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Boca do Inferno 
Jornal dos estudantes de Letras da UFPR | Edição 27 | Setembro de 2014 
NESTA EDIÇÃO Amyr Borhot, Ana Carolina Werner da Silva, Assionara Souza, Bruna Motta, 
Caetano Galindo, Carolina Bender, Camilla Nater, Carla Cursino, Cesar Felipe Pereira, 
Chardie Batista, Daniel Martineschen, Evelyn Cieszynski, Guilherme Bernardes, Gustavo Jugend, 
Hugo Simões, João Carvalho, Juan José Saer, Julian Tuwim, Leonardo Gonçalves Fischer, 
Marcelo Paiva de Souza, Marina Tortelli, Mario Benedetti, Milena Wandembruck, Nylcéa Pedra, 
Pedrita Setenareski, Priscila Scoville, Sarah Garcia, Suelen Trevizan, Vinícius Figueiredo, Yohan S. Barcz.
05 
Daniel Martineschen 
10 
Evelyn Cieszynski 
Sarah Garcia 
11 
Leonardo Gonçalves Fischer 
Cesar Felipe Pereira 
28 
Hugo Simões 
29 
Milena Wandembruck 
Textículos 
08 
Yohan S. Barcz 
10 
Gustavo Jugend 
22 
Chardie Batista 
26 
Bruna Motta 
27 
Suelen Trevizan 
06 
Julian Tuwin 
Marcelo Paiva de Souza 
07 
Juan José Saer 
Amyr Borhot 
12 
Mario Benedetti 
Camilla Nater 
Nylcéa Pedra 
Traduções Versário 
03 
Editorial 
04 
Ensaio 
Ana Carolina Werner da Silva 
14 
Entre e Vista 
Caetano Galindo 
Editores do Boca 
21 
Resenha 
Carla Cursino 
23 
Objetiva 
Camila Bender 
Vinícius Figueiredo 
30 
Cal 
31 
Classificados 
Cartum 
2 
Índice Editorial 
O que temos feito, o que podemos fazer 
Depois de mais de dois anos de silêncio, 
o Boca do Inferno volta a circular, renascido das 
profundezas da negligência e do esquecimento. Que 
encerremos essa era silenciosa para fazer jus ao nosso 
nome. Falemos, então! Há muito assunto para pôr 
em dia em apenas um editorial, alguns inclusive são 
bastante espinhosos, mas precisam ser tocados para 
que, ao abrirem ferida, reconheçamos a sua 
existência e lidemos com eles de modo concreto. 
O leitor deve estar se perguntando o 
motivo desse longo intervalo sem publicação. 
Aqueles que têm mais tempo de casa sabem que a 
história do Boca sempre foi marcada por idas e 
vindas. Isso acontece, porque é uma publicação que 
depende do Centro Acadêmico de Letras tanto em 
questão financeira quanto na execução do projeto. 
Se não tivemos jornal desde 2011, esse é apenas um 
sintoma da fragilidade da representação estudantil 
do nosso curso. Aqui começam a despontar os 
primeiros espinhos. 
Em 2013, passamos longos meses sem 
nenhuma chapa gerindo o CAL, com um sistema de 
presidência pro tempore que evidentemente era 
insuficiente para dar conta de todas as demandas, e o 
pior é que essa não foi a primeira vacância. O 
professor Caetano Galindo comenta na entrevista 
desta edição que também vivenciou uma situação 
semelhante em sua época de graduação. Mesmo 
com uma chapa em atuação hoje, grupo do qual faço 
parte e com o qual compartilho os acertos e as falhas, 
há a sensação de que muitas coisas ficam por fazer. 
Será que os alunos têm medo do CAL? 
Haverá um desinteresse geral por política? E, 
mesmo que não seja esse o caso, por que vivemos 
uma realidade tão calcada nesse mito? 
São mais de 800 alunos matriculados na 
graduação de Letras. Desses, mesmo se retirar a 
parcela dos que mal pisam no campus, ainda sobram 
algumas centenas de estudantes que frequentam o 
prédio da Reitoria diariamente. Nosso curso, pela 
sua amplitude, se compõe de muitos perfis. Por que 
não aproveitamos essas característica que é bem 
nossa para experimentarmos vários perfis de política 
estudantil? Embora às vezes pareça que é preciso 
ostentar certo discurso, certo vestuário, certa 
conduta social, nada disso torna alguém um líder se 
não houver trabalho efetivo pela coletividade – e 
trabalho há de sobra. 
Torço para que nas próximas eleições 
esses vários perfis apareçam e para que cheguem 
dispostos a encarar o trabalho duro. Dinheiro em 
caixa há, diálogo com a coordenação e com outras 
instâncias administrativas do curso também, o que 
nos falta talvez sejam ideias e energias renovadas e, o 
principal, continuidade. Esse quesito, a meu ver, 
tem sido o calcanhar de Aquiles das gestões do CAL 
que pude acompanhar, inclusive da minha chapa. 
Não basta apenas chegar com disposição 
ao aprendizado e ao trabalho, é preciso mantê-la 
durante todo o período da gestão – e essa é a parte 
difícil, daí tantos membros se afastarem ou se 
emudecerem ao longo do caminho. É também 
essencial à continuidade a integração de novos 
estudantes para que eles assumam posteriormente a 
liderança. Centralização e personalização de tarefas 
podem funcionar por um breve período, mas criam 
dependência e põem em risco projetos como o deste 
jornal. Com a reformulação recente do Estatuto, 
chapas horizontais agora são previstas, e acredito 
que sejam uma ótima oportunidade para que os 
membros do CAL exerçam mais plenamente as 
atribuições da representação estudantil. 
Com relação ao Boca, acabamos 
atingidos pela mesma falta de continuidade. Muita 
gente em gestões passadas se interessou por ele e 
trabalhou para que as edições se sucedessem, tanto é 
que eu tive a oportunidade de conhecer a publicação 
numa fase em que ela saía com alguma regularidade. 
O problema, a meu ver, é que costumava ser o 
projeto de uma única pessoa e, na ausência desse 
indivíduo, adeus jornal. 
Tendo isso em vista, ao assumir o cargo 
de editora-chefe desta edição, optei por ignorar 
minha autócrata interna, aquela voz que nos diz que 
podemos fazer tudo sozinhos. Iniciei, então, um 
longo processo de reestruturação do Boca, baseado 
na capacitação de um grupo para continuar o 
trabalho com ou sem minha presença. A palavra-chave, 
repito, é continuidade. Terei sido bem-sucedida 
no meu intento se, mesmo que não haja 
pessoas em gestões futuras do CAL interessadas e 
qualificadas para publicá-lo, ele continuar existindo 
por outras vias. É a política estudantil que mantém 
este jornal vivo, isso é fato, mas que seja uma política 
menos vulnerável a eventuais crises de representação 
política institucionalizada. 
A reestruturação começou em março 
deste ano, quando ofertei um curso de editoração a 
partir do qual se nomearam os participantes mais 
habilidosos para formar o comitê editorial do Boca. 
Tivemos oito selecionados – vejam quem são eles no 
expediente desta edição –, que estão incumbidos de 
organizar o jornal até março de 2015. No início do 
próximo ano, ou talvez até antes, se prevê um 
segundo treinamento para selecionar um novo 
grupo de editores. 
A chefia geral do comitê por ora continua 
sendo exercida por um membro do CAL, mas há a 
possibilidade de o(a) editor(a)-chefe também ser 
escolhido(a) a partir de um processo seletivo que 
considere as habilidades específicas da função. Esse é 
um cenário que pode vir a se concretizar se a 
comunidade de Letras achar conveniente, a partir de 
discussões e votações em Assembleias Gerais. 
De qualquer forma, será sempre obrigação do CAL 
fornecer suporte e receita para a impressão do Boca, 
direito que devemos cobrar de nossos representantes 
formais em qualquer situação. 
Tradicionalmente o Boca tem exercido o 
papel de vitrine para os trabalhos de colegas e os de 
pessoas que, de alguma forma, têm contato com o 
nosso curso. Como resultado disso, apresentamos 
uma grande quantidade de poemas, textos de ficção, 
traduções e artes gráficas nesta edição. Além do 
pessoal da casa, tivemos a colaboração também de 
artistas de fora, como se pode ver pelos ensaios 
fotográficos, pelas ilustrações e pela renovação do 
projeto gráfico. Isso tudo é ótimo, mas será que é o 
máximo que o Boca pode nos oferecer? 
Acredito que seja possível, sim, ousar 
ainda mais e aproveitar este canal de comunicação 
também para melhorar o nosso curso. Um jornal 
como este pode exercer funções como discussões 
acadêmicas, aproximação do mercado de Letras, 
integração entre as habilitações, parceria com a pós-graduação 
e denúncia de problemas que afetam o 
dia a dia dos beletristas. Essa é a parte mais 
complicada de se pôr na prática, pois, quando 
abrimos a chamada de textos, recebemos quase 
exclusivamente trabalhos literários alheios a estas 
questões. 
O comitê editorial tentou, na medida do 
possível, angariar textos que explorassem essas várias 
outras possibilidades e tivemos ótimas respostas, só 
que aparentemente as grandes polêmicas não 
encontraram ainda solo fértil entre nós. Essa é uma 
aspiração que fica para as próximas edições. Os 
temas são muitos, basta coragem para assinar os 
textos. Afinal, quem nunca achou falhas no 
currículo? Quem nunca sofreu com a precariedade 
da estrutura do campus? Quem nunca teve 
reclamações contra a ARI ou outros órgãos da 
Universidade? E isso para não falar da longa greve 
dos servidores, que tão silenciosa como começou 
terminou abafada pelas vuvuzelas da Copa. 
Este exemplar que chega às suas mãos é 
simples, mas ao menos ele existe e é nosso, isto é, dos 
estudantes de Letras. Com muitos assuntos ainda 
por dizer e tão pouco espaço em um único editorial, 
só me resta desejar que venham outras edições em 
breve. Vida longa e muitos textos audaciosos para o 
nosso Boca do Inferno! 
Suelen Trevizan é editora-chefe do Boca do 
Inferno e membro da atual gestão do CAL, 
Vem ni mim, Bakhtin! 
3 
Suelen Trevizan
Ensaio 
CHOQUE DE CONSCIÊNCIAS, 
EMBATE DE VOZES 
Análise da noção de identidade a partir do conceito bakhtiniano de polifonia em um conto de David Foster Wallace. 
Ana Carolina Werner da Silva 
o considerar os estudos feitos pelo 
Ateórico Mikhail Bakhtin – cujos conceitos podem ser uma 
importante chave teórica para se discutir 
narrativas de diversos gêneros – a respeito 
da relação entre o “eu” e o “outro”, não pude 
deixar de analisar, mesmo que brevemente, 
esta narrativa condensada, como o próprio 
título explicita, de David Foster Wallace, 
que apresenta uma situação banal e 
cotidiana, ou melhor, prosaica, temas caros 
ao teórico russo. 
4 
Segundo Bakhtin, o “eu” não se 
define somente por introspecção; ao 
contrário, define-se também pelos “outros”, 
ou seja, a visão que temos de nós mesmos é 
muito limitada, é apenas uma voz, uma 
perspectiva. Dessa forma, para que a 
complexidade do ser seja contemplada, 
precisamos do olhar do outro. Portanto, 
como princípio base do dialogismo, 
devemos enxergar a palavra como produto 
da relação entre um sujeito que fala e o seu 
interlocutor. A base do diálogo está no 
discurso, que é isento de neutralidade e 
permeado de intencionalidade: em outras ainda não foi pronunciado. O embate 
palavras, as frases que pronuncio são frutos dessas vozes que compõem o indivíduo faz 
de outras frases, e, de acordo com o próprio parte da sua constante construção. 
Bakhtin, não existe discurso virgem ou No fim da micronarrativa de 
original, no sentido estrito da palavra. É Wallace há uma pergunta/confirmação que 
esta a situação com a qual nos deparamos ao se repete: “não é mesmo não é mesmo não é 
ler a história narrada no conto de mesmo”, pergunta essa que passa ao leitor 
Wallace.Apesar de não haver nenhuma uma impressão de continuidade e que pode 
citação direta dos enunciados das ser interpretada como uma abertura do 
personagens, nos é permitido fazer texto ou como uma constante repetição da 
inferências a respeito do diálogo ocorrido situação ali apresentada. A imagem do 
entre elas. Sabemos que os discursos do mundano, do cotidiano e do banal 
sujeito falante se interpenetram e teorizada por Bakhtin está bem 
antecipam a resposta do interlocutor. O representada neste conto do autor norte-autor 
do conto, então, utiliza este aspecto americano, assim como nos seus três 
característico do diálogo a fim de ironizar a romances Broom of the system, Infinite 
banalização das relações humanas e, da jest, e no póstumo The pale king, nos quais 
mesma forma, da vida pós-industrial, tal preocupação com o universo das relações 
colocando as consciências das personagens humanas e o embate entre consciências é 
em atrito. Percebemos que o discurso de levado ao extremo, tecendo o discurso 
cada uma delas depende, profundamente, polifônico no cruzamento de pontos de 
de uma antecipação da resposta do vista. 
interlocutor; portanto, não podemos O autor apresenta em poucas 
ignorar a sua importância para a resposta linhas, neste conto, um episódio, um 
futura. momento, somando as vozes de um 
Na narrativa de Wallace, esta intervalo no contínuo da vida, como se a 
antecipação está clara, pois uma das história fosse escrita e apagada, marcando a 
personagens, o homem, faz uma piada presentidade em que vive o homem 
“esperando ser apreciado”; a mulher ri moderno, e, principalmente, como o 
forçadamente “esperando ser apreciada”; o homem não existe fora das relações com os 
colega que os apresentou não gosta de outros, que o constroem; mas, ao mesmo 
nenhum deles, mas finge que gosta tempo, coloca este mesmo episódio num 
(“ansioso como estava por conservar boas ciclo, ainda que este seja repetitivo e vazio 
relações a todo momento”), provavelmente de significado, como a vida e as relações 
esperando ser apreciado também. Ou seja, humanas nesta história radicalmente 
isso demonstra que a consciência é um condensada da vida pós-industrial. 
campo de embate de várias vozes, dentro 
dela temos o universo do ''já dito'' que nos 
permite projetar um discurso/resposta que 
Quando foram apresentados, ele fez 
uma piada, esperando ser apreciado. Ela riu 
extremamente forte, esperando ser apreciada. 
Depois, cada um voltou para casa sozinho em 
seu carro, olhando direto para a frente, com a 
mesma contração no rosto. 
O homem que apresentou os dois não 
gostava muito de nenhum deles, embora agisse 
como se gostasse, ansioso como estava por 
conservar boas relações a todo momento. 
Nunca se sabe, afinal, não é mesmo não é 
mesmo não é mesmo. 
¹ WALLACE, David Foster. Breves entrevistas com homens hediondos. Tradução de José Rubens Siqueira. São Paulo: Companhia da Letras, 2005 
Ana Carolina Werner da Silva é formada em Letras pela UFPR. 
Atualmente estuda o romance Infinite jest, de David Foster Wallace. 
Uma história radicalmente condensada 
da vida pós-industrial 
Versário 
Daniel 
Martineschen 
ICEBERG 
À 
superfície desponta o pico, mas ninguém conta com o 
mundo por baixo dele, 
só um décimo de sua grandeza, 
da qual só conhece quem esbarra, 
mesmo por acidente, e afunda, em mergulho 
inconsciente, lúcido e ébrio, que amarra e prende, 
indissociável e indiferente, para todo o sempre, 
na 
profundeza. 
DA LÓGICA CIRCULAR 
CARROCRATA 
Quanto mais ruas, mais espaço. 
Quanto mais espaço, mais carros. 
Quanto mais carros, menos espaço. 
Quanto menos espaço, menos ruas. 
Quanto menos ruas, menos carros. 
Quanto menos carros, mais espaço. 
Quanto mais espaço, mais ruas. 
Qual o elo fraco dessa roda? 
Qual a tangente de saída? 
A guerra tá mesmo perdida? 
Será mesmo assim tão foda? 
5 
Daniel Martineschen, anno 1981, é doutorando em estudos da 
tradução, tradutor do alemão (técnico, literário, juramentado), 
(ex-)informático pela UFPR. Traduz o Divan do Goethe e traduziu 
Travessia de Anna Seghers, pela editora da casa. Poesia para ele é 
incipiência, exercício, brincadeira, luta contra a timidez. 
o indizível 
é indivisível 
mesmo se visível; 
risível 
é o esforço pífio 
de (des)dizê-lo, 
arrancar-se os cabelos, 
dedicar-se décadas a fio 
a desentretecer o enredado. 
não quer dizer que seja inútil 
o vão (oco, interstício) 
que se parece divisar no sensível. 
é só que supô-lo 
definitivo, matriz de crivo 
de todo o perceptível 
é querer devorar e continuar tendo todo o bolo. 
No instante em que pensei, 
curioso o que se passou: 
passou tanto tempo 
que o instante 
se expandiu – 
e já passou.
6 
Tradução 
Zosia Samosia 
Jest taka jedna Zosia, 
Nazwano j¹ Zosia-Samosia, 
Bo wszystko 
“Sama! Sama! Sama!” 
Wa¿na mi dama! 
Wszystko sama lepiej wie, 
Wszystko sama robiæ chce, 
Dla niej szko³a, ksi¹¿ka, mama 
Nic nie znacz¹ - wszystko sama! 
Zjad³a wszystkie rozumy, 
Wiêc co jej po rozumie? 
Uczyæ siê nie chce – bo po co, 
Gdy sama wszystko umie? 
A jak zapytaæ Zosi: 
– Ile jest dwa i dwa? 
– Osiem! 
– A kto by³ Kopernik? 
– Król! 
– A co nam OEl¹sk daje? 
– Sól! 
– A gdzie le¿y Kraków? 
– Nad Wart¹! 
– A uczyæ siê warto? 
– Nie warto! 
Bo ja sama wszystko wiem 
I oeniadanie sama zjem, 
I samochód sama zrobiê, 
I z wszystkim poradzê sobie! 
Kto by siê tam uczy³, pyta³, 
Dowiadywa³ sie i czyta³, 
Kto by sobie g³owê ³ama³, 
Kiedy mogê sama, sama! 
– Tooe ty taka m¹dra dama? 
A kto g³upi jest? 
– Ja sama! 
Tem uma certa Neusinha Nove! 
Que chamam de Neusinha- – Dr. Oswaldo Cruz foi? 
Euzinha, – Presidente! 
Com ela é tudo – Sete de setembro é? 
“Eu! Eu! – Tiradentes! 
Eu!” – Come-se vatapá em? 
Que prima donna, Deus meu! – Belém! 
Tudo ela só já conhece, – E estudar, não convém? 
Tudo ela faz e acontece, – Nem vem! 
A escola, o livro, a mamãe – Eu sei tudo tintim por tintim 
balela E a sobremesa é toda pra mim, 
Pura e simples, pois tudinho é Faço euzinha até um avião, 
ela! Comigo não tem perrengue não! 
Não é uma sabe-tudo, Quem vai aprender, e perguntar, 
De que serve então juízo, E ler, e descobrir, e errar, 
estudo? Queimar pestana e toutiço 
Aprender – não faz por onde, Sem que se precise disso! 
Na hora ela não responde? – Grande sabichona! 
Mas pergunte a Neusinha na E a boboca de quem se escreveu? 
prova: – Eu, eu! 
– Quanto é quatro mais quatro? 
– Nove! 
Julian Tuwim 
Neusinha Euzinha 
Trad. Marcelo Paiva de Souza 
Julian Tuwim (1894-1953), poeta e tradutor, 
nasceu em Lodz, numa família de classe média 
de judeus assimilados. Estudou Direito e Filosofia 
na Universidade de Warszawa (Varsóvia), sendo 
integrante de diversos movimentos literários, entre 
esses, cofundador do cabaret literário Picador e do 
grupo de poesia Skamander. Foi o primeiro poeta 
polonês a trazer para a poesia a linguagem cotidiana, 
escrevendo de forma inovadora e para públicos múltiplos. 
O poema “Zosia Samosia” foi extraído de Tuwim 
(Varsóvia: Babel Studio, 2013), publicação organizada 
por Agnieszka Drewno e cofinanciada pelo Ministério da 
Cultura e do Patrimônio Nacional da Polônia. 
Marcelo Paiva de Souza é professor do Departamento de Letras 
Estrangeiras Modernas da UFPR e tradutor. 
Pedrita Setenareski (1987-), 
estudante de Letras polonês pela UFPR, 
nasceu em Curitiba. Com a parte 
materna da família, teve contato com 
tradições culturais polonesas. Além de 
estudar essa língua, também se dedica 
a ensiná-la. Seus hobbies são o 
desenho, a caricatura livre e a escrita. 
MUDANÇA 
DE 
DOMICÍLIO 
O conto “Cambio de domicilio” foi publicado primeiramente no livro La mayor, de 1976, relançado em Cuentos completos, de 2001. 
7 
Tradução 
Juan José Saer 
Trad. Amyr Bohot 
á uns dois anos, me mudei de casa e mudei de pra lá ou mais pra cá das coisas, de não se encaixar em 
nome. H A política favoreceu um pouco minha nenhuma definição, de não saber nunca de um modo certo decisão; em Buenos Aires, a polícia tinha me se sonhava ou se estava acordado, de não saber o que 
fichado durante uma manifestação e, como eu não tinha, responder, às vezes, a alternativas bem definidas que os 
apesar de minhas ideias avançadas, nenhum respaldo outros me mostravam. Durante anos me pareceu que essa 
solidário por não pertencer a nenhuma organização inépcia era individual, subjetiva, que minha história pessoal 
clandestina, me pareceu razoável mudar de domicílio e tinha se desenvolvido de tal modo que eu tinha ficado como 
desaparecer por um tempo. Assim, peguei o ônibus e vim preso dentro dela, sem muita capacidade de decisão, e que os 
para esta cidade, onde no verão se cozinha à beira do grande outros tal como eu os via desde fora não experimentavam, 
rio. neste mundo, o menor incômodo. Em dois anos, no 
Nada incentiva mais a reflexão do que as viagens. entanto, desapareceram minha voz tabacada, meu sotaque 
Na noite móvel e ruidosa do coletivo, o olho viajante segue portenho, mas o pântano antigo que jaz e às vezes se sacode, 
aberto, insone, ou antes alerta, à música do mundo. Foi no pesado, mais embaixo, mandando sinais de vida, deixa 
coletivo, na verdade, que a ideia de suplantar um simples ato entender que ou não escolhi a máscara conveniente ou nós, 
de autoproteção por uma mudança radical de identidade me os homens, qualquer que seja a cor de nosso destino, não 
ocorreu, súbita e febril. Começaria outra vida com outro estaremos nunca à altura das circunstâncias ou, melhor dito, 
nome, outra profissão, outro aspecto físico, outro destino. do mundo. 
Emergiria, com cinco ou seis braçadas vigorosas, do mar de 
meu passado a uma praia virgem. Sem família, sem amigos, 
sem trabalho, sem um piccolo mondo antico em cujo ventre 
vegetar, o futuro se apresentava para mim liso e luminoso, e 
terno, sobretudo, como um recém-nascido. Instalei-me 
numa pensão, falsifiquei meus documentos, operei minha 
transformação física e consegui um emprego de vendedor de 
livros em domicílio. Os jornais me davam por morto. A 
polícia paralela, se dizia, tinha se encarregado de mim. Mas o 
terror que reinava não deixava passar à superfície mais que 
alusões ambíguas. 
Isto já faz mais ou menos dois anos. No segundo 
ou terceiro mês de minha nova existência, como percebi que 
meus hábitos não haviam mudado muito, decidi modificar 
meus gostos e meus costumes de um modo sistemático. 
Deixei de fumar; como sempre detestei os ensopados de 
feijão e a língua-de-vaca, passei a comê-los todos os dias até 
que começaram a ser meu alimento preferido; decidi escrever 
com a mão esquerda e introduzi variantes capitais em minhas 
convicções profundas. De modo que ao fim do ano minha 
personalidade tinha mudado por completo. Me parecia ser, 
como se diz, outro homem. 
Digo “me parecia ser”, como se pode ver, e não 
“era”. À distância, me dou conta de que foi um certo 
emplastramento de minha vida, do qual era apenas 
consciente, o que me incitou a mudar: a sensação de andar 
em círculo, de não avançar, de estar sempre um pouco mais 
Juan José Saer (Santa Fé, 1937- 
Paris, 2005) é celebrado como um dos 
principais autores argentinos da era 
pós-Borges. Foi professor de Estética na 
Universidade de Rennes, na França, 
para onde se mudou em 1968 em 
autoexílio. Publicou contos, poemas, 
romances e ensaios. 
Amyr Borhot, aluno do primeiro ano da 
graduação de Letras, acha curioso escrever em 
terceira pessoa sobre si mesmo e aproveita a 
ocasião para agradecer a Ele, o Acaso, “sem o 
qual, nada”, como disse o poeta.
