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Jornal dos estudantes de Letras da UFPR | Edição 29 | Fevereiro 2016
NESTA EDIÇÃO Amyr Hamud, Bruna Motta, Carla Mota, Daniele Cristyne, Eduardo Salles O. Barra,
Eduardo Soczek, Elizabeth Cristina Froma, Fábio Dantas Amaral Lisbôa da Silva, Gabriel Villatore
Bigardi, Gabriela Ribeiro, Guilherme Bernardes, Iamni Reche, João Arthur Pugsley Grahl, João Vitor G.
Candido, Leda Santos, Luciano Simão, Matheus Hatschbach, Raul Inoue, Rebeca Lessmann, Seul Soldat,
Silvio Menezes da Silva, Tiago Goes Cardoso, Vinícius Figueiredo, Yuria Santamaria Pismel (Di Chiara)
Entreevista Índice
03
Editorial
Anna Legroski
Juliana Correa
14
Entre e Vista
João Arthur Pugsley Grahl
Editores do Boca
23
Por um Elitísmo
Inclusivo
Eduardo Salles de O. Barra
32
Semana de Letras
Carla Mota Menezes
04
Raul Inoue
Silvio Menezes da Silva
Guilherme Bernardes
05
Rebeca Lessmann
06
Yuria Santamaria Pismel
07
Iamni Reche
Fábio D. A. Lisbôa da Silva
08
Bruna Motta
09
Matheus Hatschbach
31Tiago Goes Cardoso
Versário
Traduções
10
Vinícuis Lima Figueiredo
11
Guilherme Bernardes
João Vitor G. Candido
12
Elizabeth Cristina Froma
Mario Halley Mora
20
Amyr Hamud
Textículos
18
Eduardo Soczek
22
Carla Mota Menezes
23
Leda Santos
24
Seul Soldat
27
Gabriela Ribeiro
29
Luciano Simão
Entre e vistaEditorial
	 Apesar de demorada, é com enorme prazer que
trazemos à luz esta edição do Boca do Inferno. É uma edição
que representa, antes de tudo, o crescimento do nosso jornal
(nosso mesmo: meu, seu, de todos): recebemos cerca de
130 textos para a seleção (a título de comparação, na edição
passada recebemos pouco mais de 30 textos). É claro que não
foi possível publicar todos eles, devido ao espaço limitado,
mas é certo que cada um deles ajudou a construir esta edição,
mesmo os que não estão sendo publicados agora. A todos os
autores que quiseram participar, fica o nosso agradecimento
e o convite para que continuem mandando os textos para as
próximas edições.
	 Outro fato que ocorreu nesse meio tempo entre
esta edição e a última foi a inclusão do Boca do Inferno no
acervo de periódicos da Biblioteca Pública do Paraná, o que
representa o reconhecimento do nosso trabalho (tanto dos
editores, autores e colaboradores), que faz com que todo o
esforço tenha valido ainda mais a pena. A isso também somos
gratos e sempre seremos.
	 Crescemos também no nosso corpo editorial,
que aumentou para 14 pessoas. Temos agora alunos de
licenciaturas e bacharelados em Português, Alemão, Francês,
Espanhol, Grego e Inglês, além do Mestrado em Estudos
Literários. Com certeza a adição dos novos membros, que
são de todos os anos do curso, contribuiu em muito para
o crescimento do jornal. Além disso, demos os primeiros
passos em outros projetos importantes para o futuro do nosso
periódico preferido e que devem aparecer em breve.
	 O nosso objetivo, desde a edição 27, como membros
do corpo editorial, segue maior do que apenas publicar textos,
mas também oferecer aos nossos alunos a oportunidade de
aprender. Aprender na prática a revisar, diagramar e avaliar
textos com base no que aprendemos na faculdade, aprender a
lidar com as críticas, com as discussões, com os elogios. Espero
que essa experiência tenha sido tão engrandecedora para os
nossos colegas editores como foi para nós duas.
	 Quando desejamos vida longa ao Boca, desejamos,
principalmente, que a oportunidade de ter um espaço para
a publicação aberta, dos alunos pros alunos, seja mantida.
Tentamos fazer, da melhor maneira que podemos, um jornal-
com-cara-de-revista que une a voz artística dos alunos, seja
por meio das poesias, dos contos, dos artigos, das ilustrações e
de tudo que faz esse jornal ser o que é, e, perdoem a modéstia,
estamos indo bem. Estamos na edição 29 com corpinho de
27 e a certeza de que muitas outras virão. Mas não custa
repetir: vida longa ao Boca!
Vida longa ao Boca!
Anna Legroski
Juliana Correa
Juliana Correa foi uma das editoras-chefe desta
edição do Boca e quase enlouqueceu no processo.
Anna Legroski foi a outra editora-chefe e tentou
ajudar a Juliana a não enlouquecer.
3
Versário
RaulInoue
SAL E SOLIDÃO
Eu venho do arco.
Sangrado, singrado a barco.
Sobrevivente carniçal.
Navegante de presságios maus
Que nessa noite azulada,
Perde a bela nau entalhada.
A madeira da proa desintegra.
O estalo que encontra na pedra
Parte o teixo marinado
Enquanto ignoro os gritos do imediato.
Sinto a onda me bofetear.
Um misto de som e tato,
Acompanhado da sensação de devagar.
Imersar na fundura engolidora.
A pilhagem me sobrevoa.
Banham-me colares de rubis,
Taças de ouro, broches de prata vis.
Ainda afundo.
Lembro-me dos amores imundos,
Das mentiras que contei.
Traições, assassínios, beijos que não dei.
Do rapaz da pólvora, meu maior espólio.
Todos somem, fecho os olhos.
E de súbito o naufrágio cessa.
Absorto, amaldiçoo o titã anil.
Berro por cem anos,
Morro depois de mil.
(CÍRCULO EQUILÁTERO)
não
espero
que o mundo
dê as verdades
e certezas que nos
desesperamos a achar
como se existisse sempre
algum padrão escondido com a
pretensão de tirar as dúvidas da
existência pois aqui tudo é caos e eu
	[….]
saudade
vazio
leito formado
correndo sem rio
Guilherme
Bernardes
SilvioMenezesdaSilva
BIFURCAÇÃO
			
			para Aion Roloff
Por muito manteve-se em linha reta
(ou pelo menos era assim que via),
até que, para o fim de sua alegria,
por obrigação, seu andar aquieta.
Forçado a seguir somente uma seta,
não imaginou que chegasse o dia
que, qualquer que fosse, a escolha seria
sem linha ou volta, como foi em Creta.
Por não saber onde o perigo espreita,
achou melhor não ir pela direita
e olhou atento para o outro lado.
Temeu que significasse uma perda,
por isso também não foi pela esquerda,
ficando para sempre ali parado.
4
Natural de Curitiba e nascido em 1992, Raul
Inoue cursa Letras Português na UFPR.
Faz poesia desde os doze anos e atualmente
treina a arte do desenho livre.
Guilherme Bernardes não faz a barba há anos e
corta as unhas esquerdas antes das direitas. Publica
esporadicamente em reconceber.wordpress.com
Rebeca Lessmann estuda Letras na UFPR. Ama ler e
criar histórias que, eventualmente, viram palavras em
atmosferadeareia.wordpress.com.
Silvio Menezes da Silva. Nascido em 14 de
agosto de 1961 em Lages, SC. Ama os livros
e escreve para poder sentir de perto o encanto
das palavras, e suas múltiplas faces e amadas.
Rebeca
Lessmann
CIRANDA DE PEDRA
Afundei na calçada das cidades empoeiradas.
Arranha-céus engolem constelações
e derrubam esperanças infantis.
Pessoas nas cirandas
fixas por fina pedra
e árvores de
cimento
frio e
sol
5
Versário
Yuria Santamaria Pismel
(Di Chiara)
VENTANIA
Cândida luz de teu orvalho
Reflete em plena rua
No cascalho
Desenho em sombras saltitantes
Sobras de vela que flutuam.
Soprar do vento reduz o silêncio
Rancoroso grita ao fogo e à cera
E em seu gozo de seguir cantando
Apaga a chama
E derrama o orvalho
Em sua veloz saideira.
ALENTO
Sobre as cabeças
Lavando os traços
De cada passo,
Luar de outono
Gotas de chuva
Faróis da alma.
Respiro fundo
Sinto-me leve
E acompanhada.
ESSÊNCIA
Teus olhos
Cor de ouro
Refletem o brilho
Fresco
De teu amanhecer.
Yuria Santamaria Pismel adota o nome artístico de Yuria Di Chiara.
Mora em Curitiba é estudante de História na UFPR, poeta e pianista. Para
divulgar sua arte, participa de coletivos literários, saraus de declamação e
varal de paesias. Quer um dia publicar um livro, mas enquanto isso não
ocorre, divulga sua arte na página facebook.com/botoesdeprosa e no blog
botoesdeprosa.wordpress.com
6
Iamni Reche
III.
