Enfim a publicação da Edição 29, que sofreu alguns atrasos devido a imprevistos burocráticos e técnicos.
Boa leitura!
Para maiores informações acesse: www.facebook.com/jornalbocadoinferno
Boca do Inferno, o jornal dos estudantes de Letras da UFPR.
Boca do Inferno 29: Entrevistas e textos dos estudantes de Letras
1. Jornal dos estudantes de Letras da UFPR | Edição 29 | Fevereiro 2016
NESTA EDIÇÃO Amyr Hamud, Bruna Motta, Carla Mota, Daniele Cristyne, Eduardo Salles O. Barra,
Eduardo Soczek, Elizabeth Cristina Froma, Fábio Dantas Amaral Lisbôa da Silva, Gabriel Villatore
Bigardi, Gabriela Ribeiro, Guilherme Bernardes, Iamni Reche, João Arthur Pugsley Grahl, João Vitor G.
Candido, Leda Santos, Luciano Simão, Matheus Hatschbach, Raul Inoue, Rebeca Lessmann, Seul Soldat,
Silvio Menezes da Silva, Tiago Goes Cardoso, Vinícius Figueiredo, Yuria Santamaria Pismel (Di Chiara)
2. Entreevista Índice
03
Editorial
Anna Legroski
Juliana Correa
14
Entre e Vista
João Arthur Pugsley Grahl
Editores do Boca
23
Por um Elitísmo
Inclusivo
Eduardo Salles de O. Barra
32
Semana de Letras
Carla Mota Menezes
04
Raul Inoue
Silvio Menezes da Silva
Guilherme Bernardes
05
Rebeca Lessmann
06
Yuria Santamaria Pismel
07
Iamni Reche
Fábio D. A. Lisbôa da Silva
08
Bruna Motta
09
Matheus Hatschbach
31Tiago Goes Cardoso
Versário
Traduções
10
Vinícuis Lima Figueiredo
11
Guilherme Bernardes
João Vitor G. Candido
12
Elizabeth Cristina Froma
Mario Halley Mora
20
Amyr Hamud
Textículos
18
Eduardo Soczek
22
Carla Mota Menezes
23
Leda Santos
24
Seul Soldat
27
Gabriela Ribeiro
29
Luciano Simão
3. Entre e vistaEditorial
Apesar de demorada, é com enorme prazer que
trazemos à luz esta edição do Boca do Inferno. É uma edição
que representa, antes de tudo, o crescimento do nosso jornal
(nosso mesmo: meu, seu, de todos): recebemos cerca de
130 textos para a seleção (a título de comparação, na edição
passada recebemos pouco mais de 30 textos). É claro que não
foi possível publicar todos eles, devido ao espaço limitado,
mas é certo que cada um deles ajudou a construir esta edição,
mesmo os que não estão sendo publicados agora. A todos os
autores que quiseram participar, fica o nosso agradecimento
e o convite para que continuem mandando os textos para as
próximas edições.
Outro fato que ocorreu nesse meio tempo entre
esta edição e a última foi a inclusão do Boca do Inferno no
acervo de periódicos da Biblioteca Pública do Paraná, o que
representa o reconhecimento do nosso trabalho (tanto dos
editores, autores e colaboradores), que faz com que todo o
esforço tenha valido ainda mais a pena. A isso também somos
gratos e sempre seremos.
Crescemos também no nosso corpo editorial,
que aumentou para 14 pessoas. Temos agora alunos de
licenciaturas e bacharelados em Português, Alemão, Francês,
Espanhol, Grego e Inglês, além do Mestrado em Estudos
Literários. Com certeza a adição dos novos membros, que
são de todos os anos do curso, contribuiu em muito para
o crescimento do jornal. Além disso, demos os primeiros
passos em outros projetos importantes para o futuro do nosso
periódico preferido e que devem aparecer em breve.
O nosso objetivo, desde a edição 27, como membros
do corpo editorial, segue maior do que apenas publicar textos,
mas também oferecer aos nossos alunos a oportunidade de
aprender. Aprender na prática a revisar, diagramar e avaliar
textos com base no que aprendemos na faculdade, aprender a
lidar com as críticas, com as discussões, com os elogios. Espero
que essa experiência tenha sido tão engrandecedora para os
nossos colegas editores como foi para nós duas.
Quando desejamos vida longa ao Boca, desejamos,
principalmente, que a oportunidade de ter um espaço para
a publicação aberta, dos alunos pros alunos, seja mantida.
Tentamos fazer, da melhor maneira que podemos, um jornal-
com-cara-de-revista que une a voz artística dos alunos, seja
por meio das poesias, dos contos, dos artigos, das ilustrações e
de tudo que faz esse jornal ser o que é, e, perdoem a modéstia,
estamos indo bem. Estamos na edição 29 com corpinho de
27 e a certeza de que muitas outras virão. Mas não custa
repetir: vida longa ao Boca!
Vida longa ao Boca!
Anna Legroski
Juliana Correa
Juliana Correa foi uma das editoras-chefe desta
edição do Boca e quase enlouqueceu no processo.
Anna Legroski foi a outra editora-chefe e tentou
ajudar a Juliana a não enlouquecer.
3
4. Versário
RaulInoue
SAL E SOLIDÃO
Eu venho do arco.
Sangrado, singrado a barco.
Sobrevivente carniçal.
Navegante de presságios maus
Que nessa noite azulada,
Perde a bela nau entalhada.
A madeira da proa desintegra.
O estalo que encontra na pedra
Parte o teixo marinado
Enquanto ignoro os gritos do imediato.
Sinto a onda me bofetear.
Um misto de som e tato,
Acompanhado da sensação de devagar.
Imersar na fundura engolidora.
A pilhagem me sobrevoa.
Banham-me colares de rubis,
Taças de ouro, broches de prata vis.
Ainda afundo.
Lembro-me dos amores imundos,
Das mentiras que contei.
Traições, assassínios, beijos que não dei.
Do rapaz da pólvora, meu maior espólio.
Todos somem, fecho os olhos.
E de súbito o naufrágio cessa.
Absorto, amaldiçoo o titã anil.
Berro por cem anos,
Morro depois de mil.
(CÍRCULO EQUILÁTERO)
não
espero
que o mundo
dê as verdades
e certezas que nos
desesperamos a achar
como se existisse sempre
algum padrão escondido com a
pretensão de tirar as dúvidas da
existência pois aqui tudo é caos e eu
[….]
saudade
vazio
leito formado
correndo sem rio
Guilherme
Bernardes
SilvioMenezesdaSilva
BIFURCAÇÃO
para Aion Roloff
Por muito manteve-se em linha reta
(ou pelo menos era assim que via),
até que, para o fim de sua alegria,
por obrigação, seu andar aquieta.
Forçado a seguir somente uma seta,
não imaginou que chegasse o dia
que, qualquer que fosse, a escolha seria
sem linha ou volta, como foi em Creta.
Por não saber onde o perigo espreita,
achou melhor não ir pela direita
e olhou atento para o outro lado.
Temeu que significasse uma perda,
por isso também não foi pela esquerda,
ficando para sempre ali parado.
4
5. Natural de Curitiba e nascido em 1992, Raul
Inoue cursa Letras Português na UFPR.
Faz poesia desde os doze anos e atualmente
treina a arte do desenho livre.
Guilherme Bernardes não faz a barba há anos e
corta as unhas esquerdas antes das direitas. Publica
esporadicamente em reconceber.wordpress.com
Rebeca Lessmann estuda Letras na UFPR. Ama ler e
criar histórias que, eventualmente, viram palavras em
atmosferadeareia.wordpress.com.
Silvio Menezes da Silva. Nascido em 14 de
agosto de 1961 em Lages, SC. Ama os livros
e escreve para poder sentir de perto o encanto
das palavras, e suas múltiplas faces e amadas.
Rebeca
Lessmann
CIRANDA DE PEDRA
Afundei na calçada das cidades empoeiradas.
Arranha-céus engolem constelações
e derrubam esperanças infantis.
Pessoas nas cirandas
fixas por fina pedra
e árvores de
cimento
frio e
sol
5
6. Versário
Yuria Santamaria Pismel
(Di Chiara)
VENTANIA
Cândida luz de teu orvalho
Reflete em plena rua
No cascalho
Desenho em sombras saltitantes
Sobras de vela que flutuam.
Soprar do vento reduz o silêncio
Rancoroso grita ao fogo e à cera
E em seu gozo de seguir cantando
Apaga a chama
E derrama o orvalho
Em sua veloz saideira.
ALENTO
Sobre as cabeças
Lavando os traços
De cada passo,
Luar de outono
Gotas de chuva
Faróis da alma.
Respiro fundo
Sinto-me leve
E acompanhada.
ESSÊNCIA
Teus olhos
Cor de ouro
Refletem o brilho
Fresco
De teu amanhecer.
Yuria Santamaria Pismel adota o nome artístico de Yuria Di Chiara.
Mora em Curitiba é estudante de História na UFPR, poeta e pianista. Para
divulgar sua arte, participa de coletivos literários, saraus de declamação e
varal de paesias. Quer um dia publicar um livro, mas enquanto isso não
ocorre, divulga sua arte na página facebook.com/botoesdeprosa e no blog
botoesdeprosa.wordpress.com
6
7. Iamni Reche
III.
Quando a tua linguagem
Introduzo na boca
Me inventa
Toda a realidade
Com sentidos
Que não alcanço
Enquanto
Os contornos de dentro
Assumem uma intensidade
Que não vai se repetir
O toque arde na pele
Se supondo último
E, súbito,
Outra lágrima
Pende do rosto
Desliza na pele:
O tanto de carícia
Que setembro guarda
Iamni Reche nasceu e cresceu em
Curitiba, de onde escreve o tempo todo.
Fábio Dantas
Amaral Lisbôa
da Silva
AFOGAMENTO
Afogou-se...
Viu a luz se perder
Ao combater a lâmina d’água
E perder o combate.
Todas as coisas ondularam.
Tudo que era plano e reto
Dançou a dança mais sinuosa de todos os tempos
E seus olhos deliraram com o claro do sol.
Tanto se focava no apelo visual daquilo
Que tardou para sentir a agonia chegar
Trazendo-lhe o natural martírio da falta de ar.
Quando deu pelo vazio de seus pulmões
Quase nada mais havia
Senão uma beleza translúcida
Que já distante jazia.
Afogou-se, então;
Bolhas lhe saíram da boca
Sem palavra de despedida.
Afogou-se
Lembrando-se só da beleza
Sem dor, tédio ou agonia.
Fábio Dantas Amaral Lisbôa da Silva, 3 de outubro
de 1990. Escreve mais do que lê. Coleciona discos, tem
mais discos do que relacionamentos. Preza as palavras. É
poeta, historiador e escritor de todas as coisas. Encontre-o
em fabiodalsilva@gmail.com.
Versário
7
8. Versário
Bruna Motta
PASSAGEM
dentro do meu segredo
me aconchego
me refaço de pedra
rochedo rijo que não desata.
preciso do silêncio, do absoluto silêncio
de infinitos de mar ou de mata;
onde imensidões se encontram,
onde desabam as águas das cataratas.
descubro a solidão necessária
para partir
desfazendo-me do tempo e do espaço
e vivendo momentos de íntima ilusão.
sintomas de cansaço.
na singela sinfonia
o corpo vai dançando
em direção aos braços
da natureza agreste.
nos atalhos nos desvios desvarios
é onde está o novo recomeço!
finalmente existo
mesmo que dentro do meu esconderijo existo
fuga vida regozijo
exerço a minha loucura com permissão.
delitos são desfeitos ao som do mantra
a harmonia e o ritmo vão sendo restaurados
o estômago borbulha alvoroçado
as mãos tocam o caminho de veludo
os olhos refletem as estrelas.
da fina linha do equilíbrio
vi meus pés escorregarem.
caio desvairada cega virgem
até me encontrar nas nuvens.
nuvens são escadas rolantes
que desembocam no átrio esquerdo do coração.
lá eu esbarro no cerne de toda a vida
a justificativa.
sou embalada por um sono delicado
repleto de entorpecimento e paralisia.
sentidos e sentimentos se entrelaçam:
duas grandes massas de ar
que se chocam que se rompem que se criam.
- fujo muito daqui, sabia?
Bruna Motta. Aquariana. Estuda Letras.
Publica em sua página Provável Véu da Farsa.
Escreve versos para não soterrar.
8
9. Entre e vistaVersário
nunca fui de ler horrores
de ter estilo próprio
citava influências
referências
todas falsas
quais sabia só frases
nunca senti a beleza
num poema
senti já inveja
ah! a inveja.
não de poema,
não,
de sucesso.
Todavia, me perseguem
os poetas
inapelavelmente cultos que
nada foram senão líricos
quem me dera
ouvir uma voz
humana.
“EU TANTAS VEZES IRRESPONDIVELMENTE PARASITA”
Matheus Hatschbach
Matheus Hatschbach nasceu em novembro de 95, cursa
História e Direito e participou do livro “Desnamorados”.
Publica no blog devaneiostropicais.wordpress.com.
Que vá torta
a maldita linha.
9
10. Traduções
Vinícius Lima Figueiredo
Nascemos para resistir àquilo que o corpo sustenta.
Resistimos ao que veio e resistimos ao que virá,
Resistimos ainda que tenhamos os segundos contados.
Nosso corpo resiste até quinze minutos enforcado.
