porque as ques- tões que atingem a esfera pública somente o fa- zem porque afetam os indivíduos em suas vidas cotidianas na esfera privada. As demandas e insa- tisfações da dona de casa, por exemplo, são vivi- das como uma experiência individual e excepcio- nal somente até que cada dona de casa perceba que sua situação é compartilhada por outras mu- lheres. Nesse momento, as questões individuais, sentidas na concretude da vida privada, tomam uma forma coletiva e podem aspirar ao status de questão de interesse público (PITKIN, 1981, p. 348). Os argumentos de Nussbaum e Pateman su- gerem que elas subscreveriam essa relação entre o público e o privado. Isso indica que, apesar dos contrastes de suas respectivas posições acerca do liberalismo e da autonomia, suas concepções de política estão bem mais próximas. Por isso, o ca- minho para o livre-trânsito das mulheres do espa- ço privado para o público em condições de igual- dade com os homens parece estar antes numa reflexão acerca da concepção de política do que da de autonomia. E para isso, Pateman parece ser um melhor guia do que Nussbaum.
  • 12. 146 LIBERALISMOEFEMINISMO REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS Ingrid Cyfer (ingridcy@gmail.com) é Doutora em Ciência Política pela Universidade de São Paulo, USP. BENN, S. & GAUSS, G. (eds.). 1983. Public and Private in Social Life. New York: St. Martin. BRYSSON, V. 1992. Feminist Political Theory. London: Macmillan. JAGGAR,A. 1983. Feminist Politics and Human Nature. Totowa: Rowman and Allanheld. KYMLICKA, W. 2006. Filosofia política con- temporânea. São Paulo: M. Fontes. MACKINNON, C. 1987. Feminism Unmodified: Discourses on Life and Law. Cambridge, Mass.: Harvard University. MILL, S. 1970. The Subjection of Women. In: ROSSI, A. (ed.). Essays on Sex Equality. Chi- cago: University of Chicago. NUSSABUM, M. 1997. Construction of Love, Desire and Care. In: ESTLUND, D. M. & NUSSBAUM, M. C. (eds.). Sex, Preference, and the Family: Essays on Law and Nature. New York: Oxford University. _____. 1999. Sex and Social Justice. Oxford: Oxford University. OKIN, S.1989. Justice, Gender, and the Family. Chicago: University of Chicago. _____. 1992. Women in Western Political Thought. Princeton: Princeton University. PATEMAN, C. 1989. The Disorder of Women. Stanford: Stanford University. _____. 1993. O contrato sexual. Rio de Janeiro: Paz e Terra. PHILLIPS, A. 2001. Feminism and Liberalism Revisited: Has Martha Nussbaum Got It Right? Constellations, New York, v. 8, n. 2, p. 249- 266. Disponível em: http:// www.newschool.edu/uploadedFiles/TCDS/ Democracy_and_Diversity_Institutes/ Phillips_Feminism%20and%20Liberalism.pdf. Acesso em: 24.abr.2010. PITKIN, H. 1981. Justice: On Relating Private and Public. Political Theory, London, v. 9, n. 3, p. 327-352, Aug. ROSENBLUM, N. 1987. Another Liberalism: Romanticism and the Reconstruction of Libe- ral Thought. Cambridge, Mass.: Harvard University.
  • 13. 297 REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA V. 18, Nº 36: 295-300 JUN. 2010 FEMINISTS AND THE DIVERSITY OF REPUBLICAN ALTERNATIVES Carla Cecília Rodrigues Almeida and José Antônio Martins This article analyzes the critical move of certain feminists toward republicanism and explores the hypothesis that such a move represents important points of contact with a current of popular republicanism. Based on classical authors and adopting specific criteria for looking at the constitutive diversity of republicanism, we seek a way to define this current and as well as the aristocratic one which serves as its counterpoint. Our hypothesis is based, on the one hand, on analysis of feminist critiques of certain current formulations which, to a greater or lesser extent, share the republican ideal that contemporary society must endow public life with renewed meaning. On the other hand, it draws from particular proposals that have been elaborated in order to appropriate this ideal. Our analysis then makes it possible to suggest that the concerns that characterize the popular republican current offer more promising sources for combining the ideal of a renewed public sphere with demands for justice. Through this focus, we emphasize feminist contributions to democratic theory. KEYWORDS: feminist theory; popular republicanism; aristocratic republicanism; democratic theory. * * * LIBERALISM AND FEMINISM: GENDER EQUALITY IN CAROLE PATEMAN AND MARTHA NUSSBAUM Ingrid Cyfer This article discusses the relationship between liberalism and feminism through the work of two feminist scholars, Carole Pateman and Martha Nussbaum. This is an important issue for feminism, and one in which the problems associated with public-private and nature-culture dichotomies, inherited from liberalism, are fundamental. In this regard, we will discuss Carole Pateman and Martha Nussbaum’s positions on the matter. Our choice of authors is due to the fact that both share many of same premises and conclusions, and because their divergences are located primarily around problems in which feminism is “added on” to political liberalism. Thus, in carrying out a discussion through both positions, we minimize the risk that the analysis of the debate move little beyond the critique that numerous theories have directed toward liberalism, and offer what can be a fruitful entry into one of the most controversial points in contemporary