Quando a tua linguagem
Introduzo na boca
Me inventa
Toda a realidade
Com sentidos
Que não alcanço
Enquanto
Os contornos de dentro
Assumem uma intensidade
Que não vai se repetir
O toque arde na pele
Se supondo último
E, súbito,
Outra lágrima
Pende do rosto
Desliza na pele:
O tanto de carícia
Que setembro guarda
Iamni Reche nasceu e cresceu em
Curitiba, de onde escreve o tempo todo.
Fábio Dantas
Amaral Lisbôa
da Silva
AFOGAMENTO
Afogou-se...
Viu a luz se perder
Ao combater a lâmina d’água
E perder o combate.
Todas as coisas ondularam.
Tudo que era plano e reto
Dançou a dança mais sinuosa de todos os tempos
E seus olhos deliraram com o claro do sol.
Tanto se focava no apelo visual daquilo
Que tardou para sentir a agonia chegar
Trazendo-lhe o natural martírio da falta de ar.
Quando deu pelo vazio de seus pulmões
Quase nada mais havia
Senão uma beleza translúcida
Que já distante jazia.
Afogou-se, então;
Bolhas lhe saíram da boca
Sem palavra de despedida.
Afogou-se
Lembrando-se só da beleza
Sem dor, tédio ou agonia.
Fábio Dantas Amaral Lisbôa da Silva, 3 de outubro
de 1990. Escreve mais do que lê. Coleciona discos, tem
mais discos do que relacionamentos. Preza as palavras. É
poeta, historiador e escritor de todas as coisas. Encontre-o
em fabiodalsilva@gmail.com.
Versário
7
Versário
Bruna Motta
PASSAGEM
dentro do meu segredo
me aconchego
me refaço de pedra
rochedo rijo que não desata.
preciso do silêncio, do absoluto silêncio
de infinitos de mar ou de mata;
onde imensidões se encontram,
onde desabam as águas das cataratas.
descubro a solidão necessária
para partir
desfazendo-me do tempo e do espaço
e vivendo momentos de íntima ilusão.
sintomas de cansaço.
na singela sinfonia
o corpo vai dançando
em direção aos braços
da natureza agreste.
nos atalhos nos desvios desvarios
é onde está o novo recomeço!
finalmente existo
mesmo que dentro do meu esconderijo existo
fuga vida regozijo
exerço a minha loucura com permissão.
delitos são desfeitos ao som do mantra
a harmonia e o ritmo vão sendo restaurados
o estômago borbulha alvoroçado
as mãos tocam o caminho de veludo
os olhos refletem as estrelas.
da fina linha do equilíbrio
vi meus pés escorregarem.
caio desvairada cega virgem
até me encontrar nas nuvens.
nuvens são escadas rolantes
que desembocam no átrio esquerdo do coração.
lá eu esbarro no cerne de toda a vida
a justificativa.
sou embalada por um sono delicado
repleto de entorpecimento e paralisia.
sentidos e sentimentos se entrelaçam:
duas grandes massas de ar
que se chocam que se rompem que se criam.
- fujo muito daqui, sabia?
Bruna Motta. Aquariana. Estuda Letras.
Publica em sua página Provável Véu da Farsa.
Escreve versos para não soterrar.
8
Entre e vistaVersário
nunca fui de ler horrores
de ter estilo próprio
citava influências
referências
todas falsas
quais sabia só frases
nunca senti a beleza
num poema
senti já inveja
ah! a inveja.
não de poema,
não,
de sucesso.
Todavia, me perseguem
os poetas
inapelavelmente cultos que
nada foram senão líricos
quem me dera
ouvir uma voz
humana.
“EU TANTAS VEZES IRRESPONDIVELMENTE PARASITA”
Matheus Hatschbach
Matheus Hatschbach nasceu em novembro de 95, cursa
História e Direito e participou do livro “Desnamorados”.
Publica no blog devaneiostropicais.wordpress.com.
Que vá torta
a maldita linha.
9
Traduções
Vinícius Lima Figueiredo
Nascemos para resistir àquilo que o corpo sustenta.
Resistimos ao que veio e resistimos ao que virá,
Resistimos ainda que tenhamos os segundos contados.
Nosso corpo resiste até quinze minutos enforcado.
Resistimos às chicotadas e que nos cortem os dois braços,
Fraturas em qualquer osso: três semanas com um gesso.
Resistimos a todo o tempo às vontades de ir ao banheiro.
Para ver o cometa Halley, tem-se que resistir por setenta anos.
Resistimos à escola, à faculdade, à Academia.
À hora de jantar, resistimos aos arrotos.
O povo de Burundi continua resistindo à fome.
Resistimos por três dias para chegar à Lua.
Resistimos ao frio do ártico, ao calor dos trópicos.
Resistimos, com anticorpos, aos vírus microscópicos.
Resistimos às tormentas, aos furacões, ao clima ruim.
Resistimos a Nagasaki, resistimos a Hiroshima.
Ainda que não queiramos, resistimos às novas leis.
Resistimos, atualmente, que ainda existam reis.
Castigamos o humilde e resistimos ao cruel.
Resistimos a ser escravos por nossa cor de pele.
Resistimos ao capitalismo, ao comunismo, ao socialismo, ao feudalismo,
Resistimos até ao piá-de-prédismo.
Resistimos ao culpado, quando se faz de inocente.
Resistimos, a cada ano, ao nosso merda de presidente.
Pelo que foi e pelo que podia ter sido,
Pelo que há, pelo que pode faltar,
Pelo que virá e por este instante,
Um brinde à resistência
Pelo que foi e pelo que podia ter sido,
Pelo que há, pelo que pode faltar,
Pelo que virá e por este instante,
Levanta o caneco e vamos brindar pela resistência.
Um brinde à resistência!
Resistimos a qualquer tipo de dor, ainda que nos fira.
Resistimos a Pinochet, resistimos a Videla,
A Franco, Mao, a Ríos Montt, a Mugabe,
a Hitler, a Idi Amin, a Stálin, Bush, a Truman, a Ariel Sharón e a Hussein.
Resistimos a mais de vinte campos de concentração.
Quando se nada embaixo d’água, resiste sem respiração.
Para construir uma parede, a revestimos com azulejos.
O que não fuma resiste ao cheiro do cigarro.
Resistimos a que Monsanto infecte nossa comida,
Resistimos ao agente Laranja e aos pesticidas.
Quando navegamos, resistimos ao enjoo.
Resistimos ao salário mínimo e ao desemprego.
Resistimos às Malvinas e à invasão britânica
e, na cidade de Pompeia, resistimos à lava vulcânica.
E dentro da lógica
Da nossa humanidade, acreditamos na mentira de que ninguém
resiste à verdade.
Pelo que foi e pelo que podia ter sido,
Pelo que há, pelo que pode faltar,
Pelo que virá e por este instante,
Levanta o caneco e vamos brindar pela resistência.
Um brinde à resistência!
Resistimos ao ateu, ao mórmon, ao cristão,
Ao budista, ao judeu,
Resistimos ao pagão.
Resistimos ao que vende balas e ao que as dispara,
Resistimos à morte de Lennon, à de Víctor Jara.
Resistimos a muitas guerras, à do Vietnam, à Guerra Fria,
À guerra dos Cem Anos, à Guerra dos Seis Dias.
Que resistam à revanche, viemos ao desquite.
Hoje nosso fígado resiste ao que o balcão insiste!
Pelo que foi e pelo que podia ter sido,
Pelo que há, pelo que pode faltar,
Pelo que virá e por este instante,
Um brinde à resistência.
Pelo que foi e pelo que podia ter sido,
Pelo que há, pelo que pode faltar,
Pelo que virá e por este instante,
Levanta o caneco e vamos brindar pela resistência.
Um brinde à resistência!
Vinícius Lima Figueiredo é, antes de tudo,
um aluno do curso de Letras da UFPR.
A resistência
René Pérez e Eduardo
Cabra, banda Calle 13
Calle 13
10
Charles Bukowski
Traduções
Engraçado, né? #2
quando éramos crianças
deitados pelo gramado
de barriga
pra baixo
conversávamos muito
sobre
como
gostaríamos de
morrer
e
todos nós
concordávamos com a
mesma
coisa:
todos nós
gostaríamos de morrer
fodendo
(apesar
de nenhum de nós
ter
fodido
nada ainda)
e agora
que
não somos
mais nem um pouco
crianças
pensamos mais
em
como
não
morrer
e
apesar de
estarmos
prontos
a maioria de
nós
iria
preferir
morrer
sozinho
debaixo dos
lençóis
agora
que
a maioria de
nós
já fodeu
a vida
inteira.
Guilherme Bernardes é aquariano com ascendente
em virgem, mas não acredita em nada dessas coisas.
Publica esporadicamente em reconceber.wordpress.com.
Gottfried Benn
Circulação
O molar solitário de uma puta
que morreu desconhecida
tinha uma obturação de ouro.
Os outros tinham como que por um acordo tácito
caído.
O atendente do necrotério o arrancou,
guardou consigo e saiu pra dançar.
Porque, disse ele,
só terra deve tornar-se terra.
João Vitor G. Candido nasceu em
1989 em Londrina. Formou-se em Letras
Português-Alemão. Atualmente é aluno do
mestrado em Letras da UFPR.