Textículos 
aquela manhã, ao acordar, seu primeiro terminando a faculdade de psicologia e tem um sorriso de matar. Vocês 
Npensamento foi: irão esbarrar um no outro quando o motorista frear diante de um cachorro, rir da situação, pedir desculpas e trocar telefones. 
“Que motivo tenho para me levantar da cama?” Eventualmente acabarão se casando e vivendo na felicidade pelos 
Permaneceu por alguns minutos dedicando-se à questão, próximos 21 anos, até o dia de sua morte.” 
mas nada nesse mundo era capaz de lhe fornecer uma resposta E ele perguntaria a deus: 
conclusiva. “A morte dela ou a minha?” 
Pensou na família que morava no interior, na tia-avó que E o senhor dos senhores responderia: 
morrera na semana passada, depois em seu emprego na agência de “Ah, se eu dissesse perderia a graça.” 
publicidade e no computador e na tela de vintetantas polegadas que lhe Ele então se levantaria, escovaria os dentes – estes mesmos 
esperavam dentro da mesma sala refrigerada todos os dias, onde se que cedo ou tarde apodreceriam de qualquer forma –, tomaria um 
sentia como um farto peru no fundo do congelador de um banho, comeria duas torradas com patê de frango e calçaria os sapatos, 
supermercado. alcançaria a rua e caçaria o futuro. 
A qualquer hora, tinha certeza, seria pego pelas pernas e Mas não havia deus nenhum lhe explicando seu grandioso 
destrinchado sobre uma tábua gigante, uma mão invisível arrancando plano, de forma que chegou a pensar que permanecer em casa poderia 
suas entranhas e substituindo-as por recheios diversos. até mesmo ser sua salvação, a despeito de todas as balas perdidas, 
Por um segundo pensou em qual seria a sensação da farofa colisões mortais e garotas de cabelo castanho que estariam à espreita 
entrando rabo adentro e na cor que sua pele assumiria após sair do para lhe furar o coração. 
forno, passando por mãos e talheres até ser devorado em uma mesa sob Viver era um ato de pirataria biológica, uma navegação 
as graças de uma família católica. paradoxal e sangrenta atrás de recompensas ilegítimas: todos no 
Já estava na cama havia dez minutos e o despertador tocou mesmo barco, cada um sua própria ilha. 
novamente. Mas desde sempre soubera que o mundo é um lugar 
Ainda não conseguia encontrar um motivo para se levantar. perigoso, afinal, não era sobre isso que sua mãe lhe alertava ao segurá-lo 
“Tenho que chegar ao trabalho em meia hora”, pensou. pela mão e ensiná-lo a verificar os dois lados da rua antes de atravessá- 
Calculou mentalmente o tempo que levaria em cada atividade, la? 
começando por escovar os dentes, passando pela ducha e o banheiro O problema é que ninguém lhe diz para qual lado olhar antes 
vaporizado, depois o café da manhã e o trajeto até a agência. de atravessar a realidade e cedo ou tarde você acaba debaixo da carreta 
Concluiu que chegaria pelo menos dez minutos atrasado. do destino, esmigalhado por todas as escolhas ruins que fez até então. 
Mas o atraso, por si só, pareceu-lhe mais uma justificativa Ficou ali deitado, pensando a respeito, por dois ou três dias. 
para permanecer na cama (afinal, iria atrasar-se de qualquer modo) do Ainda não conseguia encontrar um motivo para se levantar. 
que para se levantar dela. Nada mais queria que uma única razão para vestir-se e voltar 
Em sua cabeça, enquanto coçava a barba rala e crescente de ao cotidiano, uma vontade qualquer que lhe faria abrir a janela e 
sua queixada, perguntou-se: respirar um pouco, motivar-se novamente e se deixar encantar pela 
“O que ganho levantando da cama hoje? Outro dia de vida. 
trabalho, outra semana iniciada, o eterno ciclo se repetindo após cada Fechou os olhos, espreguiçou-se na cama. Tentou sentir 
madrugada, e de novo e de novo até o fim dos tempos. De qualquer alguma coisa. 
forma saio da cama agora e volto a ela depois, para então sair dela mais Qualquer coisa. 
uma vez e assim por diante.” Definitivamente não estava encantado. Nem mesmo 
Decidiu tomar um atalho na vida: permaneceria na cama, instigado ou curioso. Talvez fosse falta de ar fresco, pensou. E se 
que era afinal seu ponto de partida e chegada noite após dia, dia após lembrou de que o oxigênio é responsável pelo desgaste das células. 
noite após dia. Refletiu se valeria a pena diminuir o ritmo da respiração na tentativa de 
Sentia-se um oroboro, um que já tivesse engolido a cauda há retardar o envelhecimento, mas decidiu que não era um esforço 
tanto tempo que chegava a sentir os próprios dentes batendo à nuca. necessário, visto que não tinha objetivos a serem alcançados. O 
Apoderou-se dele uma súbita necessidade de que o mundo emprego na agência – provavelmente perdido a essa altura –, o contato 
lhe desse explicações, de que deus (qualquer um) batesse à porta e lhe com os amigos, a convivência com outros seres humanos iguais a ele, 
dissesse: nada lhe era atrativo suficiente para que desejasse sair dali e colocar-se 
“Olá, filho, tenho um plano na medida para você. em movimento. 
Acompanhe: hoje você vai chegar atrasado à agência e, por conta desse No sétimo dia percebeu que suas costas e metade da perna 
atraso, terá que pegar o ônibus das 8h10, em vez do tradicional esquerda estavam presas ao colchão. Raízes de pele e tecido se 
expresso das 8h. No trajeto você encontrará uma pequena garota de interligavam em uma simbiose perfeita, fundindo seu corpo à cama. 
cabelos castanhos, alguns anos mais jovem que você. Ela está Ainda não conseguia encontrar um motivo para se levantar. 
8 
LENÇOL HUMANO 
Yohan S. Barcz 
9 
Yohan S. Barcz cumpriu pena no curso 
de Jornalismo e agora tenta se recuperar 
para fazer algo que preste. Entre a prática 
da quiromania e a escrita, prefere a primeira, 
por uma questão de domínio técnico. 
Multi-instrumentista, utiliza a música apenas 
para justificar o uso contumaz de entorpecentes. 
Priscila Cristina Nascimento Lopez de Scoville. 
Um nome tão grande quanto a simpatia e a modéstia. 
Estuda História Memória e Imagem na UFPR desde 2011. 
Talvez suas coleções de desenhos feitos e fotografias tiradas 
sejam maiores do que o número de livros sobre o Egito Antigo, 
seu tema de pesquisa acadêmico.
Textículos 
A Fotógrafa 
Gustavo Jugend 
Rays of joy, they multiply. 
(Gogol Bordello) 
assara a noite acordada com o olhar fixo no além-mar e a máquina de recolher instantes 
em torno P do pescoço. Goma há horas entre os dentes e um pote de açúcar ao lado. Atribuía ao horizonte a exigência incerta de um vermelho que se acotovelasse entre o azul 
e o azul rasgando a noite de seus olhos, extirpando-lhe saudade e monotonia. 
Próximo à hora inexata buscou gentilmente o chiclete, deitou-lhe no pote ao 
lado cobrindo-lhe com aquele cristal doce: hora de aurora. Juntou seu colar fotográfico ao olho 
direito e enamorou-se do infinito. Mas quando a bola que se queria rubra despontou no 
horizonte quarada ao laranja, os braços daquela fotógrafa vacilaram. Exigia demais do mar, exigia 
demais do horizonte. Exigia do sol mais do que se podia exigir. 
No dia seguinte o botão da câmera ainda guardava sua digital em açúcar. Na mesa da 
cozinha apenas uma folha branca com um círculo escuro no meio restava junto a uma caixa de 
lápis de cor, mais aquele pote de doce. A fotógrafa arrancou o grafite da caixa e desatinou 
vermelho no céu e no mar. Desatinou vermelho no sol. Desenterrou a goma do pote, entrelaçou-a 
entre os dentes e sorriu de leve; a noite de seus olhos era, finalmente, alvorada. 
Gustavo Jugend, curitibano, 
é mestrando em Filosofia pela 
UFPR. Pesquisa ética, ontologia 
e poesia, além de lecionar no 
Ensino Médio. Também publica 
contos no blog exvotar.wordpress.com. 
10 
Sarah Garcia 
Quero andar por aí 
até meu cabelo tocar as pontas dos dedos 
raízes confusas buscando no céu 
nuvens de desapego 
Quero voar por aí 
até de meus braços caírem penas 
e de meus olhos as ramas 
fugitivas da leveza 
De meu ser resta pouco além de ser 
Sarah Garcia é uma paulistibana, 
natural da capital de São Paulo, 
mas com o coração curitibano. 
Tem 20 anos, cursa Letras 
português-espanhol na UFPR e 
tenta fazer poesia (y otras cositas más) 
no blog porquenaoentao.blogspot.com.br. 
grão de areia: 
a miragem da chuva 
seca 
Evelyn Cieszynski, curitibana, é aluna 
de Letras da UFPR. Escreve também para 
a revista literária Varal do Brasil (varaldobrasil.com). 
Revolvendo 
Evelyn 
Cieszynski 
11 
Versário 
Cesar 
Felipe Pereira 
Saussureana 
Essa noite 
Saussure me sussurrou no ouvido: 
“Não creia no que dizem, 
não lhes dê ouvidos”. 
O suíço estava doido, 
saturado dos alunos. 
Disse haverem confundido tudo: 
sumido com o original, 
publicado absurdos. 
“Não é que são safados?, 
acabaram com meu Curso. 
Tais palavras não são minhas!”, 
já berrava o pobre homem 
com cólera quase secular. 
“Grande gênio, pai dessa ciência? 
Isso não é meu, 
não mereço esse trono!”. 
Por meu lado, sob o travesseiro a cabeça, 
associações, langue, parole, 
tudo rodando, 
me deixando quase louco. 
Até que quando, 
veio à ideia aquele clarão, 
potente relâmpago. 
Única palavra: 
“Possenti”. 
Forte aguardente, 
Seu Sírio é Saussure! 
Triste sombra em pleno outono: 
Se Caetano roça a língua de Camões, 
Ferdinand acaba com meu sono! 
Leonardo 
Gonçalves Fischer 
Romance das vias do Taquaruçu 
Nesta estrada abandonada 
Que o passar dos tantos anos 
Nem sequer mudou em nada 
Sobre seus trajetos planos, 
Inda toda em chão batido 
Por galopes e por passos 
Que o tempo transcorrido 
Já lhes apagou os traços, 
Despontava a silhueta 
Parecendo imaginária, 
Augural tal qual cometa, 
Tão distante, solitária, 
Vinha um viandante velho 
Que trajava um gasto pálio, 
Em suas mãos o Evangelho 
E um cajado de carvalho; 
Seu alforje pendurado 
Que o tempo mal conserva 
Carregava abarrotado, 
Tendo todo tipo d' erva, 
Ervas d' ancestral cultura 
Que resiste ao oblívio 
Trazem para o povo a cura 
E às dores seu alívio. 
Ia errante pelas vias 
Como um filho desta terra, 
Como o monge àqueles dias 
Antes da funesta guerra 
Em que ardeu Taquaruçu 
Sob obuses flamejantes, 
Sobre os campos do Iguaçu 
Dantes tão mais verdejantes. 
Ia o velho calmamente 
Quando então o avistaram, 
Agitou-se toda gente, 
Todos alto então gritaram: 
“Olha o monge! Olha o monge! 
Ele enfim ressuscitou!” 
Mas marchava o velho ao longe, 
Foi-se e nunca mais voltou. 
Leonardo Gonçalves 
Fischer nasceu em 
Caçador-SC, em 1993, 
e residiu durante 
muitos anos em 
Fraiburgo, no mesmo 
estado. Atualmente 
cursa Letras 
português-grego, 
bacharelado em 
estudos da tradução, 
na UFPR. 
Cesar Felipe Pereira nasceu 
em Curitiba, em 1983, 
numa madrugada gelada. 
É formado em Letras e 
Cinema e, no momento, 
finaliza o mestrado em 
Estudos Literários na 
UFPR. Está no prelo seu 
livro de estreia de poemas 
antes do COMEÇO depois 
DO FIM. Tem acessos de 
megalomania, acredita 
no poder da arte e não gosta 
mais de Chico Buarque.
Mario Benedetti 
1 
12 
Tradução 
A NOITE DOS FEIOS 
O conto original, “La Noche de los Feos”, pertence ao livro 
La muerte y otras sorpresas, publicada pela editora Alfaguara em 1968. 
Trad. Camilla Nater e Nylcéa Pedra 
mbos somos feios. Nem sequer minutos, admiramos as respectivas belezas meia depois tivemos que pedir dois cafés 
vulgarmente feios. Ela tem a maçã do herói desajustado e da doce heroína. Pelo para justificar A nossa permanência do rosto deformada. Desde os oito menos eu sempre fui capaz de admirar o prolongada. Logo me dei conta de que 
anos, quando lhe fizeram a operação. bonito. Minha aversão reservo para meu tanto ela como eu estávamos falando com 
Minha asquerosa marca junto à boca vem rosto e às vezes para Deus. Também para o uma franqueza tão ofensiva que ameaçava 
de uma queimadura atroz, ocorrida no rosto de outros feios, de outros espantalhos. ultrapassar a sinceridade e tornar-se um 
começo de minha adolescência. Talvez devesse sentir pena, mas não consigo. quase equivalente da hipocrisia. Decidi 
Também não se pode dizer que tenhamos Na verdade, é que são como espelhos. Às aprofundar-me. 
olhos ternos, essa sorte de poucos pela qual vezes me pergunto o que teria ocorrido na “Você se sente excluída do 
os horríveis conseguem deixar de lado a mitologia se Narciso tivesse a maçã do rosto mundo, não é mesmo?” 
beleza. Não, de modo algum. Tanto os dela deformada, ou tivesse as bochechas “Sim”, disse, ainda me olhando. 
quanto os meus são olhos de ressentimento, queimadas por ácido, ou lhe faltasse metade “Você admira os charmosos, os 
que só refletem a pouca ou nenhuma do nariz, ou tivesse a testa costurada. normais. Você queria ter um rosto tão 
resignação com que enfrentamos nosso Esperei-a na saída. Andei uns equilibrado como esta menininha que está à 
infortúnio. Talvez isso tenha nos unido. metros junto dela, e logo lhe falei. Quando sua direita, apesar de você ser inteligente, e 
Talvez unido não seja a palavra mais se deteve e me olhou, tive a impressão de e l a , a j u l g a r p o r s u a r i s a d a , 
apropriada. Me refiro ao ódio implacável que vacilava. Convidei-a para conversarmos irremediavelmente estúpida.” 
que cada um de nós sente por seu próprio um pouco em um café ou uma confeitaria. “Sim”. 
rosto. Aceitou de imediato. Pela primeira vez não pude 
Conhecemo-nos na entrada do A confeitaria estava cheia, mas sustentar meu olhar. 
cinema, fazendo fila para ver dois nesse momento uma mesa foi desocupada. “Eu também queria isso, mas 
charmosos quaisquer na telona. Ali foi onde À medida que passávamos entre as pessoas, existe uma possibilidade, sabe, de que eu e 
pela primeira vez nos examinamos sem ganhávamos gestos e sinais de assombro você cheguemos a algo.” 
simpatia, mas com uma obscura pelas costas. Minhas antenas estão “Algo como o quê?” 
solidariedade; ali foi onde registramos, já particularmente ligadas para captar a “Como nos amarmos, oras. Ou 
desde o primeiro olhar nossas respectivas curiosidade doentia que as pessoas têm, esse simplesmente nos darmos bem. Chame 
solidões. Na fila todos estavam a dois, além sadismo inconsciente dos que tem o rosto como queira, mas há uma possibilidade.” 
disso, eram autênticos casais: esposos, comum, milagrosamente simétrico. Esta Ela franziu a testa. Não queria dar 
namorados, amantes, avozinhos, e sei lá vez, no entanto, não era nem sequer esperanças. 
mais o quê. Todos – de mãos ou braços necessária minha adestrada intuição, já que “Prometa-me que não vai me 
dados – tinham alguém. Só eu e ela meus ouvidos conseguiam registrar achar um louco.” 
tínhamos as mãos soltas e contraídas. murmúrios, tossezinhas, falsas pigarreadas. “Prometo.” 
Com detenção, insolência e sem Um rosto horrível e único possui “A possibilidade é se deixar levar 
curiosidade, olhamos nossas respectivas evidentemente seu interesse. Mas duas pela noite. Na noite total. Na escuridão. 
feiuras. Reparei na deformação de sua face feiuras juntas constituem por si próprias um Entende?” 
com a autoridade que me era outorgada por espetáculo maior, aos menos coordenado; “Não.” 
minhas bochechas encolhidas. Ela não ficou algo que se deve olhar em companhia, junto “Você tem que me entender. A 
vermelha. Gostei que fosse dura, que a pessoas bem parecidas com as quais o escuridão. Onde você não me veja, onde eu 
devolvesse minha inspeção com uma olhada mundo merece ser dividido. não a veja. Seu corpo é lindo, não sabia?” 
minuciosa à área lisa, brilhante, sem barba, Nos sentamos, pedimos dois Sorriu. A deformação das 
da minha velha queimadura. sorvetes, e ela teve a coragem (gostei disso bochechas se tornou levemente escarlate. 
Finalmente entramos. Sentamo- também) para pegar da bolsa seu espelho e “Mo r o s o z inh o , em um 
nos em filas diferentes, mas próximas. Ela arrumar o cabelo. Seu lindo cabelo. apartamento, e fica perto daqui.” 
não conseguia me olhar, mas eu, mesmo “Que está pensando?”, perguntei. Levantou a cabeça e me olhou 
com a escuridão, conseguia distinguir sua Ela guardou o espelho e sorriu. O questionando-me, averiguando sobre mim, 
nuca de cabelos loiros, sua orelha carnuda poço das bochechas mudou de forma. tentando desesperadamente chegar a um 
bem formada. Era a orelha do seu lado “Um lugar comum”, disse, “tal diagnóstico. 
normal. como esse”. “Vamos”, disse. 
Durante uma hora e quarenta Falamos bastante. Uma hora e 
13 
ão só apaguei a luz como também fechei a cortina Tive que recorrer a todas minhas reservas de coragem, 
Ndupla. Ao meu lado ela respirava. E não era uma mas fiz. Minha mão subiu lentamente até seu rosto, encontrou a respiração ofegante. Não quis que eu a ajudasse a cicatriz, e começou uma lenta, convincente e convencida 
despir-se. carícia. Na verdade meus dedos (a princípio um pouco 
Eu não via nada, nada. Mas pude notar que agora ela trêmulos, em seguida progressivamente serenos) passaram 
estava imóvel, à espera. Estiquei cuidadosamente uma mão, até muitas vezes sobre suas lágrimas. 
encontrar seu peito. Meu tato me transmitiu uma versão Então, quando eu menos esperava, sua mão também 
estimulante, poderosa. Assim, vi seu ventre, seu sexo. Suas mãos chegou à minha face, e passou e repassou a costura e a pele lisa, 
também me viram. essa ilha sem barba da minha marca sinistra. 
Nesse instante entendi que devia sair (e tirá-la) Choramos até o amanhecer. Desgraçados, felizes. 
daquela mentira que eu mesmo tinha fabricado. Ou tentado Logo me levantei e abri a cortina dupla. 
fabricar. Foi como um relâmpago. Não éramos isso. Não éramos 
isso. 
Mario Orlando Hardy Hamlet Brenno Benedetti Farrugia 
nasceu no ano de 1920, em 14 de setembro, na cidade uruguaia 
de Paso de Toros, e faleceu em 17 de maio de 2009, na capital, 
Montevidéu. Escritor e poeta, fez parte da Geração de 45 e teve 
mais de 80 livros publicados, muitos deles traduzidos para 
mais de 20 idiomas. 
Camilla Nater, curitibana, 
é graduanda do primeiro ano de Letras 
e verdadeiramente apaixonada pela língua 
espanhola e suas muitas facetas 
Nylcéa Pedra é professora no curso 
de Letras da UFPR. Gosta muito do que faz. 
E, entre uma aula e outra, brinca seriamente de traduzir. 
2
Entre e vista 
CAETANO GALINDO 
NÃO PERDE TEMPO 
COM PUBLICAÇÕES DE UMA TRADUÇÃO E UMA COLETÂNEA DE CONTOS PREVISTAS 
PARA OS PRÓXIMOS MESES, O PROFESSOR AINDA PÕE A LEITURA EM DIA ENQUANTO 
PASSEIA COM O CACHORRO. 
Galindo é conhecido principalmente por dois feitos homéricos. A nível 
nacional, por ter traduzido o romance Ulysses, de James Joyce, e, no âmbito do curso de 
Letras, por ministrar a disciplina de Língua Portuguesa V semestres a fio. Os editores 
trataram de ambos os assuntos, como não poderia deixar de ser, mas procuraram 
descobrir também outras facetas do entrevistado: músico, aluno, pesquisador, vice-coordenador, 
leitor, contista e poeta – ou ex-poeta, segundo ele. Acabou que, no clima de 
Copa, a conversa se enveredou até por temas futebolísticos (adivinhem para qual time ele 
torce?). 
O que vocês leem a seguir são os melhores momentos desta conversa, que, 
desculpem os puritanos da língua, conserva a maioria dos traços de oralidade. O 
propósito é que os leitores tenham uma experiência mais próxima à do encontro daquela 
tarde. Assim, aqueles que nunca tiveram a oportunidade de assistir a aulas ou palestras 
sobre Ulysses (e foram muitas só na Reitoria) nem de cursar Língua V talvez saiam com 
pelo menos uma vaga impressão desta figura notória sob tantos aspectos. 
E para os ansiosos: a tradução de Infinite jest, de David Foster Wallace, deve 
sair em novembro pela editora Companhia das Letras. Galindo adiantou que edição será 
extensa e visualmente bem caprichada, por isso, é melhor ir poupando os níqueis até lá. 
A VÉSPERA DO JOGO 
NDE ABERTURA DA COPA DO MUNDO, OS 
EDITORES DO BOCA DO INFERNO 
ENCONTR A R AM O P ROF E S SOR 
CAETANO GALINDO NA SEDE DO CAL 
PARA CERCA DE UMA HORA DE 
CONVERSA. FOI UM BATE PAPO 
BASTANTE INFORMAL, REPLETO DE 
MOMENTOS CÔMICOS, COMO SE VERÁ 
A SEGUIR. PARA COMPLETAR O TIME, 
H O U V E A P A RT I C I P A Ç ÃO D A 
FOTÓGRAFA MARINA TORTELLI , 
CONVIDADA ESPECIALMENTE PARA 
REGISTRAR O EVENTO. 
Suelen Trevizan: Nós percebemos que você lavar as mãos e me afastar do Joyce. Mas quem que eu fiz com o Faraco. Tanto eu quanto ele 
costuma caminhar lendo, inclusive vimos faz alguma coisa é ele. Eu tenho a sorte, nesse temos conversas metafísicas estranhas até hoje, 
você entrando agora há pouco na cantina sentido, de estar vinculado ao nome dele, de e gente falou “vamos fazer um negócio meio 
lendo um livro. Pode explicar para a gente estar vinculado a esse livro. filosófico e psicológico estranho sobre o futuro 
como funciona essa técnica de leitura? verbal”, daí entrou o Agostinho e depois que 
Caetano Galindo: Não sei, sempre me Suelen: Uma das coisas que eu achei curiosa entrou o Plotino na história. Mas era 
pareceu uma perda de tempo ir de um lugar no seu currículo Lattes foi você fez linguística românica na minha cabeça. Eu fiz o 
para outro sem estar fazendo nada. Eu resisto mestrado sobre Santo Agostinho e Plotino. projeto de doutoramento para estudar o 
em usar a palavra “obsessivo”, porque ficou Qual era o seu interesse de pesquisa naquele vocabulário romeno do século XVII na 
desagradável depois matéria da Folha, mas eu momento e como mudou para James Joyce? Alemanha. Fui aprovado pelo DAAD, ganhei a 
sempre fui obcecado com a coisa de perder Caetano: Eu entrei no curso de Letras, como bolsa, estava com tudo certo para embarcar, 
tempo. Eu odeio ficar à toa, eu nunca fico à toa. vocês provavelmente, sem saber o que se fazia quatro anos na Alemanha, indo e tranquilo. 