Resistimos às chicotadas e que nos cortem os dois braços,
Fraturas em qualquer osso: três semanas com um gesso.
Resistimos a todo o tempo às vontades de ir ao banheiro.
Para ver o cometa Halley, tem-se que resistir por setenta anos.
Resistimos à escola, à faculdade, à Academia.
À hora de jantar, resistimos aos arrotos.
O povo de Burundi continua resistindo à fome.
Resistimos por três dias para chegar à Lua.
Resistimos ao frio do ártico, ao calor dos trópicos.
Resistimos, com anticorpos, aos vírus microscópicos.
Resistimos às tormentas, aos furacões, ao clima ruim.
Resistimos a Nagasaki, resistimos a Hiroshima.
Ainda que não queiramos, resistimos às novas leis.
Resistimos, atualmente, que ainda existam reis.
Castigamos o humilde e resistimos ao cruel.
Resistimos a ser escravos por nossa cor de pele.
Resistimos ao capitalismo, ao comunismo, ao socialismo, ao feudalismo,
Resistimos até ao piá-de-prédismo.
Resistimos ao culpado, quando se faz de inocente.
Resistimos, a cada ano, ao nosso merda de presidente.
Pelo que foi e pelo que podia ter sido,
Pelo que há, pelo que pode faltar,
Pelo que virá e por este instante,
Um brinde à resistência
Pelo que foi e pelo que podia ter sido,
Pelo que há, pelo que pode faltar,
Pelo que virá e por este instante,
Levanta o caneco e vamos brindar pela resistência.
Um brinde à resistência!
Resistimos a qualquer tipo de dor, ainda que nos fira.
Resistimos a Pinochet, resistimos a Videla,
A Franco, Mao, a Ríos Montt, a Mugabe,
a Hitler, a Idi Amin, a Stálin, Bush, a Truman, a Ariel Sharón e a Hussein.
Resistimos a mais de vinte campos de concentração.
Quando se nada embaixo d’água, resiste sem respiração.
Para construir uma parede, a revestimos com azulejos.
O que não fuma resiste ao cheiro do cigarro.
Resistimos a que Monsanto infecte nossa comida,
Resistimos ao agente Laranja e aos pesticidas.
Quando navegamos, resistimos ao enjoo.
Resistimos ao salário mínimo e ao desemprego.
Resistimos às Malvinas e à invasão britânica
e, na cidade de Pompeia, resistimos à lava vulcânica.
E dentro da lógica
Da nossa humanidade, acreditamos na mentira de que ninguém
resiste à verdade.
Pelo que foi e pelo que podia ter sido,
Pelo que há, pelo que pode faltar,
Pelo que virá e por este instante,
Levanta o caneco e vamos brindar pela resistência.
Um brinde à resistência!
Resistimos ao ateu, ao mórmon, ao cristão,
Ao budista, ao judeu,
Resistimos ao pagão.
Resistimos ao que vende balas e ao que as dispara,
Resistimos à morte de Lennon, à de Víctor Jara.
Resistimos a muitas guerras, à do Vietnam, à Guerra Fria,
À guerra dos Cem Anos, à Guerra dos Seis Dias.
Que resistam à revanche, viemos ao desquite.
Hoje nosso fígado resiste ao que o balcão insiste!
Pelo que foi e pelo que podia ter sido,
Pelo que há, pelo que pode faltar,
Pelo que virá e por este instante,
Um brinde à resistência.
Pelo que foi e pelo que podia ter sido,
Pelo que há, pelo que pode faltar,
Pelo que virá e por este instante,
Levanta o caneco e vamos brindar pela resistência.
Um brinde à resistência!
Vinícius Lima Figueiredo é, antes de tudo,
um aluno do curso de Letras da UFPR.
A resistência
René Pérez e Eduardo
Cabra, banda Calle 13
Calle 13
10
11. Charles Bukowski
Traduções
Engraçado, né? #2
quando éramos crianças
deitados pelo gramado
de barriga
pra baixo
conversávamos muito
sobre
como
gostaríamos de
morrer
e
todos nós
concordávamos com a
mesma
coisa:
todos nós
gostaríamos de morrer
fodendo
(apesar
de nenhum de nós
ter
fodido
nada ainda)
e agora
que
não somos
mais nem um pouco
crianças
pensamos mais
em
como
não
morrer
e
apesar de
estarmos
prontos
a maioria de
nós
iria
preferir
morrer
sozinho
debaixo dos
lençóis
agora
que
a maioria de
nós
já fodeu
a vida
inteira.
Guilherme Bernardes é aquariano com ascendente
em virgem, mas não acredita em nada dessas coisas.
Publica esporadicamente em reconceber.wordpress.com.
Gottfried Benn
Circulação
O molar solitário de uma puta
que morreu desconhecida
tinha uma obturação de ouro.
Os outros tinham como que por um acordo tácito
caído.
O atendente do necrotério o arrancou,
guardou consigo e saiu pra dançar.
Porque, disse ele,
só terra deve tornar-se terra.
João Vitor G. Candido nasceu em
1989 em Londrina. Formou-se em Letras
Português-Alemão. Atualmente é aluno do
mestrado em Letras da UFPR.
Gottfried Benn (1886-
1956) foi um médico e poeta
alemão. É considerado um
dosmaioresrepresentantesdo
movimento expressionista.
11
13. Quando me mudei para este
casarão velho “...e tempos longínquos e
de sólidas paredes de pedra...”, disseram-
me que aqui havia um fantasma. Tal fato
não me preocupou muito, pois, embora
eu seja imaginativo, sempre pensei que
algo incorpóreo não pudesse fazer muito
estrago, sendo tão somente uma figura
abstrata e assustadora. Logo entenderão o
que aconteceu. Há três noites que durmo
no maior quarto da casa. E não senti a
presença do fantasma, de quem a história
conheço bem. Comentam que é a alma
penada de uma jovem. Em 1865, em
pleno segundo ano da Grande Guerra,
conhecida também como Guerra do
Paraguai, seu amado foi para o front. Ela
prometeu esperá-lo, nessa mesma casa, mas
seu amado nunca regressou. Asunción foi
ocupada pelas tropas brasileiras e parece
que uma noite, antes de ser violada, ela
preferiu suicidar-se. Assim, de maneira
simples e romântica, é a história do “meu”
fantasma que...
Interrompi a escrita. Ouvi um
barulho, como se alguém caminhasse pela
sala com cuidado, nas pontas dos pés. Fui
abrindo a porta lentamente... e então eu a
vi. Atravessou o quarto, e foi se sentar na
poltrona de couro escuro, de encosto alto
de estilo eclesiástico, que está próxima à
janela. Olhava para fora, em direção a esse
esboço de paisagem que provavelmente há
um século fosse um caminho aberto no
jardim, mas que agora não era mais que uma
rua sem saída com alguns paralelepípedos
salpicados. Tudo em sua atitude revelava
uma branda e mansa espera. Nenhuma
impaciência. Imagino que é assim que
alguém se sente após esperar um século.
Continuo escrevendo. Deve
estar ali ainda. Que espere em paz. Eu vou
dormir.
Aconteceu de noite. “Meu
fantasma” chorava. Ou pelo menos foi isso
que pensei quando eu acordei com uma
inquietude estranha no coração. Seu pranto
me despertou, ou o gemido do vento nos
corredores. Mas tive que me levantar e ir
para a sala. Não estava lá. Mas seu pranto
sim, um som triste que se afastava, como se
ela fosse caminhando pela rua, ao encontro
impossível desse amor tão esperado, porém
sabendo de antemão que vai ao encontro
de uma ausência.
Leio o parágrafo anterior.
Estava procurando uma frase poética
para concluí-lo, quando bateram à porta.
Delicadamente, com infinita educação,
com timidez feminina.
Nunca pensei que os fantasmas
batessem às portas com tão fina discrição.
Deslizam pelos corredores desertos,
vaporosos e fugazes, se perdem embaixo da
sombra da tinta nanquim de um bosque
escuro. Mas não batem às portas. Por
isso, não me assustei quando seus dedos
delicados tocaram timidamente a madeira.
Pensei que era uma visita e abri a porta,
e fiquei de cabelo em pé. Ela estava ali,
reluzindo um vestido simples, longo até os
pés, com sua postura humilde e senhorial
ao mesmo tempo, com as mãos juntas, e
os olhos baixos, tal como corresponde a
uma donzela frente a um cavaleiro mais
velho que ela, e ainda por cima um solteiro
convicto.
Não estive à altura das
circunstâncias. E me condeno pelo que
fiz, pois, como o mais vulgar e tosco dos
homens, fechei a porta na sua cara, de tão
assustado que estava.
Ela não aparece há três dias.
Estará ofendida. Devo-lhe uma desculpa.
Seja formada de vapores tristes, de
esperanças e de sofrimentos, ou de carne e
osso, ainda é uma dama. Devo-lhe reparar
meu erro. Tomara que reapareça. Prometi
a mim mesmo não me assustar, ou pelo
menos não demonstrar.
Já se passou uma semana. É perto
da meia-noite. E não aparece. Vou procurá-
la. Pai nosso que estais no céu...
Eu a vi. Estava no jardim,
sentada no banco de ferro enferrujado,
com madeiras se desfazendo. Talvez nesse
mesmo banco se despediram muito tempo
atrás. Fui me aproximando com estas ágeis
pernas que alguma vez puderam ser de um
famoso jogador de futebol, mas que agora
tremiam como duas varas verdes. Virou a
cabeça e me viu. Que o leitor me perdoe
por este absurdo, mas jamais vi tanta vida
contida em dois olhos que deveriam estar
mortos.
Um pedido de socorro, súplica
ansiosa, uma desesperada ansiedade de
expressar alguma coisa brilhavam nesses
olhos, deixando-me com a garganta seca.
Levantou-se, e me estendeu a mão, como
se quisesse me conduzir a algum lugar.
Confesso com muita vergonha: saí em
disparada e me tranquei no meu quarto.
Estive lendo todo o escrito.
E um parágrafo me deteve: “...como se
quisesse me conduzir a algum lugar”. Sou
um cínico, confesso. Estou começando a
relacionar esse “algum lugar” com o local
de um tesouro enterrado. Pelo menos isso
é o que reza a lenda. Que os fantasmas não
descansam até que seus velhos pertences
estejam em mãos vivas. Deveria ter mais
Elizabeth Cristina Froma, professora de Língua Espanhola.
Formada em Licenciatura pela PUCPR (2008); Especialista em
Metodologia de Ensino de Língua Estrangeira pela UTP (2012)
e cursa atualmente o curso de Letras - Ênfase em Estudos da
Tradução na UFPR. Amante incondicional da língua castelhana.
vergonha, mas a verdade é que a ganância
excita meus sentidos. De certo modo não
é de toda mal. Será uma troca justa: uma
ânfora repleta de úteis moedas de ouro em
troca da paz eterna. Será um bom negócio
para “meu fantasma”. E para mim, é claro!
Procurei-a e a encontrei. Isso
aconteceu há quinze dias. Estava no
mesmo lugar. No mesmo banco. Dessa
vez, tive mais coragem, ou menos medo,
ou mais ganância. Quando me estendeu a
mão, imitei-a e caminhei em sua direção,
rezando mentalmente sem nenhuma
vergonha. E me pegou pela mão. E não era
uma mão com a frieza mortal, senão viva,
morna, mão de noiva que esperou cem anos
e durante esses cem anos acumulou carícias
em cada um de seus poros. Conduzindo-
me suavemente, me levou para os fundos.
Descemos por uma escada que
levava para o porão, cuja existência eu
desconhecia, percorremos um estreito
corredor até encontrar uma parede que o
dividia, e quando pensei que ia atravessar
a parede deixando-me sozinho, ela se
deteve, e apontou para o piso. Em uma
grande lápide se desenhava nitidamente,
no centro, uma enferrujada argola de ferro.
Logo compreendi, ali se encontrava o
tesouro.
Trabalhei como um louco
durante duas horas, cavando ao redor da
pesada pedra. Ela estava sentava perto de
mim, com o formoso rosto graciosamente
apoiado nas mãos, e me contemplava
em uma atitude de fina dama que vê um
escravo seu trabalhar. Finalmente a pedra
se soltou do local. Fiz um esforço supremo,
e a abertura ficou descoberta. Porém, não
havia ali um jarro antigo, mas sim uma
longa corrente de ouro com um medalhão.
Retirei do esconderijo, abri o medalhão e
vi o retrato do barbudo e valente oficial
Marechal López sorrindo para mim com o
seu mais profundo heroísmo.
Entreguei-o à dama.
Mãos de fantasma também
tremem de emoção. Eu juro. Apertou o
retrato contra o peito, e se foi devagarzinho,
flutuando em posição de reza, e desta vez
sim atravessou a parede, com seu medalhão
no aconchego de um caloroso encontro.
Enfim se reencontraram. Onde
quer que estejam são felizes. Mas eu não.
Ela não aparece mais, definitivamente
se foi. E não consigo deixar de me sentir
um pouco ciumento. Além disso, embora
tenha cavado mais três metros naquele
local, não encontrei mais nada. Parece que
os brasileiros se adiantaram, enfim...
MarioHalleyMora(Coronel Oviedo, 1926 – Assunção
2003). Dramaturgo, romancista e jornalista paraguaio.
Em vida, foi membro da Academia de História Militar
e da Academia Hispano-americana de Letras de Bogotá.