Gottfried Benn (1886-
1956) foi um médico e poeta
alemão. É considerado um
dosmaioresrepresentantesdo
movimento expressionista.
11
Entre e vistaTraduções
O Fantasma
Mario Halley Mora
Elizabeth Cristina Froma
12
Quando me mudei para este
casarão velho “...e tempos longínquos e
de sólidas paredes de pedra...”, disseram-
me que aqui havia um fantasma. Tal fato
não me preocupou muito, pois, embora
eu seja imaginativo, sempre pensei que
algo incorpóreo não pudesse fazer muito
estrago, sendo tão somente uma figura
abstrata e assustadora. Logo entenderão o
que aconteceu. Há três noites que durmo
no maior quarto da casa. E não senti a
presença do fantasma, de quem a história
conheço bem. Comentam que é a alma
penada de uma jovem. Em 1865, em
pleno segundo ano da Grande Guerra,
conhecida também como Guerra do
Paraguai, seu amado foi para o front. Ela
prometeu esperá-lo, nessa mesma casa, mas
seu amado nunca regressou. Asunción foi
ocupada pelas tropas brasileiras e parece
que uma noite, antes de ser violada, ela
preferiu suicidar-se. Assim, de maneira
simples e romântica, é a história do “meu”
fantasma que...
	 Interrompi a escrita. Ouvi um
barulho, como se alguém caminhasse pela
sala com cuidado, nas pontas dos pés. Fui
abrindo a porta lentamente... e então eu a
vi. Atravessou o quarto, e foi se sentar na
poltrona de couro escuro, de encosto alto
de estilo eclesiástico, que está próxima à
janela. Olhava para fora, em direção a esse
esboço de paisagem que provavelmente há
um século fosse um caminho aberto no
jardim, mas que agora não era mais que uma
rua sem saída com alguns paralelepípedos
salpicados. Tudo em sua atitude revelava
uma branda e mansa espera. Nenhuma
impaciência. Imagino que é assim que
alguém se sente após esperar um século.
	 Continuo escrevendo. Deve
estar ali ainda. Que espere em paz. Eu vou
dormir.
	 Aconteceu de noite. “Meu
fantasma” chorava. Ou pelo menos foi isso
que pensei quando eu acordei com uma
inquietude estranha no coração. Seu pranto
me despertou, ou o gemido do vento nos
corredores. Mas tive que me levantar e ir
para a sala. Não estava lá. Mas seu pranto
sim, um som triste que se afastava, como se
ela fosse caminhando pela rua, ao encontro
impossível desse amor tão esperado, porém
sabendo de antemão que vai ao encontro
de uma ausência.
	 Leio o parágrafo anterior.
Estava procurando uma frase poética
para concluí-lo, quando bateram à porta.
Delicadamente, com infinita educação,
com timidez feminina.
	 Nunca pensei que os fantasmas
batessem às portas com tão fina discrição.
Deslizam pelos corredores desertos,
vaporosos e fugazes, se perdem embaixo da
sombra da tinta nanquim de um bosque
escuro. Mas não batem às portas. Por
isso, não me assustei quando seus dedos
delicados tocaram timidamente a madeira.
Pensei que era uma visita e abri a porta,
e fiquei de cabelo em pé. Ela estava ali,
reluzindo um vestido simples, longo até os
pés, com sua postura humilde e senhorial
ao mesmo tempo, com as mãos juntas, e
os olhos baixos, tal como corresponde a
uma donzela frente a um cavaleiro mais
velho que ela, e ainda por cima um solteiro
convicto.
	 Não estive à altura das
circunstâncias. E me condeno pelo que
fiz, pois, como o mais vulgar e tosco dos
homens, fechei a porta na sua cara, de tão
assustado que estava.
	 Ela não aparece há três dias.
Estará ofendida. Devo-lhe uma desculpa.
Seja formada de vapores tristes, de
esperanças e de sofrimentos, ou de carne e
osso, ainda é uma dama. Devo-lhe reparar
meu erro. Tomara que reapareça. Prometi
a mim mesmo não me assustar, ou pelo
menos não demonstrar.
	 Já se passou uma semana. É perto
da meia-noite. E não aparece. Vou procurá-
la. Pai nosso que estais no céu...
	 Eu a vi. Estava no jardim,
sentada no banco de ferro enferrujado,
com madeiras se desfazendo. Talvez nesse
mesmo banco se despediram muito tempo
atrás. Fui me aproximando com estas ágeis
pernas que alguma vez puderam ser de um
famoso jogador de futebol, mas que agora
tremiam como duas varas verdes. Virou a
cabeça e me viu. Que o leitor me perdoe
por este absurdo, mas jamais vi tanta vida
contida em dois olhos que deveriam estar
mortos.
	 Um pedido de socorro, súplica
ansiosa, uma desesperada ansiedade de
expressar alguma coisa brilhavam nesses
olhos, deixando-me com a garganta seca.
Levantou-se, e me estendeu a mão, como
se quisesse me conduzir a algum lugar.
Confesso com muita vergonha: saí em
disparada e me tranquei no meu quarto.
	 Estive lendo todo o escrito.
E um parágrafo me deteve: “...como se
quisesse me conduzir a algum lugar”. Sou
um cínico, confesso. Estou começando a
relacionar esse “algum lugar” com o local
de um tesouro enterrado. Pelo menos isso
é o que reza a lenda. Que os fantasmas não
descansam até que seus velhos pertences
estejam em mãos vivas. Deveria ter mais
Elizabeth Cristina Froma, professora de Língua Espanhola.
Formada em Licenciatura pela PUCPR (2008); Especialista em
Metodologia de Ensino de Língua Estrangeira pela UTP (2012)
e cursa atualmente o curso de Letras - Ênfase em Estudos da
Tradução na UFPR. Amante incondicional da língua castelhana.
vergonha, mas a verdade é que a ganância
excita meus sentidos. De certo modo não
é de toda mal. Será uma troca justa: uma
ânfora repleta de úteis moedas de ouro em
troca da paz eterna. Será um bom negócio
para “meu fantasma”. E para mim, é claro!
	 Procurei-a e a encontrei. Isso
aconteceu há quinze dias. Estava no
mesmo lugar. No mesmo banco. Dessa
vez, tive mais coragem, ou menos medo,
ou mais ganância. Quando me estendeu a
mão, imitei-a e caminhei em sua direção,
rezando mentalmente sem nenhuma
vergonha. E me pegou pela mão. E não era
uma mão com a frieza mortal, senão viva,
morna, mão de noiva que esperou cem anos
e durante esses cem anos acumulou carícias
em cada um de seus poros. Conduzindo-
me suavemente, me levou para os fundos.
	 Descemos por uma escada que
levava para o porão, cuja existência eu
desconhecia, percorremos um estreito
corredor até encontrar uma parede que o
dividia, e quando pensei que ia atravessar
a parede deixando-me sozinho, ela se
deteve, e apontou para o piso. Em uma
grande lápide se desenhava nitidamente,
no centro, uma enferrujada argola de ferro.
Logo compreendi, ali se encontrava o
tesouro.
	 Trabalhei como um louco
durante duas horas, cavando ao redor da
pesada pedra. Ela estava sentava perto de
mim, com o formoso rosto graciosamente
apoiado nas mãos, e me contemplava
em uma atitude de fina dama que vê um
escravo seu trabalhar. Finalmente a pedra
se soltou do local. Fiz um esforço supremo,
e a abertura ficou descoberta. Porém, não
havia ali um jarro antigo, mas sim uma
longa corrente de ouro com um medalhão.
Retirei do esconderijo, abri o medalhão e
vi o retrato do barbudo e valente oficial
Marechal López sorrindo para mim com o
seu mais profundo heroísmo.
	 Entreguei-o à dama.
	 Mãos de fantasma também
tremem de emoção. Eu juro. Apertou o
retrato contra o peito, e se foi devagarzinho,
flutuando em posição de reza, e desta vez
sim atravessou a parede, com seu medalhão
no aconchego de um caloroso encontro.
	 Enfim se reencontraram. Onde
quer que estejam são felizes. Mas eu não.
Ela não aparece mais, definitivamente
se foi. E não consigo deixar de me sentir
um pouco ciumento. Além disso, embora
tenha cavado mais três metros naquele
local, não encontrei mais nada. Parece que
os brasileiros se adiantaram, enfim...
MarioHalleyMora(Coronel Oviedo, 1926 – Assunção
2003). Dramaturgo, romancista e jornalista paraguaio.
Em vida, foi membro da Academia de História Militar
e da Academia Hispano-americana de Letras de Bogotá.
13
Entre e vista
João Arthur
Pugsley Grahl
14
Nessa edição, o Jornal Boca do Inferno teve a honra de entrevistar o então
coordenador do curso de Letras, professor João Arthur Pugsley Grahl.