Na época em que eu vinha para a faculdade, eu no curso de Letras. Eu entrei com uma vaga Mas foi quando eu me separei da minha 
achava uma perda de tempo ficar andando de ideia de que escritores faziam Letras, entrei para primeira mulher e eu tinha uma filha pequena, 
um lado para o outro sem estar fazendo nada. ver o que ia acontecer, assim na louca. Voltando daí falei “pô, não vou passar quatro anos longe 
Eu gostava muito de ouvir música, mas ouvir mais atrás ainda, eu estava no conservatório e da minha filha que está crescendo”. Eu cancelei 
música para mim é muito perigoso, porque me eu saí por causa de uma lesão. Então, eu estava a bolsa, voltei para cá, perdi um ano nessa 
desconcentra de um jeito muito absurdo. Ler em casa de bobeira, e o meu irmão ia fazer história, porque as seleções de doutorado 
não, eu consigo. Desde que eu tinha treze ou vestibular, eu falei “vou fazer vestibular com o tinham passado, e o projeto que eu ia fazer lá 
quatorze anos comecei a fazer isso. Sei lá, meu irmão” e escolhi Letras. Sempre li muito, não tinha como fazer aqui, aliás, não tem até 
sessenta por cento das coisas que eu li nos sempre gostei de literatura basicamente. hoje. Se eu quiser fazer linguística histórica do 
últimos vinte anos de vida eu li andando. Ninguém gosta de linguística antes de entrar romeno, não tenho para onde ir. Aí eu demorei 
em Letras, porque ninguém sabe o que é um tempo e pensei “pô, preciso inventar outra 
Suelen: E nunca houve nenhum acidente? linguística antes de entrar em Letras. coisa”. Daí foi o momento de surto hedonista 
Caetano: Não. Meu irmão, que faz a mesma em que eu falei “quer saber, já que eu não vou 
coisa, uma vez caiu na garagem de um prédio, Juliana Corrêa: Nem depois às vezes, fazer aquilo, vou fazer um negócio que me dê 
na rampa, mas eu não. É invicto para mim, quanto mais antes de entrar... tesão de fazer, só isso”. Daí eu queria ler Ulysses 
nem susto, muito tranquilo. Caetano: Pois é, eu fiz Linguística I já com o a fundo, queria estudar Ulysses. Sempre tive essa 
Mercer, que para mim foi uma figura central na ligação com o Bakhtin, falei “pô, tenho a 
Vinícius Figueiredo: Em 2012, a revista minha vida, e tipo chapei. Falei “esse negócio impressão que dá para tirar um caldo” e 
Época elegeu você uma das 100 pessoas de linguística é muito legal”. Meu mundo virou inventei esse projeto. Perdi mais um ano nisso, 
mais influentes do Brasil. do avesso quando eu fiz Linguística I. Daí, uma porque não consegui convencer ninguém de 
Caetano: Eles erram nessas coisas, eles estão daquelas histórias bocós, já no segundo que esse projeto era possível e as pessoas se 
enganados. semestre eu tinha uma namorada que fazia negavam a me orientar. Todo mundo que eu 
Letras e ela ia fazer uma optativa de noite. Eu pedia me dizia “você é louco, não vai conseguir 
Vinícius: Como você influencia as pessoas, falei “pô, vou arranjar uma optativa de noite fazer”. Aí acabei fazendo na linguística. De 
Caetano? para poder vir para cá também” [risos]. A única início tentei fazer na literatura, acabei fazendo Caetano: Eu não influencio ninguém, cara. Eu que me encantou um pouquinho era uma na linguística, porque o Fiorin me conhecia e mal tento influenciar vocês. Eu acho que o história do português com o padre Afonso falou “tá, vamos fazer”. E foi a decisão que Joyce influencia muita gente e eu acho que virei Robl, que vocês também não conheceram. Vim mudou minha vida, porque a partir daí eu não essa criatura ligada à fortuna dele, daqui fazer a optativa do padre Afonso e conheci a saí mais disso e me enterrei nessa história da provavelmente para o resto da minha carreira. linguística histórica. Pensei “porra, me achei”. tradução. Eu sou o cara que é o portador de Joyce para as No primeiro ano eu já sabia que queria fazer 
pessoas. Não me incomoda, gosto muito, linguística histórica e aprendi romeno por Vinícius: Um comentário pessoal, você 
inclusive continuo com esse projeto. A gente causa disso, estudei filologia por conta durante como professor, até andando lendo, tem 
vai fazer Dublinenses para o ano que vem, vai a graduação. Entrei no mestrado para fazer um ar muito erudito. 
fazer O Retrato do artista do quando jovem para linguística histórica de línguas românicas, foi o Caetano: É a calva [risos]. 
2016, eu ainda tenho o plano de fazer o que fiz. Era futuro verbal romeno e português, 
Finnegans Wake, ou seja, eu não estou querendo 
14 15
Vinícius: Só que em uma das entrevistas terminei, eu falei para a Sandra “cara, me deu saímos da banda, e ela continuou com outro 
você disse que começou lendo Sherlock uma vontade de ser inteligente agora, preciso nome. 
Holmes e Agatha Christie, algo um pouco ler umas coisas complicadas”. Você se sente 
mais pop. Eu queria saber se isso ainda está dolorosamente burro de ter lido aquilo [risos]. Suelen: Como era o nome da banda? 
na sua vida. Mas eu não tenho nada contra, eu vario bem. Caetano: Chamava Bichos Buenos. Agora 
Caetano: Eu estou vendo The game of thrones Na verdade, hoje muito menos, porque tem chama Garellis, mas não sei se eles estão 
agora, isso é pop, né? pouco tempo, pouca disponibilidade. E entre tocando mais. Eles ficam praticando bullying 
ler o Knausgård, que tá na minha lista, que para eu voltar, mas eu não tenho mais nem 
Suelen: E o que você está achando da quarta todos os meus amigos falam que eu tenho que guitarra hoje, vendi a minha no ano passado. 
temporada? ler, e ler dois ou três romances policiais que 
Caetano: Eu ainda estou na segunda. Acho podem ser uma merda, eu vou ler um negócio Juliana: Então a ideia inicial era ser músico 
muito difícil encarar aquele negócio de que é garantido. Mas a verdade é que estou e daí você decidiu fazer Letras? 
dragãozinho, feitiços e tal, mas ao mesmo ficando mais velho e estou ficando menos pop. Caetano: A ideia inicial desde, sei lá, os 
tempo é megaviciante, você quer saber o que quatorze anos de idade, era ser músico. E eu 
vai acontecer com aquelas pessoas. É um Vinícius: E música? teria sido músico. Não fosse uma lesão, eu teria 
novelão. A gente está vendo, não sabe se vai Caetano: Pior ainda. Hoje faz uns cinco ou seis ficado no conservatório feliz e contente, sem 
encarar até o final, não, mas a gente está por anos que eu estou me tornando quase duvidar de nada. E como a Sandra me fez ver, 
enquanto indo bem. Eu não tenho grandes patologicamente incapaz de ouvir música pop. ela que insistia em dizer isto e ela que me 
escrúpulos, não, cara, com essa coisa do pop ou E eu sempre ouvi muita música pop, eu tive convenceu disto, eu continuo sendo músico. E 
do não pop. Essa resposta é meio complicada. banda. ela tem razão, porque música é daquele grupo 
No ano passado, eu tive uma recaída em de atividades que entorta a cabeça da pessoa. 
romance policial e passei um pedaço lendo Vinícius: Contam as más línguas que existe Você pensa como músico – eu falo daquele 
romance policial. Montei uma wishlist na uma banda de Letras. músico que estudou e tal, não do cara que toca 
Amazon só de romances policiais, achei uma Caetano: Foi uma vez só. Quer dizer, não sei se violão em casa –, porque é um reino de 
porrada de coisas, li um monte de coisa, porque continuou depois, mas foi para um estruturas abstratas que te enviesa o jeito de 
me deu vontade de ler romance policial de encerramento de uma Semana de Letras. Eu, o pensar. Uma das minhas melhores alunas de 
novo. Em geral eu leio muito rápido, e romance Max na bateria, o Gustavão, que hoje é linguística até hoje que passaram por aqui, eu 
policial eu leio doentiamente 
rápido, então para mim é uma 
coisa tranquila de se fazer 
passeando com o cachorro na rua. 
Juliana: Você teria vergonha de 
ser visto lendo algo assim? 
Caetano: Nunca. 
também tem um quadro muito grande de professor da UTFPR, acho, e mais um menino que carreguei para as coisas que eu faço. 
pessoas que só leem Harry Potter, daí eu acho que hoje está fazendo doutorado. 
até compreensível. Eu não tenho muito Suelen: E que tipo de aluno você era na 
problema com isso, não. Agora, a bem da Suelen: E qual era o estilo dessa banda? graduação? Você se envolvia com política 
verdade, não sei se é a idade, começa a rolar Caetano: Era mais blues. estudantil? 
uma sensação de novo de perda de tempo. Hoje Caetano: Não. No nosso tempo o centro 
eu não consigo mais ler Agatha Christie nem Suelen: Então ainda era um pouco cult, não acadêmico estava praticamente morto. Tinha 
Sherlock Holmes, que eu já li e tal, porque eu tão pop. havido uma geração que tem fama até hoje, 
penso “pô, poderia estar lendo coisa melhor”. Caetano:Não, mas o que a gente fazia, o que a uma geração meio gloriosa do tempo em que o 
Rola uma sensação de culpa um pouco, que é minha banda – isso vocês vão por, né [risos] – Marcelo Sandmann e o Paulo Soethe estavam 
profissional. Ler ficção por diversão já rola uma propriamente fazia era mais tosco. Era uma no centro acadêmico.Eles são anteriores a mim. 
sensação de culpa, eu deveria estar lendo crítica coisa meio punk, meio pub rock inglês. E a Na minha época, eu estava morto, confesso que 
literária e tal. gente fazia umas versões em português de coisas não tinha nenhum interesse. O CAL estava 
bizarras, tipo Toy Dolls. A gente tinha uma tentando se reerguer. Quando eu cheguei, 
Juliana: Acho que acontece o contrário. A fixação por Toy Dolls e fazia versões em tinha centro acadêmico, teve uma recepção e 
gente perde um pouco a vontade de ler português, eu e o meu irmão, a gente que tal, mas não tinha grandes atividades, não tinha 
literatura no curso, porque tudo tem que ser escrevia as letras e se divertia horrores. A gente uma sede, nada. Não me envolvia muito com 
uma coisa profunda. tocava junto desde os vinte anos, mas no final isso nada, não. Frequentava as aulas, mas Caetano: Mas para mim é uma coisa de quase 
manifesto pessoal. Eu sempre fiz questão de era uma banda de tiozinhos. Uma vez por também não era nenhum modelo de presença. 
nunca parar de ler ficção e nunca parei, desde semana a gente ia lá para suar e gastar dinheiro 
em estúdio. A gente nem tocava mais ao vivo Suelen: Na grade que você pegou como 
que entrei como aluno de graduação. E não é só estudante tinha Língua Portuguesa V? uma obrigação do tipo “Deus não gosta, a quase, mas chegou uma hora que não deu mais. Os horários não batem mais, todo mundo tem Caetano: Não com esse nome. Tinha Língua academia não gosta”, de repente eu não tenho Portuguesa IV, que a princípio era linguística mais essa vontade. Eu li um romance bocó filho, todo mundo tem emprego, todo mundo tem rotina diferente, não rola. Eu e meu irmão histórica do português, mas a gente fazia com o americano mês passado e, assim que eu 
16 
‘‘ PPESSOAL. ARA MIM É UMA COISA DE QUASE MANIFESTO 
EU SEMPRE FIZ QUESTÃO DE NUNCA PARAR DE LER FICÇÃO E NUNCA PAREI, DESDE 
QUE ENTREI COMO ALUNO DE GRADUAÇÃO. 
‘‘ Vinicius: É que tem uma 
valoração. Se passa um aluno 
de Letras lendo Harry Potter, 
você consegue ver os olhares 
negativos de outros alunos. 
Caetano: Até imagino que 
tenha, cara. Mas o problema é 
estava dando Língua V para ela, e 
você sabe aquele aluno que você fala 
e de repente você vê que tem uma 
pessoa que está entendendo as 
coisas, que está percebendo os 
problemas profundos, a pessoa que 
abre o olho na hora certa? Eu fui 
descobrir que a menina veio de 
conservatório. Os músicos têm 
uma cabeça diferente. Ruim para 
muita coisa, os músicos tendem a 
ser muito toscos em termos de 
cultura geral, eu vivi em 
conservatório e a gente sabe disso 
bem, mas eles têm uma cabeça 
privilegiada para certas coisas. E 
professor Sandmann, o pai do Marcelo e da que ler o livro do Cristóvão, porque tem um chamaram para ser júri no primeiro ano. Eu 
Ludmila, e ele era muito mais ligado à professor de filologia de 70 anos e tal”. O não podia me inscrever. Quando eu fui parte do 
morfologia. Acabava virando uma morfologia assunto, sim. Fui eu que emprestei o livro para júri de conto, vi que o nível da produção dos 
histórica, uma disciplina bem diferente da que o Cristóvão tirar os exemplos, fui eu e Faraco inscritos era bacana, mas que não era nada de 
a gente faz hoje. que lemos para dar uma copydeskada no outro mundo. Na verdade, a gente premiou um 
negócio e tal. Do assunto, sim, tem uma livro do José Roberto Torero, profissional, um 
Suelen: Você imaginava que ia ser, de certa familiaridade. Teve momentos em que eu ousei livro bom e tal, mas eu falei “olha, daria para 
forma, o herdeiro do professor Sandmann? dar uns pitacos quando eu li o livro, dizendo ficar aqui entre os cinco ou seis se eu fizesse 
Caetano: Eu imaginava que ia ser o herdeiro “cara, nesse momento, alguém com essa cabeça naquele ano”. No ano seguinte, eu inscrevi o 
do padre Afonso. Eu fiz disciplina com ele logo não deixaria de pensar x” ou tipo “a etimologia livro de poesia e catei uns contos que eu nem 
cedo. Em 1993 fiz aquela optativa e em 1994 desta palavra é muito legal”. tinha me dado conta de que tinha escrito ao 
fiz filologia românica. Eu adiantei só para fazer longo dos anos, um aqui, outro ali. Juntei 
com ele, que estava se aposentando. Ele se Vinícius: Puxando o gancho do Cristóvão aquilo, dei uma engordada para chegar no 
aposentou logo depois, no meio da minha Tezza, como é o Caetano escritor? número mínimo de páginas e mandei. Eu 
graduação. Eu sabia que havia um claro, e esse Caetano: O Caetano escritor não existe. achava que tinha chance na poesia e que conto 
claro não foi preenchido. O Faraco ficou dando era um tiro no escuro. Acabou que eu ganhei no 
linguística românica durante esse tempo, e ele Juliana: Mas não escreveu um livro de de contos e o de poesia não foi nem 
estava para se aposentar também. Nunca contos? mencionado. Então, naquele momento, falei 
imaginei que eu ia ser professor da Federal. Eu Caetano: Não. Eu escrevi um livro, nem bem “chega com a história da poesia, de fato isso não 
imaginava que eu ia fazer o que o padre Afonso escrevi um livro. interessa para ninguém”. Se me der vontade 
fazia, isso eu gosto de fazer em qualquer lugar. daqui a cinco anos de escrever uma poesia, eu 
Vinícius: E poesia? Eu tenho um pedido escrevo, se eu quiser até publicar no jornal, 
Suelen: Pregar? para fazer também, eu ia fazer no final, mas publico. Mas agora, de repente, as pessoas 
Caetano: Não, o padre Afonso não pregava. vou fazer já. A gente gostaria de fazer um acham que eu sou escritor de contos, mas não é 
convite para você publicar na próxima esse o caso, cara. Eu escrevi aqueles vinte contos 
Vinícius: Influenciar pessoas? [Risos] edição do Boca um poema seu. ali. Agora eu precisei aumentar um pouco, 
Caetano: Dar aula desse negócio, isso eu Caetano:Não, não, eu matei essa parte. porque a Companhia pediu para eu aumentar 
achava legal. Mas a Federal nunca tinha para publicar, acho que vai ter uns trinta contos 
passado pela minha cabeça. É muito diferente, Suelen: Como assim? Você queimou ou no livro final, mas de fato não sei se tenho 
cara. Hoje vocês entram aqui e, alguns de vocês uma coisa assim? 
pelo menos, já têm a noção do que é uma Caetano: Arre, vou ser primitivo assim de 
carreira de professor de Ensino Superior, o que queimar um computador? [Risos] Vamos por 
o mestrado e o doutorado representam. O partes, então. Desde a graduação eu escrevia 
nosso tempo era muito amadorístico, sério. poemas, nunca diria que eu era ou sou poeta, 
Entrei no mestrado basicamente porque eu escrevia poemas ocasionalmente, muito 
tinha feito uma IC na linguística histórica com ocasionalmente. Nunca escrevi como hábito, 
a professora Odete. Chegou um momento como rotina, como nada. Nos últimos vinte 
meio patético em que eu sentei com ela e falei anos eu devo ter escrito, sei lá, cinquenta 
“me explique o mundo, porque eu estou poemas, alguns bem ruins, na verdade. Nunca 
fazendo a IC com você na linguística histórica, escrevi como hábito. É uma coisa que de vez em 
acho mó legal, mas eu gosto muito de quando me dava uma vontade, pensava “acho 
literatura, vou bem na literatura, tenho um que isso aqui vai ficar legal” e a coisa não saía 
desempenho legal e tal, o que você acha que eu muito da minha cabeça. Teve, por exemplo, um 
devo fazer no mestrado?”. Olha que ridículo, poema que saiu na Folha de S. Paulo faz uns três 
né, cheguei para a orientadora e ela me deu a anos. Na minha cabeça o poema se chama 
resposta que, de novo, salvou a minha vida. Eu “Lepanto”, mas saiu como “Já que além das 
ia fazer Saramago se fosse o meu mestrado. Ela flores brancas”. Aquele poema foi assim: teve lá 
falou “você vai fazer o mestrado em Saramago, um motivo para eu escrever, e a coisa ficou uma 
vai ser você e mais duzentos. Você vai fazer um semana rodando na minha cabeça, daí eu falei 
mestrado em linguística histórica do romeno “vou ter que pôr essa merda no papel, senão não 
vai ser só você. Na hora que tiver um concurso, vai me deixar em paz”, daí fiz. Mas de lá para cá 
você vai ter um diferencial na mão”. Nunca não escrevi mais nada, faz uns três ou quatro 
tinha pensado em concurso, falei “pô, deve ser anos. Fazia eventualmente e mostrava para 
bom isso aí que ela falou”, me inscrevi para algumas pessoas, mas as reações sempre foram 
fazer o mestrado na histórica. Um ano depois o muito “argh”. Quando eu comecei a ter uma 
Faraco se aposentou. Na verdade, eu entrei na intimidade com o pessoal da Companhia das 
vaga do mestre. Letras, eu mostrei para eles o original, 
perguntei “vocês têm interesse?”. E a resposta 
Suelen: O último livro do Cristóvão Tezza, deles basicamente foi “ninguém teria interesse 
que traz inclusive agradecimentos às suas nisso, isso é muito hermético, incompreensível 
leituras, tem como protagonista um e desagradável, ninguém quer”. 
professor de filologia românica. Você se 
identifica em alguma coisa com aquele Juliana: Publicar poesia já é difícil... 
personagem? Caetano: E ainda sem nenhum interesse... 
Caetano: Não, é outra geração, outro mundo. Falei “tá”. Quando apareceu o Prêmio Paraná, 
Acho que tem mais a ver com a geração do falei “vou me dar uma última chance, vou 
Fiorin e do Faraco, o pessoal que viveu aquilo. inscrever o meu livro de poesia, se não ganhar 
O próprio Fiorin me escreveu dizendo “tenho nada eu enterro a carreira”. Só que daí me 
‘‘ ‘‘ÚSICA É DAQUELE GRUPO 
MDE ATIVIDADES QUE ENTORTA A CABEÇA DA 
PESSOA. VOCÊ PENSA COMO 
MÚSICO [...], PORQUE É UM REINO 
DE ESTRUTURAS ABSTRATAS QUE 
TE ENVIESA O JEITO DE PENSAR. 
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muito mais para fazer além daquilo. Acho que Eu gosto de enigma, eu gosto de forma, gosto resenha ruim. Tenho contato com ele até hoje, 
aquilo não é ruim, acho que é legal, eu gosto. de estrutura. É até uma conversa comum lá em acho que faz dez anos essa história. Mas foi 
Eu acho legal que eu consegui gostar daquelas casa: a Sandra e eu vamos ver um filme, ela minha primeira resenha, dizia “o tradutor pesa 
coisas e outras pessoas teriam algum interesse percebe todas as ressonâncias históricas do na mão”, o tipo de crítica que eu recebo às vezes 
por elas. O problema da poesia é que eu gosto tema, e eu percebo “pô, você viu que o primeiro até hoje. 
muito das coisas que eu escrevo, mas só eu e o terceiro ato tinham a mesma duração e que 
[risos]. tinha a mesma cena que recorria três vezes a Suelen: A questão de adaptar, é isso? 
cada meia hora do filme?”. Eu vejo estruturas. Caetano:Não sei, uma questão que eu chamo, 
quando estou de bom humor comigo mesmo, 
OAMADORÍSTICO, SÉRIO. VOCÊ CHEGAVA NO FINAL 
DO CURSO, E DE REPENTE UM OU 
DOIS PROFESSORES DIZIAM 'PUXA, 
VOCÊ PODERIA FAZER O 
MESTRADO'. EU NUNCA TINHA 
PENSADO NESSA POSSIBILIDADE, 
NO QUE QUER DIZER FAZER UM 
MESTRADO. 
‘‘ ‘‘ AZIA [POESIA] 
Juliana: Nossa, você é muito Mário de uma espécie de responsabilidade, de chamar a 
Andrade para mim. Eu estou na pira de responsabilidade. Muito frequentemente os 
Mário de Andrade, estou estudando as tradutores podem pecar por excesso de 
estruturas dele. humildade, por excesso de servilismo, com essa 
Caetano: Ah, é? Já não basta me dizerem que conversa de “não, eu sou apenas o porta-voz do 
eu pareço o Mário de Andrade? [Risos] autor”. Você não consegue um bom resultado 
assim. Para conseguir um bom resultado, você 
Suelen: E você gosta dessa comparação? tem que chamar a responsabilidade, matar no 
Caetano: A coisa física? Eu já deixei de me peito e dizer “eu vou fazer essa merda e vou 
incomodar. escrever bem, porque sei escrever romance 
direito”. O leitor não está se importando se 
Juliana: Mas por que se incomodar? você é servil ou não, o leitor quer saber se você 
Caetano: Não, nunca teria me incomodado, escreve bem português, é isso que o leitor vai 
eu achava engraçado só. Mas, à medida que eu ver. Um bom texto, bonito, fluente ou feio, do 
fui ficando velho e que eu fui ficando careca, jeito que o autor tiver decidido que aquilo vai 
‘‘ ‘‘ NOSSO TEMPO ERA MUITO 
Vinícius: Por que não publicar isso no isso foi ficando mais frequente. Teve um ser. Para mim é superparadoxal. Normalmente 
Boca? momento na Abralic de São Paulo que era o grande elogio para mim é quando a pessoa 
Caetano: Não, vai estragar o jornal. Aquilo é constrangedor. A gente andava pelos elogia o autor: “a bela prosa de fulano, num 
muito estranho, realmente não tem nenhum corredores e vinham desconhecidos apertar estilo refinado”. Não é a prosa de fulano que 
interesse. minha mão e diziam “alguém já te disse?”. E eu você está lendo, é a minha prosa e que bom que 
“já, alguém já me disse, não precisa nem você acha legal. 
Suelen: Estranho como? Tente descrever perguntar o que você quer me dizer”. Mas o 
para a gente essa estranheza. momento mais legal foi no Prêmio Paraná, no Juliana: É diferente da revisão, né, em que o 
Caetano: Não sei te dizer, cara. Eu acho que primeiro, em que o vencedor de romance foi o revisor evita aparecer. 
tem duas graças de escrever poesia para mim. Alexandre Vidal Porto. Deem uma googleda na Caetano: O tradutor, na minha opinião, é 
Uma é a coisa estritamente formal e sonora, e cara dele. Ele é diplomata e estava em Tóquio e paradoxal. Quanto mais ele tentar se apagar, 
isso já me abre uma porta muito grande para veio para cá só para receber o prêmio, achei mais ele vai aparecer, porque ele vai fazer 
“estou cagando para o sentido do poema, eu uma puta honra, uma puta demonstração de merda, ele vai deixar o original transparecer. O 
quero que ele soe do jeito que eu quero que ele respeito dele. Ele estava lá, vieram me tradutor que se apaga vai deixar o texto com 
soe”. Em geral, não escrevia com metro fixo apresentar, a gente apertou a mão, parou e ficou cara de traduzido, vai deixar o texto com cara 
nem com rima fixa nem nada, mas as se olhando. Aí eu olhei para ele e falei “você está da língua original, vai deixar o texto com aquela 
preocupações eram estritamente de como eu pensando qual de nós dois é mais parecido com cara de um texto literário de segunda ordem. O 
queria que aquilo soasse, que barulho aquilo o Mário de Andrade, né?”. Ele falou t e x t o l i t e r á r i o q u e é t r a d u z i d o 
teria – cabeça de músico. E a outra coisa de que “exatamente” [risos]. É superpatético, fiquei transparentemente fica com cara de “estou 
eu gostava muito era usar poesia para falar de pensando “é ele que parece mais com o Mário lendo a second best thing, não estou lendo o 
alguma coisa de um jeito absolutamente de Andrade”. original”. O tradutor que se afirma, que tem 
incompreensível. Para mim era um grande uma certa pretensão, uma certa confiança no 
prazer, por exemplo, vou falar de dor de barriga FEVENTUALMENTE seu taco, diz “não, eu sei escrever o negócio, vou 
(nunca fiz isso), mas de um jeito que as pessoas fazer”. Óbvio que ele continua com a 
não consigam perceber que é de dor de barriga E consciência de que está escrevendo o livro de 
que se trata, conseguir tirar alguma coisa dali MOSTRAVA PARA ALGUMAS 
outra pessoa, mas veja a terminologia 
que seja a abstração de uma descrição. Tipo esse PESSOAS, MAS AS REAÇÕES SEMPRE 
“escrevendo o livro de outra pessoa”, ele tem 
poema da Folha, esse “Lepanto”, tem a palavra FORAM MUITO 'ARGH'. 
que obedecer a níveis de registro, tipos de 
“Lepanto” que ajuda, mas é sobre um quadro escolhas, estilo de cada um. Mas o cara que 
que eu vi no museu e achei bacana. Mas não chama a responsabilidade, “não, vou fazer isso 
vou dizer “vi um quadro e tal”. Escrevo coisas porque eu sei fazer, vou fazer direito e eu tenho 
abstratas, cores e formas. Isso eu acho muito Suelen: E falando em se incomodar, você já que encarar isso com a minha capacidade 
legal e é infantil, né, totalmente infantil: “que recebeu alguma crítica ruim sobre o seu textual”, esse cara vai aparecer mais. Fulano vai 
legal, fiz uma coisa que ninguém entende”. trabalho? ler e vai dizer “não, fulano fez isso e fez aquilo”. 