feminist theory. Nussbaum and Pateman seem to coincide regarding their conception of gender equality. In the criticism that both of them direct toward the nature-culture relationship and to the formalism of abstract equality, it becomes evident that neither seeks to attribute either power or the oppression of women to nature’s designs. In both authors, it is very clear that what they consider relevant for the organization of a just society in terms of gender is the way in which a society places value on biological differences and what implications this has for the distribution of social goods. Nussbaum, however, believes that this equation can be dealt with within liberal theory, as long as it is subjected to changes which free it from theoretical problems linked to the conservative stance of the first liberal philosophers. KEYWORDS: feminism; feminist theory; political liberalism; gender equality; nature and culture; public and private. * * * DIPLOMACY AND DOMESTIC POLITICS: THE LOGIC OF THE TWO-LEVEL GAMES Robert Putnam Domestic politics and international relations are often inextricably entangled, but existing theories (particularly state-centric theories) do not adequately account for these linkages. When national leaders must win ratification (formal or informal) from their constituents for an international agreement, their negotiating behavior reflects the simultaneous imperatives of both a domestic political game
  • 14. 305 REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA V. 18, Nº 36: 303-309 JUN. 2010 corps par rapport à leur propre sexualité et capacité de reproduction, soit dans les situations qui font réference à la liberté pour consentir la prostitution, location de l’utérus, etc. MOTS-CLES: John Locke; liberté; propriété; libéralisme; théorie féministe. * * * LES FÉMINISTES ET LA DIVERSITÉ DES ALTERNATIVES RÉPUBLICAINES Carla Cecília Rodrigues Almeida et José Antônio Martins L’article analyse l’approche critique de quelques féministes au républicanisme et explore l’hypothèse de que tel approche exprime des points de contact importants avec la branche républicaine populaire. En se basant sur des auteurs classiques et en adoptant un critère spécifique pour approcher la diversité constitutive du républicanisme, nous définissons les contours de la branche et de celle qui lui sert de contrepoint : la branche aristocratique. Notre hypothèse s’est basée d’un côté, sur l’analyse des critiques féministes à quelques formulations courantes qui, en certaine mesure, partagent l’idéal républicain de que la société contemporaine a besoin de créer un nouveau sens pour la vie publique. De l’autre côté, elle est basée sur les propositions qu’elles mêmes élaborent pour s’approprier de l’idéal. Cette analyse nous permet de suggérer que les préocupations qui caractérisent la branche républicaine populaire, offrent des sources plus prometeuses pour qu’on puisse combiner l’idéal de revitalisation de l’esphère publique avec les éxigences de justice. A partir de là, nous mettons en évidence les contributions que les féministes ont apporté à la théorie démocratique. MOTS-CLES: théorie féministe; républicanisme populaire; républicanisme aristocratique; théorie démocratique. * * * LIBÉRALISME ET FÉMINISME: ÉGALITÉ DE GENRE EN CAROLE PATEMAN ET MARTHA NUSSBAUM Ingrid Cyfer L’article discute la relation entre le libéralisme et le féminisme à partir de deux auteurs féministes, Carole Pateman et Martha Nussbaum. Il s’agit d’une question importante pour le féminisme, pour lequel ce sont des problèmes fondamentaux associés aux dichotomies publiques et privés, culture et nature – héritées du libéralisme. Dans ce sens, nous discutons les positions de Carole Pateman et Martha Nussbaum qui font réference à ces problèmes. Le choix des auteurs est due au fait que toutes les deux partagent beaucoup d’hypothèses et des conclusions, et aussi car leurs différences se situent principalement autour de problèmes où le féminisme est ajouté au libéralisme politique. Ainsi, faire une discussion entre leurs positions, minimise le risque de que l’analyse du débat n’aille pas plus loin que les critiques lesquelles plusieurs théories dirigent au libéralisme, pouvant fonctionner, enfin, comme une bonne porte d’entrée pour quelques uns des points les plus controversés de la théorie féministe contemporaine. Nussbaum et Pateman semblent coïncider par rapport à la conception de l’égalité de genre. La critique que toutes les deux dirigent à la relation entre la nature et la culture et au formalisme de l’égalité abstraite, rend évident que aucune des deux a l’intention d’attribuer le pouvoir ou l’oppression de la femme aux objectifs de la nature. Chez toutes les deux, il est très clair que ce que c’est consideré pertinent dans l’organization d’une société juste par rapport au genre, c’est la forme dont une société valorise les différences biologiques, tout comme les implications de cette valorisation dans la distribution de biens sociaux. Mais, Nussbaum, croit que cette équation est possible dans la théorie libérale, tandis que celle-ci doit être soumise à des transformations qui éliminent des déformations théoriques qui suivent le conservatisme des premiers philosophes libéraux. MOTS-CLES: féminisme, théorie féministe; libéralisme politique; égalité de genre; nature et culture; publique; privé. * * *