13
15. Nessa edição, o Jornal Boca do Inferno teve a honra de entrevistar o então
coordenador do curso de Letras, professor João Arthur Pugsley Grahl.
Mesmo com algumas interrupções de alunos, do Sandro (#todossomosSandro
#Sandronósteamamos) e até mesmo de sua filha (fofa!), o clima da entrevista
foi leve, tranquilo e descontraído. Ele nos contou sobre sua vida acadêmica,
sobre sua experiência estudando Matemática e a ligação que ele encontrou
entre as duas áreas, Matemática e Letras, sua experiência como coordenador,
o envolvimento e crescimento pessoal que ele teve durante esse período e de
sua experiência como professor de Francês. Como a entrevista foi realizada em
fevereiro deste ano, com a greve dos professores estaduais em vigor, ele também
opinou sobre a situação política e da educação no nosso cenário atual.
Boca: Vamos começar pelo começo. Você
tem duas graduações em Letras, bacharelado
e licenciatura. Como foi a graduação pra
você? Foi tranquila?
João Arthur: Foi ótima. Foi muito bom.
Boca: Você era um bom aluno?
João Arthur: [hesita] Eu acho que eu... pra
mim, eu era um bom aluno!
Boca: Quanto tempo você levou pra se
formar?
João Arthur: Eu acho que foram uns seis anos,
por aí. Foi mais ou menos isso. Eu levei um
pouco mais de tempo porque no primeiro
semestre eu estava na Bahia, trabalhando em
um resort. Na verdade, na cozinha. Daí eu
desisti de todas as matérias e só assumi o curso
no segundo semestre. E não podia trancar,
então eu tive que reprovar as matérias do
primeiro semestre. Eu fiz Francês-Português,
que hoje não tem mais.
Boca: E Centro Acadêmico e Boca do
Inferno? Qual era a diferença daquela época
[tempo de graduação] para agora?
João Arthur: Eu nunca fiz parte do centro
acadêmico, então eu não saberia dizer. Nunca
participei de absolutamente nada, eu era
totalmente alheio a toda questão política que
havia na universidade na época em que eu
era estudante. Eu trabalhava paralelamente,
tinha outras coisas. Então eu vinha para a
universidade
[Chamado da coordenação e da Maite, filha
do João.]
Boca: Tivemos um aumento de alunos, e
o nosso curso já era enorme mesmo antes
disso, não é?
João Arthur: Sim. São 857 alunos.
Boca: E como é gerenciar todo esse pessoal
correndo loucamente pela coordenação
pedindo ajuda?
João Arthur: Pois é, isso aí é uma coisa
que você aprende com o passado, com a
experiência, principalmente. A gente não
tem muita cancha, né [pausa para atender
uma aluna]. Da coordenação a gente ouve
tudo quanto é tipo de história de vocês, aqui
é o catalisador das histórias. A gente fica
sabendo de um background. Dá pra fazer uma
tipologia de alunos. É interessante ver esse
tipo de coisa. Aqui a gente tem a pretensão
da universalização da universidade, que
tem que ser igual pra todos. E isso gera um
monte de problemas. As especificidades de
curso, as especificidades de alunos. A gente
tem 54 habilitações no curso. É o único curso
que tem essa quantidade. Depois de Letras,
algum curso talvez tenha 4 ou 5, né. [risos]
Administrativamente, a gente tenta arrumar
as coisas, mas também esbarra em outras.
Algumas dão certo, outras não. A gente vai
também empurrando com a barriga, acaba
esquecendo alguma coisa, às vezes, porque vão
aparecendo outras. É mais ou menos assim que
as coisas acontecem. Você tem que agir muito
rápido pra tentar resolver. Então, a princípio,
você apaga muito incêndio, porque você não
está acostumado. As coisas vão acontecendo e
você vai tentando agir em conformidade com
o problema. Depois de um tempo você já age
conforme aquilo que sabe que pode fazer,
aquilo que tem autonomia, aquilo que você
não tem. Pra você descobrir leva um tempo.
Na verdade, não é fácil.
Boca:Seasuafilha[queestavaengatinhando
entre as cadeiras da coordenação] dissesse
quevaifazerLetras,vocêficariapreocupado?
João Arthur: Não, de nenhuma maneira. Eu
acho que ela pode fazer aquilo que ela quiser.
A gente tem que saber que as coisas mudam,
os tempos mudam. Nos anos 90 eu fiz um
curso de Mecânica Industrial no CEFET, e
eu ia atrás de trabalho e não tinha. Não tinha
trabalho pra engenheiro, ganhava muito mal.
E agora é o contrário, você está buscando
engenheiro, todWos pagam muito, recebem
muito bem. O professor também já teve a
sua época, vamos dizer assim, de receber.
Infelizmente a coisa é complicada, hoje
existe um descaso com a profissão. Passa por
um monte de elementos que a gente não vai
poder destrinchar aqui, agora, mas depende
“ Da coordenação a gente ouve tudo
quanto é tipo de história de vocês,
aqui é o catalisador das histórias.”
de governo, depende da economia, depende
de um monte de coisa. Eu não acho que Letras
é um curso de pobre. Eu não acho que seja.
Financeiramente, é lugar-comum falar que você
não vai enriquecer. A priori não é o objetivo,
como professor ou trabalhando em uma
editora, em qualquer coisa que seja, enriquecer.
Mas pra mim, pelo menos, o curso representou
muito mais do que eu buscava, no sentido de
enriquecimento intelectual, enriquecimento
cultural, enriquecimento humano. Eu acho
que consegui encontrar um lugar pra mim
nessa questão de trabalho. Eu estudei francês,
então eu pude sempre dar aula de francês. Eu
fiz pesquisa na parte de linguística, depois fiz
o meu mestrado na área de linguística. E tinha
a literatura, que era uma das coisas que mais
me incentivava a fazer Letras. O curso mesmo
foi superinteressante pra ler os livros que os
professores colocaram, mas só agora, que eu sou
professor de língua e literatura, que eu estou
levando a parte literária mais sistematicamente,
lendo a parte de teoria, esse tipo de coisa. Mas
aquilo que me incentivou mais, a literatura, na
verdade ficou em segundo do plano durante
o curso. É interessante, né, mas a parte de
educação e a parte da linguística foram as
minhas descobertas.
Boca: Deu pra perceber que você é um pouco
ator, modelo e dançarino. Você trabalhou
em várias frentes com Letras. Isso é muito
interessante, porque, às vezes, a gente não
pensa na possibilidade de realizar tantas
coisas. Você também revisou literatura, que
é uma coisa que pra muita gente aqui é um
sonho. Muito calouro chega pensando só
em dar aula ou sem saber o que vai fazer. As
pessoas têm que chegar e saber que é uma
possibilidade, que também é uma carreira
que dá pra seguir.
João Arthur: É, o problema é que a gente não
tem isso regularizado. Isso é um dos problemas
que a gente tem de falta de organização de
classe. Se você tivesse uma organização sindical,
“Mas pra mim, pelo menos, o curso
representou muito mais do que eu
buscava, no sentido de enriquecimento
intelectual, enriquecimento cultural,
enriquecimento humano.”
15
16. você poderia profissionalizar o sistema,
justamente pra que você pudesse ter uma base
salarial que pudesse discutir. Pelo que eu vejo,
tem gente hoje que ganha a mesma coisa que
eu ganhava dez anos atrás trabalhando de
revisor. Como é que pode isso? Tem alguma
coisa errada. No regime democrático isso é
previsto pra que você, enquanto trabalhador,
possa exigir os seus direitos e ter o mínimo
pra poder se estabelecer. Então, tudo passa
pela questão política, pela questão crítica, de
espírito crítico, tudo passa por essas coisas.
Eu acho que no curso de Letras, da maneira
que eu vejo, é possível criar esse tipo de coisa,
nos nossos alunos. Com a literatura, é possível
criar outro imaginário nas pessoas. Assim
como existe o imaginário religioso, existe um
imaginário que pode ser literário, pode ser
filosófico, que pode ser outro mundo possível
pra estabelecer a maneira como você pensa, a
maneira como você age, a maneira como você
vai tomar decisões. Acho que a literatura é
um dos elementos que, se você quiser, pode
ser uma dessas coisas que não dá pra gente
controlar, mas faz parte da vida. Então eu
identifico isso na minha trajetória, eu aprendi
esse tipo de coisa no curso, de ver qual que é o
espaço de todas as coisas que a gente aprende
aqui. É interessante que se faça algo e acho
que o curso de Letras dá essa possibilidade. A
gente vê muita coisa interessante, inclusive a
possibilidade de trabalhar. Pra mim foi assim,
pelo menos. Eu descobri uma profissão, outra
profissão. Eu já tinha uma, mas descobri outra.
Boca: Você é coordenador, você mesmo disse
que você fica sabendo de todo o background
dos alunos...
João Arthur: Acontece uma porção de coisas.
A gente tem que aprender a ser coordenador do
curso, a gente tem que aprender a ser professor,
aprender a ser tudo. É uma questão de política
também, é uma figura política. Política não
no sentido, obviamente, partidário, que não é
o caso, mas política no sentido de que todo
mundo tem uma representação política, uns
mais, outros menos. Mas o que eu quero
dizer é que como coordenador se espera uma
posição na questão de relações interpessoais, e
é isso que eu estou chamando de política. E
dai é interessante, porque pra mim conhecer
os alunos tá sendo um aprendizado humano.
Muitos preconceitos se desfizeram e eu não
consigo identificar nenhum preconceito
gerado por causa dessa passagem. Mas o
que foi interessante nesse período que eu
estou aqui, que vai até julho [de 2015], é
que eu pude compreender como é que a
universidade funciona. E, compreendendo
como é que a universidade funciona, se
tem uma ideia de como funcionam todos
os outros setores do ensino no Brasil. Pelo
menos toda essa parte administrativa,
burocrática e de relacionamento interpessoal
é superinteressante de ver e ter uma ideia
muito mais consequente do funcionamento da
instituição, e de como, por exemplo, hoje, em
que a gente vive em um regime democrático,
isso influencia em todas as instituições. Eu
imagino que quando se vivia em um regime
ditatorial isso também influenciava em todas
as relações, em toda a parte administrativa, em
toda a parte interpessoal. Digo isso porque em
todas as instâncias a gente tem representação
direta. Isso vem de uma estrutura democrática
que começa a ter os tentáculos em todas
as direções, e é interessante que a gente
aprenda esse tipo de coisa. Com um regime
que é democrático a gente tem que saber
se colocar, tem que saber ser político, e
isso diz respeito a todo mundo. Alguns
têm mais responsabilidades do que outros,
obviamente. A gente, como professor, tem
mais responsabilidade do que um aluno, nesse
sentido, porque você influencia mais pessoas,
interfere em mais pessoas. Mas diz respeito a
todo mundo. Então é
interessante de ver que funciona dessa
maneira. E a gente, com a autonomia
que a gente tem, a gente pode tentar fazer
coisas usando a estrutura da universidade.
Mas eu acho que todo mundo tem essa
possibilidade e essa responsabilidade, maior
ou menor. Principalmente nessa criação,
seja de imaginário, seja você fazer pesquisa,
seja de você atuar como professor. A gente é
professor, todos nós somos professores, essa é
a parte que todos nós temos em comum, e é
uma responsabilidade que a gente tem, que a
gente compartilha.
Boca: Você começou e interrompeu uma
graduação em Matemática Industrial, não
é isso? Como que foi isso, Matemática e
Letras?
João Arthur: Uma das coisas que me
interessou nesse esquema de matemática foi o
ensino de Linguística, que eu estudei aqui para
fazer o bacharelado (eu fui bolsista de Iniciação
Científica do Luís Arthur [Pagani] e estudava
lógica e esse tipo de coisa). As primeiras
matérias que eu fiz lá foram justamente de
lógica. Eu já tinha terminado o mestrado, daí
eu pensei “ah, vou fazer lá, porque não precisa
de nada, é só se inscrever que você passa”.
Pra ver como que era! Mas o curso é bem
complicado. Não foi pra frente, não.
Boca: E você pretende retomar?
João Arthur: Isso eu faço sempre, estudo um
pouco sempre. Inclusive eu apresentei com o
Ernani [professor Luiz Ernani Fritoli] uma
coisa que tem a ver, em uma das Semanas
de Letras. A gente apresentou “Matemática
e Literatura”, de um grupo francês chamado
Oulipo. Eles têm essa prática. Inclusive, Ítalo
Calvino e Georges Perec, de não ter divisão
entre esse tipo de coisa. Mais importante que o
poema e que o romance, ou qualquer coisa
assim, é justamente a forma em que você vai
fazer o poema ou o romance. E o Ernani gosta
muito do Ítalo Calvino, e eu acho o Perec e
o Queneau bacanas. E até hoje esse grupo
funciona, ele fez 50 anos há uns dois anos.
Eles dizem que todas as formas são olimpianas.
Boca: É difícil imaginar a semelhança da
Matemática Industrial com a Literatura...
João Arthur: Essa é uma divisão que foi
planejada. É uma questão histórica mesmo,
de não se ver nenhuma interlocução entre
humanas e a parte mais técnica, tecnológica.
A gente podia pensar numa outra maneira.
Não é o caso. A literatura foi pra um lado, a
matemática pra outro e justamente por isso
que a gente não pode pensar nisso. Existe uma
didática, um tipo de pedagogia, uma questão
muito mais vocacional do que prática.
Boca: Pegando por esse viés e juntando com
o enrosco que está a educação no Paraná,
queríamos saber qual é a tua concepção de
ensino.