Caetano: Ô, de monte! [Pausa] Não, de É que nem juiz de futebol. O juiz de futebol, 
Suelen: Indo para um lado um pouco monte, não [risos]. Na verdade, a primeira para desaparecer, tem que estar muito 
psicanalítico, parece que tem relação com o resenha que publicaram de uma tradução convicto, muito seguro, muito cheio de si. 
seu passatempo de fazer palavras cruzadas, minha, foi da minha primeira tradução, falava 
tem a coisa do enigma e de decifrar, só que mal dela. Foi no Rascunho, aqui. E, Suelen: Como é a sua relação com o 
ao contrário, você não está decifrando, está curiosamente, na hora em que saiu a resenha, Cristóvão Tezza? Vocês estão sempre lendo 
cifrando. eu fiquei muito agradecido e pensei “pô, o cara o trabalho um do outro? Fazem críticas 
Caetano: Total. É uma coisa que até brigo um leu a tradução atentamente, apontou ferozes ao outro ou rola um coleguismo? 
pouco às vezes comigo mesmo, porque a minha problemas aqui”. Eu pedi o contato de Caetano: Não, cara. Críticas ferozes nem tem 
relação com literatura é muito pautada por isso. resenhista e escrevi para ele para agradecer a motivo para fazer. A gente teve uma grande 
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‘‘ ‘‘ MOS UITO FREQUENTEMENTE 
TRADUTORES PODEM PECAR POR EXCESSO DE 
HUMILDADE, POR EXCESSO DE 
SERVILISMO, COM ESSA CONVERSA 
DE 'NÃO, EU SOU APENAS O PORTA-VOZ 
DO AUTOR'. VOCÊ NÃO 
CONSEGUE UM BOM RESULTADO 
‘‘ ASSIM. OOPINIÃO, TRADUTOR, NA MINHA 
É PARADOXAL. QUANTO MAIS ELE TENTAR 
SE APAGAR, MAIS ELE VAI 
APARECER, PORQUE ELE VAI FAZER 
MERDA, ELE VAI DEIXAR O 
ORIGINAL TRANSPARECER. 
‘‘ internacional de Bakhtin em 2004. Assim, a gente bateu num ponto teórico lá e trocou 
umas farpas no melhor estilo “bons amigos”. Eu já morava lá no prédio do lado dele, mas 
foi a única vez que nós discordamos sobre alguma coisa. O Cristóvão é das pessoas mais 
generosas da face da Terra, é um negócio assustador. Ele é uma das criaturas mais felizes e 
contentes e abertas do mundo, é incrível. A reação das pessoas ao ver o Cristóvão é muito 
legal. A casa dele está sempre cheia de gente, todo mundo que passa em Curitiba vai lá fazer 
um tour literário, todo mundo vai como via-crúcis na casa do Cristóvão, e é um prazer para 
todo mundo. Ele chama fulano e ele chama alguém para ficar junto com fulano. Tipo, 
Coetzee foi almoçar na casa dele e ele chamou a gente, porque ele precisava de mais gente 
que falasse inglês para manter a conversa andando. Ele está sempre cheio de gente em volta 
dele, sempre feliz e contente e, o que eu disse, é uma figura muito generosa. Foi ele que me 
botou para traduzir comercialmente, porque ele disse “você precisa traduzir para as editoras 
e tal”. 
Suelen: E o Paulo Henriques Britto? Você primeiro entrou na Companhia e depois 
conheceu ele, ou foi o contrário? 
Caetano: Foi mais ou menos. Eu conhecia ele universitariamente, ele tinha vindo aqui 
para um evento, convidado pelo Maurício, e fui eu que fiz o meio de campo, fui pegar ele 
no aeroporto e tal. Tinha conhecido ele pessoalmente ali. Eu entrei na Companhia sem 
passar por ele. Depois fui descobrir que não foi tão sem passar por ele, porque foi uma 
história bem mais tortuosa. Eu tinha feito um livro para a Rocco que a editora nunca 
publicou. Aí vim a saber depois que a Companhia comprou os direitos daquele livro. Eu 
pedi o contato para um amigo da imprensa daqui para escrever para a Companhia para 
dizer “olha, eu posso refazer a tradução para vocês”, porque eu queria que o livro fosse 
publicado, aliás, não foi até hoje. 
Suelen: Que livro era? 
Caetano: Os contos completos do Saul Bellow. Setecentas laudas que a Rocco me pagou e 
nunca publicou. Aí eu mandei o texto e eles falaram “não, não queremos publicar os 
contos”, mas o André Conti, que é o editor com quem eu mais trabalho até hoje, falou “se 
você quiser, dá uma revisada num dos contos e me manda que eu considero um teste para 
você trabalhar para a gente”. Falei “tá bom”. Mandei e, a partir daí, comecei a trabalhar para 
eles. Eu achava que eu tinha entrado na Companhia só por causa disso, muito depois eu 
soube que eles deram uma sondada com o Britto. Eles perguntaram ‘‘quem é esse cara que 
diz que traduziu o Joyce e tal?”, devem ter procurado no Google, 
alguma coisa assim. E o Britto já tinha notícia da minha tradução, já 
tinha me conhecido aqui, falou “dá uma chance para ele”. Porque eu 
achei muito estranha essa história, muito fácil. E foi tudo muito fácil 
um pouco porque o Britto intercedeu. É outra dessas histórias. Eu 
sou uma criatura de muita sorte. Minha trajetória acadêmica ou 
profissional sempre foi muito cheia de encontros com gente muito 
generosa. Os meus dois orientadores foram pessoas centrais para 
qualquer coisa que eu tenha feito na vida, a figura do Cristóvão, sem 
nem falar a Sandra, que não vale. O Britto foi outra dessas figuras, ele 
é tipo um santo para mim, total santo padroeiro mesmo. E o trabalho 
que a gente fez com o Ulysses lá na casa dele, o tempo que ele dedicou 
àquilo para mim é um negócio sem qualquer possibilidade de paga, 
preço ou que quer que seja. 
Suelen: Bom, a gente já falou do escritor, do poeta, do músico, 
do tradutor, do pesquisador... 
Caetano: Ex-poeta, ex-músico... 
Mário de Andrade Caetano Galindo 
em entrevista exclusiva para o maior e melhor 
jornal Boca do Inferno. 
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Assionara Souza 
é escritora e finge que sabe desenhar.
Suelen: ... mas falta falar do vice- não podia deixar aquilo às moscas. Só tinha a vi na seleção, nunca vi os caras jogarem, não sei 
coordenador. Como que você foi se meter gente, vai a gente. O João foi lá para o sacrifício, de nada. Mas Copa do Mundo é Copa do 
nessa enrascada? está dando conta do recado perfeitissimamente, Mundo e eu sou totalmente bocó e infantil. 
Caetano: Como que eu caí nessa, né? Uai! e eu estou fazendo o possível para não atrapalhar Assim, tem gente que diz “vamos torcer contra o 
Acontece o seguinte, cara, é o lado excelente e o demais e para colaborar no que eu posso ali, mas Brasil”. Que se foda, a partir de amanhã eu sou 
lado horrível de uma universidade pública, de a coordenação de Letras é um negócio bocó neymarete. Se me derem uma camiseta 
uma federal: o fato de que a gente não tem uma inconcebivelmente confuso. verde e amarela, eu ponho. Eu sou simplório 
casta de administradores, o fato de que a gente neste sentido, nunca tive problema. E veja, eu 
tem que tocar o barco. É o lado ruim, porque Juliana: Caetano, o que você acha do curso de cresci durante a ditadura militar, meu pai é 
obviamente, como eu costumo dizer às pessoas, Letras que a gente tem aqui no geral? Se a sua hiperpolitizado, meu pai é um cara ranzinzão 
um concurso para professor de Letras filha chegasse e dissesse “quero fazer Letras”, desse tipo até hoje: “ah, a seleção é manipulada, a 
automaticamente seleciona os piores você deixaria? mídia usa a seleção para manipular este país”, 
administradores do mundo [risos]. São pessoas Caetano: Essa é outra história. Porque a minha torce contra nos jogos e não sei o que mais. Para 
que leem romances, são pessoas que fazem a filha eu gostaria que fizesse Letras, mas ela não mim é simples e bocó. Sou da geração 
árvore sintática. E a gente tem que tocar o quer. Eu até entendo. Ela fica meio de saco traumatizada do Telê Santana, achava que 
negócio, tem que tocar o departamento, a cheio, porque já teve aula com vários ex-alunos nunca ia ganhar uma Copa do Mundo. A partir 
coordenação, tem que fazer comissão disso, meus e tal. As pessoas ficam esperando que, de amanhã sou bocó, estou feliz e contente, e 
comissão daquilo. Lógico que a gente não porque ela é minha filha, ela tem os meus viva Neymar para todo o sempre! 
nasceu para isso, lógico que não tem quase interesses, e não é o caso. Ela é outra pessoa, faz 
ninguém com vontade de fazer isso, mas para outras coisas, e eu até acho saudável que ela Juliana: Uma pergunta que sugeriram no 
mim é uma questão meio de serviço militar, queira sair da sombra. Facebook, o que você está lendo hoje? 
acho que a gente tem que cumprir. Tenho Caetano: Hoje, neste momento? Submundo, do 
certeza de que, se todos os professores se dessem Vinícius: Então não vai ter uma dinastia Don DeLillo. 
ao trabalho de cumprir essa parcela, a nossa vida Galindo? 
seria muito fácil. Nós somos 33 professores do Caetano: Não vai ter uma dinastia Galindo, Vinícius: Uma pergunta comum é “que livro 
Delin. Se todo mundo fosse chefe durante dois não. A Beatriz faz vestibular este ano, né, mas ela o entrevistado recomenda?”, mas que livro 
anos, nem ia dar para todo mundo ser chefe não quis fazer isso aqui, não. Jamais diria para você não recomenda? 
durante dois anos, era um revezamento ela não fazer Letras. Primeiro porque eu acho Caetano: Que livro eu recomendo eu ia dizer 
tranquilo, cada um era uma vez e pronto, mas que, no geral, é uma escolha, e eu não pensava Ulysses. Que livro eu não recomendo? Ficção? 
não é todo mundo que aceita. Eu até quando fiz, porque simplesmente não pensava Esse livro besta que eu li no mês passado é um 
compreendo, tem certos perfis, por exemplo, eu no assunto, mas eu acho que é uma escolha que eu não recomendo, chama Absurdistão, de 
não ia conseguir ser coordenador, ia ser demais profissional muito segura fazer Letras. Você não um cara chamado Gary Shteyngart, um russo 
para a minha cabeça. Mas eu fui vice-diretor do vai ficar rico? Não vai. Mas você não vai ficar que mora nos Estados Unidos. Todos dizem 
Celin, eu fui suplente de departamento, chefe de desempregado, não vai morrer de fome, não vai “grande sátira”, mas achei muito bocó, não 
departamento. A coordenação foi assim, cara. O para a indigência. Segundo, eu acho que em recomendo a ninguém. 
Márcio tinha que sair, o coitado, senão ele ia termos subjetivos que a gente tem um curso 
mofar lá dentro. Ele fez tudo o que podia para muito bom hoje. Eu acho que em algumas Vinícius: E The game of thrones, vai ler? 
gerar a melhor situação de transição possível, a habilitações talvez haja certos problemas a se Caetano: Nem a pau! Tenho coisa melhor para 
coordenação está com funcionários, está com resolverem, mas acho que, na média possível e fazer da vida. Oito mil páginas de história de 
uma rotina de funcionamento estabelecida. real, eu diria que temos um curso excelente, e as dragão? Não, obrigado. 
Completamente diferente do que ele e a Eva avaliações gerais sempre dão conta disso. 
pegaram quando chegaram lá. Só que, mesmo Suelen: Cuidado, porque você é muito 
assim, ninguém queria encarar o trabalho. Ele Vinícius: Qual a sua opinião sobre a Copa do influente e vai destruir a carreira desses 
me convidou para ser coordenador, e eu falei mundo? Caetano é futebolístico? escritores. 
“Márcio, desculpa, eu não vou conseguir”. Para Caetano: Caetano não é nada futebolístico, não Caetano: Vou acabar com o Martin, ele vai 
mim é demais aquilo, aliás, para qualquer ser vê futebol. sofrer muito por minha causa [risos]. Não, não 
humano é demais aquilo. A coordenação de pretendo ler. Até em alguns momentos confesso 
Letras é um negócio astronômico. Ele falou “tá, Suelen: Não torce para ninguém? que pensei “hum, será que?”, porque eu tenho 
tudo bem” e continuou indo atrás de gente, mas Caetano: Não, a prova de que eu não entendo neura de olhar o IMDB depois que vejo os 
não achava ninguém. Na véspera do final do nada de futebol é que eu torço para o Coritiba episódios, e às vezes diz “no livro isso é diferente” 
prazo de inscrição, ele me liga em casa e fala “o [risos]. Mas isso é carga genética, meu pai e eu penso “nossa, valia a pena ler?”, mas eu 
João aceitou a coordenação, mas não tem educou a gente como coxa e a gente é coxa. Vai tenho que ler o Knausgård antes. Eu tenho que 
ninguém para ser vice. Você aceita ser vice?”. Eu fazer o que? Não tem o que fazer. Mas não ler o Proust! Eu tenho 40 anos de idade e não li o 
falei “tá, dá para fazer”. Além de respeito pelo acompanho nada, não vejo nada. 90% dos Proust. Você acha que vou passar o Martin na 
curso e tal, rolava um respeito pelo Márcio ali, jogadores da seleção eu só sei quem são porque frente do Proust? Não vou! 
Marina Tortelli, gaúcha que mora em Curitiba há 6 anos. 
Cursa Fotografia na Universidade Tuiuti do Paraná e é 
completamente apaixonada pela profissão. Seu trabalho 
pode ser visto na página do Facebook, O Que Marina 
vê (fb.com/MarinaTortelliFotografia). 
UMA AVENTURA UNIVERSAL 
ão são poucos os livros que sofre com problemas de comportamento lugar no mundo. 
Nbuscam inspiração em Alice no na escola e que gosta de chocolate e do A temática da passagem da país das maravilhas e que mar. Porém, a experiência ao lado de infância para a vida adulta não é 
narram sagas incríveis, repletas de Felix o levará a investigar seu próprio novidade para Grossman. O autor já 
aventura e fantasia. É o caso de Garoto passado e descobrir segredos sobre sua retratou o tema em outras duas obras, 
Zigue-Zague, escrito em 1994 pelo família que mudarão toda a sua vida. Duelo e Ver: amor, ambas publicadas no 
israelense David Grossman e lançado no Tudo indica que o leitor está Brasil. Em Garoto Zigue-Zague, 
Brasil neste ano pela Companhia das diante de um livro infanto-juvenil, Grossman coloca um menino de quase 
Letras. O livro mescla elementos porém esta seria uma primeira impressão treze anos diante de importantes 
extraordinários a situações bastante reais errônea. O narrador de Garoto Zigue- questões e decisões. Em sua aventura, 
para lembrar o leitor da aventura que é Zague é o próprio Nono, já adulto, que Nono entenderá que os limites entre o 
crescer e tornar-se adulto. relembra a aventura vivida dias antes de certo e o errado são muito mais frágeis e 
Tal qual Alice, o garoto Nono é seu bar mitzvah. Contudo, o que muito mais complexos na vida adulta. E 
conduzido a um mundo bem diferente do interessa não é exatamente o que fica claro o quão confuso o menino se 
seu, no qual se depara com uma série de aconteceu com o menino, mas sim as sentia diante dessa nova perspectiva de 
pessoas e situações fantásticas. A poucos questões reveladas ao longo desses ver e compreender o mundo e o quanto a 
dias de seu bar mitzvah, Nono embarca acontecimentos. O leitor até pode experiência foi enriquecedora para sua 
em um trem de Jerusalém a Haifa com o encarar a obra como um livro de vida. 
objetivo receber conselhos de um tio não aventura, mas Grossman vai além. O que Vale destacar a estrutura 
muito querido. A viagem é uma exigência ele explora é a complexidade das relações narrativa de Garoto Zigue-Zague. Escrita 
do pai do garoto, Iacov, e de sua humanas. Conforme a história se de modo não-linear, aos poucos a obra 
companheira Gabi – que cuida do garoto desenrola, Nono é “empurrado” ao revela pistas e fatos importantes para a 
desde que a mãe dele, Zohara, morreu. A mundo adulto e começa a entender e compreensão da complexidade de cada 
princípio, o passeio parece um presente viver algumas dessas questões, como o personagem. Grossman esforça-se para 
de grego de Iacov, detetive e maior herói difícil relacionamento entre Iacov e Gabi atrair o leitor ao universo criado no livro 
de Nono. Porém, Nono nunca chegará a ( e l e n u n c a q u i s a s s u m i r o (o que ele faz com maestria no romance A 
seu destino previsto. Ainda no trem, ele relacionamento com a companheira, que mulher foge – um livro que vale muito, 
conhecerá Felix Glick, um sujeito que, ameaçava, assim, abandoná-lo), as muito a pena). O leitor mais atento ou 
assim como o Coelho Branco de Alice, escolhas de Felix que o levaram a viver com “faro de detetive” consegue desatar 
atrairá o garoto para viver uma grande como um fugitivo da polícia e longe de os nós e compreender a lógica da trama. 
aventura. sua amante, a atriz Lola Ciperola. Mas nada que compromete o livro, pois 
Garoto Zigue-Zague é um O livro atinge seu ponto alto chega-se a um ponto em que o mais 
romance de formação. Os dois dias de quando Nono descobre a história de interessante não é saber o que vai 
aventuras narradas no livro não apenas Zohara – até então, ela era para ele apenas acontecer, mas sim como. 
marcam a passagem de Nono da infância a mulher que o trouxera ao mundo e O resultado é um livro 
para a vida adulta, como moldam sua morrera em seguida. Grossman traz à cativante. É difícil não se identificar, em 
personalidade. O que faz o menino cena a figura de alguém muito à frente de alguma medida, com Nono, pois 
aceitar o convite suspeito de Felix e seu tempo, que jamais se encaixaria na Grossman evoca em cada leitor o garoto 
desviar sua trajetória é muito menos a recém-nascida Israel e que jamais zigue-zague – aquele que não se 
promessa de chegar ao seu verdadeiro assumiria o lugar designado às mulheres enquadra em categoria alguma, que 
presente de bar mitzvah e muito mais a de sua época: esposa e mãe de família. Ou deseja ser livre e que aprende que crescer 
possibilidade de encontrar a resposta seja, Zohara representa todo um grupo pode ser dolorido, mas é, de fato, 
para a pergunta que lhe é lançada: “quem de pessoas “desajustadas”, com o qual o libertador. 
sou eu?”. Até então, Nono acreditava ser próprio Nono se identifica, e ela faz o que 
um garoto com nada de especial, que todo desajustado tentar fazer: buscar seu 
21 
Resenha 
Em Garoto Zigue-Zague, David Grossman conta a história 
de um menino comum para marcar o rito da passagem para a vida adulta. 
Carla Cursino 
Carla Cursino é jornalista 
e estuda Letras-Francês na UFPR.
Textículos 
Minha primeira vez 
Chardie Batista 
ntem foi minha primeira vez, e uma coisa que demore muito, porém, Não vemos a hora de encontrar algum 
não só isso, foi também a quando acaba, o que se sente é c onhe O c ido ou c onhe c ida pa r a primeira vez da pessoa que indescritível. desabafarmos e falar sobre o ocorrido. 
estava comigo. Minha amiga. Dá uma moleza nas pernas, o E como tudo na vida tem 
22 
Não sei como explicar a corpo todo relaxa e fica trêmulo, não sempre uma primeira vez, eu também tive 
sensação. É uma mistura de medo, conseguimos pensar em nada, a não ser a minha, mas sobre ela posso dizer que 
apreensão e euforia, um temor interno, sobre o fato ocorrido, ainda mais quando não gostei nem um pouco e aposto que a 
um calor que incendeia as entranhas. O é a nossa primeira vez e vemos que tudo minha amiga também não deve ter 
coração acelera num ritmo alucinado e correu bem. gostado. 
retumbante e também surge um ar de Então cada um descreve Espero não ter que passar por 
mistério sobre o que vai acontecer e como alguma coisa que sentiu enquanto tudo aquilo outra vez. 
vai ser. acontecia. Em que momento teve mais Bom, foi assim que na noite 
É meio estranho quando chega medo, maior apreensão e o que sentiu passada me tornei um homem. Um 
a nossa hora, porque nós nunca estamos quando soube que aquilo realmente homem que sofreu um assalto numa 
realmente preparados, e acabamos nos estava acontecendo. esquina qualquer do centro da cidade. 
preocupando muito mais com a pessoa No final, agradecemos por Perdi alguns pilas, e deixei de lado a ideia 
que está conosco do que com nós estarmos bem e por os dois terem passado de que estas coisas acontecem apenas com 
mesmos. e saído dessa numa boa. outras pessoas, e nunca com a gente. 
Além do mais, não sabemos o Quando voltamos ao que Acho que minha amiga ficou 
que fazer ao certo. Por isso, tentamos estávamos fazendo antes de termos nossa sem seu celular. 
acalmá-la, confortá-la, para que no final primeira vez, fitamos as pessoas que Mas ambos saímos ilesos, sem 
tudo acabe bem para os dois. passam para ver se não são suspeitas ou se nenhum arranhão, exceto, é claro, os 
E assim vai acontecendo. Não é suspeitam do que ocorreu com a gente. arranhões psicológicos. 
Chardie Batista nasceu em Curitiba em 
1985. Surfa, anda de skate, é formando 
em Letras pela UFPR, futuro professor. 
Não tinha nada publicado, essa é a 
primeira vez. Gosta de filmes, música 
e literatura. 
ENTRE A MÃO E O COPO 
o círculo do copo embebe 
algo que baudelaire já dizia há 
muito antes de você sequer ter 
idade para pedir uma cachaça 
no bar do seu aluizio. ele embebe 
uma alma de grito, de veneno e 
de vício que você, criança, ainda 
nem sequer cogitou, ergo sum. 
a boca do inferno do copo começa 
na tua garganta, vê se aprende. 
Carolina Bender & Vinícius Figueiredo 
sse ensaio, às custas de muita nicotina, 
Etabaco e álcool dissolvido em milho, nasce como uma grama por entre os 
petits-pavés incertos de uma calçada secular 
do centro velho de Curitiba. O clique da foto 
dura mais que o sorver de um copo, o tragar de 
um marlboro vermelho. As flores da ira e as 
vinhas do mal vicejam sustentadas por vícios e 
amores, sinônimos quase que antagônicos. O 
tremido do embriagado, que se briga com 
poesia incauta e vertigem em forma de gole, 
absorve uma noite infinita de noites. Uma 
garrafa ou duas, dois filmes fotográficos ou 
três, a noite passa, a noite anda e a fotógrafa e o 
poeta, rodeados de amigos, gracejam por 
entre as pessoas que buscam calor na mítica 
Curitiba gélida de afeto. A lírica simula um 
tempo quase beatnick, uma aura de anos 
sessenta ou setenta que ainda reverbera pelos 
capotes e pelas meias-calças beges das meninas 
que bebem mais que homens. Um brinde!, 
além de uma puxada e prensada longa aos 
vícios, aqui expressos segundo os olhares 
torpes de Carolina Bender e Vinícius 
Figueiredo. 
existe uma selva intricadamente 
urbana nessa foto, ô pedro. não 
consegue ver? – guria, só porque o 
céu é cinza e o concreto nu está 
pintado de branco e preto? – não, 
pedro, porra. olha pro mato virgem 
deflorado, olha pros fios e praquela 
merda de tênis jogado lá em cima. 
cadê o bucólico que a gente tanto 
queria, cadê? 