Mesmo com algumas interrupções de alunos, do Sandro (#todossomosSandro
#Sandronósteamamos) e até mesmo de sua filha (fofa!), o clima da entrevista
foi leve, tranquilo e descontraído. Ele nos contou sobre sua vida acadêmica,
sobre sua experiência estudando Matemática e a ligação que ele encontrou
entre as duas áreas, Matemática e Letras, sua experiência como coordenador,
o envolvimento e crescimento pessoal que ele teve durante esse período e de
sua experiência como professor de Francês. Como a entrevista foi realizada em
fevereiro deste ano, com a greve dos professores estaduais em vigor, ele também
opinou sobre a situação política e da educação no nosso cenário atual.
Boca: Vamos começar pelo começo. Você
tem duas graduações em Letras, bacharelado
e licenciatura. Como foi a graduação pra
você? Foi tranquila?
João Arthur: Foi ótima. Foi muito bom.
Boca: Você era um bom aluno?
João Arthur: [hesita] Eu acho que eu... pra
mim, eu era um bom aluno!
Boca: Quanto tempo você levou pra se
formar?
João Arthur: Eu acho que foram uns seis anos,
por aí. Foi mais ou menos isso. Eu levei um
pouco mais de tempo porque no primeiro
semestre eu estava na Bahia, trabalhando em
um resort. Na verdade, na cozinha. Daí eu
desisti de todas as matérias e só assumi o curso
no segundo semestre. E não podia trancar,
então eu tive que reprovar as matérias do
primeiro semestre. Eu fiz Francês-Português,
que hoje não tem mais.
Boca: E Centro Acadêmico e Boca do
Inferno? Qual era a diferença daquela época
[tempo de graduação] para agora?
João Arthur: Eu nunca fiz parte do centro
acadêmico, então eu não saberia dizer. Nunca
participei de absolutamente nada, eu era
totalmente alheio a toda questão política que
havia na universidade na época em que eu
era estudante. Eu trabalhava paralelamente,
tinha outras coisas. Então eu vinha para a
universidade
[Chamado da coordenação e da Maite, filha
do João.]
Boca: Tivemos um aumento de alunos, e
o nosso curso já era enorme mesmo antes
disso, não é?
João Arthur: Sim. São 857 alunos.
Boca: E como é gerenciar todo esse pessoal
correndo loucamente pela coordenação
pedindo ajuda?
João Arthur: Pois é, isso aí é uma coisa
que você aprende com o passado, com a
experiência, principalmente. A gente não
tem muita cancha, né [pausa para atender
uma aluna]. Da coordenação a gente ouve
tudo quanto é tipo de história de vocês, aqui
é o catalisador das histórias. A gente fica
sabendo de um background. Dá pra fazer uma
tipologia de alunos. É interessante ver esse
tipo de coisa. Aqui a gente tem a pretensão
da universalização da universidade, que
tem que ser igual pra todos. E isso gera um
monte de problemas. As especificidades de
curso, as especificidades de alunos. A gente
tem 54 habilitações no curso. É o único curso
que tem essa quantidade. Depois de Letras,
algum curso talvez tenha 4 ou 5, né. [risos]
Administrativamente,  a gente tenta arrumar
as coisas, mas também esbarra em outras.
Algumas dão certo, outras não. A gente vai
também empurrando com a barriga, acaba
esquecendo alguma coisa, às vezes, porque vão
aparecendo outras. É mais ou menos assim que
as coisas acontecem. Você tem que agir muito
rápido pra tentar resolver. Então, a princípio,
você apaga muito incêndio, porque você não
está acostumado. As coisas vão acontecendo e
você vai tentando agir em conformidade com
o problema. Depois de um tempo você já age
conforme aquilo que sabe que pode fazer,
aquilo que tem autonomia, aquilo que você
não tem. Pra você descobrir leva um tempo.
Na verdade, não é fácil.
Boca:Seasuafilha[queestavaengatinhando
entre as cadeiras da coordenação] dissesse
quevaifazerLetras,vocêficariapreocupado?
João Arthur: Não, de nenhuma maneira. Eu
acho que ela pode fazer aquilo que ela quiser.
A gente tem que saber que as coisas mudam,
os tempos mudam. Nos anos 90 eu fiz um
curso de Mecânica Industrial no CEFET, e
eu ia atrás de trabalho e não tinha. Não tinha
trabalho pra engenheiro, ganhava muito mal.
E agora é o contrário, você está buscando
engenheiro, todWos pagam muito, recebem
muito bem. O professor também já teve a
sua época, vamos dizer assim, de receber.
Infelizmente a coisa é complicada, hoje
existe um descaso com a profissão. Passa por
um monte de elementos que a gente não vai
poder destrinchar aqui, agora, mas depende
“ Da coordenação a gente ouve tudo
quanto é tipo de história de vocês,
aqui é o catalisador das histórias.”
de governo, depende da economia, depende
de um monte de coisa. Eu não acho que Letras
é um curso de pobre. Eu não acho que seja.
Financeiramente, é lugar-comum falar que você
não vai enriquecer. A priori não é o objetivo,
como professor ou trabalhando em uma
editora, em qualquer coisa que seja, enriquecer.
Mas pra mim, pelo menos, o curso representou
muito mais do que eu buscava, no sentido de
enriquecimento intelectual, enriquecimento
cultural, enriquecimento humano. Eu acho
que consegui encontrar um lugar pra mim
nessa questão de trabalho. Eu estudei francês,
então eu pude sempre dar aula de francês. Eu
fiz pesquisa na parte de linguística, depois fiz
o meu mestrado na área de linguística. E tinha
a literatura, que era uma das coisas que mais
me incentivava a fazer Letras. O curso mesmo
foi superinteressante pra ler os livros que os
professores colocaram, mas só agora, que eu sou
professor de língua e literatura, que eu estou
levando a parte literária mais sistematicamente,
lendo a parte de teoria, esse tipo de coisa. Mas
aquilo que me incentivou mais, a literatura, na
verdade ficou em segundo do plano durante
o curso. É interessante, né, mas a parte de
educação e a parte da linguística foram as
minhas descobertas.
Boca: Deu pra perceber que você é um pouco
ator, modelo e dançarino. Você trabalhou
em várias frentes com Letras. Isso é muito
interessante, porque, às vezes, a gente não
pensa na possibilidade de realizar tantas
coisas. Você também revisou literatura, que
é uma coisa que pra muita gente aqui é um
sonho. Muito calouro chega pensando só
em dar aula ou sem saber o que vai fazer. As
pessoas têm que chegar e saber que é uma
possibilidade, que também é uma carreira
que dá pra seguir.
João Arthur: É, o problema é que a gente não
tem isso regularizado. Isso é um dos problemas
que a gente tem de falta de organização de
classe. Se você tivesse uma organização sindical,
“Mas pra mim, pelo menos, o curso
representou muito mais do que eu
buscava, no sentido de enriquecimento
intelectual, enriquecimento cultural,
enriquecimento humano.”
15
você poderia profissionalizar o sistema,
justamente pra que você pudesse ter uma base
salarial que pudesse discutir. Pelo que eu vejo,
tem gente hoje que ganha a mesma coisa que
eu ganhava dez anos atrás trabalhando de
revisor. Como é que pode isso? Tem alguma
coisa errada. No regime democrático isso é
previsto pra que você, enquanto trabalhador,
possa exigir os seus direitos e ter o mínimo
pra poder se estabelecer. Então, tudo passa
pela questão política, pela questão crítica, de
espírito crítico, tudo passa por essas coisas.
Eu acho que no curso de Letras, da maneira
que eu vejo, é possível criar esse tipo de coisa,
nos nossos alunos. Com a literatura, é possível
criar outro imaginário nas pessoas. Assim
como existe o imaginário religioso, existe um
imaginário que pode ser literário, pode ser
filosófico, que pode ser outro mundo possível
pra estabelecer a maneira como você pensa, a
maneira como você age, a maneira como você
vai tomar decisões. Acho que a literatura é
um dos elementos que, se você quiser, pode
ser uma dessas coisas que não dá pra gente
controlar, mas faz parte da vida. Então eu
identifico isso na minha trajetória, eu aprendi
esse tipo de coisa no curso, de ver qual que é o
espaço de todas as coisas que a gente aprende
aqui. É interessante que se faça algo e acho
que o curso de Letras dá essa possibilidade. A
gente vê muita coisa interessante, inclusive a
possibilidade de trabalhar. Pra mim foi assim,
pelo menos. Eu descobri uma profissão, outra
profissão. Eu já tinha uma, mas descobri outra.
Boca: Você é coordenador, você mesmo disse
que você fica sabendo de todo o background
dos alunos...
João Arthur: Acontece uma porção de coisas.
A gente tem que aprender a ser coordenador do
curso, a gente tem que aprender a ser professor,
aprender a ser tudo. É uma questão de política
também, é uma figura política. Política não
no sentido, obviamente, partidário, que não é
o caso, mas política no sentido de que todo
mundo tem uma representação política, uns
mais, outros menos. Mas o que eu quero
dizer é que como coordenador se espera uma
posição na questão de relações interpessoais, e
é isso que eu estou chamando de política. E
dai é interessante, porque pra mim conhecer
os alunos tá sendo um aprendizado humano.