João Arthur: Eu gostaria que essa parte
educacional fosse mais valorizada porque,
enfim, faz parte do todo do governo. É
importante pra pólis que as pessoas sejam
bem formadas para a democracia. Não dá pra
desvincular uma coisa da outra. E a gente, na
universidade, espera que os alunos possam
aprender (se não aprenderam ainda) a ter e a
agir em conformidade com o espirito crítico.
Então eu acho que isso aí é uma das coisas
principais que tem e pode formar a população
justamente para que ela possa criticar o que
quer que seja. O Ensino, com letra maiúscula,
seria nesse sentido. A gente faz parte de um
sistema que vai desde a escola básica, passa
pelo ensino regular e chega na universidade.
Na universidade é isso que a gente faz. Você
não encara nada a priori, dogmaticamente.
Tudo pode ser questionado, criticado, todas
as coisas podem passar por esse tipo de crivo
racional, sistemático ou metodológico para
que se possa refletir ou, pretensiosamente,
avançar. Talvez não no sentido de progresso,
como era no século 19, mas no sentido de você
descobrir outras coisas, outras
maneiras de pensar, outros tipos de reflexão, e é
isso que na universidade, que é especificamente
diferente do ensino regular, a gente faz. O que
a gente tem em comum é o espirito critico,
que deve ser valorizado exatamente para que
a gente não chegue no que a gente está vendo.
Boca: O que você está achando das
manifestações dos professores? [A entrevista
foi realizada em março de 2015]
João Arthur: A gente não tá muito
acostumado com as manifestações desse ano,
mas nos anos 80, essa era a regra: os professores
na rua, sendo abatidos pelo governo, esse tipo
de coisa. Agora a gente não tá (aparentemente)
nesse mesmo ciclo, como era nos anos
80, e na mesma frequência que o pessoal
democraticamente possa questionar o descaso
do governo com a educação e, pra que isso
possa ser melhorado, afinal de contas a gente
tem representação, pelo menos teoricamente,
pra que o pessoal possa pensar em ensino, e
se eles não têm condições financeiras, como
eles afirmam que não têm mais, que alguém
resolva. E a gente precisa prever esse tipo de
coisa, a gente precisa de gente mais criativa
para tentar dar conta de todo esse processo
educacional, que possa trabalhar de maneira
consciente, participar da vida democrática de
maneira consciente, pressionando, porque eu
“ Acontece uma porção de coisas. A gente tem
que aprender a ser coordenador do curso,
a gente tem que aprender a ser professor,
aprender a ser tudo”.
“Mas o que foiinteressantenesseperíodo queeu
estouaqui[...]équeeupudecompreendercomo
équeauniversidadefunciona.E,compreendendo
comoéqueauniversidadefunciona,setemuma
ideia de como funcionam todos os outros setores
doensinonoBrasil.”
16
17. acho que isso deve ser mantido. Pra própria
universidade isso é essencial, essa liberdade de
pesquisa, pra que a gente possa trabalhar todas
as coisas sem nenhum tabu.
Boca: Inclusive você tem um grupo de
estudos sobre democracia e tudo o mais,
não é isso?
João Arthur: Isso! Bem, eu participo. É
um grupo de estudos do pessoal de Direito.
Eu trabalho junto por causa do projeto dos
haitianos e com os imigrantes. Esse grupo de
estudos parte daí, dessa pegada dos direitos
humanos, que tem a ver com todo esse aspecto
político-educacional. Eu acredito, eu sei que é
uma coisa meio lugar-comum falar desse jeito.
Por isso que a gente fica muito chateado com
o descaso do governo: porque a gente vê que
é sempre a mesma coisa. O discurso é uma
coisa, a prática é outra. No meu bacharelado,
eu estudei sobre o convento de Port-Royal,
na França, do século 17. Eles já sabiam, por
exemplo, que quanto menos alunos nas salas,
melhor seria o ensino. E não há nenhuma
preocupação do governo pra diminuir o
número de alunos em sala.
Boca: Pelo contrário, né?
João Arthur: Justamente. Você acha que com
30 alunos na sala eles vão aprender? Eles vão
aprender apesar disso, porque a gente tem
um instrumental muito bom, que é muito
melhor do que aquilo que a escola pode
oferecer. Em Port–Royal, eles já tinham esse
tipo de mentalidade, de menos alunos. O
Racine fala que aprendia com o Arnaut, ou
com o Lancelot, que tinham oito alunos. Aí
eu acredito que saia um Racine daí, entende?
Porque o professor pode ensinar tudo o que
ele sabe, estar muito mais próximo dos alunos.
Por exemplo, eles viram que, se você ensinasse
latim em francês, os alunos aprendiam melhor
do que se você aprendesse latim em latim.
O que pra gente hoje é óbvio, mas na época
não era. Eles começaram a implementar isso,
questionavam o percurso de ensino jesuítico,
tentando refletir sobre novas maneiras de se
ensinar. Eu acho que, enquanto o governo
não diminuir o número de alunos em sala e
investir mais no professor, é absolutamente
inútil. Eu sinceramente nem ouço, porque
me chateia, sabe? Qual seria o ideal? A gente
já sabe faz quatro séculos. Daí o pessoal vem e
diz “não, finalmente a gente vai ter 30 alunos
por turma”. 30 alunos por turma não pode,
cara! Não pode. Não vem me falar que isso é
um elogio pro governo. Isso daí é você assinar
o descaso, a incompetência e a inutilidade
do teu governo com a educação. Pra mim
soa como se o cara estivesse rindo da minha
cara. Eu acho que o problema é maior do que
“ Pra própria universidade isso é
essencial, essa liberdade de pesquisa,
pra que a gente possa trabalhar todas
as coisas sem nenhum tabu”.
“ Então, o que a gente pode dizer? É
uma chateação completa o descaso
com a carreira de professor, o descaso
com os alunos”.
“ Minha trajetória na universidade sempre
foi de fazer um monte de coisa diferente”.
isso que tá acontecendo. Hoje a gente está
numa situação que é longe de ser a ideal e está
piorando, ainda. Então, o que a gente pode
dizer? É uma chateação completa o descaso
com a carreira de professor, o descaso com os
alunos. E a gente sabe o que fazer, a gente sabe.
Só que querem investir? Querem contratar o
dobro do número de professores para reduzir
o número de gente por sala de aula? Querem
construir mais sala de aulas para alojar esses
alunos? Se existe a retórica de que a educação
é mais importante, é isso que se faz. Mas vão
fazer isso? Têm o budget? Eles precisam dar
conta do orçamento. E aí, na prática, acham
que isso não é importante. Mas é.
Boca: Isso que você falou de espírito crítico,
lugar no mundo e tudo mais lembrou
bastante aquele outro projeto que você
está engajado, com o Neab, de tradução de
textos de literatura africana, de história e
filosofia também...
João Arthur: Esse foi um convite que eu
recebi logo que eu entrei aqui na universidade.
Achei interessante, e minha trajetória na
universidade sempre foi de fazer um monte de
coisa diferente. Eu não sei se isso acontece pra
todos os professores, mas pra mim tem sido
interessante, bem desafiante, pelo menos nos
quatro anos que eu estou aqui. Isso que é legal,
a universidade possibilita todas essas atividades.
Então foi interessante pra descobrir a tradução.
Nunca tinha, a priori, feito nenhuma tradução
que não fosse de textos pequenos. E eu tive que
orientar os alunos pra fazer. Então você tem que
aprender muito rápido. Chamei o Mauricio
[professor Mauricio Mendonça Cardozo],
pra “pô, fala aí o que você acha, como que é”.
Ele foi bem interessante, ele falou: “não, ó, a
princípio pode ser uma coisa mais... Não existe
um dogma tradutório, não existem os textos
que você vai traduzir”. E eu achei interessante o
approach dele. Aqui, a universidade já é um polo de
tradução. O pessoal já está traduzindo um monte
de coisa, está ganhando prêmio, é interessante de
ver. Mas, pra mim, foi interessante descobrir essa
literatura, na verdade. Essa literatura africana, que
eu não tinha ideia e que é extremamente rica.
Boca: Precisa bastante resistência, né. Inclusive
importante quando a gente discute democracia
e tudo mais.
João Arthur: É, enfim, o que eu descobri,
pelo menos nessa parte de literatura africana e
literatura do Caribe, é que você tem todo um
movimento de protesto que você não encontra
com a mesma intensidade, a meu ver, em outras
literaturas. Então pra mim foi uma descoberta.
Ter, por exemplo, um Jacques Roumain, que tem
como matéria-prima para os poemas um ódio,
uma ira muito forte, você percebe como pode ficar
bom usar esses sentimentos que tradicionalmente
eu não estava muito acostumado a ler. E você
consegue ver, através da história poética desses
continentes, toda a história deles, como que eles
vão lidar com um
continentequetradicionalmentetemumatradição
oral muito forte. Como você vai lidar com essa
coisa de escrever a tradição oral, de calcificar em
uma forma específica todo um conhecimento que
vinha de geração e que mudava através do tempo.
E os autores procuram lidar com esses paradoxos,
com essas maneiras literárias. O que pra mim
foi superinteressante de ler os textos filosóficos,
inclusive.
Boca: Então, João, a gente está falando de
escrita de poesia e tudo mais. Você escreve
literatura?
João Arthur: Ah, isso daí, eu... É, como que posso
dizer...[risos] Olhe, escrever não significa nada
enquanto não publica a coisa.
Boca: Então... A gente tem um jornal que
publica coisas...
João Arthur: Só existe literatura na prática
quando existe leitor, que vai passar pelo crivo do
leitor. Então, baseado nessa definição, não, não
escrevo. [risos]
Boca: Pra gente finalizar: o que você está lendo,
o que você está ouvindo e o que você está vendo?
João Arthur: Ai, deixa eu ver, então.[risos]Estou
lendo Octavio Paz. Do Octavio Paz eu estou
lendo, nesse instante, Los Hijos del Limo. Estou
lendo também Guerra e Paz, mas esse está bem
mais devagar, eu estou na página 750, mas como
são quase 3.000 vai levar um bom tempo ainda. E
estou lendo pra ela, inclusive [Maite, filha do João].
[risos] E eu estava ouvindo ontem um som do Nick
Cave, Jubilee Street, que não me sai da cabeça já
faz alguns dias. E esses dias eu vi um filme japonês
bem doido, Battle Royale, que é bem interessante,
tem a ver com a gente. Você envia os estudantes
pra uma ilha deserta pra que eles se matem. É, eu
gosto de filme japonês. Esse está bem fresco na
memória. Eu assisti um que foi bem legal... o tal do
Jubilee Street é ligado aos Vinte Mil Dias na Terra.
É um documentário do Nick Cave, esse eu assisti
também. 20,000 Days on Earth, que é bem bacana,
bem bonito. Eu estou lendo poema sempre, né,
nessas férias eu li o livro que o Marcelo Sandmann
traduziu, muito bom. Essas férias foram bem
produtivas. Ah, e um do Knut Hamsun, A Fome
17
18. Textículos
E o improvável se fez fato
e habitou entre nós
Creio que só agora começamos a
assimilar o que se passou no mandato de
Beto Richa (PSDB), eleito sob aprovação
da maioria dos paranaenses e em primeiro
turno. Voltemos, pois, a fevereiro de 2015:
no dia 10, mais de 30 mil educadores de
todos os cantos do Paraná gritavam contra
o tal pacotaço, oriundo do Poder Executivo
do Estado e que poderia ser aprovado
pelo Legislativo. Em nome de uma
crise econômica não causada por nós, o
governador queria lançar mão do dinheiro
do Paraná Previdência, nossa garantia de
aposentadoria futura. Enviamos e-mails
e mensagens via whatsapp, telefonamos
e visitamos os deputados, expondo nossa
oposição ao projeto. Solicitamos apoio,
assim como eles fazem, quando enchem
nossas caixas de correio com seus santinhos
sorridentes em tempos de eleição. Mas,
mesmo com todo o apelo popular que
havia nas galerias da Assembleia Legislativa
e na praça, a Comissão Geral foi instaurada
para que tudo se aprovasse rapidamente.
Foi nesse dia que ocupamos o prédio da
Alep: a grade que separa o povo de sua casa
de leis foi rompida. Em meio a confusão,
alguém me deu a mão, agarrei a perna
de outro, um terceiro me impulsionou
pela bunda e subimos correndo pela
rampa. Havia, naquela ocasião, poucos
PMs e nada podiam fazer. Os deputados
da ala governista fugiram tiveram de sair
escoltados, sob muita vaia. Tomamos o
plenário e ali acampamos por dois dias.
Neste ínterim, o ar-condicionado e a
energia eram ligados e desligados e o uso
dos banheiros foi limitado. Porém, nada
foi vandalizado. Eu realmente acreditei
que os deputados se emendariam, vendo
aquele povo entrando na Assembleia e
escutando os clamores de retira. Contudo,
não foi o que aconteceu. Compreendem?
Recordando: a Alep deveria representar os
interesses do povo paranaense, apresentar
projetos que beneficiassem a população
em geral, mas o que vemos é que sua atual
composição, na grande maioria, representa
os interesses de um governo apenas.
Foi, então, no dia 12 de fevereiro que o
primeiro improvável ocorreu – porque o
melhor ainda estava por vir! [sic]
Oscar Wilde escrevia: A vida
Sobre o episódio de um deputado, literalmente, se cagar no camburão: quando a sátira sai da ficção e
se torna realidade. Mas afinal, satiriza-se a vida ou a vida já é uma sátira?