Objetiva 
Uma Curitiba noturna e alguns dos clássicos vícios do homem pretensamente comum vistos sob o olhar de uma câmera 
23
25 
o contato íntimo entre o lábio sujo 
de batom lilás e a boca da garrafa 
de vidro contendo algum líquido 
alcoólico incolor enumera uma série 
de fatores x e y que culminam na 
resposta da vida que eu acabei de 
esquecer de anotar e agora veja você!, 
já veio e já foi, como uma frase sem 
vírgulas, sem pausa para respirar. 
os olhos de quem vê veem uma 
corr-[ida-(iqueira-{ enteza}) ], série 
de coisas que a objetiva não capta. 
veem os rastros dos ratos que 
passam a caminho do trabalho, 
roer queijo e desarmar ratoeiras 
em vãos empregos conseguidos 
com o terceiro grau e uma carta de 
recomendação. veem gatos, veem 
pombos, pulgas e cães, bichos 
variados - variáveis. o quê eles 
[ou eu] viam era uma foto minha, 
arrancada do álbum e colada no 
meio fio, enganchada com uma 
garrafa de álcool e uma carteira de 
cigarros vazia. foto alheia aos carros, 
aos animais, à rotina, a minha 
filosofia de botequim e ao próprio 
tempo. entre a mão e o copo resta 
algo a se esquecer, algo a se afogar. 
loucuras para entornar, sanidades 
para engendrar. 
Vinícius Figueiredo é roteirista, contista 
e poetista nas horas vagas da vida social 
(virtual) e profissional. Ele ia fazer alguma 
piada ruim sobre terceira pessoa, mas preferiu 
dizer que nas horas não-vagas trabalha 
no Boca do Inferno. 
Carolina Bender é o heterônimo de 
Ana Carolina Santos, designer, professora 
de Arte e fotógrafa. Já expôs no soho de NY City 
e atualmente se dedica a fotos experimentais e passeios 
com sua mascote, Mini Pizza. Para conferir o trabalho 
dela acesse behance.net/anacarolcarolima 
24 
a pichação agride meu senso de cores 
bem definido, esse meu defeito no 
olhar que me obriga a ver claro e 
escuro separados por uma linha 
oculta que separa o bem do mal e 
esconde de mim os gritos de gaza e 
os gritos dos índios do passado de 
um país que não é o meu, mas 
quero muito que fique sendo, então 
aí penso na ucrânia, na chechênia e 
nas agruras do sertão africano e 
também no baiano. devaneios me 
puxam de volta, reparo nos carros, 
nos corcéis de aço e explosão elétrica 
que me protegem do mundo 
não-civilizado e penso que o meu 
copo está vazio e o cigarro está no 
fim, acabando como a letra do 
grafite que mal se encerra e começa 
em outra. trago fundo, mas não 
engulo. 
eu te fumo num trago, porra. 
te fumo numa puxada de 
pulmão vazio, numa só estocada 
contra o meu peito ardente, 
cinza e chama, fagulha daquilo 
que eu sinto por você, ausência 
mais que plena. 
me lembro como se fosse ontem, 
pedro. ele me disse um sorriso, 
respondi com um verso
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  • 1. Boca do Inferno Jornal dos estudantes de Letras da UFPR | Edição 27 | Setembro de 2014 NESTA EDIÇÃO Amyr Borhot, Ana Carolina Werner da Silva, Assionara Souza, Bruna Motta, Caetano Galindo, Carolina Bender, Camilla Nater, Carla Cursino, Cesar Felipe Pereira, Chardie Batista, Daniel Martineschen, Evelyn Cieszynski, Guilherme Bernardes, Gustavo Jugend, Hugo Simões, João Carvalho, Juan José Saer, Julian Tuwim, Leonardo Gonçalves Fischer, Marcelo Paiva de Souza, Marina Tortelli, Mario Benedetti, Milena Wandembruck, Nylcéa Pedra, Pedrita Setenareski, Priscila Scoville, Sarah Garcia, Suelen Trevizan, Vinícius Figueiredo, Yohan S. Barcz.
  • 2. 05 Daniel Martineschen 10 Evelyn Cieszynski Sarah Garcia 11 Leonardo Gonçalves Fischer Cesar Felipe Pereira 28 Hugo Simões 29 Milena Wandembruck Textículos 08 Yohan S. Barcz 10 Gustavo Jugend 22 Chardie Batista 26 Bruna Motta 27 Suelen Trevizan 06 Julian Tuwin Marcelo Paiva de Souza 07 Juan José Saer Amyr Borhot 12 Mario Benedetti Camilla Nater Nylcéa Pedra Traduções Versário 03 Editorial 04 Ensaio Ana Carolina Werner da Silva 14 Entre e Vista Caetano Galindo Editores do Boca 21 Resenha Carla Cursino 23 Objetiva Camila Bender Vinícius Figueiredo 30 Cal 31 Classificados Cartum 2 Índice Editorial O que temos feito, o que podemos fazer Depois de mais de dois anos de silêncio, o Boca do Inferno volta a circular, renascido das profundezas da negligência e do esquecimento. Que encerremos essa era silenciosa para fazer jus ao nosso nome. Falemos, então! Há muito assunto para pôr em dia em apenas um editorial, alguns inclusive são bastante espinhosos, mas precisam ser tocados para que, ao abrirem ferida, reconheçamos a sua existência e lidemos com eles de modo concreto. O leitor deve estar se perguntando o motivo desse longo intervalo sem publicação. Aqueles que têm mais tempo de casa sabem que a história do Boca sempre foi marcada por idas e vindas. Isso acontece, porque é uma publicação que depende do Centro Acadêmico de Letras tanto em questão financeira quanto na execução do projeto. Se não tivemos jornal desde 2011, esse é apenas um sintoma da fragilidade da representação estudantil do nosso curso. Aqui começam a despontar os primeiros espinhos. Em 2013, passamos longos meses sem nenhuma chapa gerindo o CAL, com um sistema de presidência pro tempore que evidentemente era insuficiente para dar conta de todas as demandas, e o pior é que essa não foi a primeira vacância. O professor Caetano Galindo comenta na entrevista desta edição que também vivenciou uma situação semelhante em sua época de graduação. Mesmo com uma chapa em atuação hoje, grupo do qual faço parte e com o qual compartilho os acertos e as falhas, há a sensação de que muitas coisas ficam por fazer. Será que os alunos têm medo do CAL? Haverá um desinteresse geral por política? E, mesmo que não seja esse o caso, por que vivemos uma realidade tão calcada nesse mito? São mais de 800 alunos matriculados na graduação de Letras. Desses, mesmo se retirar a parcela dos que mal pisam no campus, ainda sobram algumas centenas de estudantes que frequentam o prédio da Reitoria diariamente. Nosso curso, pela sua amplitude, se compõe de muitos perfis. Por que não aproveitamos essas característica que é bem nossa para experimentarmos vários perfis de política estudantil? Embora às vezes pareça que é preciso ostentar certo discurso, certo vestuário, certa conduta social, nada disso torna alguém um líder se não houver trabalho efetivo pela coletividade – e trabalho há de sobra. Torço para que nas próximas eleições esses vários perfis apareçam e para que cheguem dispostos a encarar o trabalho duro. Dinheiro em caixa há, diálogo com a coordenação e com outras instâncias administrativas do curso também, o que nos falta talvez sejam ideias e energias renovadas e, o principal, continuidade. Esse quesito, a meu ver, tem sido o calcanhar de Aquiles das gestões do CAL que pude acompanhar, inclusive da minha chapa. Não basta apenas chegar com disposição ao aprendizado e ao trabalho, é preciso mantê-la durante todo o período da gestão – e essa é a parte difícil, daí tantos membros se afastarem ou se emudecerem ao longo do caminho. É também essencial à continuidade a integração de novos estudantes para que eles assumam posteriormente a liderança. Centralização e personalização de tarefas podem funcionar por um breve período, mas criam dependência e põem em risco projetos como o deste jornal. Com a reformulação recente do Estatuto, chapas horizontais agora são previstas, e acredito que sejam uma ótima oportunidade para que os membros do CAL exerçam mais plenamente as atribuições da representação estudantil. Com relação ao Boca, acabamos atingidos pela mesma falta de continuidade. Muita gente em gestões passadas se interessou por ele e trabalhou para que as edições se sucedessem, tanto é que eu tive a oportunidade de conhecer a publicação numa fase em que ela saía com alguma regularidade. O problema, a meu ver, é que costumava ser o projeto de uma única pessoa e, na ausência desse indivíduo, adeus jornal. Tendo isso em vista, ao assumir o cargo de editora-chefe desta edição, optei por ignorar minha autócrata interna, aquela voz que nos diz que podemos fazer tudo sozinhos. Iniciei, então, um longo processo de reestruturação do Boca, baseado na capacitação de um grupo para continuar o trabalho com ou sem minha presença. A palavra-chave, repito, é continuidade. Terei sido bem-sucedida no meu intento se, mesmo que não haja pessoas em gestões futuras do CAL interessadas e qualificadas para publicá-lo, ele continuar existindo por outras vias. É a política estudantil que mantém este jornal vivo, isso é fato, mas que seja uma política menos vulnerável a eventuais crises de representação política institucionalizada. A reestruturação começou em março deste ano, quando ofertei um curso de editoração a partir do qual se nomearam os participantes mais habilidosos para formar o comitê editorial do Boca. Tivemos oito selecionados – vejam quem são eles no expediente desta edição –, que estão incumbidos de organizar o jornal até março de 2015. No início do próximo ano, ou talvez até antes, se prevê um segundo treinamento para selecionar um novo grupo de editores. A chefia geral do comitê por ora continua sendo exercida por um membro do CAL, mas há a possibilidade de o(a) editor(a)-chefe também ser escolhido(a) a partir de um processo seletivo que considere as habilidades específicas da função. Esse é um cenário que pode vir a se concretizar se a comunidade de Letras achar conveniente, a partir de discussões e votações em Assembleias Gerais. De qualquer forma, será sempre obrigação do CAL fornecer suporte e receita para a impressão do Boca, direito que devemos cobrar de nossos representantes formais em qualquer situação. Tradicionalmente o Boca tem exercido o papel de vitrine para os trabalhos de colegas e os de pessoas que, de alguma forma, têm contato com o nosso curso. Como resultado disso, apresentamos uma grande quantidade de poemas, textos de ficção, traduções e artes gráficas nesta edição. Além do pessoal da casa, tivemos a colaboração também de artistas de fora, como se pode ver pelos ensaios fotográficos, pelas ilustrações e pela renovação do projeto gráfico. Isso tudo é ótimo, mas será que é o máximo que o Boca pode nos oferecer? Acredito que seja possível, sim, ousar ainda mais e aproveitar este canal de comunicação também para melhorar o nosso curso. Um jornal como este pode exercer funções como discussões acadêmicas, aproximação do mercado de Letras, integração entre as habilitações, parceria com a pós-graduação e denúncia de problemas que afetam o dia a dia dos beletristas. Essa é a parte mais complicada de se pôr na prática, pois, quando abrimos a chamada de textos, recebemos quase exclusivamente trabalhos literários alheios a estas questões. O comitê editorial tentou, na medida do possível, angariar textos que explorassem essas várias outras possibilidades e tivemos ótimas respostas, só que aparentemente as grandes polêmicas não encontraram ainda solo fértil entre nós. Essa é uma aspiração que fica para as próximas edições. Os temas são muitos, basta coragem para assinar os textos. Afinal, quem nunca achou falhas no currículo? Quem nunca sofreu com a precariedade da estrutura do campus? Quem nunca teve reclamações contra a ARI ou outros órgãos da Universidade? E isso para não falar da longa greve dos servidores, que tão silenciosa como começou terminou abafada pelas vuvuzelas da Copa. Este exemplar que chega às suas mãos é simples, mas ao menos ele existe e é nosso, isto é, dos estudantes de Letras. Com muitos assuntos ainda por dizer e tão pouco espaço em um único editorial, só me resta desejar que venham outras edições em breve. Vida longa e muitos textos audaciosos para o nosso Boca do Inferno! Suelen Trevizan é editora-chefe do Boca do Inferno e membro da atual gestão do CAL, Vem ni mim, Bakhtin! 3 Suelen Trevizan
  • 3. Ensaio CHOQUE DE CONSCIÊNCIAS, EMBATE DE VOZES Análise da noção de identidade a partir do conceito bakhtiniano de polifonia em um conto de David Foster Wallace. Ana Carolina Werner da Silva o considerar os estudos feitos pelo Ateórico Mikhail Bakhtin – cujos conceitos podem ser uma importante chave teórica para se discutir narrativas de diversos gêneros – a respeito da relação entre o “eu” e o “outro”, não pude deixar de analisar, mesmo que brevemente, esta narrativa condensada, como o próprio título explicita, de David Foster Wallace, que apresenta uma situação banal e cotidiana, ou melhor, prosaica, temas caros ao teórico russo. 4 Segundo Bakhtin, o “eu” não se define somente por introspecção; ao contrário, define-se também pelos “outros”, ou seja, a visão que temos de nós mesmos é muito limitada, é apenas uma voz, uma perspectiva. Dessa forma, para que a complexidade do ser seja contemplada, precisamos do olhar do outro. Portanto, como princípio base do dialogismo, devemos enxergar a palavra como produto da relação entre um sujeito que fala e o seu interlocutor. A base do diálogo está no discurso, que é isento de neutralidade e permeado de intencionalidade: em outras ainda não foi pronunciado. O embate palavras, as frases que pronuncio são frutos dessas vozes que compõem o indivíduo faz de outras frases, e, de acordo com o próprio parte da sua constante construção. Bakhtin, não existe discurso virgem ou No fim da micronarrativa de original, no sentido estrito da palavra. É Wallace há uma pergunta/confirmação que esta a situação com a qual nos deparamos ao se repete: “não é mesmo não é mesmo não é ler a história narrada no conto de mesmo”, pergunta essa que passa ao leitor Wallace.Apesar de não haver nenhuma uma impressão de continuidade e que pode citação direta dos enunciados das ser interpretada como uma abertura do personagens, nos é permitido fazer texto ou como uma constante repetição da inferências a respeito do diálogo ocorrido situação ali apresentada. A imagem do entre elas. Sabemos que os discursos do mundano, do cotidiano e do banal sujeito falante se interpenetram e teorizada por Bakhtin está bem antecipam a resposta do interlocutor. O representada neste conto do autor norte-autor do conto, então, utiliza este aspecto americano, assim como nos seus três característico do diálogo a fim de ironizar a romances Broom of the system, Infinite banalização das relações humanas e, da jest, e no póstumo The pale king, nos quais mesma forma, da vida pós-industrial, tal preocupação com o universo das relações colocando as consciências das personagens humanas e o embate entre consciências é em atrito. Percebemos que o discurso de levado ao extremo, tecendo o discurso cada uma delas depende, profundamente, polifônico no cruzamento de pontos de de uma antecipação da resposta do vista. interlocutor; portanto, não podemos O autor apresenta em poucas ignorar a sua importância para a resposta linhas, neste conto, um episódio, um futura. momento, somando as vozes de um Na narrativa de Wallace, esta intervalo no contínuo da vida, como se a antecipação está clara, pois uma das história fosse escrita e apagada, marcando a personagens, o homem, faz uma piada presentidade em que vive o homem “esperando ser apreciado”; a mulher ri moderno, e, principalmente, como o forçadamente “esperando ser apreciada”; o homem não existe fora das relações com os colega que os apresentou não gosta de outros, que o constroem; mas, ao mesmo nenhum deles, mas finge que gosta tempo, coloca este mesmo episódio num (“ansioso como estava por conservar boas ciclo, ainda que este seja repetitivo e vazio relações a todo momento”), provavelmente de significado, como a vida e as relações esperando ser apreciado também. Ou seja, humanas nesta história radicalmente isso demonstra que a consciência é um condensada da vida pós-industrial. campo de embate de várias vozes, dentro dela temos o universo do ''já dito'' que nos permite projetar um discurso/resposta que Quando foram apresentados, ele fez uma piada, esperando ser apreciado. Ela riu extremamente forte, esperando ser apreciada. Depois, cada um voltou para casa sozinho em seu carro, olhando direto para a frente, com a mesma contração no rosto. O homem que apresentou os dois não gostava muito de nenhum deles, embora agisse como se gostasse, ansioso como estava por conservar boas relações a todo momento. Nunca se sabe, afinal, não é mesmo não é mesmo não é mesmo. ¹ WALLACE, David Foster. Breves entrevistas com homens hediondos. Tradução de José Rubens Siqueira. São Paulo: Companhia da Letras, 2005 Ana Carolina Werner da Silva é formada em Letras pela UFPR. Atualmente estuda o romance Infinite jest, de David Foster Wallace. Uma história radicalmente condensada da vida pós-industrial Versário Daniel Martineschen ICEBERG À superfície desponta o pico, mas ninguém conta com o mundo por baixo dele, só um décimo de sua grandeza, da qual só conhece quem esbarra, mesmo por acidente, e afunda, em mergulho inconsciente, lúcido e ébrio, que amarra e prende, indissociável e indiferente, para todo o sempre, na profundeza. DA LÓGICA CIRCULAR CARROCRATA Quanto mais ruas, mais espaço. Quanto mais espaço, mais carros. Quanto mais carros, menos espaço. Quanto menos espaço, menos ruas. Quanto menos ruas, menos carros. Quanto menos carros, mais espaço. Quanto mais espaço, mais ruas. Qual o elo fraco dessa roda? Qual a tangente de saída? A guerra tá mesmo perdida? Será mesmo assim tão foda? 5 Daniel Martineschen, anno 1981, é doutorando em estudos da tradução, tradutor do alemão (técnico, literário, juramentado), (ex-)informático pela UFPR. Traduz o Divan do Goethe e traduziu Travessia de Anna Seghers, pela editora da casa. Poesia para ele é incipiência, exercício, brincadeira, luta contra a timidez. o indizível é indivisível mesmo se visível; risível é o esforço pífio de (des)dizê-lo, arrancar-se os cabelos, dedicar-se décadas a fio a desentretecer o enredado. não quer dizer que seja inútil o vão (oco, interstício) que se parece divisar no sensível. é só que supô-lo definitivo, matriz de crivo de todo o perceptível é querer devorar e continuar tendo todo o bolo. No instante em que pensei, curioso o que se passou: passou tanto tempo que o instante se expandiu – e já passou.
  • 4. 6 Tradução Zosia Samosia Jest taka jedna Zosia, Nazwano j¹ Zosia-Samosia, Bo wszystko “Sama! Sama! Sama!” Wa¿na mi dama! Wszystko sama lepiej wie, Wszystko sama robiæ chce, Dla niej szko³a, ksi¹¿ka, mama Nic nie znacz¹ - wszystko sama! Zjad³a wszystkie rozumy, Wiêc co jej po rozumie? Uczyæ siê nie chce – bo po co, Gdy sama wszystko umie? A jak zapytaæ Zosi: – Ile jest dwa i dwa? – Osiem! – A kto by³ Kopernik? – Król! – A co nam OEl¹sk daje? – Sól! – A gdzie le¿y Kraków? – Nad Wart¹! – A uczyæ siê warto? – Nie warto! Bo ja sama wszystko wiem I oeniadanie sama zjem, I samochód sama zrobiê, I z wszystkim poradzê sobie! Kto by siê tam uczy³, pyta³, Dowiadywa³ sie i czyta³, Kto by sobie g³owê ³ama³, Kiedy mogê sama, sama! – Tooe ty taka m¹dra dama? A kto g³upi jest? – Ja sama! Tem uma certa Neusinha Nove! Que chamam de Neusinha- – Dr. Oswaldo Cruz foi? Euzinha, – Presidente! Com ela é tudo – Sete de setembro é? “Eu! Eu! – Tiradentes! Eu!” – Come-se vatapá em? Que prima donna, Deus meu! – Belém! Tudo ela só já conhece, – E estudar, não convém? Tudo ela faz e acontece, – Nem vem! A escola, o livro, a mamãe – Eu sei tudo tintim por tintim balela E a sobremesa é toda pra mim, Pura e simples, pois tudinho é Faço euzinha até um avião, ela! Comigo não tem perrengue não! Não é uma sabe-tudo, Quem vai aprender, e perguntar, De que serve então juízo, E ler, e descobrir, e errar, estudo? Queimar pestana e toutiço Aprender – não faz por onde, Sem que se precise disso! Na hora ela não responde? – Grande sabichona! Mas pergunte a Neusinha na E a boboca de quem se escreveu? prova: – Eu, eu! – Quanto é quatro mais quatro? – Nove! Julian Tuwim Neusinha Euzinha Trad. Marcelo Paiva de Souza Julian Tuwim (1894-1953), poeta e tradutor, nasceu em Lodz, numa família de classe média de judeus assimilados. Estudou Direito e Filosofia na Universidade de Warszawa (Varsóvia), sendo integrante de diversos movimentos literários, entre esses, cofundador do cabaret literário Picador e do grupo de poesia Skamander. Foi o primeiro poeta polonês a trazer para a poesia a linguagem cotidiana, escrevendo de forma inovadora e para públicos múltiplos. O poema “Zosia Samosia” foi extraído de Tuwim (Varsóvia: Babel Studio, 2013), publicação organizada por Agnieszka Drewno e cofinanciada pelo Ministério da Cultura e do Patrimônio Nacional da Polônia. Marcelo Paiva de Souza é professor do Departamento de Letras Estrangeiras Modernas da UFPR e tradutor. Pedrita Setenareski (1987-), estudante de Letras polonês pela UFPR, nasceu em Curitiba. Com a parte materna da família, teve contato com tradições culturais polonesas. Além de estudar essa língua, também se dedica a ensiná-la. Seus hobbies são o desenho, a caricatura livre e a escrita. MUDANÇA DE DOMICÍLIO O conto “Cambio de domicilio” foi publicado primeiramente no livro La mayor, de 1976, relançado em Cuentos completos, de 2001. 7 Tradução Juan José Saer Trad. Amyr Bohot á uns dois anos, me mudei de casa e mudei de pra lá ou mais pra cá das coisas, de não se encaixar em nome. H A política favoreceu um pouco minha nenhuma definição, de não saber nunca de um modo certo decisão; em Buenos Aires, a polícia tinha me se sonhava ou se estava acordado, de não saber o que fichado durante uma manifestação e, como eu não tinha, responder, às vezes, a alternativas bem definidas que os apesar de minhas ideias avançadas, nenhum respaldo outros me mostravam. Durante anos me pareceu que essa solidário por não pertencer a nenhuma organização inépcia era individual, subjetiva, que minha história pessoal clandestina, me pareceu razoável mudar de domicílio e tinha se desenvolvido de tal modo que eu tinha ficado como desaparecer por um tempo. Assim, peguei o ônibus e vim preso dentro dela, sem muita capacidade de decisão, e que os para esta cidade, onde no verão se cozinha à beira do grande outros tal como eu os via desde fora não experimentavam, rio. neste mundo, o menor incômodo. Em dois anos, no Nada incentiva mais a reflexão do que as viagens. entanto, desapareceram minha voz tabacada, meu sotaque Na noite móvel e ruidosa do coletivo, o olho viajante segue portenho, mas o pântano antigo que jaz e às vezes se sacode, aberto, insone, ou antes alerta, à música do mundo. Foi no pesado, mais embaixo, mandando sinais de vida, deixa coletivo, na verdade, que a ideia de suplantar um simples ato entender que ou não escolhi a máscara conveniente ou nós, de autoproteção por uma mudança radical de identidade me os homens, qualquer que seja a cor de nosso destino, não ocorreu, súbita e febril. Começaria outra vida com outro estaremos nunca à altura das circunstâncias ou, melhor dito, nome, outra profissão, outro aspecto físico, outro destino. do mundo. Emergiria, com cinco ou seis braçadas vigorosas, do mar de meu passado a uma praia virgem. Sem família, sem amigos, sem trabalho, sem um piccolo mondo antico em cujo ventre vegetar, o futuro se apresentava para mim liso e luminoso, e terno, sobretudo, como um recém-nascido. Instalei-me numa pensão, falsifiquei meus documentos, operei minha transformação física e consegui um emprego de vendedor de livros em domicílio. Os jornais me davam por morto. A polícia paralela, se dizia, tinha se encarregado de mim. Mas o terror que reinava não deixava passar à superfície mais que alusões ambíguas. Isto já faz mais ou menos dois anos. No segundo ou terceiro mês de minha nova existência, como percebi que meus hábitos não haviam mudado muito, decidi modificar meus gostos e meus costumes de um modo sistemático. Deixei de fumar; como sempre detestei os ensopados de feijão e a língua-de-vaca, passei a comê-los todos os dias até que começaram a ser meu alimento preferido; decidi escrever com a mão esquerda e introduzi variantes capitais em minhas convicções profundas. De modo que ao fim do ano minha personalidade tinha mudado por completo. Me parecia ser, como se diz, outro homem. Digo “me parecia ser”, como se pode ver, e não “era”. À distância, me dou conta de que foi um certo emplastramento de minha vida, do qual era apenas consciente, o que me incitou a mudar: a sensação de andar em círculo, de não avançar, de estar sempre um pouco mais Juan José Saer (Santa Fé, 1937- Paris, 2005) é celebrado como um dos principais autores argentinos da era pós-Borges. Foi professor de Estética na Universidade de Rennes, na França, para onde se mudou em 1968 em autoexílio. Publicou contos, poemas, romances e ensaios. Amyr Borhot, aluno do primeiro ano da graduação de Letras, acha curioso escrever em terceira pessoa sobre si mesmo e aproveita a ocasião para agradecer a Ele, o Acaso, “sem o qual, nada”, como disse o poeta.