Muitos preconceitos se desfizeram e eu não
consigo identificar nenhum preconceito
gerado por causa dessa passagem. Mas o
que foi interessante nesse período que eu
estou aqui, que vai até julho [de 2015], é
que eu pude compreender como é que a
universidade funciona. E, compreendendo
como é que a universidade funciona, se
tem uma ideia de como funcionam todos
os outros setores do ensino no Brasil. Pelo
menos toda essa parte administrativa,
burocrática e de relacionamento interpessoal
é superinteressante de ver e ter uma ideia
muito mais consequente do funcionamento da
instituição, e de como, por exemplo, hoje, em
que a gente vive em um regime democrático,
isso influencia em todas as instituições. Eu
imagino que quando se vivia em um regime
ditatorial isso também influenciava em todas
as relações, em toda a parte administrativa, em
toda a parte interpessoal. Digo isso porque em
todas as instâncias a gente tem representação
direta. Isso vem de uma estrutura democrática
que começa a ter os tentáculos em todas
as direções, e é interessante que a gente
aprenda esse tipo de coisa. Com um regime
que é democrático a gente tem que saber
se colocar, tem que saber ser político, e
isso diz respeito a todo mundo. Alguns
têm mais responsabilidades do que outros,
obviamente. A gente, como professor, tem
mais responsabilidade do que um aluno, nesse
sentido, porque você influencia mais pessoas,
interfere em mais pessoas. Mas diz respeito a
todo mundo. Então é
interessante de ver que funciona dessa
maneira. E a gente, com a autonomia
que a gente tem, a gente pode tentar fazer
coisas usando a estrutura da universidade.
Mas eu acho que todo mundo tem essa
possibilidade e essa responsabilidade, maior
ou menor. Principalmente nessa criação,
seja de imaginário, seja você fazer pesquisa,
seja de você atuar como professor. A gente é
professor, todos nós somos professores, essa é
a parte que todos nós temos em comum, e é
uma responsabilidade que a gente tem, que a
gente compartilha.
Boca: Você começou e interrompeu uma
graduação em Matemática Industrial, não
é isso? Como que foi isso, Matemática e
Letras?
João Arthur: Uma das coisas que me
interessou nesse esquema de matemática foi o
ensino de Linguística, que eu estudei aqui para
fazer o bacharelado (eu fui bolsista de Iniciação
Científica do Luís Arthur [Pagani] e estudava
lógica e esse tipo de coisa). As primeiras
matérias que eu fiz lá foram justamente de
lógica. Eu já tinha terminado o mestrado, daí
eu pensei “ah, vou fazer lá, porque não precisa
de nada, é só se inscrever que você passa”.
Pra ver como que era! Mas o curso é bem
complicado. Não foi pra frente, não.
Boca: E você pretende retomar?
João Arthur: Isso eu faço sempre, estudo um
pouco sempre. Inclusive eu apresentei com o
Ernani [professor Luiz Ernani Fritoli] uma
coisa que tem a ver, em uma das Semanas
de Letras. A gente apresentou “Matemática
e Literatura”, de um grupo francês chamado
Oulipo. Eles têm essa prática. Inclusive, Ítalo
Calvino e Georges Perec, de não ter divisão
entre esse tipo de coisa. Mais importante que o
poema e que o romance, ou qualquer coisa
assim, é justamente a forma em que você vai
fazer o poema ou o romance. E o Ernani gosta
muito do Ítalo Calvino, e eu acho o Perec e
o Queneau bacanas. E até hoje esse grupo
funciona, ele fez 50 anos há uns dois anos.
Eles dizem que todas as formas são olimpianas.
Boca: É difícil imaginar a semelhança da
Matemática Industrial com a Literatura...
João Arthur: Essa é uma divisão que foi
planejada. É uma questão histórica mesmo,
de não se ver nenhuma interlocução entre
humanas e a parte mais técnica, tecnológica.
A gente podia pensar numa outra maneira.
Não é o caso. A literatura foi pra um lado, a
matemática pra outro e justamente por isso
que a gente não pode pensar nisso. Existe uma
didática, um tipo de pedagogia, uma questão
muito mais vocacional do que prática.
Boca: Pegando por esse viés e juntando com
o enrosco que está a educação no Paraná,
queríamos saber qual é a tua concepção de
ensino.
João Arthur: Eu gostaria que essa parte
educacional fosse mais valorizada porque,
enfim, faz parte do todo do governo. É
importante pra pólis que as pessoas sejam
bem formadas para a democracia. Não dá pra
desvincular uma coisa da outra. E a gente, na
universidade, espera que os alunos possam
aprender (se não aprenderam ainda) a ter e a
agir em conformidade com o espirito crítico.
Então eu acho que isso aí é uma das coisas
principais que tem e pode formar a população
justamente para que ela possa criticar o que
quer que seja. O Ensino, com letra maiúscula,
seria nesse sentido. A gente faz parte de um
sistema que vai desde a escola básica, passa
pelo ensino regular e chega na universidade.
Na universidade é isso que a gente faz. Você
não encara nada a priori, dogmaticamente.
Tudo pode ser questionado, criticado, todas
as coisas podem passar por esse tipo de crivo
racional, sistemático ou metodológico para
que se possa refletir ou, pretensiosamente,
avançar. Talvez não no sentido de progresso,
como era no século 19, mas no sentido de você
descobrir outras coisas, outras
maneiras de pensar, outros tipos de reflexão, e é
isso que na universidade, que é especificamente
diferente do ensino regular, a gente faz. O que
a gente tem em comum é o espirito critico,
que deve ser valorizado exatamente para que
a gente não chegue no que a gente está vendo.
Boca: O que você está achando das
manifestações dos professores? [A entrevista
foi realizada em março de 2015]
João Arthur: A gente não tá muito
acostumado com as manifestações desse ano,
mas nos anos 80, essa era a regra: os professores
na rua, sendo abatidos pelo governo, esse tipo
de coisa. Agora a gente não tá (aparentemente)
nesse mesmo ciclo, como era nos anos
80, e na mesma frequência que o pessoal
democraticamente possa questionar o descaso
do governo com a educação e, pra que isso
possa ser melhorado, afinal de contas a gente
tem representação, pelo menos teoricamente,
pra que o pessoal possa pensar em ensino, e
se eles não têm condições financeiras, como
eles afirmam que não têm mais, que alguém
resolva. E a gente precisa prever esse tipo de
coisa, a gente precisa de gente mais criativa
para tentar dar conta de todo esse processo
educacional, que possa trabalhar de maneira
consciente, participar da vida democrática de
maneira consciente, pressionando, porque eu
“ Acontece uma porção de coisas. A gente tem
que aprender a ser coordenador do curso,
a gente tem que aprender a ser professor,
aprender a ser tudo”.
“Mas o que foiinteressantenesseperíodo queeu
estouaqui[...]équeeupudecompreendercomo
équeauniversidadefunciona.E,compreendendo
comoéqueauniversidadefunciona,setemuma
ideia de como funcionam todos os outros setores
doensinonoBrasil.”
16
acho que isso deve ser mantido. Pra própria
universidade isso é essencial, essa liberdade de
pesquisa, pra que a gente possa trabalhar todas
as coisas sem nenhum tabu.
Boca: Inclusive você tem um grupo de
estudos sobre democracia e tudo o mais,
não é isso?
João Arthur: Isso! Bem, eu participo. É
um grupo de estudos do pessoal de Direito.
Eu trabalho junto por causa do projeto dos
haitianos e com os imigrantes. Esse grupo de
estudos parte daí, dessa pegada dos direitos
humanos, que tem a ver com todo esse aspecto
político-educacional. Eu acredito, eu sei que é
uma coisa meio lugar-comum falar desse jeito.
Por isso que a gente fica muito chateado com
o descaso do governo: porque a gente vê que
é sempre a mesma coisa. O discurso é uma
coisa, a prática é outra. No meu bacharelado,
eu estudei sobre o convento de Port-Royal,
na França, do século 17. Eles já sabiam, por
exemplo, que quanto menos alunos nas salas,
melhor seria o ensino. E não há nenhuma
preocupação do governo pra diminuir o
número de alunos em sala.
Boca: Pelo contrário, né?
João Arthur: Justamente. Você acha que com
30 alunos na sala eles vão aprender? Eles vão
aprender apesar disso, porque a gente tem
um instrumental muito bom, que é muito
melhor do que aquilo que a escola pode
oferecer. Em Port–Royal, eles já tinham esse
tipo de mentalidade, de menos alunos. O
Racine fala que aprendia com o Arnaut, ou
com o Lancelot, que tinham oito alunos. Aí
eu acredito que saia um Racine daí, entende?
Porque o professor pode ensinar tudo o que
ele sabe, estar muito mais próximo dos alunos.
Por exemplo, eles viram que, se você ensinasse
latim em francês, os alunos aprendiam melhor
do que se você aprendesse latim em latim.