Eduardo Soczek
imita a arte muito mais do que a arte imita
a vida. Tive de concordar. Desde pequeno,
a Literatura fez parte de minha vida. Na
primeira série me deparei com Marcelo,
marmelo, martelo, de Ruth Rocha, e me
encantei. Depois, amei a acidez de Eça em
sua sociedade católica, burguesa e hipócrita,
bem como a de Machado e a de Dalton.
Poemas de Pessoa e de seus heterônimos,
de Leminski e o trabalho estético em I-Juca
Pirama são alguns de minha predileção.
E por que lembrar isso? Porque diante
de algumas obras eu já parei e pensei:
poderia ter acontecido isso no mundo
factual? Os enredos funcionam dentro de
uma realidade ficcional, mas ainda é mais
fácil, creio eu, pensar na realidade factual
quando o narrador de Aluísio Azevedo, em
O Cortiço, nos faz sentir o mesmo odor
que João Romão sentiu ao deitar-se ao
lado de Bertoleza – misto de suor, cebola
e gordura – ou em Capitães da Areia, de
Jorge Amado, quando Pedro Bala sente
medo e revolta ao ser aprisionado em um
quarto por baixo da escada, onde não se
podia estar em pé, porque não havia altura,
nem tampouco estar deitado ao comprido,
porque não havia comprimento. (...)
O ar entrava pelas frestas finas e raras
dos degraus da escada. Aí, junto com a
personagem, entendemos que a liberdade
é como o sol. É o bem maior do mundo.
Entretanto, quando uma obra extrapola
o que poderia ser real (o que é muito
aceitável na Literatura) a minha reação era
de desconforto. Em Frei Genebro, conto de
Eça, como pode o frade ver a mão de Deus
nos céus, parecendo o festim de Baltazar
a pedir contas de um pernil de leitão,
arrancado com um podão para matar a
fome de outro frade? Parece improvável
factualmente, apesar de funcionar na
economia da narrativa. Em Macunaíma, de
Mario de Andrade, a personagem principal
vira uma feijoada, depois é reconstruída e
segue viva. Possível? Sou bastante cético.
Porém, isso nos faz pensar.
Retorno, agora, ao fatídico dia
12/02. Se João, o evangelista, fizesse um
Prólogo desse dia, como o fez em seu relato,
poderia escrever ao invés de O Verbo se
fez carne e habitou entre nós, a expressão:
O improvável se fez entre nós, porque o
fictício se tornou palpável e o impensável
se fez fato! E pior: um fato risível. Quando,
nesse dia, fechávamos as entradas da Alep,
chegaram, pois, boa parte dos deputados
em um camburão blindado e escoltado pela
Tropa de Choque. É o próprio improvável:
deputados em um camburão. As grades
foram serradas para que pudessem entrar,
já que o então Secretário de Segurança,
Fernando Francischini (SD), não havia
conseguido retirar os parlamentares de
dentro do carro blindado. Francischini,
humilhado, bailou um belo tango com
um professor que impediu a abertura do
camburão, mas a ordem do governador era
expressa: votar, a qualquer custo, o projeto
de confisco da Previdência dos servidores
em uma sessão que aconteceria em um
restaurante da Alep, já que o plenário
continuava ocupado. Foi aí que houve
uma segunda ocupação do parlamento.
Os deputados ficaram sitiados e tiveram de
negociar a saída pelos fundos. Reafirmo:
não é ficção! Porém, quando penso que o
improvável havia acabado aí, leio a Gazeta
do Povo do dia 20/02 na coluna de Dante
Mendonça: “[...] Depois de embarcar
na ideia do secretário de Segurança,
Fernando Francischini, os momentos
de maior tensão dentro do camburão
ocorreram diante da Assembleia, como
relatou o repórter Rogerio Galindo: ‘Os
deputados se dividiram. Acostumados a
tomar decisões com calma, em plenário,
dessa vez davam palpites desconexos sobre
o que fazer. [...] Enquanto isso, alguns
manifestantes que tinham conseguido
chegar ao local começaram a bater na
lataria’. Vários deputados ouvidos pelo
jornalista acharam que os professores iriam
conseguir virar o ônibus: ‘Essa foi a hora
mais tensa’, disse um deles. ‘O que a gente
sentiu foi cagaço!’, confidenciou um outro.
[...] À beira da piscina e de um ataque de
nervos, um mal-aventurado passageiro
deixou vazar o chorume: ‘Não posso dizer
o nome, mas um dos nossos se borrou nas
calças!’ [...]As mulheres gritavam com uma
mão no nariz, outra no celular, enquanto
os homens tentavam controlar a náusea”.
Percebam: estamos falando de algo real.
Não é Literatura ou telenovela. Parece
realmente que a vida imita a arte. É um
18
19. episódio trágico e cômico. Trágico porque
os que deveriam representar os interesses da
população, são eleitos e mantidos por ela,
passam pelo povo em um camburão. Cômico
porque os deputados, apesar de tanta
vaidade, se desvelaram não divinos: sentem
a tensão, passam pelo medo, feitos de carne
e de sangue, citando a Compadecida, podem
perder o controle dos próprios intestinos.
Já, no dia 12 de fevereiro, havia cães, muito
spray de pimenta, Tropa de Choque, balas de
borracha e também bombas.
Beto Richa, porém, que se viu
forçado a retirar o projeto em fevereiro enviou
algo muito semelhante no mês de abril para
o mesmo plenário. Dessa vez, Francischini,
com medo de ter de dançar outro tango
cercou todo o entorno da Alep com um
efetivo de 2.516 policiais militares. Oficiais
que foram, inclusive convocados do interior
do Paraná e viajaram em pé, abarrotados em
poucos ônibus e tiveram de abandonar os
hotéis em que estavam hospedados por falta
de pagamento. Na verdade, o Secretário-
dançarino queria bloquear praças públicas
e ruas, mas foi impedido. O presidente da
Alep, Ademar Traiano (PSDB), não permitiu
a entrada do povo. Votariam a todo custo
e com galerias vazias. Na madrugada entre
26 e 27/04, professores foram agredidos
enquanto acampavam e o caminhão de
som foi guinchado. No dia 28, pela manhã,
a simples passagem de outro caminhão
de som pelas ruas do Centro Cívico foi
reprimida pela Tropa de Choque. Ou seja,
a tragédia estava orquestrada, encenada e
pronta para ser apresentada. Foi, então, no
dia 29 de abril que o segundo ato inusitado
ocorreu: nem senadores enviados de Brasília
conseguiram argumentar com Traiano
para que a votação fosse adiada. Iniciada a
sessão, um simples chacoalhar de grades por
parte dos manifestantes fez com que muitas
bombas fossem lançadas sobre estudantes,
professores e servidores. Mas as bombas
não eram lá dentro, afirmava o presidente
da Alep, e podiam votar. Jatos d’água,
cassetetes, cães, Tropa de Choque, spray de
pimenta, balas de borracha e mais bombas.
Rasca, deputado pelo PV, foi mordido por
um cão policial e Luiz de Jesus, cinegrafista
da Band, foi atacado na coxa por um pitbull,
enquanto trabalhava, ambos na rampa da
Alep. E os senadores, enviados de Brasília,
pediam cessar fogo, mas não adiantava.
Foram mais de duas horas de terror contra
pessoas desarmadas. No balanço: 2.323 balas
de borracha e 1.413 bombas de fumaça, gás
lacrimogêneo e de efeito moral, além de
25 garrafas de spray de pimenta, de acordo
com a Gazeta do Povo do dia 29 de maio. E,
segundo a mesma reportagem: a ação custou
R$ 948,3 mil aos cofres públicos. Mais de
200 pessoas feridas. E para colocarmos a
cereja no bolo: um policial tingido com uma
tinta groselha-rosada para simular sangue e
agressão. Muitos black blocs, de acordo com
Francischini. Tudo desmentido pela Reitora
da UEL e pelo Ministério Público. É... Ficou
difícil de justificar toda a barbárie.
Penso, por fim, nos versos de
Pessoa, em Mensagem, sobre Dom Sebastião.
Fomos loucos? Certamente. Porque não
somos acostumados a enfrentar polícia,
bombas, cassetetes, balas de borracha, spray
de pimenta e cães, mas Sem a loucura que é
o homem / Mais que a besta sadia, / Cadáver
adiado que procria?
Eduardo Soczek,
professor da rede
estadual, graduado
em Letras pela UFPR,
aluno do Mestrado em
Literatura pela mesma
Universidade.
19
20. Traduções
Durante meio século
A poesia foi
O paraíso do bobo solene.
Até que eu cheguei
E me instalei com minha montanha russa.
Entrem, se quiserem.
Claro que eu não respondo caso desçam
Jorrando sangue por boca e narizes.
Amyr Hamud tem 21 anos e gosta de poesia.
Nicanor Parra
A Montanha Russa
Amyr Hamud
Nicanor Parra, é um poeta e matemático
chileno, inventor da antipoesía. Sua extensa obra
influenciou outros reconhecidos escritores, como
Gonzalo Rojas, Enrique Lihn e Roberto Bolaño.
20
22. Entre e vistaTextículos
Observar
Carla Mota Menezes
Gostava de olhar para cima. Ao
caminhar pelas ruas, estava sempre à procura
de algo acima do nível dos olhos. Nem mesmo
os trôpegos passos conseguiam desviar sua
atenção das construções arquitetônicas que
beijavam o céu. Com o pescoço projetado
para trás, desafiava-se a descobrir as possíveis
influências clássicas nas edificações, analisando
os detalhados ornamentos que conferiam
tanto charme àquelas pilhas de concreto
colossais. Gelosias graciosas, ogivais elegantes
e rebuscados, vilíssimos detalhes ignorados.
Insólitas obras de arte de ruas que tinham
muito a dizer. O asfalto sussurrava-lhe
segredos aos ouvidos, os pilares suspiravam
lôbregas reminiscências, as paredes descreviam
atrocidades e ah, as paredes! Quantas histórias
tinham para contar!
A melancolia que não se foi com
seu inquilino, a angústia que se apoderava
daqueles que ali procuraram abrigo; quanta
violência já omitiram, quantos gritos mudos se
desprenderam de gargantas roucas pelo esforço
de clamar clemência, quantas pessoas amaram
aquelas paredes, decorando-as; em quantas
cores seus semblantes se metamorfosearam
desde suas tonalidades originais, quantas
pessoas já suspiraram ou choramingaram
ao ver o que aqueles ávidos olhos viam? Os
infinitamente numerosos questionamentos
enchiam-lhe por dentro e a faziam inflar até
voar, tocando a mais alta gótica gárgula no
topo da igreja.
Suas passadas eram suaves e curtas,
graciosas. Por vezes, seu tornozelo virava-
se ao pisar em algum buraco. A frequência
dos solavancos não a oprimia, contudo. Só
continuava andando. Sua jornada, na maioria
das vezes, era longa – raramente se deslocava
pela cidade de ônibus, menos ainda de
carro; percorria vastas distâncias contando
com seus velozes pés, que por todo canto a
conduziam. O ato de caminhar era sagrado.
Desrespeitoso seria com o universo tornar
obsoleto aquele par de pernas perfeitamente
funcional. E não parava de olhar. Os glóbulos
oculares dançavam nas órbitas, atraídos
magneticamente pelo topo dos edifícios, cinza
contrastando com o azul do céu. Árvores
solitárias, imersas no mórbido concreto sem
vida, exibiam suas mais belas flores, colorindo
a vista. O aroma amadeirado, esverdeado, doce
e fresco lhe acariciava as narinas, que bebiam
cada requintada gota. Ficava com vontade de
rir. E ria.
Estava andando. Sincronizou o
som de seus passos com as sístoles e diástoles
compassadas de seu coração. Com seu corpo
apóstolo de um mesmo ritmo, varria com o
castanho dos olhos as rachaduras fustigadas
pela água e carcomidas pelo tempo. Se a
questionassem a respeito, confirmaria que
conseguia sentir o cheiro do suor daqueles que
carregaram pedras e cimento, que era capaz
de ver os calos das mãos que fizeram com que
a charmosa massa cinzenta ascendesse; podia
ouvir a respiração ofegante e a canção da pá
que misturava aquela pasta nojenta, molhada e
dura; os engenheiros também protagonizavam
devaneios, com seus projetos, cálculos e
desenhos milimétricos, suas púrpuras olheiras
e dentes amarelados pelo café, as noites de
sono perdidas pra cumprir o prazo do projeto;
quantos estagiários estariam envolvidos no
processo, rezando todas as noites para que
aquela tortura acabasse logo e eles pudessem
finalmente voltar a fazer nada; os proprietários
do edifício tampouco fugiam de sua mente,
com seus sapatos italianos ou saltos altíssimos,
martelando pisos de mármore, carvalho e
pino, imersos em expectativas ao passar a
lâmina da tesoura pela fita vermelha.
O passar dos minutos e dos
telhados cobertos de excretas aviárias e frutos
mutilados trouxe-lhe aos olhos um arcaico
sobrado, rememorando-a um episódio triste,
capaz de provocar imensa mágoa para com
a espécie humana: certa vez perguntara a
uma amiga de faculdade o que ela achava da
magnífica construção que era o tenebroso
sobrado, forjado em glorioso e irresistível
enigma. A garota lhe disse que não fazia
ideia de que construção era essa. Foi como
receber um murro bem no meio da cara. Só
pôde perguntar, horrorizada: “Para onde você
olha quando anda?” A perplexidade estava
entalhada na esbofeteada face. Demorou
um pouco para se recuperar do choque: a
charmosa massa concreta ficava em frente à
casa da colega.