  • 5. Textículos aquela manhã, ao acordar, seu primeiro terminando a faculdade de psicologia e tem um sorriso de matar. Vocês Npensamento foi: irão esbarrar um no outro quando o motorista frear diante de um cachorro, rir da situação, pedir desculpas e trocar telefones. “Que motivo tenho para me levantar da cama?” Eventualmente acabarão se casando e vivendo na felicidade pelos Permaneceu por alguns minutos dedicando-se à questão, próximos 21 anos, até o dia de sua morte.” mas nada nesse mundo era capaz de lhe fornecer uma resposta E ele perguntaria a deus: conclusiva. “A morte dela ou a minha?” Pensou na família que morava no interior, na tia-avó que E o senhor dos senhores responderia: morrera na semana passada, depois em seu emprego na agência de “Ah, se eu dissesse perderia a graça.” publicidade e no computador e na tela de vintetantas polegadas que lhe Ele então se levantaria, escovaria os dentes – estes mesmos esperavam dentro da mesma sala refrigerada todos os dias, onde se que cedo ou tarde apodreceriam de qualquer forma –, tomaria um sentia como um farto peru no fundo do congelador de um banho, comeria duas torradas com patê de frango e calçaria os sapatos, supermercado. alcançaria a rua e caçaria o futuro. A qualquer hora, tinha certeza, seria pego pelas pernas e Mas não havia deus nenhum lhe explicando seu grandioso destrinchado sobre uma tábua gigante, uma mão invisível arrancando plano, de forma que chegou a pensar que permanecer em casa poderia suas entranhas e substituindo-as por recheios diversos. até mesmo ser sua salvação, a despeito de todas as balas perdidas, Por um segundo pensou em qual seria a sensação da farofa colisões mortais e garotas de cabelo castanho que estariam à espreita entrando rabo adentro e na cor que sua pele assumiria após sair do para lhe furar o coração. forno, passando por mãos e talheres até ser devorado em uma mesa sob Viver era um ato de pirataria biológica, uma navegação as graças de uma família católica. paradoxal e sangrenta atrás de recompensas ilegítimas: todos no Já estava na cama havia dez minutos e o despertador tocou mesmo barco, cada um sua própria ilha. novamente. Mas desde sempre soubera que o mundo é um lugar Ainda não conseguia encontrar um motivo para se levantar. perigoso, afinal, não era sobre isso que sua mãe lhe alertava ao segurá-lo “Tenho que chegar ao trabalho em meia hora”, pensou. pela mão e ensiná-lo a verificar os dois lados da rua antes de atravessá- Calculou mentalmente o tempo que levaria em cada atividade, la? começando por escovar os dentes, passando pela ducha e o banheiro O problema é que ninguém lhe diz para qual lado olhar antes vaporizado, depois o café da manhã e o trajeto até a agência. de atravessar a realidade e cedo ou tarde você acaba debaixo da carreta Concluiu que chegaria pelo menos dez minutos atrasado. do destino, esmigalhado por todas as escolhas ruins que fez até então. Mas o atraso, por si só, pareceu-lhe mais uma justificativa Ficou ali deitado, pensando a respeito, por dois ou três dias. para permanecer na cama (afinal, iria atrasar-se de qualquer modo) do Ainda não conseguia encontrar um motivo para se levantar. que para se levantar dela. Nada mais queria que uma única razão para vestir-se e voltar Em sua cabeça, enquanto coçava a barba rala e crescente de ao cotidiano, uma vontade qualquer que lhe faria abrir a janela e sua queixada, perguntou-se: respirar um pouco, motivar-se novamente e se deixar encantar pela “O que ganho levantando da cama hoje? Outro dia de vida. trabalho, outra semana iniciada, o eterno ciclo se repetindo após cada Fechou os olhos, espreguiçou-se na cama. Tentou sentir madrugada, e de novo e de novo até o fim dos tempos. De qualquer alguma coisa. forma saio da cama agora e volto a ela depois, para então sair dela mais Qualquer coisa. uma vez e assim por diante.” Definitivamente não estava encantado. Nem mesmo Decidiu tomar um atalho na vida: permaneceria na cama, instigado ou curioso. Talvez fosse falta de ar fresco, pensou. E se que era afinal seu ponto de partida e chegada noite após dia, dia após lembrou de que o oxigênio é responsável pelo desgaste das células. noite após dia. Refletiu se valeria a pena diminuir o ritmo da respiração na tentativa de Sentia-se um oroboro, um que já tivesse engolido a cauda há retardar o envelhecimento, mas decidiu que não era um esforço tanto tempo que chegava a sentir os próprios dentes batendo à nuca. necessário, visto que não tinha objetivos a serem alcançados. O Apoderou-se dele uma súbita necessidade de que o mundo emprego na agência – provavelmente perdido a essa altura –, o contato lhe desse explicações, de que deus (qualquer um) batesse à porta e lhe com os amigos, a convivência com outros seres humanos iguais a ele, dissesse: nada lhe era atrativo suficiente para que desejasse sair dali e colocar-se “Olá, filho, tenho um plano na medida para você. em movimento. Acompanhe: hoje você vai chegar atrasado à agência e, por conta desse No sétimo dia percebeu que suas costas e metade da perna atraso, terá que pegar o ônibus das 8h10, em vez do tradicional esquerda estavam presas ao colchão. Raízes de pele e tecido se expresso das 8h. No trajeto você encontrará uma pequena garota de interligavam em uma simbiose perfeita, fundindo seu corpo à cama. cabelos castanhos, alguns anos mais jovem que você. Ela está Ainda não conseguia encontrar um motivo para se levantar. 8 LENÇOL HUMANO Yohan S. Barcz 9 Yohan S. Barcz cumpriu pena no curso de Jornalismo e agora tenta se recuperar para fazer algo que preste. Entre a prática da quiromania e a escrita, prefere a primeira, por uma questão de domínio técnico. Multi-instrumentista, utiliza a música apenas para justificar o uso contumaz de entorpecentes. Priscila Cristina Nascimento Lopez de Scoville. Um nome tão grande quanto a simpatia e a modéstia. Estuda História Memória e Imagem na UFPR desde 2011. Talvez suas coleções de desenhos feitos e fotografias tiradas sejam maiores do que o número de livros sobre o Egito Antigo, seu tema de pesquisa acadêmico.
  • 6. Textículos A Fotógrafa Gustavo Jugend Rays of joy, they multiply. (Gogol Bordello) assara a noite acordada com o olhar fixo no além-mar e a máquina de recolher instantes em torno P do pescoço. Goma há horas entre os dentes e um pote de açúcar ao lado. Atribuía ao horizonte a exigência incerta de um vermelho que se acotovelasse entre o azul e o azul rasgando a noite de seus olhos, extirpando-lhe saudade e monotonia. Próximo à hora inexata buscou gentilmente o chiclete, deitou-lhe no pote ao lado cobrindo-lhe com aquele cristal doce: hora de aurora. Juntou seu colar fotográfico ao olho direito e enamorou-se do infinito. Mas quando a bola que se queria rubra despontou no horizonte quarada ao laranja, os braços daquela fotógrafa vacilaram. Exigia demais do mar, exigia demais do horizonte. Exigia do sol mais do que se podia exigir. No dia seguinte o botão da câmera ainda guardava sua digital em açúcar. Na mesa da cozinha apenas uma folha branca com um círculo escuro no meio restava junto a uma caixa de lápis de cor, mais aquele pote de doce. A fotógrafa arrancou o grafite da caixa e desatinou vermelho no céu e no mar. Desatinou vermelho no sol. Desenterrou a goma do pote, entrelaçou-a entre os dentes e sorriu de leve; a noite de seus olhos era, finalmente, alvorada. Gustavo Jugend, curitibano, é mestrando em Filosofia pela UFPR. Pesquisa ética, ontologia e poesia, além de lecionar no Ensino Médio. Também publica contos no blog exvotar.wordpress.com. 10 Sarah Garcia Quero andar por aí até meu cabelo tocar as pontas dos dedos raízes confusas buscando no céu nuvens de desapego Quero voar por aí até de meus braços caírem penas e de meus olhos as ramas fugitivas da leveza De meu ser resta pouco além de ser Sarah Garcia é uma paulistibana, natural da capital de São Paulo, mas com o coração curitibano. Tem 20 anos, cursa Letras português-espanhol na UFPR e tenta fazer poesia (y otras cositas más) no blog porquenaoentao.blogspot.com.br. grão de areia: a miragem da chuva seca Evelyn Cieszynski, curitibana, é aluna de Letras da UFPR. Escreve também para a revista literária Varal do Brasil (varaldobrasil.com). Revolvendo Evelyn Cieszynski 11 Versário Cesar Felipe Pereira Saussureana Essa noite Saussure me sussurrou no ouvido: “Não creia no que dizem, não lhes dê ouvidos”. O suíço estava doido, saturado dos alunos. Disse haverem confundido tudo: sumido com o original, publicado absurdos. “Não é que são safados?, acabaram com meu Curso. Tais palavras não são minhas!”, já berrava o pobre homem com cólera quase secular. “Grande gênio, pai dessa ciência? Isso não é meu, não mereço esse trono!”. Por meu lado, sob o travesseiro a cabeça, associações, langue, parole, tudo rodando, me deixando quase louco. Até que quando, veio à ideia aquele clarão, potente relâmpago. Única palavra: “Possenti”. Forte aguardente, Seu Sírio é Saussure! Triste sombra em pleno outono: Se Caetano roça a língua de Camões, Ferdinand acaba com meu sono! Leonardo Gonçalves Fischer Romance das vias do Taquaruçu Nesta estrada abandonada Que o passar dos tantos anos Nem sequer mudou em nada Sobre seus trajetos planos, Inda toda em chão batido Por galopes e por passos Que o tempo transcorrido Já lhes apagou os traços, Despontava a silhueta Parecendo imaginária, Augural tal qual cometa, Tão distante, solitária, Vinha um viandante velho Que trajava um gasto pálio, Em suas mãos o Evangelho E um cajado de carvalho; Seu alforje pendurado Que o tempo mal conserva Carregava abarrotado, Tendo todo tipo d' erva, Ervas d' ancestral cultura Que resiste ao oblívio Trazem para o povo a cura E às dores seu alívio. Ia errante pelas vias Como um filho desta terra, Como o monge àqueles dias Antes da funesta guerra Em que ardeu Taquaruçu Sob obuses flamejantes, Sobre os campos do Iguaçu Dantes tão mais verdejantes. Ia o velho calmamente Quando então o avistaram, Agitou-se toda gente, Todos alto então gritaram: “Olha o monge! Olha o monge! Ele enfim ressuscitou!” Mas marchava o velho ao longe, Foi-se e nunca mais voltou. Leonardo Gonçalves Fischer nasceu em Caçador-SC, em 1993, e residiu durante muitos anos em Fraiburgo, no mesmo estado. Atualmente cursa Letras português-grego, bacharelado em estudos da tradução, na UFPR. Cesar Felipe Pereira nasceu em Curitiba, em 1983, numa madrugada gelada. É formado em Letras e Cinema e, no momento, finaliza o mestrado em Estudos Literários na UFPR. Está no prelo seu livro de estreia de poemas antes do COMEÇO depois DO FIM. Tem acessos de megalomania, acredita no poder da arte e não gosta mais de Chico Buarque.
  • 7. Mario Benedetti 1 12 Tradução A NOITE DOS FEIOS O conto original, “La Noche de los Feos”, pertence ao livro La muerte y otras sorpresas, publicada pela editora Alfaguara em 1968. Trad. Camilla Nater e Nylcéa Pedra mbos somos feios. Nem sequer minutos, admiramos as respectivas belezas meia depois tivemos que pedir dois cafés vulgarmente feios. Ela tem a maçã do herói desajustado e da doce heroína. Pelo para justificar A nossa permanência do rosto deformada. Desde os oito menos eu sempre fui capaz de admirar o prolongada. Logo me dei conta de que anos, quando lhe fizeram a operação. bonito. Minha aversão reservo para meu tanto ela como eu estávamos falando com Minha asquerosa marca junto à boca vem rosto e às vezes para Deus. Também para o uma franqueza tão ofensiva que ameaçava de uma queimadura atroz, ocorrida no rosto de outros feios, de outros espantalhos. ultrapassar a sinceridade e tornar-se um começo de minha adolescência. Talvez devesse sentir pena, mas não consigo. quase equivalente da hipocrisia. Decidi Também não se pode dizer que tenhamos Na verdade, é que são como espelhos. Às aprofundar-me. olhos ternos, essa sorte de poucos pela qual vezes me pergunto o que teria ocorrido na “Você se sente excluída do os horríveis conseguem deixar de lado a mitologia se Narciso tivesse a maçã do rosto mundo, não é mesmo?” beleza. Não, de modo algum. Tanto os dela deformada, ou tivesse as bochechas “Sim”, disse, ainda me olhando. quanto os meus são olhos de ressentimento, queimadas por ácido, ou lhe faltasse metade “Você admira os charmosos, os que só refletem a pouca ou nenhuma do nariz, ou tivesse a testa costurada. normais. Você queria ter um rosto tão resignação com que enfrentamos nosso Esperei-a na saída. Andei uns equilibrado como esta menininha que está à infortúnio. Talvez isso tenha nos unido. metros junto dela, e logo lhe falei. Quando sua direita, apesar de você ser inteligente, e Talvez unido não seja a palavra mais se deteve e me olhou, tive a impressão de e l a , a j u l g a r p o r s u a r i s a d a , apropriada. Me refiro ao ódio implacável que vacilava. Convidei-a para conversarmos irremediavelmente estúpida.” que cada um de nós sente por seu próprio um pouco em um café ou uma confeitaria. “Sim”. rosto. Aceitou de imediato. Pela primeira vez não pude Conhecemo-nos na entrada do A confeitaria estava cheia, mas sustentar meu olhar. cinema, fazendo fila para ver dois nesse momento uma mesa foi desocupada. “Eu também queria isso, mas charmosos quaisquer na telona. Ali foi onde À medida que passávamos entre as pessoas, existe uma possibilidade, sabe, de que eu e pela primeira vez nos examinamos sem ganhávamos gestos e sinais de assombro você cheguemos a algo.” simpatia, mas com uma obscura pelas costas. Minhas antenas estão “Algo como o quê?” solidariedade; ali foi onde registramos, já particularmente ligadas para captar a “Como nos amarmos, oras. Ou desde o primeiro olhar nossas respectivas curiosidade doentia que as pessoas têm, esse simplesmente nos darmos bem. Chame solidões. Na fila todos estavam a dois, além sadismo inconsciente dos que tem o rosto como queira, mas há uma possibilidade.” disso, eram autênticos casais: esposos, comum, milagrosamente simétrico. Esta Ela franziu a testa. Não queria dar namorados, amantes, avozinhos, e sei lá vez, no entanto, não era nem sequer esperanças. mais o quê. Todos – de mãos ou braços necessária minha adestrada intuição, já que “Prometa-me que não vai me dados – tinham alguém. Só eu e ela meus ouvidos conseguiam registrar achar um louco.” tínhamos as mãos soltas e contraídas. murmúrios, tossezinhas, falsas pigarreadas. “Prometo.” Com detenção, insolência e sem Um rosto horrível e único possui “A possibilidade é se deixar levar curiosidade, olhamos nossas respectivas evidentemente seu interesse. Mas duas pela noite. Na noite total. Na escuridão. feiuras. Reparei na deformação de sua face feiuras juntas constituem por si próprias um Entende?” com a autoridade que me era outorgada por espetáculo maior, aos menos coordenado; “Não.” minhas bochechas encolhidas. Ela não ficou algo que se deve olhar em companhia, junto “Você tem que me entender. A vermelha. Gostei que fosse dura, que a pessoas bem parecidas com as quais o escuridão. Onde você não me veja, onde eu devolvesse minha inspeção com uma olhada mundo merece ser dividido. não a veja. Seu corpo é lindo, não sabia?” minuciosa à área lisa, brilhante, sem barba, Nos sentamos, pedimos dois Sorriu. A deformação das da minha velha queimadura. sorvetes, e ela teve a coragem (gostei disso bochechas se tornou levemente escarlate. Finalmente entramos. Sentamo- também) para pegar da bolsa seu espelho e “Mo r o s o z inh o , em um nos em filas diferentes, mas próximas. Ela arrumar o cabelo. Seu lindo cabelo. apartamento, e fica perto daqui.” não conseguia me olhar, mas eu, mesmo “Que está pensando?”, perguntei. Levantou a cabeça e me olhou com a escuridão, conseguia distinguir sua Ela guardou o espelho e sorriu. O questionando-me, averiguando sobre mim, nuca de cabelos loiros, sua orelha carnuda poço das bochechas mudou de forma. tentando desesperadamente chegar a um bem formada. Era a orelha do seu lado “Um lugar comum”, disse, “tal diagnóstico. normal. como esse”. “Vamos”, disse. Durante uma hora e quarenta Falamos bastante. Uma hora e 13 ão só apaguei a luz como também fechei a cortina Tive que recorrer a todas minhas reservas de coragem, Ndupla. Ao meu lado ela respirava. E não era uma mas fiz. Minha mão subiu lentamente até seu rosto, encontrou a respiração ofegante. Não quis que eu a ajudasse a cicatriz, e começou uma lenta, convincente e convencida despir-se. carícia. Na verdade meus dedos (a princípio um pouco Eu não via nada, nada. Mas pude notar que agora ela trêmulos, em seguida progressivamente serenos) passaram estava imóvel, à espera. Estiquei cuidadosamente uma mão, até muitas vezes sobre suas lágrimas. encontrar seu peito. Meu tato me transmitiu uma versão Então, quando eu menos esperava, sua mão também estimulante, poderosa. Assim, vi seu ventre, seu sexo. Suas mãos chegou à minha face, e passou e repassou a costura e a pele lisa, também me viram. essa ilha sem barba da minha marca sinistra. Nesse instante entendi que devia sair (e tirá-la) Choramos até o amanhecer. Desgraçados, felizes. daquela mentira que eu mesmo tinha fabricado. Ou tentado Logo me levantei e abri a cortina dupla. fabricar. Foi como um relâmpago. Não éramos isso. Não éramos isso. Mario Orlando Hardy Hamlet Brenno Benedetti Farrugia nasceu no ano de 1920, em 14 de setembro, na cidade uruguaia de Paso de Toros, e faleceu em 17 de maio de 2009, na capital, Montevidéu. Escritor e poeta, fez parte da Geração de 45 e teve mais de 80 livros publicados, muitos deles traduzidos para mais de 20 idiomas. Camilla Nater, curitibana, é graduanda do primeiro ano de Letras e verdadeiramente apaixonada pela língua espanhola e suas muitas facetas Nylcéa Pedra é professora no curso de Letras da UFPR. Gosta muito do que faz. E, entre uma aula e outra, brinca seriamente de traduzir. 2
  • 8. Entre e vista CAETANO GALINDO NÃO PERDE TEMPO COM PUBLICAÇÕES DE UMA TRADUÇÃO E UMA COLETÂNEA DE CONTOS PREVISTAS PARA OS PRÓXIMOS MESES, O PROFESSOR AINDA PÕE A LEITURA EM DIA ENQUANTO PASSEIA COM O CACHORRO. Galindo é conhecido principalmente por dois feitos homéricos. A nível nacional, por ter traduzido o romance Ulysses, de James Joyce, e, no âmbito do curso de Letras, por ministrar a disciplina de Língua Portuguesa V semestres a fio. Os editores trataram de ambos os assuntos, como não poderia deixar de ser, mas procuraram descobrir também outras facetas do entrevistado: músico, aluno, pesquisador, vice-coordenador, leitor, contista e poeta – ou ex-poeta, segundo ele. Acabou que, no clima de Copa, a conversa se enveredou até por temas futebolísticos (adivinhem para qual time ele torce?). O que vocês leem a seguir são os melhores momentos desta conversa, que, desculpem os puritanos da língua, conserva a maioria dos traços de oralidade. O propósito é que os leitores tenham uma experiência mais próxima à do encontro daquela tarde. Assim, aqueles que nunca tiveram a oportunidade de assistir a aulas ou palestras sobre Ulysses (e foram muitas só na Reitoria) nem de cursar Língua V talvez saiam com pelo menos uma vaga impressão desta figura notória sob tantos aspectos. E para os ansiosos: a tradução de Infinite jest, de David Foster Wallace, deve sair em novembro pela editora Companhia das Letras. Galindo adiantou que edição será extensa e visualmente bem caprichada, por isso, é melhor ir poupando os níqueis até lá. A VÉSPERA DO JOGO NDE ABERTURA DA COPA DO MUNDO, OS EDITORES DO BOCA DO INFERNO ENCONTR A R AM O P ROF E S SOR CAETANO GALINDO NA SEDE DO CAL PARA CERCA DE UMA HORA DE CONVERSA. FOI UM BATE PAPO BASTANTE INFORMAL, REPLETO DE MOMENTOS CÔMICOS, COMO SE VERÁ A SEGUIR. PARA COMPLETAR O TIME, H O U V E A P A RT I C I P A Ç ÃO D A FOTÓGRAFA MARINA TORTELLI , CONVIDADA ESPECIALMENTE PARA REGISTRAR O EVENTO. Suelen Trevizan: Nós percebemos que você lavar as mãos e me afastar do Joyce. Mas quem que eu fiz com o Faraco. Tanto eu quanto ele costuma caminhar lendo, inclusive vimos faz alguma coisa é ele. Eu tenho a sorte, nesse temos conversas metafísicas estranhas até hoje, você entrando agora há pouco na cantina sentido, de estar vinculado ao nome dele, de e gente falou “vamos fazer um negócio meio lendo um livro. Pode explicar para a gente estar vinculado a esse livro. filosófico e psicológico estranho sobre o futuro como funciona essa técnica de leitura? verbal”, daí entrou o Agostinho e depois que Caetano Galindo: Não sei, sempre me Suelen: Uma das coisas que eu achei curiosa entrou o Plotino na história. Mas era pareceu uma perda de tempo ir de um lugar no seu currículo Lattes foi você fez linguística românica na minha cabeça. Eu fiz o para outro sem estar fazendo nada. Eu resisto mestrado sobre Santo Agostinho e Plotino. projeto de doutoramento para estudar o em usar a palavra “obsessivo”, porque ficou Qual era o seu interesse de pesquisa naquele vocabulário romeno do século XVII na desagradável depois matéria da Folha, mas eu momento e como mudou para James Joyce? Alemanha. Fui aprovado pelo DAAD, ganhei a sempre fui obcecado com a coisa de perder Caetano: Eu entrei no curso de Letras, como bolsa, estava com tudo certo para embarcar, tempo. Eu odeio ficar à toa, eu nunca fico à toa. vocês provavelmente, sem saber o que se fazia quatro anos na Alemanha, indo e tranquilo. Na época em que eu vinha para a faculdade, eu no curso de Letras. Eu entrei com uma vaga Mas foi quando eu me separei da minha achava uma perda de tempo ficar andando de ideia de que escritores faziam Letras, entrei para primeira mulher e eu tinha uma filha pequena, um lado para o outro sem estar fazendo nada. ver o que ia acontecer, assim na louca. Voltando daí falei “pô, não vou passar quatro anos longe Eu gostava muito de ouvir música, mas ouvir mais atrás ainda, eu estava no conservatório e da minha filha que está crescendo”. Eu cancelei música para mim é muito perigoso, porque me eu saí por causa de uma lesão. Então, eu estava a bolsa, voltei para cá, perdi um ano nessa desconcentra de um jeito muito absurdo. Ler em casa de bobeira, e o meu irmão ia fazer história, porque as seleções de doutorado não, eu consigo. Desde que eu tinha treze ou vestibular, eu falei “vou fazer vestibular com o tinham passado, e o projeto que eu ia fazer lá quatorze anos comecei a fazer isso. Sei lá, meu irmão” e escolhi Letras. Sempre li muito, não tinha como fazer aqui, aliás, não tem até sessenta por cento das coisas que eu li nos sempre gostei de literatura basicamente. hoje. Se eu quiser fazer linguística histórica do últimos vinte anos de vida eu li andando. Ninguém gosta de linguística antes de entrar romeno, não tenho para onde ir. Aí eu demorei em Letras, porque ninguém sabe o que é um tempo e pensei “pô, preciso inventar outra Suelen: E nunca houve nenhum acidente? linguística antes de entrar em Letras. coisa”. Daí foi o momento de surto hedonista Caetano: Não. Meu irmão, que faz a mesma em que eu falei “quer saber, já que eu não vou coisa, uma vez caiu na garagem de um prédio, Juliana Corrêa: Nem depois às vezes, fazer aquilo, vou fazer um negócio que me dê na rampa, mas eu não. É invicto para mim, quanto mais antes de entrar... tesão de fazer, só isso”. Daí eu queria ler Ulysses nem susto, muito tranquilo. Caetano: Pois é, eu fiz Linguística I já com o a fundo, queria estudar Ulysses. Sempre tive essa Mercer, que para mim foi uma figura central na ligação com o Bakhtin, falei “pô, tenho a Vinícius Figueiredo: Em 2012, a revista minha vida, e tipo chapei. Falei “esse negócio impressão que dá para tirar um caldo” e Época elegeu você uma das 100 pessoas de linguística é muito legal”. Meu mundo virou inventei esse projeto. Perdi mais um ano nisso, mais influentes do Brasil. do avesso quando eu fiz Linguística I. Daí, uma porque não consegui convencer ninguém de Caetano: Eles erram nessas coisas, eles estão daquelas histórias bocós, já no segundo que esse projeto era possível e as pessoas se enganados. semestre eu tinha uma namorada que fazia negavam a me orientar. Todo mundo que eu Letras e ela ia fazer uma optativa de noite. Eu pedia me dizia “você é louco, não vai conseguir Vinícius: Como você influencia as pessoas, falei “pô, vou arranjar uma optativa de noite fazer”. Aí acabei fazendo na linguística. De Caetano? para poder vir para cá também” [risos]. A única início tentei fazer na literatura, acabei fazendo Caetano: Eu não influencio ninguém, cara. Eu que me encantou um pouquinho era uma na linguística, porque o Fiorin me conhecia e mal tento influenciar vocês. Eu acho que o história do português com o padre Afonso falou “tá, vamos fazer”. E foi a decisão que Joyce influencia muita gente e eu acho que virei Robl, que vocês também não conheceram. Vim mudou minha vida, porque a partir daí eu não essa criatura ligada à fortuna dele, daqui fazer a optativa do padre Afonso e conheci a saí mais disso e me enterrei nessa história da provavelmente para o resto da minha carreira. linguística histórica. Pensei “porra, me achei”. tradução. Eu sou o cara que é o portador de Joyce para as No primeiro ano eu já sabia que queria fazer pessoas. Não me incomoda, gosto muito, linguística histórica e aprendi romeno por Vinícius: Um comentário pessoal, você inclusive continuo com esse projeto. A gente causa disso, estudei filologia por conta durante como professor, até andando lendo, tem vai fazer Dublinenses para o ano que vem, vai a graduação. Entrei no mestrado para fazer um ar muito erudito. fazer O Retrato do artista do quando jovem para linguística histórica de línguas românicas, foi o Caetano: É a calva [risos]. 2016, eu ainda tenho o plano de fazer o que fiz. Era futuro verbal romeno e português, Finnegans Wake, ou seja, eu não estou querendo 14 15