O que pra gente hoje é óbvio, mas na época
não era. Eles começaram a implementar isso,
questionavam o percurso de ensino jesuítico,
tentando refletir sobre novas maneiras de se
ensinar. Eu acho que, enquanto o governo
não diminuir o número de alunos em sala e
investir mais no professor, é absolutamente
inútil. Eu sinceramente nem ouço, porque
me chateia, sabe? Qual seria o ideal? A gente
já sabe faz quatro séculos. Daí o pessoal vem e
diz “não, finalmente a gente vai ter 30 alunos
por turma”. 30 alunos por turma não pode,
cara! Não pode. Não vem me falar que isso é
um elogio pro governo. Isso daí é você assinar
o descaso, a incompetência e a inutilidade
do teu governo com a educação. Pra mim
soa como se o cara estivesse rindo da minha
cara. Eu acho que o problema é maior do que
“ Pra própria universidade isso é
essencial, essa liberdade de pesquisa,
pra que a gente possa trabalhar todas
as coisas sem nenhum tabu”.
“ Então, o que a gente pode dizer? É
uma chateação completa o descaso
com a carreira de professor, o descaso
com os alunos”.
“ Minha trajetória na universidade sempre
foi de fazer um monte de coisa diferente”.
isso que tá acontecendo. Hoje a gente está
numa situação que é longe de ser a ideal e está
piorando, ainda. Então, o que a gente pode
dizer? É uma chateação completa o descaso
com a carreira de professor, o descaso com os
alunos. E a gente sabe o que fazer, a gente sabe.
Só que querem investir? Querem contratar o
dobro do número de professores para reduzir
o número de gente por sala de aula? Querem
construir mais sala de aulas para alojar esses
alunos? Se existe a retórica de que a educação
é mais importante, é isso que se faz. Mas vão
fazer isso? Têm o budget? Eles precisam dar
conta do orçamento. E aí, na prática, acham
que isso não é importante. Mas é.
Boca: Isso que você falou de espírito crítico,
lugar no mundo e tudo mais lembrou
bastante aquele outro projeto que você
está engajado, com o Neab, de tradução de
textos de literatura africana, de história e
filosofia também...
João Arthur: Esse foi um convite que eu
recebi logo que eu entrei aqui na universidade.
Achei interessante, e minha trajetória na
universidade sempre foi de fazer um monte de
coisa diferente. Eu não sei se isso acontece pra
todos os professores, mas pra mim tem sido
interessante, bem desafiante, pelo menos nos
quatro anos que eu estou aqui. Isso que é legal,
a universidade possibilita todas essas atividades.
Então foi interessante pra descobrir a tradução.
Nunca tinha, a priori, feito nenhuma tradução
que não fosse de textos pequenos. E eu tive que
orientar os alunos pra fazer. Então você tem que
aprender muito rápido. Chamei o Mauricio
[professor Mauricio Mendonça Cardozo],
pra “pô, fala aí o que você acha, como que é”.
Ele foi bem interessante, ele falou: “não, ó, a
princípio pode ser uma coisa mais... Não existe
um dogma tradutório, não existem os textos
que você vai traduzir”. E eu achei interessante o
approach dele. Aqui, a universidade já é um polo de
tradução. O pessoal já está traduzindo um monte
de coisa, está ganhando prêmio, é interessante de
ver. Mas, pra mim, foi interessante descobrir essa
literatura, na verdade. Essa literatura africana, que
eu não tinha ideia e que é extremamente rica.
Boca: Precisa bastante resistência, né. Inclusive
importante quando a gente discute democracia
e tudo mais.
João Arthur: É, enfim, o que eu descobri,
pelo menos nessa parte de literatura africana e
literatura do Caribe, é que você tem todo um
movimento de protesto que você não encontra
com a mesma intensidade, a meu ver, em outras
literaturas. Então pra mim foi uma descoberta.
Ter, por exemplo, um Jacques Roumain, que tem
como matéria-prima para os poemas um ódio,
uma ira muito forte, você percebe como pode ficar
bom usar esses sentimentos que tradicionalmente
eu não estava muito acostumado a ler. E você
consegue ver, através da história poética desses
continentes, toda a história deles, como que eles
vão lidar com um
continentequetradicionalmentetemumatradição
oral muito forte. Como você vai lidar com essa
coisa de escrever a tradição oral, de calcificar em
uma forma específica todo um conhecimento que
vinha de geração e que mudava através do tempo.
E os autores procuram lidar com esses paradoxos,
com essas maneiras literárias. O que pra mim
foi superinteressante de ler os textos filosóficos,
inclusive.
Boca: Então, João, a gente está falando de
escrita de poesia e tudo mais. Você escreve
literatura?
João Arthur: Ah, isso daí, eu... É, como que posso
dizer...[risos] Olhe, escrever não significa nada
enquanto não publica a coisa.
Boca: Então... A gente tem um jornal que
publica coisas...
João Arthur: Só existe literatura na prática
quando existe leitor, que vai passar pelo crivo do
leitor. Então, baseado nessa definição, não, não
escrevo. [risos]
Boca: Pra gente finalizar: o que você está lendo,
o que você está ouvindo e o que você está vendo?
João Arthur: Ai, deixa eu ver, então.[risos]Estou
lendo Octavio Paz. Do Octavio Paz eu estou
lendo, nesse instante, Los Hijos del Limo. Estou
lendo também Guerra e Paz, mas esse está bem
mais devagar, eu estou na página 750, mas como
são quase 3.000 vai levar um bom tempo ainda. E
estou lendo pra ela, inclusive [Maite, filha do João].
[risos] E eu estava ouvindo ontem um som do Nick
Cave, Jubilee Street, que não me sai da cabeça já
faz alguns dias. E esses dias eu vi um filme japonês
bem doido, Battle Royale, que é bem interessante,
tem a ver com a gente. Você envia os estudantes
pra uma ilha deserta pra que eles se matem. É, eu
gosto de filme japonês. Esse está bem fresco na
memória. Eu assisti um que foi bem legal... o tal do
Jubilee Street é ligado aos Vinte Mil Dias na Terra.
É um documentário do Nick Cave, esse eu assisti
também. 20,000 Days on Earth, que é bem bacana,
bem bonito. Eu estou lendo poema sempre, né,
nessas férias eu li o livro que o Marcelo Sandmann
traduziu, muito bom. Essas férias foram bem
produtivas. Ah, e um do Knut Hamsun, A Fome
17
Textículos
E o improvável se fez fato
e habitou entre nós
Creio que só agora começamos a
assimilar o que se passou no mandato de
Beto Richa (PSDB), eleito sob aprovação
da maioria dos paranaenses e em primeiro
turno. Voltemos, pois, a fevereiro de 2015:
no dia 10, mais de 30 mil educadores de
todos os cantos do Paraná gritavam contra
o tal pacotaço, oriundo do Poder Executivo
do Estado e que poderia ser aprovado
pelo Legislativo. Em nome de uma
crise econômica não causada por nós, o
governador queria lançar mão do dinheiro
do Paraná Previdência, nossa garantia de
aposentadoria futura. Enviamos e-mails
e mensagens via whatsapp, telefonamos
e visitamos os deputados, expondo nossa
oposição ao projeto. Solicitamos apoio,
assim como eles fazem, quando enchem
nossas caixas de correio com seus santinhos
sorridentes em tempos de eleição. Mas,
mesmo com todo o apelo popular que
havia nas galerias da Assembleia Legislativa
e na praça, a Comissão Geral foi instaurada
para que tudo se aprovasse rapidamente.
Foi nesse dia que ocupamos o prédio da
Alep: a grade que separa o povo de sua casa
de leis foi rompida. Em meio a confusão,
alguém me deu a mão, agarrei a perna
de outro, um terceiro me impulsionou
pela bunda e subimos correndo pela
rampa. Havia, naquela ocasião, poucos
PMs e nada podiam fazer. Os deputados
da ala governista fugiram tiveram de sair
escoltados, sob muita vaia. Tomamos o
plenário e ali acampamos por dois dias.
Neste ínterim, o ar-condicionado e a
energia eram ligados e desligados e o uso
dos banheiros foi limitado. Porém, nada
foi vandalizado. Eu realmente acreditei
que os deputados se emendariam, vendo
aquele povo entrando na Assembleia e
escutando os clamores de retira. Contudo,
não foi o que aconteceu. Compreendem?
Recordando: a Alep deveria representar os
interesses do povo paranaense, apresentar
projetos que beneficiassem a população
em geral, mas o que vemos é que sua atual
composição, na grande maioria, representa
os interesses de um governo apenas.
Foi, então, no dia 12 de fevereiro que o
primeiro improvável ocorreu – porque o
melhor ainda estava por vir! [sic]
Oscar Wilde escrevia: A vida
Sobre o episódio de um deputado, literalmente, se cagar no camburão: quando a sátira sai da ficção e
se torna realidade. Mas afinal, satiriza-se a vida ou a vida já é uma sátira?
Eduardo Soczek
imita a arte muito mais do que a arte imita
a vida. Tive de concordar. Desde pequeno,
a Literatura fez parte de minha vida. Na
primeira série me deparei com Marcelo,
marmelo, martelo, de Ruth Rocha, e me
encantei. Depois, amei a acidez de Eça em
sua sociedade católica, burguesa e hipócrita,
bem como a de Machado e a de Dalton.