Atravessava o agitado centro da
cidade, era pouco menos que sete da noite. O
soturno céu sem estrelas derramava penumbra
Carla é caloura de Letras e
também gosta de observar, mas
(ainda) não foi atropelada.
Considera-seamadoraprofissional
na arte de contar histórias.
pela rua parcamente iluminada. Adentrou
uma praça esplêndida. Engolida pela sombra
das árvores, contemplava o musical ruído
da água descendente. Disparou sobre os
paralelepípedos e desceu as escadas. Os atentos
olhos foram atraídos pela coruja solitária que
procurava insetos, empoleirada em um galho
na árvore que jazia no meio-fio, do outro
lado da rua. Fascinada, mergulhou no asfalto
quente. A corujinha-do-mato estava perto
o suficiente para vê-la. Com os amarelados
olhos, observava a garota, que correspondia
com intensidade no olhar.
Mexeu-se ligeiramente em
seu galho, provocando um ruído que a
sobressaltou. A garota esperou. Aproximou-
se mais, perdendo-se naqueles pequenos
olhos dourados, tão curiosos e ávidos para
entender que bicho ela deveria ser. E então
uma van a quarenta quilômetros por hora
atravessou a pista, chocando-se de frente com
a observadora, lançando seu frágil corpo para
frente, passando por cima dele. O motorista
mal percebeu a presença da pequena sombra
que pairava na rua escura. Freou depois de
passar com a roda por cima da cabeça da
moça. Horrorizado, o homem deixou o
veículo, agarrando o boné que usava para secar
as lágrimas. Seu rosto expressava um pavor
sincero. Pessoas que passavam pararam para
olhar. Para alguns, a visão era digna de enjoos
e arrotos que precediam o corrosivo jato do
vômito. Lágrimas brotavam de olhos chocados
e aterrorizados. Quase todos os maxilares ali
presentes cederam à incredulidade do surreal
acidente. Gritos cortaram aquele silêncio
pesado que a morte trouxera consigo. E
aquele corpo descabeçado jazeu ali, enquanto
a polícia não chegava. O sangue e os miolos
coloriam o negro asfalto da rua que tanto
tinha pra contar.
22
23. Entre e vistaTextículos
Chuteira no pé. Uniforme pronto. Na saída do
túnel as luzes do estádio se encontram com o brilho de
onze pares de olhos ansiosos e animados. A arquibancada
está lotada. A torcida canta, grita, aplaude, comemora.
Execução do hino. Mão no peito e lágrimas nos olhos.
A moedinha sobe rodopiando. O juiz apita
e mais um show começa. A pelota vai de um lado para
o outro, brincando com os pés dos jogadores, até que o
Camisa 10 a pega. A torcida delira. Um sorriso orgulhoso
aparece no canto dos lábios. Dribla um, passa por outro e
com maestria vai guiando a bola até o seu destino. E ela
chega! Feliz, ele comemora com os colegas!
Segundo tempo e mais uma vez ele brilha.
Joga como se estivesse dançando, brincando. Mas o rosto
está sério, muito compenetrado. Em frente ao gol um
companheiro lhe passa a bola e, com agilidade, surge
uma bicicleta. Marca mais um! Fim do jogo, fim do
Campeonato!
O time comemora. Ergue-o nos ombros. A
plateia aplaude emocionada. Aquele era o seu momento.
Ao longe, ele ouve uma voz conhecida.
- Garoto, vem almoçar!
Camisa 10
Leda Santos
Leda Santos é mais um ser
humano perdido. As únicas
certezas que ela tem é que cursa
Letras e que não sabe escrever
sobre si em 150 caracteres.
Aos poucos a torcida some. Os
companheiros de time se desmancham
ao vento, como fumaça. O estádio
desmorona. No seu lugar reaparece o
terreno baldio, a terra vermelha batida,
a velha trave de madeira. O menino se
abaixa, pega a bola remendada.
Descalço e sozinho, vai para casa
atender o chamado da mãe.
23
24. Entre e vistaTextículos
Por um elitísmo
inclusivo:
Eduardo Salles O. Barra
No último dia 26 de fevereiro,
completou-se 76 anos de fundação da antiga
Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras
do Paraná. A Faculdade foi fundada, então,
em 1938 e agrupada em 1946 às demais
faculdades que já integravam o núcleo inicial
da futura UFPR, que somente veio a assim
se chamada em 1950. Dos seus diversos
desmembramentos, surgiram vários dos
atuais setores da UFPR. A maior parte dos
cursos fundadores da antiga Faculdade –
nominalmente, filosofia, letras, ciências e
pedagogia – foi conservado no atual Setor de
Ciências Humanas, que se autorreconhece,
então, como a continuação histórica dessa
septuagenária Instituição.
Sirvo-me desse curtíssimo relato
histórico tanto para registrar a efeméride
transcorrida há pouco quanto para introduzir
o contraponto das minhas considerações sobre
um maravilhoso ensaio publicado na edição
28 (novembro de 2014) do admirável Boca do
Inferno, com o título “Antiantielitismo: como
o preconceito em torno da ideia de ensino
erudito condena a educação pública brasileira
a uma abordagem massificada e diluída do
conhecimento”, de autoria da estudante Suelen
Trevizan. Grosso modo, pretendo fazer da
comemoração do primeiro, um pretexto para
o elogio do segundo, e vice-versa. Começo,
então, resumindo em poucas linhas aquilo
que gostaria de discutir no artigo da Suelen
Trevizan. Basicamente, a autora sustenta
aquilo que o próprio título já anunciara: o
equívoco de, diante da tensão entre uma
educação inclusiva voltada ao contexto e às
necessidades mais imediatas dos alunos e uma
educação baseada na “alta cultura” e na crítica
à cultura de massas, optar pelo primeiro pólo a
fim de expurgar-se do irremediável elitismo do
segundo pólo. De modo direto e sem rodeios,
a autora se esmera em enfrentar com bons
argumentos o obscurantismo anti-elitista que
se abateu sobre a nossa escola pública: “somos
tão assombrados pelo medo da elitização
(...) que corremos para o extremo oposto – a
massificação da educação”. Mas ela não encara
a educação pública a partir de uma abstração.
Suelen desenvolve sua argumentação
alicerçada na memória da estudante que ela
foi (“tantas vezes voltei para casa ... louca de
vontade de amadurecer logo para ver que há
debaixo da pele das coisas”) e sobretudo nos
seus projetos para a professora que ela será
(“conheçamos o que veio antes de nós e o
conheçamos bem, pois só assim estaremos
cientes de onde podemos partir na construção
do conhecimento com nossos alunos”).
A Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras
do Paraná surgiu em meio a um movimento
de ideias e uma profusão de projetos para a
educação pública que, apesar da distância no
tempo, ainda guarda uma grande identidade
com as inquietações da Suelen e, quero crer,
de muitos outros estudantes dos cursos de
licenciatura da UFPR. Esse movimento ficou
conhecidocomoomovimentodosPioneirosda
Escola Nova, e foi liderado por Anísio Teixeira
e Fernando de Azevedo, entre outros. No
manifesto lançado em 1932, eles propuseram
algo extremamente revolucionário para a
época e cujas virtudes estão presentes ainda
hoje : a formação universitária de professores.
Àquela época, a única instituição voltada
à formação de professores eram as “escolas
normais”. Mas elas destinavam-se à formação
dos professores do que então se chamava
escola primária e, hoje, escola fundamental.
Para os professores do ensino secundário (o
atual ensino médio), não havia uma formação
específica – evidentemente, também eram
raras as escolas secundárias. As Faculdades
de Filosofia, Ciências e Letras passaram,
então, a ser projetadas como as instituições
responsáveis por suprir essa deficiência.
Em 1934, foi fundada, sob a liderança de
Fernando de Azevedo e com o apoio da família
Mesquita, proprietária do Jornal O Estado de
São Paulo, a Faculdade de Filosofia, Ciências e
Letras da USP. Em 1938, foi a vez da fundação
da nossa gloriosa Faculdade de Filosofia do
Paraná. E, no ano seguinte, foi fundada a
Faculdade Nacional de Filosofia, no Rio de
Janeiro, que mereceu da parte do Ministro
da Educação da época, Gustavo Capanema,
uma legislação específica, que foi estendida às
demais instituições congêneres.
As Faculdades de Filosofia, segundo o decreto-
lei nº 1.190/1939, destinavam-se a cumprir os
seguintes objetivos:
a) preparar trabalhadores intelectuais para
o exercício das altas atividades de ordem
desinteressada ou técnica�
b) preparar candidatos ao magistério do ensino
secundário e normal�
c) realizar pesquisas nos vários domínios da
cultura, que constituam objeto de ensino.
Esses eram exatamente os mesmos objetivos
– com ligeiras variações terminológicas –
que os idealizadores da nossa Faculdade de
Filosofia registraram na ata da sua fundação.
Ao longo dessas quase oito décadas de
existência, a Faculdade e os Setores que
a sucederam acumularam conquistas
importantes na realização de todos esses três
grandes objetivos. Todavia, do mesmo modo,
esse conjunto de proposições experimentou
também muitas revisões e reinterpretações,
que comprometeram sua consistência interna
e seu caráter sistêmico. Em particular,
uma certa divisão do trabalho acadêmico
– do qual emergiram as várias iniciativas
de desmembramento do núcleo inicial da
Faculdade – produziu uma dispersão dos
caminhos escolhidos para contemplar os
dois primeiros objetivos do referido decreto.
24
25. uma faculdade à altura
dos sonhos de Suellen
Creio que nessa dispersão se encontram as
origens da onda anti-elitista cujos excessos
foram apontados pela futura professora Suelen
Trevisan.
Há várias versões dos enunciados daqueles
três objetivos, que ocorrem em legislações e
documentos oficiais anteriores e posteriores à
fundação da Faculdade Nacional de Filosofia.
O que sempre perdura, a respeito do primeiro
objetivo, são as menções à “alta cultura” e
ao “saber desinteressado”. Trata-se de um
tema que mereceu um lugar de destaque no
manifesto escolanovista. Seus signatários
achavam escandaloso que no Brasil ainda
persistisse a idéia de que a “alta cultura” e o
“saber desinteressado” fossem exclusividade
das escolas destinadas às classes dominantes
da nossa sociedade. Às escolas destinadas aos
filhos das classes trabalhadoras, reservava-
se tão somente a formação técnica para o
trabalho, sem proporcionar-lhes os saberes e
bens culturas sem interesse prático imediato.
Para que a escola secundária antes destinada
às elites econômicas pudesse ser universalizada
e popularizada, seria necessário preparar
massivamente professores e proporcionar-
lhes uma formação para a “alta cultura” e o
“saber desinteressado”. Tudo indica que foi
justamente com essa motivação que os dois
primeiros objetivos foram pensados de modo
solidário e complementar.
Mas, exatamente quando e por quê, a
formação de professores divorciou-se da
preparação de “trabalhadores intelectuais”
habilitados ao “exercício das altas atividades
de ordem desinteressada ou técnica”? Essa
pergunta é apenas retórica, pois certamente
não haverá uma única resposta que a satisfaça.
No entanto, há indícios importantes do
ponto de partida desse divórcio e das razões
que levaram ao afastamento mútuo entre os
dois lados envolvidos, tanto que o segundo
reduziu-se àquilo a que justamente se destinava
a combater: o elitismo.
A meu ver, o ponto de partida dessa
divisão de águas estava presente no próprio
currículo dos cursos destinados à formação
de professor, previsto no mesmo decreto-lei
de 1939. São dessa legislação as designações
“bacharelado” e “licenciatura” e o atualmente
demonizado esquema “3+1”, isto é, para
formar-se professor, o estudante deveria
cursar três anos de disciplinas específicas da
área de conhecimento pela qual ele optou
(história, matemática, ciência ou filosofia,
por exemplo) e, em seguida, cursar mais um
ano de disciplinas pedagógicas. Se optasse por
encerrar o cursos após o cumprimento das
disciplinas específicas, o estudante poderia
requerer o grau acadêmico de bacharel. E,
se, além dos três primeiros anos, concluísse
também o quarto e último ano, ele estaria apto
a receber o grau de licenciado.
Nos últimos anos, vimos avolumarem-se as
críticas a esse esquema “3+1”, até o ponto
de decretá-lo extinto como condição para a
emergência de uma “identidade própria” para
a licenciatura (Res. CNE/CP 009/2001). Ora,
pergunto se no modelo anterior, estruturado
sobre o ideal da “formação universitária de
professores”, não havia de fato uma identidade
própria para a licenciatura. Não desconheço
que os bacharelados foram progressivamente
se insinuando como cursos autônomos (com
“terminalidade e integridade próprias”,
para usar os termos da mesma resolução
citada acima) e tornaram-se cada vez mais
valorizados que as licenciaturas, das quais
eram apenas uma etapa propedêutica. Mas
jogar com as armas do adversário, isto é,
exigir uma “terminalidade e uma integralidade
próprias” parece ter produzido um efeito
colateral altamente indesejável às licenciaturas:
o ocaso do projeto de “formação universitária
de professores” baseado no estreito nexo entre
o magistério e o trabalho intelectual.