  • 9. Vinícius: Só que em uma das entrevistas terminei, eu falei para a Sandra “cara, me deu saímos da banda, e ela continuou com outro você disse que começou lendo Sherlock uma vontade de ser inteligente agora, preciso nome. Holmes e Agatha Christie, algo um pouco ler umas coisas complicadas”. Você se sente mais pop. Eu queria saber se isso ainda está dolorosamente burro de ter lido aquilo [risos]. Suelen: Como era o nome da banda? na sua vida. Mas eu não tenho nada contra, eu vario bem. Caetano: Chamava Bichos Buenos. Agora Caetano: Eu estou vendo The game of thrones Na verdade, hoje muito menos, porque tem chama Garellis, mas não sei se eles estão agora, isso é pop, né? pouco tempo, pouca disponibilidade. E entre tocando mais. Eles ficam praticando bullying ler o Knausgård, que tá na minha lista, que para eu voltar, mas eu não tenho mais nem Suelen: E o que você está achando da quarta todos os meus amigos falam que eu tenho que guitarra hoje, vendi a minha no ano passado. temporada? ler, e ler dois ou três romances policiais que Caetano: Eu ainda estou na segunda. Acho podem ser uma merda, eu vou ler um negócio Juliana: Então a ideia inicial era ser músico muito difícil encarar aquele negócio de que é garantido. Mas a verdade é que estou e daí você decidiu fazer Letras? dragãozinho, feitiços e tal, mas ao mesmo ficando mais velho e estou ficando menos pop. Caetano: A ideia inicial desde, sei lá, os tempo é megaviciante, você quer saber o que quatorze anos de idade, era ser músico. E eu vai acontecer com aquelas pessoas. É um Vinícius: E música? teria sido músico. Não fosse uma lesão, eu teria novelão. A gente está vendo, não sabe se vai Caetano: Pior ainda. Hoje faz uns cinco ou seis ficado no conservatório feliz e contente, sem encarar até o final, não, mas a gente está por anos que eu estou me tornando quase duvidar de nada. E como a Sandra me fez ver, enquanto indo bem. Eu não tenho grandes patologicamente incapaz de ouvir música pop. ela que insistia em dizer isto e ela que me escrúpulos, não, cara, com essa coisa do pop ou E eu sempre ouvi muita música pop, eu tive convenceu disto, eu continuo sendo músico. E do não pop. Essa resposta é meio complicada. banda. ela tem razão, porque música é daquele grupo No ano passado, eu tive uma recaída em de atividades que entorta a cabeça da pessoa. romance policial e passei um pedaço lendo Vinícius: Contam as más línguas que existe Você pensa como músico – eu falo daquele romance policial. Montei uma wishlist na uma banda de Letras. músico que estudou e tal, não do cara que toca Amazon só de romances policiais, achei uma Caetano: Foi uma vez só. Quer dizer, não sei se violão em casa –, porque é um reino de porrada de coisas, li um monte de coisa, porque continuou depois, mas foi para um estruturas abstratas que te enviesa o jeito de me deu vontade de ler romance policial de encerramento de uma Semana de Letras. Eu, o pensar. Uma das minhas melhores alunas de novo. Em geral eu leio muito rápido, e romance Max na bateria, o Gustavão, que hoje é linguística até hoje que passaram por aqui, eu policial eu leio doentiamente rápido, então para mim é uma coisa tranquila de se fazer passeando com o cachorro na rua. Juliana: Você teria vergonha de ser visto lendo algo assim? Caetano: Nunca. também tem um quadro muito grande de professor da UTFPR, acho, e mais um menino que carreguei para as coisas que eu faço. pessoas que só leem Harry Potter, daí eu acho que hoje está fazendo doutorado. até compreensível. Eu não tenho muito Suelen: E que tipo de aluno você era na problema com isso, não. Agora, a bem da Suelen: E qual era o estilo dessa banda? graduação? Você se envolvia com política verdade, não sei se é a idade, começa a rolar Caetano: Era mais blues. estudantil? uma sensação de novo de perda de tempo. Hoje Caetano: Não. No nosso tempo o centro eu não consigo mais ler Agatha Christie nem Suelen: Então ainda era um pouco cult, não acadêmico estava praticamente morto. Tinha Sherlock Holmes, que eu já li e tal, porque eu tão pop. havido uma geração que tem fama até hoje, penso “pô, poderia estar lendo coisa melhor”. Caetano:Não, mas o que a gente fazia, o que a uma geração meio gloriosa do tempo em que o Rola uma sensação de culpa um pouco, que é minha banda – isso vocês vão por, né [risos] – Marcelo Sandmann e o Paulo Soethe estavam profissional. Ler ficção por diversão já rola uma propriamente fazia era mais tosco. Era uma no centro acadêmico.Eles são anteriores a mim. sensação de culpa, eu deveria estar lendo crítica coisa meio punk, meio pub rock inglês. E a Na minha época, eu estava morto, confesso que literária e tal. gente fazia umas versões em português de coisas não tinha nenhum interesse. O CAL estava bizarras, tipo Toy Dolls. A gente tinha uma tentando se reerguer. Quando eu cheguei, Juliana: Acho que acontece o contrário. A fixação por Toy Dolls e fazia versões em tinha centro acadêmico, teve uma recepção e gente perde um pouco a vontade de ler português, eu e o meu irmão, a gente que tal, mas não tinha grandes atividades, não tinha literatura no curso, porque tudo tem que ser escrevia as letras e se divertia horrores. A gente uma sede, nada. Não me envolvia muito com uma coisa profunda. tocava junto desde os vinte anos, mas no final isso nada, não. Frequentava as aulas, mas Caetano: Mas para mim é uma coisa de quase manifesto pessoal. Eu sempre fiz questão de era uma banda de tiozinhos. Uma vez por também não era nenhum modelo de presença. nunca parar de ler ficção e nunca parei, desde semana a gente ia lá para suar e gastar dinheiro em estúdio. A gente nem tocava mais ao vivo Suelen: Na grade que você pegou como que entrei como aluno de graduação. E não é só estudante tinha Língua Portuguesa V? uma obrigação do tipo “Deus não gosta, a quase, mas chegou uma hora que não deu mais. Os horários não batem mais, todo mundo tem Caetano: Não com esse nome. Tinha Língua academia não gosta”, de repente eu não tenho Portuguesa IV, que a princípio era linguística mais essa vontade. Eu li um romance bocó filho, todo mundo tem emprego, todo mundo tem rotina diferente, não rola. Eu e meu irmão histórica do português, mas a gente fazia com o americano mês passado e, assim que eu 16 ‘‘ PPESSOAL. ARA MIM É UMA COISA DE QUASE MANIFESTO EU SEMPRE FIZ QUESTÃO DE NUNCA PARAR DE LER FICÇÃO E NUNCA PAREI, DESDE QUE ENTREI COMO ALUNO DE GRADUAÇÃO. ‘‘ Vinicius: É que tem uma valoração. Se passa um aluno de Letras lendo Harry Potter, você consegue ver os olhares negativos de outros alunos. Caetano: Até imagino que tenha, cara. Mas o problema é estava dando Língua V para ela, e você sabe aquele aluno que você fala e de repente você vê que tem uma pessoa que está entendendo as coisas, que está percebendo os problemas profundos, a pessoa que abre o olho na hora certa? Eu fui descobrir que a menina veio de conservatório. Os músicos têm uma cabeça diferente. Ruim para muita coisa, os músicos tendem a ser muito toscos em termos de cultura geral, eu vivi em conservatório e a gente sabe disso bem, mas eles têm uma cabeça privilegiada para certas coisas. E professor Sandmann, o pai do Marcelo e da que ler o livro do Cristóvão, porque tem um chamaram para ser júri no primeiro ano. Eu Ludmila, e ele era muito mais ligado à professor de filologia de 70 anos e tal”. O não podia me inscrever. Quando eu fui parte do morfologia. Acabava virando uma morfologia assunto, sim. Fui eu que emprestei o livro para júri de conto, vi que o nível da produção dos histórica, uma disciplina bem diferente da que o Cristóvão tirar os exemplos, fui eu e Faraco inscritos era bacana, mas que não era nada de a gente faz hoje. que lemos para dar uma copydeskada no outro mundo. Na verdade, a gente premiou um negócio e tal. Do assunto, sim, tem uma livro do José Roberto Torero, profissional, um Suelen: Você imaginava que ia ser, de certa familiaridade. Teve momentos em que eu ousei livro bom e tal, mas eu falei “olha, daria para forma, o herdeiro do professor Sandmann? dar uns pitacos quando eu li o livro, dizendo ficar aqui entre os cinco ou seis se eu fizesse Caetano: Eu imaginava que ia ser o herdeiro “cara, nesse momento, alguém com essa cabeça naquele ano”. No ano seguinte, eu inscrevi o do padre Afonso. Eu fiz disciplina com ele logo não deixaria de pensar x” ou tipo “a etimologia livro de poesia e catei uns contos que eu nem cedo. Em 1993 fiz aquela optativa e em 1994 desta palavra é muito legal”. tinha me dado conta de que tinha escrito ao fiz filologia românica. Eu adiantei só para fazer longo dos anos, um aqui, outro ali. Juntei com ele, que estava se aposentando. Ele se Vinícius: Puxando o gancho do Cristóvão aquilo, dei uma engordada para chegar no aposentou logo depois, no meio da minha Tezza, como é o Caetano escritor? número mínimo de páginas e mandei. Eu graduação. Eu sabia que havia um claro, e esse Caetano: O Caetano escritor não existe. achava que tinha chance na poesia e que conto claro não foi preenchido. O Faraco ficou dando era um tiro no escuro. Acabou que eu ganhei no linguística românica durante esse tempo, e ele Juliana: Mas não escreveu um livro de de contos e o de poesia não foi nem estava para se aposentar também. Nunca contos? mencionado. Então, naquele momento, falei imaginei que eu ia ser professor da Federal. Eu Caetano: Não. Eu escrevi um livro, nem bem “chega com a história da poesia, de fato isso não imaginava que eu ia fazer o que o padre Afonso escrevi um livro. interessa para ninguém”. Se me der vontade fazia, isso eu gosto de fazer em qualquer lugar. daqui a cinco anos de escrever uma poesia, eu Vinícius: E poesia? Eu tenho um pedido escrevo, se eu quiser até publicar no jornal, Suelen: Pregar? para fazer também, eu ia fazer no final, mas publico. Mas agora, de repente, as pessoas Caetano: Não, o padre Afonso não pregava. vou fazer já. A gente gostaria de fazer um acham que eu sou escritor de contos, mas não é convite para você publicar na próxima esse o caso, cara. Eu escrevi aqueles vinte contos Vinícius: Influenciar pessoas? [Risos] edição do Boca um poema seu. ali. Agora eu precisei aumentar um pouco, Caetano: Dar aula desse negócio, isso eu Caetano:Não, não, eu matei essa parte. porque a Companhia pediu para eu aumentar achava legal. Mas a Federal nunca tinha para publicar, acho que vai ter uns trinta contos passado pela minha cabeça. É muito diferente, Suelen: Como assim? Você queimou ou no livro final, mas de fato não sei se tenho cara. Hoje vocês entram aqui e, alguns de vocês uma coisa assim? pelo menos, já têm a noção do que é uma Caetano: Arre, vou ser primitivo assim de carreira de professor de Ensino Superior, o que queimar um computador? [Risos] Vamos por o mestrado e o doutorado representam. O partes, então. Desde a graduação eu escrevia nosso tempo era muito amadorístico, sério. poemas, nunca diria que eu era ou sou poeta, Entrei no mestrado basicamente porque eu escrevia poemas ocasionalmente, muito tinha feito uma IC na linguística histórica com ocasionalmente. Nunca escrevi como hábito, a professora Odete. Chegou um momento como rotina, como nada. Nos últimos vinte meio patético em que eu sentei com ela e falei anos eu devo ter escrito, sei lá, cinquenta “me explique o mundo, porque eu estou poemas, alguns bem ruins, na verdade. Nunca fazendo a IC com você na linguística histórica, escrevi como hábito. É uma coisa que de vez em acho mó legal, mas eu gosto muito de quando me dava uma vontade, pensava “acho literatura, vou bem na literatura, tenho um que isso aqui vai ficar legal” e a coisa não saía desempenho legal e tal, o que você acha que eu muito da minha cabeça. Teve, por exemplo, um devo fazer no mestrado?”. Olha que ridículo, poema que saiu na Folha de S. Paulo faz uns três né, cheguei para a orientadora e ela me deu a anos. Na minha cabeça o poema se chama resposta que, de novo, salvou a minha vida. Eu “Lepanto”, mas saiu como “Já que além das ia fazer Saramago se fosse o meu mestrado. Ela flores brancas”. Aquele poema foi assim: teve lá falou “você vai fazer o mestrado em Saramago, um motivo para eu escrever, e a coisa ficou uma vai ser você e mais duzentos. Você vai fazer um semana rodando na minha cabeça, daí eu falei mestrado em linguística histórica do romeno “vou ter que pôr essa merda no papel, senão não vai ser só você. Na hora que tiver um concurso, vai me deixar em paz”, daí fiz. Mas de lá para cá você vai ter um diferencial na mão”. Nunca não escrevi mais nada, faz uns três ou quatro tinha pensado em concurso, falei “pô, deve ser anos. Fazia eventualmente e mostrava para bom isso aí que ela falou”, me inscrevi para algumas pessoas, mas as reações sempre foram fazer o mestrado na histórica. Um ano depois o muito “argh”. Quando eu comecei a ter uma Faraco se aposentou. Na verdade, eu entrei na intimidade com o pessoal da Companhia das vaga do mestre. Letras, eu mostrei para eles o original, perguntei “vocês têm interesse?”. E a resposta Suelen: O último livro do Cristóvão Tezza, deles basicamente foi “ninguém teria interesse que traz inclusive agradecimentos às suas nisso, isso é muito hermético, incompreensível leituras, tem como protagonista um e desagradável, ninguém quer”. professor de filologia românica. Você se identifica em alguma coisa com aquele Juliana: Publicar poesia já é difícil... personagem? Caetano: E ainda sem nenhum interesse... Caetano: Não, é outra geração, outro mundo. Falei “tá”. Quando apareceu o Prêmio Paraná, Acho que tem mais a ver com a geração do falei “vou me dar uma última chance, vou Fiorin e do Faraco, o pessoal que viveu aquilo. inscrever o meu livro de poesia, se não ganhar O próprio Fiorin me escreveu dizendo “tenho nada eu enterro a carreira”. Só que daí me ‘‘ ‘‘ÚSICA É DAQUELE GRUPO MDE ATIVIDADES QUE ENTORTA A CABEÇA DA PESSOA. VOCÊ PENSA COMO MÚSICO [...], PORQUE É UM REINO DE ESTRUTURAS ABSTRATAS QUE TE ENVIESA O JEITO DE PENSAR. 17
  • 10. muito mais para fazer além daquilo. Acho que Eu gosto de enigma, eu gosto de forma, gosto resenha ruim. Tenho contato com ele até hoje, aquilo não é ruim, acho que é legal, eu gosto. de estrutura. É até uma conversa comum lá em acho que faz dez anos essa história. Mas foi Eu acho legal que eu consegui gostar daquelas casa: a Sandra e eu vamos ver um filme, ela minha primeira resenha, dizia “o tradutor pesa coisas e outras pessoas teriam algum interesse percebe todas as ressonâncias históricas do na mão”, o tipo de crítica que eu recebo às vezes por elas. O problema da poesia é que eu gosto tema, e eu percebo “pô, você viu que o primeiro até hoje. muito das coisas que eu escrevo, mas só eu e o terceiro ato tinham a mesma duração e que [risos]. tinha a mesma cena que recorria três vezes a Suelen: A questão de adaptar, é isso? cada meia hora do filme?”. Eu vejo estruturas. Caetano:Não sei, uma questão que eu chamo, quando estou de bom humor comigo mesmo, OAMADORÍSTICO, SÉRIO. VOCÊ CHEGAVA NO FINAL DO CURSO, E DE REPENTE UM OU DOIS PROFESSORES DIZIAM 'PUXA, VOCÊ PODERIA FAZER O MESTRADO'. EU NUNCA TINHA PENSADO NESSA POSSIBILIDADE, NO QUE QUER DIZER FAZER UM MESTRADO. ‘‘ ‘‘ AZIA [POESIA] Juliana: Nossa, você é muito Mário de uma espécie de responsabilidade, de chamar a Andrade para mim. Eu estou na pira de responsabilidade. Muito frequentemente os Mário de Andrade, estou estudando as tradutores podem pecar por excesso de estruturas dele. humildade, por excesso de servilismo, com essa Caetano: Ah, é? Já não basta me dizerem que conversa de “não, eu sou apenas o porta-voz do eu pareço o Mário de Andrade? [Risos] autor”. Você não consegue um bom resultado assim. Para conseguir um bom resultado, você Suelen: E você gosta dessa comparação? tem que chamar a responsabilidade, matar no Caetano: A coisa física? Eu já deixei de me peito e dizer “eu vou fazer essa merda e vou incomodar. escrever bem, porque sei escrever romance direito”. O leitor não está se importando se Juliana: Mas por que se incomodar? você é servil ou não, o leitor quer saber se você Caetano: Não, nunca teria me incomodado, escreve bem português, é isso que o leitor vai eu achava engraçado só. Mas, à medida que eu ver. Um bom texto, bonito, fluente ou feio, do fui ficando velho e que eu fui ficando careca, jeito que o autor tiver decidido que aquilo vai ‘‘ ‘‘ NOSSO TEMPO ERA MUITO Vinícius: Por que não publicar isso no isso foi ficando mais frequente. Teve um ser. Para mim é superparadoxal. Normalmente Boca? momento na Abralic de São Paulo que era o grande elogio para mim é quando a pessoa Caetano: Não, vai estragar o jornal. Aquilo é constrangedor. A gente andava pelos elogia o autor: “a bela prosa de fulano, num muito estranho, realmente não tem nenhum corredores e vinham desconhecidos apertar estilo refinado”. Não é a prosa de fulano que interesse. minha mão e diziam “alguém já te disse?”. E eu você está lendo, é a minha prosa e que bom que “já, alguém já me disse, não precisa nem você acha legal. Suelen: Estranho como? Tente descrever perguntar o que você quer me dizer”. Mas o para a gente essa estranheza. momento mais legal foi no Prêmio Paraná, no Juliana: É diferente da revisão, né, em que o Caetano: Não sei te dizer, cara. Eu acho que primeiro, em que o vencedor de romance foi o revisor evita aparecer. tem duas graças de escrever poesia para mim. Alexandre Vidal Porto. Deem uma googleda na Caetano: O tradutor, na minha opinião, é Uma é a coisa estritamente formal e sonora, e cara dele. Ele é diplomata e estava em Tóquio e paradoxal. Quanto mais ele tentar se apagar, isso já me abre uma porta muito grande para veio para cá só para receber o prêmio, achei mais ele vai aparecer, porque ele vai fazer “estou cagando para o sentido do poema, eu uma puta honra, uma puta demonstração de merda, ele vai deixar o original transparecer. O quero que ele soe do jeito que eu quero que ele respeito dele. Ele estava lá, vieram me tradutor que se apaga vai deixar o texto com soe”. Em geral, não escrevia com metro fixo apresentar, a gente apertou a mão, parou e ficou cara de traduzido, vai deixar o texto com cara nem com rima fixa nem nada, mas as se olhando. Aí eu olhei para ele e falei “você está da língua original, vai deixar o texto com aquela preocupações eram estritamente de como eu pensando qual de nós dois é mais parecido com cara de um texto literário de segunda ordem. O queria que aquilo soasse, que barulho aquilo o Mário de Andrade, né?”. Ele falou t e x t o l i t e r á r i o q u e é t r a d u z i d o teria – cabeça de músico. E a outra coisa de que “exatamente” [risos]. É superpatético, fiquei transparentemente fica com cara de “estou eu gostava muito era usar poesia para falar de pensando “é ele que parece mais com o Mário lendo a second best thing, não estou lendo o alguma coisa de um jeito absolutamente de Andrade”. original”. O tradutor que se afirma, que tem incompreensível. Para mim era um grande uma certa pretensão, uma certa confiança no prazer, por exemplo, vou falar de dor de barriga FEVENTUALMENTE seu taco, diz “não, eu sei escrever o negócio, vou (nunca fiz isso), mas de um jeito que as pessoas fazer”. Óbvio que ele continua com a não consigam perceber que é de dor de barriga E consciência de que está escrevendo o livro de que se trata, conseguir tirar alguma coisa dali MOSTRAVA PARA ALGUMAS outra pessoa, mas veja a terminologia que seja a abstração de uma descrição. Tipo esse PESSOAS, MAS AS REAÇÕES SEMPRE “escrevendo o livro de outra pessoa”, ele tem poema da Folha, esse “Lepanto”, tem a palavra FORAM MUITO 'ARGH'. que obedecer a níveis de registro, tipos de “Lepanto” que ajuda, mas é sobre um quadro escolhas, estilo de cada um. Mas o cara que que eu vi no museu e achei bacana. Mas não chama a responsabilidade, “não, vou fazer isso vou dizer “vi um quadro e tal”. Escrevo coisas porque eu sei fazer, vou fazer direito e eu tenho abstratas, cores e formas. Isso eu acho muito Suelen: E falando em se incomodar, você já que encarar isso com a minha capacidade legal e é infantil, né, totalmente infantil: “que recebeu alguma crítica ruim sobre o seu textual”, esse cara vai aparecer mais. Fulano vai legal, fiz uma coisa que ninguém entende”. trabalho? ler e vai dizer “não, fulano fez isso e fez aquilo”. Caetano: Ô, de monte! [Pausa] Não, de É que nem juiz de futebol. O juiz de futebol, Suelen: Indo para um lado um pouco monte, não [risos]. Na verdade, a primeira para desaparecer, tem que estar muito psicanalítico, parece que tem relação com o resenha que publicaram de uma tradução convicto, muito seguro, muito cheio de si. seu passatempo de fazer palavras cruzadas, minha, foi da minha primeira tradução, falava tem a coisa do enigma e de decifrar, só que mal dela. Foi no Rascunho, aqui. E, Suelen: Como é a sua relação com o ao contrário, você não está decifrando, está curiosamente, na hora em que saiu a resenha, Cristóvão Tezza? Vocês estão sempre lendo cifrando. eu fiquei muito agradecido e pensei “pô, o cara o trabalho um do outro? Fazem críticas Caetano: Total. É uma coisa que até brigo um leu a tradução atentamente, apontou ferozes ao outro ou rola um coleguismo? pouco às vezes comigo mesmo, porque a minha problemas aqui”. Eu pedi o contato de Caetano: Não, cara. Críticas ferozes nem tem relação com literatura é muito pautada por isso. resenhista e escrevi para ele para agradecer a motivo para fazer. A gente teve uma grande 18 ‘‘ ‘‘ MOS UITO FREQUENTEMENTE TRADUTORES PODEM PECAR POR EXCESSO DE HUMILDADE, POR EXCESSO DE SERVILISMO, COM ESSA CONVERSA DE 'NÃO, EU SOU APENAS O PORTA-VOZ DO AUTOR'. VOCÊ NÃO CONSEGUE UM BOM RESULTADO ‘‘ ASSIM. OOPINIÃO, TRADUTOR, NA MINHA É PARADOXAL. QUANTO MAIS ELE TENTAR SE APAGAR, MAIS ELE VAI APARECER, PORQUE ELE VAI FAZER MERDA, ELE VAI DEIXAR O ORIGINAL TRANSPARECER. ‘‘ internacional de Bakhtin em 2004. Assim, a gente bateu num ponto teórico lá e trocou umas farpas no melhor estilo “bons amigos”. Eu já morava lá no prédio do lado dele, mas foi a única vez que nós discordamos sobre alguma coisa. O Cristóvão é das pessoas mais generosas da face da Terra, é um negócio assustador. Ele é uma das criaturas mais felizes e contentes e abertas do mundo, é incrível. A reação das pessoas ao ver o Cristóvão é muito legal. A casa dele está sempre cheia de gente, todo mundo que passa em Curitiba vai lá fazer um tour literário, todo mundo vai como via-crúcis na casa do Cristóvão, e é um prazer para todo mundo. Ele chama fulano e ele chama alguém para ficar junto com fulano. Tipo, Coetzee foi almoçar na casa dele e ele chamou a gente, porque ele precisava de mais gente que falasse inglês para manter a conversa andando. Ele está sempre cheio de gente em volta dele, sempre feliz e contente e, o que eu disse, é uma figura muito generosa. Foi ele que me botou para traduzir comercialmente, porque ele disse “você precisa traduzir para as editoras e tal”. Suelen: E o Paulo Henriques Britto? Você primeiro entrou na Companhia e depois conheceu ele, ou foi o contrário? Caetano: Foi mais ou menos. Eu conhecia ele universitariamente, ele tinha vindo aqui para um evento, convidado pelo Maurício, e fui eu que fiz o meio de campo, fui pegar ele no aeroporto e tal. Tinha conhecido ele pessoalmente ali. Eu entrei na Companhia sem passar por ele. Depois fui descobrir que não foi tão sem passar por ele, porque foi uma história bem mais tortuosa. Eu tinha feito um livro para a Rocco que a editora nunca publicou. Aí vim a saber depois que a Companhia comprou os direitos daquele livro. Eu pedi o contato para um amigo da imprensa daqui para escrever para a Companhia para dizer “olha, eu posso refazer a tradução para vocês”, porque eu queria que o livro fosse publicado, aliás, não foi até hoje. Suelen: Que livro era? Caetano: Os contos completos do Saul Bellow. Setecentas laudas que a Rocco me pagou e nunca publicou. Aí eu mandei o texto e eles falaram “não, não queremos publicar os contos”, mas o André Conti, que é o editor com quem eu mais trabalho até hoje, falou “se você quiser, dá uma revisada num dos contos e me manda que eu considero um teste para você trabalhar para a gente”. Falei “tá bom”. Mandei e, a partir daí, comecei a trabalhar para eles. Eu achava que eu tinha entrado na Companhia só por causa disso, muito depois eu soube que eles deram uma sondada com o Britto. Eles perguntaram ‘‘quem é esse cara que diz que traduziu o Joyce e tal?”, devem ter procurado no Google, alguma coisa assim. E o Britto já tinha notícia da minha tradução, já tinha me conhecido aqui, falou “dá uma chance para ele”. Porque eu achei muito estranha essa história, muito fácil. E foi tudo muito fácil um pouco porque o Britto intercedeu. É outra dessas histórias. Eu sou uma criatura de muita sorte. Minha trajetória acadêmica ou profissional sempre foi muito cheia de encontros com gente muito generosa. Os meus dois orientadores foram pessoas centrais para qualquer coisa que eu tenha feito na vida, a figura do Cristóvão, sem nem falar a Sandra, que não vale. O Britto foi outra dessas figuras, ele é tipo um santo para mim, total santo padroeiro mesmo. E o trabalho que a gente fez com o Ulysses lá na casa dele, o tempo que ele dedicou àquilo para mim é um negócio sem qualquer possibilidade de paga, preço ou que quer que seja. Suelen: Bom, a gente já falou do escritor, do poeta, do músico, do tradutor, do pesquisador... Caetano: Ex-poeta, ex-músico... Mário de Andrade Caetano Galindo em entrevista exclusiva para o maior e melhor jornal Boca do Inferno. 19 Assionara Souza é escritora e finge que sabe desenhar.