Poemas de Pessoa e de seus heterônimos,
de Leminski e o trabalho estético em I-Juca
Pirama são alguns de minha predileção.
E por que lembrar isso? Porque diante
de algumas obras eu já parei e pensei:
poderia ter acontecido isso no mundo
factual? Os enredos funcionam dentro de
uma realidade ficcional, mas ainda é mais
fácil, creio eu, pensar na realidade factual
quando o narrador de Aluísio Azevedo, em
O Cortiço, nos faz sentir o mesmo odor
que João Romão sentiu ao deitar-se ao
lado de Bertoleza – misto de suor, cebola
e gordura – ou em Capitães da Areia, de
Jorge Amado, quando Pedro Bala sente
medo e revolta ao ser aprisionado em um
quarto por baixo da escada, onde não se
podia estar em pé, porque não havia altura,
nem tampouco estar deitado ao comprido,
porque não havia comprimento. (...)
O ar entrava pelas frestas finas e raras
dos degraus da escada. Aí, junto com a
personagem, entendemos que a liberdade
é como o sol. É o bem maior do mundo.
Entretanto, quando uma obra extrapola
o que poderia ser real (o que é muito
aceitável na Literatura) a minha reação era
de desconforto. Em Frei Genebro, conto de
Eça, como pode o frade ver a mão de Deus
nos céus, parecendo o festim de Baltazar
a pedir contas de um pernil de leitão,
arrancado com um podão para matar a
fome de outro frade? Parece improvável
factualmente, apesar de funcionar na
economia da narrativa. Em Macunaíma, de
Mario de Andrade, a personagem principal
vira uma feijoada, depois é reconstruída e
segue viva. Possível? Sou bastante cético.
Porém, isso nos faz pensar.
Retorno, agora, ao fatídico dia
12/02. Se João, o evangelista, fizesse um
Prólogo desse dia, como o fez em seu relato,
poderia escrever ao invés de O Verbo se
fez carne e habitou entre nós, a expressão:
O improvável se fez entre nós, porque o
fictício se tornou palpável e o impensável
se fez fato! E pior: um fato risível. Quando,
nesse dia, fechávamos as entradas da Alep,
chegaram, pois, boa parte dos deputados
em um camburão blindado e escoltado pela
Tropa de Choque. É o próprio improvável:
deputados em um camburão. As grades
foram serradas para que pudessem entrar,
já que o então Secretário de Segurança,
Fernando Francischini (SD), não havia
conseguido retirar os parlamentares de
dentro do carro blindado. Francischini,
humilhado, bailou um belo tango com
um professor que impediu a abertura do
camburão, mas a ordem do governador era
expressa: votar, a qualquer custo, o projeto
de confisco da Previdência dos servidores
em uma sessão que aconteceria em um
restaurante da Alep, já que o plenário
continuava ocupado. Foi aí que houve
uma segunda ocupação do parlamento.
Os deputados ficaram sitiados e tiveram de
negociar a saída pelos fundos. Reafirmo:
não é ficção! Porém, quando penso que o
improvável havia acabado aí, leio a Gazeta
do Povo do dia 20/02 na coluna de Dante
Mendonça: “[...] Depois de embarcar
na ideia do secretário de Segurança,
Fernando Francischini, os momentos
de maior tensão dentro do camburão
ocorreram diante da Assembleia, como
relatou o repórter Rogerio Galindo: ‘Os
deputados se dividiram. Acostumados a
tomar decisões com calma, em plenário,
dessa vez davam palpites desconexos sobre
o que fazer. [...] Enquanto isso, alguns
manifestantes que tinham conseguido
chegar ao local começaram a bater na
lataria’. Vários deputados ouvidos pelo
jornalista acharam que os professores iriam
conseguir virar o ônibus: ‘Essa foi a hora
mais tensa’, disse um deles. ‘O que a gente
sentiu foi cagaço!’, confidenciou um outro.
[...] À beira da piscina e de um ataque de
nervos, um mal-aventurado passageiro
deixou vazar o chorume: ‘Não posso dizer
o nome, mas um dos nossos se borrou nas
calças!’ [...]As mulheres gritavam com uma
mão no nariz, outra no celular, enquanto
os homens tentavam controlar a náusea”.
Percebam: estamos falando de algo real.
Não é Literatura ou telenovela. Parece
realmente que a vida imita a arte. É um
18
episódio trágico e cômico. Trágico porque
os que deveriam representar os interesses da
população, são eleitos e mantidos por ela,
passam pelo povo em um camburão. Cômico
porque os deputados, apesar de tanta
vaidade, se desvelaram não divinos: sentem
a tensão, passam pelo medo, feitos de carne
e de sangue, citando a Compadecida, podem
perder o controle dos próprios intestinos.
Já, no dia 12 de fevereiro, havia cães, muito
spray de pimenta, Tropa de Choque, balas de
borracha e também bombas.
Beto Richa, porém, que se viu
forçado a retirar o projeto em fevereiro enviou
algo muito semelhante no mês de abril para
o mesmo plenário. Dessa vez, Francischini,
com medo de ter de dançar outro tango
cercou todo o entorno da Alep com um
efetivo de 2.516 policiais militares. Oficiais
que foram, inclusive convocados do interior
do Paraná e viajaram em pé, abarrotados em
poucos ônibus e tiveram de abandonar os
hotéis em que estavam hospedados por falta
de pagamento. Na verdade, o Secretário-
dançarino queria bloquear praças públicas
e ruas, mas foi impedido. O presidente da
Alep, Ademar Traiano (PSDB), não permitiu
a entrada do povo. Votariam a todo custo
e com galerias vazias. Na madrugada entre
26 e 27/04, professores foram agredidos
enquanto acampavam e o caminhão de
som foi guinchado. No dia 28, pela manhã,
a simples passagem de outro caminhão
de som pelas ruas do Centro Cívico foi
reprimida pela Tropa de Choque. Ou seja,
a tragédia estava orquestrada, encenada e
pronta para ser apresentada. Foi, então, no
dia 29 de abril que o segundo ato inusitado
ocorreu: nem senadores enviados de Brasília
conseguiram argumentar com Traiano
para que a votação fosse adiada. Iniciada a
sessão, um simples chacoalhar de grades por
parte dos manifestantes fez com que muitas
bombas fossem lançadas sobre estudantes,
professores e servidores. Mas as bombas
não eram lá dentro, afirmava o presidente
da Alep, e podiam votar. Jatos d’água,
cassetetes, cães, Tropa de Choque, spray de
pimenta, balas de borracha e mais bombas.
Rasca, deputado pelo PV, foi mordido por
um cão policial e Luiz de Jesus, cinegrafista
da Band, foi atacado na coxa por um pitbull,
enquanto trabalhava, ambos na rampa da
Alep. E os senadores, enviados de Brasília,
pediam cessar fogo, mas não adiantava.
Foram mais de duas horas de terror contra
pessoas desarmadas. No balanço: 2.323 balas
de borracha e 1.413 bombas de fumaça, gás
lacrimogêneo e de efeito moral, além de
25 garrafas de spray de pimenta, de acordo
com a Gazeta do Povo do dia 29 de maio. E,
segundo a mesma reportagem: a ação custou
R$ 948,3 mil aos cofres públicos. Mais de
200 pessoas feridas. E para colocarmos a
cereja no bolo: um policial tingido com uma
tinta groselha-rosada para simular sangue e
agressão. Muitos black blocs, de acordo com
Francischini. Tudo desmentido pela Reitora
da UEL e pelo Ministério Público. É... Ficou
difícil de justificar toda a barbárie.
Penso, por fim, nos versos de
Pessoa, em Mensagem, sobre Dom Sebastião.
Fomos loucos? Certamente. Porque não
somos acostumados a enfrentar polícia,
bombas, cassetetes, balas de borracha, spray
de pimenta e cães, mas Sem a loucura que é
o homem / Mais que a besta sadia, / Cadáver
adiado que procria?
Eduardo Soczek,
professor da rede
estadual, graduado
em Letras pela UFPR,
aluno do Mestrado em
Literatura pela mesma
Universidade.
19
Traduções
Durante meio século
A poesia foi
O paraíso do bobo solene.
Até que eu cheguei
E me instalei com minha montanha russa.
Entrem, se quiserem.
Claro que eu não respondo caso desçam
Jorrando sangue por boca e narizes.
Amyr Hamud tem 21 anos e gosta de poesia.
Nicanor Parra
A Montanha Russa
Amyr Hamud
Nicanor Parra, é um poeta e matemático
chileno, inventor da antipoesía. Sua extensa obra
influenciou outros reconhecidos escritores, como
Gonzalo Rojas, Enrique Lihn e Roberto Bolaño.
20
21
Entre e vistaTextículos
Observar
Carla Mota Menezes
	 Gostava de olhar para cima. Ao
caminhar pelas ruas, estava sempre à procura
de algo acima do nível dos olhos. Nem mesmo
os trôpegos passos conseguiam desviar sua
atenção das construções arquitetônicas que
beijavam o céu. Com o pescoço projetado
para trás, desafiava-se a descobrir as possíveis
influências clássicas nas edificações, analisando
os detalhados ornamentos que conferiam
tanto charme àquelas pilhas de concreto
colossais. Gelosias graciosas, ogivais elegantes
e rebuscados, vilíssimos detalhes ignorados.