Teremos nos próximos meses uma reforma
das licenciaturas, conforme prevê o Plano
Nacional de Educação, vigente desde 2014.
Seria uma grande notícia se, nas discussões
públicas sobre essa reforma, pudéssemos
contar com a participação de estudantes dos
cursos de licenciatura da nossa Universidade.
Sei que muitos deles têm inquietações e
propostas tão importantes e interessantes
quanto as que nos apresentou a Suelen no seu
ensaio. O Setor de Ciências Humanas, para
estar à altura de seguir com sua missão de ser
depositário do legado da antiga Faculdade de
Filosofia do Paraná, não poderá estar ausente
desse debate. Revisar, atualizar e defender os
objetivos norteadores dos nossos fundadores,
na forma de um renovado elitismo inclusivo,
entre outras tantas possibilidades menos
suspeitas de paradoxismo – talvez não haja
muitos outros modos de justificar por que
seguimos comemorando o 26 de fevereiro.
Eduardo Salles de O. Barra fez
graduação, mestrado e doutorado
em filosofia. Desde 2002, é professor
do Departamento de Filosofia da
UFPR. Suas pesquisas e orientações
concentram-se na área de história e
filosofia da ciência.
25
26. Entre e vistaTextículos
Elefante
Parece grande né. Pesado. Anda devagar. Como se nada afetasse muito. Eu também ando
devagar na rua. Queria aprender a ter essa indiferença. Cada passo parece um esforço, mas acho que
ele não se abala muito. Dizem que é um animal inteligente. Boa memória. Não sei se dá pra ter
muita inveja. Memória boa não parece ser uma das melhores qualidades pra um ser humano. Acho
que a vida seria melhor se a gente conseguisse esquecer rápido certas coisas.
Será que os elefantes – conhecem o perdão?
Nunca entendi muito bem aquela piada
decomo passar um elefantepordebaixodaporta.
Algumas lembranças antigas a gente
guarda na memória, sem muita distinção.
Geralmente, as que ficam são as memórias
associadas aos sentimentos, então não tem
muita regra, lembrar-se de fatos simples que
tenham algum significado pra vida inteira não
parece algo muito espantoso. As fotos ajudam
um pouco, nossa cabeça não é tão confiável
assim, dá uma embaralhada nas memórias de
vez em quando. A foto que tem na sala. Tenho
o que lá, dois anos? Com aquela camisa laranja,
comendo fandangos. Expressão inocente.
Foi você quem tirou. O gramado no fundo.
Zoológico no domingo. Acho que é uma das
poucas lembranças que eu tenho com você
nessa época. Mas no dia de que realmente me
lembro eu usava outra roupa. Era um pouco
mais velho, eu acho. Lembro-me daquele
portal de madeira na entrada, aquele gramado,
eu sentado na pedra, sol de meio de tarde. Não
distingo qualquer cheiro, nunca fui muito
bom com o olfato. Rinite. Deve ser. Apenas
aquela sensação de ar limpo que os campos
têm. Não é algo tão comum na cidade.
Você tirava todas aquelas fotos e
elas sempre saíam boas. Sempre foi assim,
também. E depois botava elas na parede da
sua sala. Algumas delas você nunca tirou de
lá, independente de ter se mudado de casa ou
de a gente passar vários anos se vendo muito
pouco. E aqueles quadros que fiz quando era
pequeno e te dei. Você sempre guardou. Um era
da escola, ainda. Por data festiva, essas coisas. A
casinha feita de desenhos geométricos e fundo
azul claro. Isso sempre me confundia quando eu
ia pra tua casa. Fazia-me questionar que talvez
você se importasse, mesmo que as circunstâncias
não indicassem muito isso. E eu nunca soube
muito bem como definir você. Tinha também
aquele outro, menos simples, o professor da vó
devia ter ajudado. O quadro de uma onça.
A onça não era um animal que eu
fazia tanta questão de ver quando a gente ia ao
zoológico. Ela geralmente ficava lá, no meio
das pedras, nem sempre aparecia. Quando
aparecia, era bonita. Tinha outros bichos
que eu gostava mais. O lobo-guará. Não
havia nenhum bicho parecido e eu o julgava
desconhecido. Gostava dele. A jaula dos leões,
de poder inquestionável, rei da selva. Também
não era meu preferido. O que eu mais gostava
era o tigre. Ficava fascinado, apesar daquela
jaula tão pequena. O Leão vivia numa espécie
de viveiro, com cabana, espaço pra correr
e um lago pra separar das pessoas, com um
par de leoas. O tigre não. Vivia numa jaula
pequena, de concreto, sozinho. Mesmo assim
não perdia a grandeza. Enquanto o Leão me
parecia aquele herói que esbanja e faz questão
de tornar público seus trunfos, o Tigre me
parecia aquele herói solitário, durão, que fazia
não por reconhecimento, mas por necessidade,
por honra. Um ronin do reino animal.
Eu me identificava com o tigre.
Queria ser como ele. Só que tentar lidar
com o mundo sozinho desgasta. O tigre foi
ganhando peso. Sua cor parecia estar, aos
poucos, desbotando. Apenas sua solidão e
sua inabalável postura sobreviviam ao tempo.
O tempo é um que não perdoa. Tente o que
for, ele nunca volta. Mas nada te impede de
tentar alguns truques para viver a ilusão de um
momento uma vez mais. Sem garantias.
Você também não escapou do tempo. Seus
cabelos foram ficando cada vez mais grisalhos.
Depois dos 50, a postura diante da vida
também já não parecia tão inabalável. Ainda
mais se ela continua a bater.
Você sempre me pareceu justo.
Honra. Não é de se ver muito isso, você parecia
tê-la. Você era o tigre. Sempre que me lembro
de você, o vejo sozinho. Mesmo quando estava
acompanhado, você sempre pareceu estar só.
Levando tudo nas tuas costas. Mas tudo em
relação a você. Sempre encarou os problemas da
sua vida sozinho, sem ter de recorrer a ninguém.
Digno. Mas seu caminho, afinal, é realmente
solitário. Fechado em seu próprio mundo,
não houve envolvimento seu em problemas a
sua volta, relacionados, indiretamente ou não,
a você. Talvez seja um fardo suficientemente
pesado carregar seu próprio peso. Não me
recordo de te ver em situação de contentamento
ou plena felicidade em momento algum da
minha vida, mas não seria capaz de entender.
Não o culpo por não se envolver, mas também
não compreendo. Há sempre uma escolha. O
que dói um pouco é saber disso.
A pele do elefante é dura.
Impenetrável talvez. De suas presas se
produz o marfim. Valiosa pedra. Mas de
difícil acessibilidade. Salvo um momento de
crise exacerbada, nunca me compartilhou
suas dores. Não sei muito bem que angústia
carrega, não sei muito bem o que sente. Sei
que o mundo te fez assim. Duro. Achava
que eu era diferente de você nesse aspecto.
Achava. Quanto mais vivo, mais sinto que me
aproximo de você nesse caminho. Talvez não
sejamos tão diferentes quanto eu achava que
fôssemos afinal. Talvez eu apenas ainda não
tenha vivido o suficiente pra me tornar como
você. Sangue não é água. Quem saberia dizer.
O elefante nunca me pareceu assim
tão interessante. Talvez a idade também mude
nosso mundo. Não é um animal que disponha
de artifícios suficientes para roubar de uma
criança a atenção que um ágil e majestoso
Gabriel Villatore Bigardi
26
27. Textículos
Dibujos
Seul Soldat
Miguel sigue molestando a Pablo y Juan. Allá de las
persecuciones y ofensas directas, dice a todos sus colegas que los dos no
pasan de maricones. Lo que ni imagina Miguel es que, al ver Pablo en
llantos, Juan ha elaborado un plan capaz de dar fin a la jodienda.
– Se van a acabar.
– ¿Qué?
– Las persecuciones de Miguel van a tener un fin.
– No van a terminar, Juan. Mientras seguimos en este
colegio, Miguel no va a dejarnos en paz. ¿Sabes qué? Anoche he hablado
con mi mamá y quiero cambiar de cole. Yo te pido que vengas conmigo.
– No, no vamos a ningún lado. Sólo eso te lo aseguro: que
sí, que van a acabar.
Más tarde, en clase.
– Profe, ¿has visto mi caja de lápices? Sí, hay más de cuarenta
y dos tonos de colores distintos. Mi mamá pidió que yo tuviera
cuidado porque costó muy caro. Le prometí que sí, que tendría. De
esta manera, he podido traerla al cole.
En el recreo, Juan pone tres lápices de la caja dentro de la
mochila de Miguel. Cuando todos vuelven a clase…
– ¡Profe, me han robado! ¡Me han robado algunos lápices de
la caja! Dime, ¿qué voy a hacer ahora? ¡No! ¡Seguro que me han robado!
Mi mamá me va a pegar, ¿qué voy a hacer? Tienes que buscar en las
mochilas, profe. Seguro que así los encontramos.
Al ocurrir la inspección, tres lápices –similares a los de
la caja– fueron encontrados en la mochila de Miguel. Juan y Pablo
no volvieron a ser molestados. Ya Miguel, este tuvo que cambiar de
colegio puesto que todos le pasaron a decir: ladrón.
Seul Soldat nasceu em 1992, na capital da
Paraíba. Em Curitiba desde jan. de 2013, foi
o amor quem o trouxe pelo braço. Graduando
em Letras PT/ES desde então.
carnívoro proporciona. Agora já parece
admirável, a fortaleza que é. Apesar de todas
as suas limitações, ele é impossível de passar
despercebido. Ao menos eu achava isso. Não
sei se é você quem finge não ver, mas parece
que aquele elefante nunca sai da sua sala. Ele
também está lá quando eu estou aí com você.
Não sei dizer se você já se perguntou como
fazê-lo passar por debaixo da porta.
Conhece a história dos cegos? Que
cada um botava a mão sobre um elefante e
interpretava algo diferente? História da minha
vida. Sobre antes de eu ter qualquer noção
sobre ela, mais precisamente, mas não menos
importante. Cada um diz uma coisa e não
me resta nada a não ser tirar minhas próprias
conclusões. De qualquer forma, já não importa
muito. Certo ou errado, ausente ou não, tudo fica
pra trás. Castigo para o elefante ter boa memória.
O tempo que passa também
amadurece relações; confiança requer tempo,
tempo requer paciência. Outra qualidade
do elefante. Passa-se a haver envolvimento.
E sobre cinzas de cigarro, lembranças e
sentimentos, o elefante que estava na minha
sala pareceu ganhar forma. Também o ignorei.
Cansa um pouco assistir aquele gigante de
bruços no canto da sala. Deixava-o quieto.
Mas ele cresce. Vai ficando maior. Quando a
gente nota, ele já está ocupando um grande
espaço. Ignorá-lo não resolve mais. Quando
se resolve encará-lo de frente, ele toma forma.
Então o elefante se torna real.
Nunca me pareceu fazer sentido
um elefante conseguir passar por debaixo
da porta. Impossível, eu pensava, é grande
demais. Mesmo com a resposta, me parecia
algo absurdo. Agora talvez eu entenda.
Entenda que alguns elefantes vivem na nossa
casa. Entenda que um elefante possa ter
diferentes formas. Entenda que um papel de
carta também possa pesar uma tonelada.
Pensei se talvez um dia você lesse
isto e o elefante fosse embora.
Então resolvi botá-lo dentro de um envelope.
Pra ver se ele cabia.
Gabriel Villatore Bigardi, tem
20 anos e está no terceiro ano de
Filosofia na UFPR. Nasceu em
Curitiba, em 1995, já morou em
São Paulo e fora do país (o que
dependendo da interpretação pode
significar a mesma coisa). Escreve
desde os 13 anos, e se pudesse
escolher viveria fazendo isto. Esta
é a sua primeira publicação.
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28. Entre e vistaTextículos
PODE FICAR COM ELA PRA VOCÊ
Eu trabalho numa dessas lojas
cheirosas cama-mesa-banho. Aqui você
encontra toalhas, o próximo departamento
é o de lençóis, depois cobertores, edredons.
Segue por esse corredor e você vai achar
tudo aquilo que procura. Tem uma seção de
pijamas, sabonetes e aqueles cheirinhos de
capim-limão pra botar na gaveta de calcinhas
e tudo mais. Faz uns dois anos que tô nessa.
Não era o projeto da minha vida, mas sabe
como é, a gente se acomoda e vai ficando.
Fiquei. A dona, que trabalha no caixa, nunca
para de falar. Como grita essa mulher. Com
o tempo a gente se acostuma e nem ouve
mais. É bom o movimento por aqui. Muita
gente procurando presente de casamento, não
moça, aqui não é a Zelo, não, senhor, aqui a
gente não vende a fragrância da mmartan.
Muitas pessoas gastando dinheiro à toa
também (quem é que precisa comprar dez
jogos de cama de uma só vez?)