  • 11. Suelen: ... mas falta falar do vice- não podia deixar aquilo às moscas. Só tinha a vi na seleção, nunca vi os caras jogarem, não sei coordenador. Como que você foi se meter gente, vai a gente. O João foi lá para o sacrifício, de nada. Mas Copa do Mundo é Copa do nessa enrascada? está dando conta do recado perfeitissimamente, Mundo e eu sou totalmente bocó e infantil. Caetano: Como que eu caí nessa, né? Uai! e eu estou fazendo o possível para não atrapalhar Assim, tem gente que diz “vamos torcer contra o Acontece o seguinte, cara, é o lado excelente e o demais e para colaborar no que eu posso ali, mas Brasil”. Que se foda, a partir de amanhã eu sou lado horrível de uma universidade pública, de a coordenação de Letras é um negócio bocó neymarete. Se me derem uma camiseta uma federal: o fato de que a gente não tem uma inconcebivelmente confuso. verde e amarela, eu ponho. Eu sou simplório casta de administradores, o fato de que a gente neste sentido, nunca tive problema. E veja, eu tem que tocar o barco. É o lado ruim, porque Juliana: Caetano, o que você acha do curso de cresci durante a ditadura militar, meu pai é obviamente, como eu costumo dizer às pessoas, Letras que a gente tem aqui no geral? Se a sua hiperpolitizado, meu pai é um cara ranzinzão um concurso para professor de Letras filha chegasse e dissesse “quero fazer Letras”, desse tipo até hoje: “ah, a seleção é manipulada, a automaticamente seleciona os piores você deixaria? mídia usa a seleção para manipular este país”, administradores do mundo [risos]. São pessoas Caetano: Essa é outra história. Porque a minha torce contra nos jogos e não sei o que mais. Para que leem romances, são pessoas que fazem a filha eu gostaria que fizesse Letras, mas ela não mim é simples e bocó. Sou da geração árvore sintática. E a gente tem que tocar o quer. Eu até entendo. Ela fica meio de saco traumatizada do Telê Santana, achava que negócio, tem que tocar o departamento, a cheio, porque já teve aula com vários ex-alunos nunca ia ganhar uma Copa do Mundo. A partir coordenação, tem que fazer comissão disso, meus e tal. As pessoas ficam esperando que, de amanhã sou bocó, estou feliz e contente, e comissão daquilo. Lógico que a gente não porque ela é minha filha, ela tem os meus viva Neymar para todo o sempre! nasceu para isso, lógico que não tem quase interesses, e não é o caso. Ela é outra pessoa, faz ninguém com vontade de fazer isso, mas para outras coisas, e eu até acho saudável que ela Juliana: Uma pergunta que sugeriram no mim é uma questão meio de serviço militar, queira sair da sombra. Facebook, o que você está lendo hoje? acho que a gente tem que cumprir. Tenho Caetano: Hoje, neste momento? Submundo, do certeza de que, se todos os professores se dessem Vinícius: Então não vai ter uma dinastia Don DeLillo. ao trabalho de cumprir essa parcela, a nossa vida Galindo? seria muito fácil. Nós somos 33 professores do Caetano: Não vai ter uma dinastia Galindo, Vinícius: Uma pergunta comum é “que livro Delin. Se todo mundo fosse chefe durante dois não. A Beatriz faz vestibular este ano, né, mas ela o entrevistado recomenda?”, mas que livro anos, nem ia dar para todo mundo ser chefe não quis fazer isso aqui, não. Jamais diria para você não recomenda? durante dois anos, era um revezamento ela não fazer Letras. Primeiro porque eu acho Caetano: Que livro eu recomendo eu ia dizer tranquilo, cada um era uma vez e pronto, mas que, no geral, é uma escolha, e eu não pensava Ulysses. Que livro eu não recomendo? Ficção? não é todo mundo que aceita. Eu até quando fiz, porque simplesmente não pensava Esse livro besta que eu li no mês passado é um compreendo, tem certos perfis, por exemplo, eu no assunto, mas eu acho que é uma escolha que eu não recomendo, chama Absurdistão, de não ia conseguir ser coordenador, ia ser demais profissional muito segura fazer Letras. Você não um cara chamado Gary Shteyngart, um russo para a minha cabeça. Mas eu fui vice-diretor do vai ficar rico? Não vai. Mas você não vai ficar que mora nos Estados Unidos. Todos dizem Celin, eu fui suplente de departamento, chefe de desempregado, não vai morrer de fome, não vai “grande sátira”, mas achei muito bocó, não departamento. A coordenação foi assim, cara. O para a indigência. Segundo, eu acho que em recomendo a ninguém. Márcio tinha que sair, o coitado, senão ele ia termos subjetivos que a gente tem um curso mofar lá dentro. Ele fez tudo o que podia para muito bom hoje. Eu acho que em algumas Vinícius: E The game of thrones, vai ler? gerar a melhor situação de transição possível, a habilitações talvez haja certos problemas a se Caetano: Nem a pau! Tenho coisa melhor para coordenação está com funcionários, está com resolverem, mas acho que, na média possível e fazer da vida. Oito mil páginas de história de uma rotina de funcionamento estabelecida. real, eu diria que temos um curso excelente, e as dragão? Não, obrigado. Completamente diferente do que ele e a Eva avaliações gerais sempre dão conta disso. pegaram quando chegaram lá. Só que, mesmo Suelen: Cuidado, porque você é muito assim, ninguém queria encarar o trabalho. Ele Vinícius: Qual a sua opinião sobre a Copa do influente e vai destruir a carreira desses me convidou para ser coordenador, e eu falei mundo? Caetano é futebolístico? escritores. “Márcio, desculpa, eu não vou conseguir”. Para Caetano: Caetano não é nada futebolístico, não Caetano: Vou acabar com o Martin, ele vai mim é demais aquilo, aliás, para qualquer ser vê futebol. sofrer muito por minha causa [risos]. Não, não humano é demais aquilo. A coordenação de pretendo ler. Até em alguns momentos confesso Letras é um negócio astronômico. Ele falou “tá, Suelen: Não torce para ninguém? que pensei “hum, será que?”, porque eu tenho tudo bem” e continuou indo atrás de gente, mas Caetano: Não, a prova de que eu não entendo neura de olhar o IMDB depois que vejo os não achava ninguém. Na véspera do final do nada de futebol é que eu torço para o Coritiba episódios, e às vezes diz “no livro isso é diferente” prazo de inscrição, ele me liga em casa e fala “o [risos]. Mas isso é carga genética, meu pai e eu penso “nossa, valia a pena ler?”, mas eu João aceitou a coordenação, mas não tem educou a gente como coxa e a gente é coxa. Vai tenho que ler o Knausgård antes. Eu tenho que ninguém para ser vice. Você aceita ser vice?”. Eu fazer o que? Não tem o que fazer. Mas não ler o Proust! Eu tenho 40 anos de idade e não li o falei “tá, dá para fazer”. Além de respeito pelo acompanho nada, não vejo nada. 90% dos Proust. Você acha que vou passar o Martin na curso e tal, rolava um respeito pelo Márcio ali, jogadores da seleção eu só sei quem são porque frente do Proust? Não vou! Marina Tortelli, gaúcha que mora em Curitiba há 6 anos. Cursa Fotografia na Universidade Tuiuti do Paraná e é completamente apaixonada pela profissão. Seu trabalho pode ser visto na página do Facebook, O Que Marina vê (fb.com/MarinaTortelliFotografia). UMA AVENTURA UNIVERSAL ão são poucos os livros que sofre com problemas de comportamento lugar no mundo. Nbuscam inspiração em Alice no na escola e que gosta de chocolate e do A temática da passagem da país das maravilhas e que mar. Porém, a experiência ao lado de infância para a vida adulta não é narram sagas incríveis, repletas de Felix o levará a investigar seu próprio novidade para Grossman. O autor já aventura e fantasia. É o caso de Garoto passado e descobrir segredos sobre sua retratou o tema em outras duas obras, Zigue-Zague, escrito em 1994 pelo família que mudarão toda a sua vida. Duelo e Ver: amor, ambas publicadas no israelense David Grossman e lançado no Tudo indica que o leitor está Brasil. Em Garoto Zigue-Zague, Brasil neste ano pela Companhia das diante de um livro infanto-juvenil, Grossman coloca um menino de quase Letras. O livro mescla elementos porém esta seria uma primeira impressão treze anos diante de importantes extraordinários a situações bastante reais errônea. O narrador de Garoto Zigue- questões e decisões. Em sua aventura, para lembrar o leitor da aventura que é Zague é o próprio Nono, já adulto, que Nono entenderá que os limites entre o crescer e tornar-se adulto. relembra a aventura vivida dias antes de certo e o errado são muito mais frágeis e Tal qual Alice, o garoto Nono é seu bar mitzvah. Contudo, o que muito mais complexos na vida adulta. E conduzido a um mundo bem diferente do interessa não é exatamente o que fica claro o quão confuso o menino se seu, no qual se depara com uma série de aconteceu com o menino, mas sim as sentia diante dessa nova perspectiva de pessoas e situações fantásticas. A poucos questões reveladas ao longo desses ver e compreender o mundo e o quanto a dias de seu bar mitzvah, Nono embarca acontecimentos. O leitor até pode experiência foi enriquecedora para sua em um trem de Jerusalém a Haifa com o encarar a obra como um livro de vida. objetivo receber conselhos de um tio não aventura, mas Grossman vai além. O que Vale destacar a estrutura muito querido. A viagem é uma exigência ele explora é a complexidade das relações narrativa de Garoto Zigue-Zague. Escrita do pai do garoto, Iacov, e de sua humanas. Conforme a história se de modo não-linear, aos poucos a obra companheira Gabi – que cuida do garoto desenrola, Nono é “empurrado” ao revela pistas e fatos importantes para a desde que a mãe dele, Zohara, morreu. A mundo adulto e começa a entender e compreensão da complexidade de cada princípio, o passeio parece um presente viver algumas dessas questões, como o personagem. Grossman esforça-se para de grego de Iacov, detetive e maior herói difícil relacionamento entre Iacov e Gabi atrair o leitor ao universo criado no livro de Nono. Porém, Nono nunca chegará a ( e l e n u n c a q u i s a s s u m i r o (o que ele faz com maestria no romance A seu destino previsto. Ainda no trem, ele relacionamento com a companheira, que mulher foge – um livro que vale muito, conhecerá Felix Glick, um sujeito que, ameaçava, assim, abandoná-lo), as muito a pena). O leitor mais atento ou assim como o Coelho Branco de Alice, escolhas de Felix que o levaram a viver com “faro de detetive” consegue desatar atrairá o garoto para viver uma grande como um fugitivo da polícia e longe de os nós e compreender a lógica da trama. aventura. sua amante, a atriz Lola Ciperola. Mas nada que compromete o livro, pois Garoto Zigue-Zague é um O livro atinge seu ponto alto chega-se a um ponto em que o mais romance de formação. Os dois dias de quando Nono descobre a história de interessante não é saber o que vai aventuras narradas no livro não apenas Zohara – até então, ela era para ele apenas acontecer, mas sim como. marcam a passagem de Nono da infância a mulher que o trouxera ao mundo e O resultado é um livro para a vida adulta, como moldam sua morrera em seguida. Grossman traz à cativante. É difícil não se identificar, em personalidade. O que faz o menino cena a figura de alguém muito à frente de alguma medida, com Nono, pois aceitar o convite suspeito de Felix e seu tempo, que jamais se encaixaria na Grossman evoca em cada leitor o garoto desviar sua trajetória é muito menos a recém-nascida Israel e que jamais zigue-zague – aquele que não se promessa de chegar ao seu verdadeiro assumiria o lugar designado às mulheres enquadra em categoria alguma, que presente de bar mitzvah e muito mais a de sua época: esposa e mãe de família. Ou deseja ser livre e que aprende que crescer possibilidade de encontrar a resposta seja, Zohara representa todo um grupo pode ser dolorido, mas é, de fato, para a pergunta que lhe é lançada: “quem de pessoas “desajustadas”, com o qual o libertador. sou eu?”. Até então, Nono acreditava ser próprio Nono se identifica, e ela faz o que um garoto com nada de especial, que todo desajustado tentar fazer: buscar seu 21 Resenha Em Garoto Zigue-Zague, David Grossman conta a história de um menino comum para marcar o rito da passagem para a vida adulta. Carla Cursino Carla Cursino é jornalista e estuda Letras-Francês na UFPR.
  • 12. Textículos Minha primeira vez Chardie Batista ntem foi minha primeira vez, e uma coisa que demore muito, porém, Não vemos a hora de encontrar algum não só isso, foi também a quando acaba, o que se sente é c onhe O c ido ou c onhe c ida pa r a primeira vez da pessoa que indescritível. desabafarmos e falar sobre o ocorrido. estava comigo. Minha amiga. Dá uma moleza nas pernas, o E como tudo na vida tem 22 Não sei como explicar a corpo todo relaxa e fica trêmulo, não sempre uma primeira vez, eu também tive sensação. É uma mistura de medo, conseguimos pensar em nada, a não ser a minha, mas sobre ela posso dizer que apreensão e euforia, um temor interno, sobre o fato ocorrido, ainda mais quando não gostei nem um pouco e aposto que a um calor que incendeia as entranhas. O é a nossa primeira vez e vemos que tudo minha amiga também não deve ter coração acelera num ritmo alucinado e correu bem. gostado. retumbante e também surge um ar de Então cada um descreve Espero não ter que passar por mistério sobre o que vai acontecer e como alguma coisa que sentiu enquanto tudo aquilo outra vez. vai ser. acontecia. Em que momento teve mais Bom, foi assim que na noite É meio estranho quando chega medo, maior apreensão e o que sentiu passada me tornei um homem. Um a nossa hora, porque nós nunca estamos quando soube que aquilo realmente homem que sofreu um assalto numa realmente preparados, e acabamos nos estava acontecendo. esquina qualquer do centro da cidade. preocupando muito mais com a pessoa No final, agradecemos por Perdi alguns pilas, e deixei de lado a ideia que está conosco do que com nós estarmos bem e por os dois terem passado de que estas coisas acontecem apenas com mesmos. e saído dessa numa boa. outras pessoas, e nunca com a gente. Além do mais, não sabemos o Quando voltamos ao que Acho que minha amiga ficou que fazer ao certo. Por isso, tentamos estávamos fazendo antes de termos nossa sem seu celular. acalmá-la, confortá-la, para que no final primeira vez, fitamos as pessoas que Mas ambos saímos ilesos, sem tudo acabe bem para os dois. passam para ver se não são suspeitas ou se nenhum arranhão, exceto, é claro, os E assim vai acontecendo. Não é suspeitam do que ocorreu com a gente. arranhões psicológicos. Chardie Batista nasceu em Curitiba em 1985. Surfa, anda de skate, é formando em Letras pela UFPR, futuro professor. Não tinha nada publicado, essa é a primeira vez. Gosta de filmes, música e literatura. ENTRE A MÃO E O COPO o círculo do copo embebe algo que baudelaire já dizia há muito antes de você sequer ter idade para pedir uma cachaça no bar do seu aluizio. ele embebe uma alma de grito, de veneno e de vício que você, criança, ainda nem sequer cogitou, ergo sum. a boca do inferno do copo começa na tua garganta, vê se aprende. Carolina Bender & Vinícius Figueiredo sse ensaio, às custas de muita nicotina, Etabaco e álcool dissolvido em milho, nasce como uma grama por entre os petits-pavés incertos de uma calçada secular do centro velho de Curitiba. O clique da foto dura mais que o sorver de um copo, o tragar de um marlboro vermelho. As flores da ira e as vinhas do mal vicejam sustentadas por vícios e amores, sinônimos quase que antagônicos. O tremido do embriagado, que se briga com poesia incauta e vertigem em forma de gole, absorve uma noite infinita de noites. Uma garrafa ou duas, dois filmes fotográficos ou três, a noite passa, a noite anda e a fotógrafa e o poeta, rodeados de amigos, gracejam por entre as pessoas que buscam calor na mítica Curitiba gélida de afeto. A lírica simula um tempo quase beatnick, uma aura de anos sessenta ou setenta que ainda reverbera pelos capotes e pelas meias-calças beges das meninas que bebem mais que homens. Um brinde!, além de uma puxada e prensada longa aos vícios, aqui expressos segundo os olhares torpes de Carolina Bender e Vinícius Figueiredo. existe uma selva intricadamente urbana nessa foto, ô pedro. não consegue ver? – guria, só porque o céu é cinza e o concreto nu está pintado de branco e preto? – não, pedro, porra. olha pro mato virgem deflorado, olha pros fios e praquela merda de tênis jogado lá em cima. cadê o bucólico que a gente tanto queria, cadê? Objetiva Uma Curitiba noturna e alguns dos clássicos vícios do homem pretensamente comum vistos sob o olhar de uma câmera 23
  • 13. 25 o contato íntimo entre o lábio sujo de batom lilás e a boca da garrafa de vidro contendo algum líquido alcoólico incolor enumera uma série de fatores x e y que culminam na resposta da vida que eu acabei de esquecer de anotar e agora veja você!, já veio e já foi, como uma frase sem vírgulas, sem pausa para respirar. os olhos de quem vê veem uma corr-[ida-(iqueira-{ enteza}) ], série de coisas que a objetiva não capta. veem os rastros dos ratos que passam a caminho do trabalho, roer queijo e desarmar ratoeiras em vãos empregos conseguidos com o terceiro grau e uma carta de recomendação. veem gatos, veem pombos, pulgas e cães, bichos variados - variáveis. o quê eles [ou eu] viam era uma foto minha, arrancada do álbum e colada no meio fio, enganchada com uma garrafa de álcool e uma carteira de cigarros vazia. foto alheia aos carros, aos animais, à rotina, a minha filosofia de botequim e ao próprio tempo. entre a mão e o copo resta algo a se esquecer, algo a se afogar. loucuras para entornar, sanidades para engendrar. Vinícius Figueiredo é roteirista, contista e poetista nas horas vagas da vida social (virtual) e profissional. Ele ia fazer alguma piada ruim sobre terceira pessoa, mas preferiu dizer que nas horas não-vagas trabalha no Boca do Inferno. Carolina Bender é o heterônimo de Ana Carolina Santos, designer, professora de Arte e fotógrafa. Já expôs no soho de NY City e atualmente se dedica a fotos experimentais e passeios com sua mascote, Mini Pizza. Para conferir o trabalho dela acesse behance.net/anacarolcarolima 24 a pichação agride meu senso de cores bem definido, esse meu defeito no olhar que me obriga a ver claro e escuro separados por uma linha oculta que separa o bem do mal e esconde de mim os gritos de gaza e os gritos dos índios do passado de um país que não é o meu, mas quero muito que fique sendo, então aí penso na ucrânia, na chechênia e nas agruras do sertão africano e também no baiano. devaneios me puxam de volta, reparo nos carros, nos corcéis de aço e explosão elétrica que me protegem do mundo não-civilizado e penso que o meu copo está vazio e o cigarro está no fim, acabando como a letra do grafite que mal se encerra e começa em outra. trago fundo, mas não engulo. eu te fumo num trago, porra. te fumo numa puxada de pulmão vazio, numa só estocada contra o meu peito ardente, cinza e chama, fagulha daquilo que eu sinto por você, ausência mais que plena. me lembro como se fosse ontem, pedro. ele me disse um sorriso, respondi com um verso