Eu gosto mais de ficar organizando
o estoque, dobrando os lençóis de elástico
(sim, eu sei fazer isso) que as pessoas insistem
em tirar dos pacotes mesmo com vários
“Senhores clientes favor não abrir os lençóis,
Obrigado, à Gerência” espalhados pelas
paredes. Já fiquei muito tempo pensando
sobre essa crase aí. Sabe, do nada você tá lá
pensando onde é que vai crase. Enfim. Prefiro
ficar organizando a loja do que atendendo os
clientes. É meu jeito. A gente não ganha por
comissão e o silêncio é uma oportunidade
que não deveria ser desperdiçada com tanta
frequência. Devia dizer isso pra dona. Eu
fico pensando nessas coisas enquanto separo
as toalhas da Peppa e os roupões do Ben 10,
essas crianças de hoje em dia não têm jeito. Na
minha época era sentar e fazer cabaninha com
uma toalha tipo um pano de chão e esperar a
mãe vir me secar. E ainda tinha que dividir o
tapetinho de crochê com meu irmão. Daonde
essa história de roupão pra criança. Sério.
Com 59,90 eu pago um terço das minhas
contas, fora o aluguel. Enfim.
Esses dias eu estava etiquetando
umas mercadorias novas e uma senhorinha,
senhorinha mesmo, bem velhinha, dava uns
oitenta anos pra ela fácil, veio me perguntar
sobre essas colchas que tavam na promoção.
Que tamanho a senhora precisa? E ela tentou
mostrar pra mim com os braços qual era o
tamanho da cama dela. Porra, como é que
eu ia adivinhar um negócio desses. Não fode,
senhora. Pelo jeito que ela fez, parecia que
era casal normal. Ela não conseguia abrir os
braços direito. Talvez fosse uma cama box de
solteiro meio grande. Viuvinha que chama.
Acho que ela morava sozinha. Olhei em volta
procurando um parente. Ela parecia sozinha.
Mostrei as opções de florzinhas, as listradas, as
de bolinhas, patchwork da moda e tudo. Ela ficou
olhando uma por uma durante uma meia hora.
Ai meu saco, viu. Faz tempo que você trabalha
aqui? Faz, senhora, um tempo. Gostei dessa
florida, dá uma animada no ambiente, você não
acha? Deve combinar com o quarto da senhora,
senhora. As orelhas dela eram enormes, tipo
grandes mesmo. A pele pelancuda despencando.
O nariz até que nem tanto. Ouvi dizer que
nariz, orelha e cotovelo nunca param de crescer.
Cartilagem, parece. O rosto dela tinha várias
camadas, como se ela fosse uma árvore que troca
de casca todo ano e fica com um círculo a mais
se a gente corta ela de lado pra ver. Será que se
eu cortar a velhinha de lado ela vai ter tantas
camadas quantos anos ela parece?
E desse aqui, você gosta? Era um
listrado feio, meio-amarelo-meio-verde.
Estranho. Depende do ambiente, senhora.
Olhando assim não é muito bonito, não, mas
pode ficar bom, a cama arrumada, o quarto
limpinho, cada coisa no lugar. Uma cama bem
feita faz toda a diferença. Verdade. De todas, qual
você gosta mais? Acho que dessa azul aqui. Azul é
cor de quarto, a senhora não acha? Então eu vou
levar essa mesmo. Pareceu que eu fiquei umas
duas horas com a velhinha. Eu não consegui
parar de olhar as pintas dela. A cara dela. A cara
velha e as camadas. Acho que a gente levou uns
dez minutos até conseguir chegar no caixa. O
vestido comprido deixava ver as pernas verdes
de tantas varizes. Ela não usava bengala nem
nada, mas acho que tava precisando. Vendedor
tem que ser atencioso o tempo todo. Às vezes
é um porre. Chegando no caixa agradeci muito
a senhorinha e aí deu pra ver os olhos meio
amarelados dela por trás das lupas. Ela abriu a
bolsa e tinha várias caixas de remédio soterrando
a carteira. Ela pagou e eu ia pegar a sacola pra
levar até a entrada pra ela, tadinha. Aí ela disse
que estava muito cansada pra levar aquele peso
todo até em casa e perguntou se podia passar
pra pegar no dia seguinte. Pode sim, a gente
deixa com seu nome, Dona... (Pelancas, pensei,
rindo). Antônia. Dona Antônia. Ela agradeceu e
foi caminhando pra fora da loja. Ainda bem que
ela não levou a colcha porque eu não sei se ia
ter paciência de acompanhar ela até a entrada.
Voltei a colocar etiqueta nos produtos que
tinham chegado.
No dia seguinte era minha folga. Depois
me disseram que a senhora tinha passado na loja e
perguntado por mim. Disseram que eu não ia pra
loja naquele dia e mesmo assim ela ficou esperando,
conversando com os outros funcionários. Olhou a
loja toda, disseram, sempre perguntando. Quando
teve certeza que eu não ia mesmo, disse que não
ia levar a colcha, que eu podia ficar com ela. Não
teimei: o cliente tem sempre razão.
Tempos depois percebi que tava na
hora de trocar minha roupa de cama. Pensei
na colcha da velhinha. Cheguei em casa e
coloquei a colcha nova, aquela sensação boa
de lençol cheirando lavanda, o tecido muito
macio ainda. Escovei os dentes, liguei a tv.
Dona Antônia não apareceu mais na loja.
Fiquei pensando quantos edredons e colchas
e porta-travesseiros e panos de prato ela tinha
deixadoemoutraslojasporaí.Talvezelativesse
morrido. Tão velha que suas raízes saíram do
corpo e se fincaram no chão. A imagem era
bonita. Eram muitas camadas. Quem sabe ela
não estava passando férias com os netos, os
filhos ainda felizes de terem a mãe por perto e
com um remorso ruim por sentirem o peso de
ter que ficar cuidando de uma velha. Pensando
bem, acho que não. Ela não parecia ter os
braços de quem sabe abraçar, e avós servem
pra isso. Fechei os olhos, coloquei a colcha
sobre a cabeça e, conforme sentia o sono
chegar e o corpo esquentar, minha solidão ia
sendo, aos poucos, compartilhada.
***
Por muito tempo achei que a ausência é falta.
E lastimava, ignorante, a falta.
Hoje não a lastimo.
Não há falta na ausência.
A ausência é um estar em mim.
E sinto-a, branca, tão pegada, aconchegada nos
meus braços,
que rio e danço e invento exclamações alegres,
porque a ausência, essa ausência assimilada,
ninguém a rouba mais de mim.
Carlos Drummond de Andrade
(com o pensamento em Gabriela)
Gabriela Ribeiro nasceu em São
Paulo há 22 anos, é estudante de
Letras há 4, há 9 descobriu que gosta
de escrever, há 1 guarda textos no
agabilleria e há aproximadamente
3 minutos decidiu que acha legalzão
falar de si mesma na 3ª pessoa.
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29. Entre e vistaTextículos
A MORTE SUTIL DE CAMILO CALADO
Você viu o que houve? Que horror! Que
pecado! Morreu de silêncio o Camilo Calado, esmagado
por tudo o que disse que disse e não disse de fato,
coitado... há quem mereça um destino tão triste?
Camilo, o poeta das coisas discretas, da tinta
pesada, das sinas secretas, o Camilo que um crítico
chamou de Caminski - Leminski e Bukowski com tons
de Kandinsky - olhou-se no espelho e viu-se cansado,
apagado e abatido, calado e gelado, gelado, gelado.
Gelado?
Sim, o inevitável: o gelo enfim havia chegado,
o legado maldito que tanto temia! Ali estava ele, o
cancro translúcido que consumira sua mãe, gelando-
lhe o peito como uma espada. Olhou mais de perto e
encarou a verdade: sim, o estigma gélido roubava-lhe a
carne! Cristais glaciais revestiam seus ossos, seu sangue
um rio de águas azuis. Sua pele era agora uma pequena
geleira, escotilha improvisada por onde podia espiar
suas entranhas, tão estranhas, tão brutalmente belas.
Viu suas costelas, tão brancas com suas seletas sequelas,
as mágoas que o tempo ali entalhou. Viu seus pulmões,
preenchidos de um ar siberiano magoado e mortal. Viu
seu coração, a atração principal: o pobre coitado ainda
batia, que alívio!, pulsando em silêncio em seu casulo
ululante, prisão de mais puro vidro invernal.
Há dias sabia que o gelo viria, alertado por
ataques de repentina apatia, avisado por vis calafrios,
sintoma-sentençaquereconheceudeimediato,pobrediabo.
Constatando enfim quão concreto o destino,
Camilo chorou sem lágrima alguma, como só ele
sabia chorar. Lembrou lentamente da morte da mãe,
já congelada dos pés ao pescoço quando fora ceifada,
levada por ventos de terras distantes, países sem nome
onde o sol já morreu.
Escrevera sobre ela, é claro, sonetos e odes e
versos amorfos, poemas bizarros que poucos amaram.
Admiravam a força de suas metáforas, sem saber que
não usava metáfora alguma. Não quando falava dela.
Não quando falava de si.
Era infeliz seu destino, mas havia improváveis
vantagens na morte vindoura: a proximidade do abismo,
lento e faminto, permitiu que compreendesse finalmente
por que diabos não o ouviam, por que o achavam tão
quieto e soturno, por que o chamavam Camilo Calado.
Era tão simples: não entendiam porque não
sabiam! Não sabiam quem era nem de onde vinha. Não
sabiam seu nome nem do que era feito. Não conheciam
os becos secretos e as ruas rebeldes de sua impossível
cidade natal, povoada por monstros e anjos caídos,
iluminada pela lua mais sincera e o sol mais senil.
Não conheciam a tristeza inerente à sua terra, onde os
homens caminhavam ao lado dos sonhos, onde tudo e
todos eram questões metafísicas e a poesia era o próprio
concreto do mundo.
Não, Camilo Calado não o era de fato! Tinha
muito a dizer, tinha gritos a dar, mas só na poesia é que
era escutado, coitado.
Suspirou e sorriu e socou o espelho. Gargalhou
e gritou e sangrou no banheiro. Deitou-se então, braços
cruzados sobre o peito gelado, um pecador em seu leito de
morte. Fechou os olhos, acolhendo a escuridão, e perdeu-
se em memórias ao som sem sentido do ventilador.
Teceu ao seu redor um casulo de silêncio
puro, silêncio proibido, o silêncio perfeito dos mudos e
mortos. Enclausurado em seu calabouço de ar, Camilo
Calado enfrentou seus pecados. O gelo implacável das
coisas não ditas o forçava a fazê-lo.
Sabia que nunca dissera o que era preciso. Não
confrontou o vizinho festeiro que não o deixava dormir,
nem o peixeiro malandro que lhe vendera meio quilo
de siri estragado. Não explicou ao mundo que era um
estranho. Não disse aos amigos que estava falido. Não
disse ao médico que não via mais cores. Não contou a
Marina que amava Lorena (e tampouco o contrário!),
nem admitiu a Vitória que sabia que o guri era seu. Não
disse à mãe que a amava, a louca!, não disse ao pai que
queria matá-lo, não disse a si mesmo que ainda não
queria morrer.
Torturado pelo silêncio carrasco, Camilo
entregou-se ao abraço dos sonhos, deixando a corrente
do sono o levar. Acordou em um novo universo, um
mundo inverso onde andou com os mortos, sonhou
com os vivos, passou muito perto da terra abstrata onde
nasceu. O gelo sumiu sob o sol desse mundo, farol que
desenhou pra guiá-lo em seu rumo. Caminhou sob
a luz de cabeça erguida, certo de que a morte ainda o
espreitava, mas sabendo que agora essa morte era sua, só
sua, e não aquela que o gelo queria, fria e solitária e sem
sentido nenhum.
Perdeu-se no labirinto letal de seus sonhos,
engolido por ventos e luzes e cores, apagado do mundo
como um breve borrão. Camilo morreu uma morte sutil,
melancólica e frágil, uma morte que poucos homens
morreram. Sem música ou flores, sem cor, sem poesia,
sem nada.
Era a morte que queria? Quem sabe. O morto
nunca o disse a ninguém.
Foi seu editor quem o encontrou - ou melhor,
encontrou suas roupas, pijamas vazios, molhados e
frios, dormindo em silêncio sozinhos no escuro, caídos
na cama estreita de onde o poeta partiu. O ventilador
ainda girava no teto, mas já não fazia barulho algum.
Não havia mais livros no quarto, outrora quase uma
biblioteca. Seus muitos poemas ainda incompletos
tiveram o mesmo súbito fim que o autor.
O poeta deixara apenas uma única página,
deitada na mesa como se arrependida: o obituário
solitário que poucos jornais se dispuseram a publicar.
Dezlinhasvazias,escritasaesmoemsilêncioincolor.
Luciano Simão cursa Letras na UFPR e Jornalismo
na PUC. A cada dez textos que escreve, queima
nove. Nunca se arrepende ao ver as cinzas.
29
30. Carolina Soares F. de Araújo,
24 anos, trabalha como ilustradora
no momento, a maioria de seus
trabalhos são de ilustrações para
livros, livros infantis...
carolaraujoart.tumblr.com/
30
31. Entre e vistaVersário
Vê? Esse, o canino solitário,
essa, a boca mãe de filho único.
Vê? Como aquele canino é teimoso,
luta sozinho, uma luta com palavras,
pende quadrado da gengiva ensebada.
Ouve! Essas palavras saem raivosas,
cólera contra o pingente ancestral.
O canino solitário,
naquela boca enorme, rouba-lhes o sentido.
Ouviu o verbo profano que sai daquela boca?
...
Vê? É por isso que a palavra te atropela,
aquele mineral cria um ranço na tua atenção,
coloca um Eu no teu caminho.
VÊ?
Tiago Goes Cardoso
Tiago Goes Cardoso é
graduando em Letras pela
Universidade Tecnológica
Federal do Paraná.
31