Insólitas obras de arte de ruas que tinham
muito a dizer. O asfalto sussurrava-lhe
segredos aos ouvidos, os pilares suspiravam
lôbregas reminiscências, as paredes descreviam
atrocidades e ah, as paredes! Quantas histórias
tinham para contar!
	 A melancolia que não se foi com
seu inquilino, a angústia que se apoderava
daqueles que ali procuraram abrigo; quanta
violência já omitiram, quantos gritos mudos se
desprenderam de gargantas roucas pelo esforço
de clamar clemência, quantas pessoas amaram
aquelas paredes, decorando-as; em quantas
cores seus semblantes se metamorfosearam
desde suas tonalidades originais, quantas
pessoas já suspiraram ou choramingaram
ao ver o que aqueles ávidos olhos viam? Os
infinitamente numerosos questionamentos
enchiam-lhe por dentro e a faziam inflar até
voar, tocando a mais alta gótica gárgula no
topo da igreja.
	 Suas passadas eram suaves e curtas,
graciosas. Por vezes, seu tornozelo virava-
se ao pisar em algum buraco. A frequência
dos solavancos não a oprimia, contudo. Só
continuava andando. Sua jornada, na maioria
das vezes, era longa – raramente se deslocava
pela cidade de ônibus, menos ainda de
carro; percorria vastas distâncias contando
com seus velozes pés, que por todo canto a
conduziam. O ato de caminhar era sagrado.
Desrespeitoso seria com o universo tornar
obsoleto aquele par de pernas perfeitamente
funcional. E não parava de olhar. Os glóbulos
oculares dançavam nas órbitas, atraídos
magneticamente pelo topo dos edifícios, cinza
contrastando com o azul do céu. Árvores
solitárias, imersas no mórbido concreto sem
vida, exibiam suas mais belas flores, colorindo
a vista. O aroma amadeirado, esverdeado, doce
e fresco lhe acariciava as narinas, que bebiam
cada requintada gota. Ficava com vontade de
rir. E ria.
	 Estava andando. Sincronizou o
som de seus passos com as sístoles e diástoles
compassadas de seu coração. Com seu corpo
apóstolo de um mesmo ritmo, varria com o
castanho dos olhos as rachaduras fustigadas
pela água e carcomidas pelo tempo. Se a
questionassem a respeito, confirmaria que
conseguia sentir o cheiro do suor daqueles que
carregaram pedras e cimento, que era capaz
de ver os calos das mãos que fizeram com que
a charmosa massa cinzenta ascendesse; podia
ouvir a respiração ofegante e a canção da pá
que misturava aquela pasta nojenta, molhada e
dura; os engenheiros também protagonizavam
devaneios, com seus projetos, cálculos e
desenhos milimétricos, suas púrpuras olheiras
e dentes amarelados pelo café, as noites de
sono perdidas pra cumprir o prazo do projeto;
quantos estagiários estariam envolvidos no
processo, rezando todas as noites para que
aquela tortura acabasse logo e eles pudessem
finalmente voltar a fazer nada; os proprietários
do edifício tampouco fugiam de sua mente,
com seus sapatos italianos ou saltos altíssimos,
martelando pisos de mármore, carvalho e
pino, imersos em expectativas ao passar a
lâmina da tesoura pela fita vermelha.
	 O passar dos minutos e dos
telhados cobertos de excretas aviárias e frutos
mutilados trouxe-lhe aos olhos um arcaico
sobrado, rememorando-a um episódio triste,
capaz de provocar imensa mágoa para com
a espécie humana: certa vez perguntara a
uma amiga de faculdade o que ela achava da
magnífica construção que era o tenebroso
sobrado, forjado em glorioso e irresistível
enigma. A garota lhe disse que não fazia
ideia de que construção era essa. Foi como
receber um murro bem no meio da cara. Só
pôde perguntar, horrorizada: “Para onde você
olha quando anda?” A perplexidade estava
entalhada na esbofeteada face. Demorou
um pouco para se recuperar do choque: a
charmosa massa concreta ficava em frente à
casa da colega.
	 Atravessava o agitado centro da
cidade, era pouco menos que sete da noite. O
soturno céu sem estrelas derramava penumbra
Carla é caloura de Letras e
também gosta de observar, mas
(ainda) não foi atropelada.
Considera-seamadoraprofissional
na arte de contar histórias.
pela rua parcamente iluminada. Adentrou
uma praça esplêndida. Engolida pela sombra
das árvores, contemplava o musical ruído
da água descendente. Disparou sobre os
paralelepípedos e desceu as escadas. Os atentos
olhos foram atraídos pela coruja solitária que
procurava insetos, empoleirada em um galho
na árvore que jazia no meio-fio, do outro
lado da rua. Fascinada, mergulhou no asfalto
quente. A corujinha-do-mato estava perto
o suficiente para vê-la. Com os amarelados
olhos, observava a garota, que correspondia
com intensidade no olhar.
	 Mexeu-se ligeiramente em
seu galho, provocando um ruído que a
sobressaltou. A garota esperou. Aproximou-
se mais, perdendo-se naqueles pequenos
olhos dourados, tão curiosos e ávidos para
entender que bicho ela deveria ser. E então
uma van a quarenta quilômetros por hora
atravessou a pista, chocando-se de frente com
a observadora, lançando seu frágil corpo para
frente, passando por cima dele. O motorista
mal percebeu a presença da pequena sombra
que pairava na rua escura. Freou depois de
passar com a roda por cima da cabeça da
moça. Horrorizado, o homem deixou o
veículo, agarrando o boné que usava para secar
as lágrimas. Seu rosto expressava um pavor
sincero. Pessoas que passavam pararam para
olhar. Para alguns, a visão era digna de enjoos
e arrotos que precediam o corrosivo jato do
vômito. Lágrimas brotavam de olhos chocados
e aterrorizados. Quase todos os maxilares ali
presentes cederam à incredulidade do surreal
acidente. Gritos cortaram aquele silêncio
pesado que a morte trouxera consigo. E
aquele corpo descabeçado jazeu ali, enquanto
a polícia não chegava. O sangue e os miolos
coloriam o negro asfalto da rua que tanto
tinha pra contar.
22
Entre e vistaTextículos
	 Chuteira no pé. Uniforme pronto. Na saída do
túnel as luzes do estádio se encontram com o brilho de
onze pares de olhos ansiosos e animados. A arquibancada
está lotada. A torcida canta, grita, aplaude, comemora.
Execução do hino. Mão no peito e lágrimas nos olhos.
	 A moedinha sobe rodopiando. O juiz apita
e mais um show começa. A pelota vai de um lado para
o outro, brincando com os pés dos jogadores, até que o
Camisa 10 a pega. A torcida delira. Um sorriso orgulhoso
aparece no canto dos lábios. Dribla um, passa por outro e
com maestria vai guiando a bola até o seu destino. E ela
chega! Feliz, ele comemora com os colegas!
	 Segundo tempo e mais uma vez ele brilha.
Joga como se estivesse dançando, brincando. Mas o rosto
está sério, muito compenetrado. Em frente ao gol um
companheiro lhe passa a bola e, com agilidade, surge
uma bicicleta. Marca mais um! Fim do jogo, fim do
Campeonato!
	 O time comemora. Ergue-o nos ombros. A
plateia aplaude emocionada. Aquele era o seu momento.
Ao longe, ele ouve uma voz conhecida.
	 - Garoto, vem almoçar!
Camisa 10
Leda Santos
Leda Santos é mais um ser
humano perdido. As únicas
certezas que ela tem é que cursa
Letras e que não sabe escrever
sobre si em 150 caracteres.
	 Aos poucos a torcida some. Os
companheiros de time se desmancham
ao vento, como fumaça. O estádio
desmorona. No seu lugar reaparece o
terreno baldio, a terra vermelha batida,
a velha trave de madeira. O menino se
abaixa, pega a bola remendada.
	 Descalço e sozinho, vai para casa
atender o chamado da mãe.
23
Entre e vistaTextículos
Por um elitísmo
inclusivo:
Eduardo Salles O. Barra
No último dia 26 de fevereiro,
completou-se 76 anos de fundação da antiga
Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras
do Paraná. A Faculdade foi fundada, então,
em 1938 e agrupada em 1946 às demais
faculdades que já integravam o núcleo inicial
da futura UFPR, que somente veio a assim
se chamada em 1950. Dos seus diversos
desmembramentos, surgiram vários dos
atuais setores da UFPR. A maior parte dos
cursos fundadores da antiga Faculdade –
nominalmente, filosofia, letras, ciências e
pedagogia – foi conservado no atual Setor de
Ciências Humanas, que se autorreconhece,
então, como a continuação histórica dessa
septuagenária Instituição.
Sirvo-me desse curtíssimo relato
histórico tanto para registrar a efeméride
transcorrida há pouco quanto para introduzir
o contraponto das minhas considerações sobre
um maravilhoso ensaio publicado na edição
28 (novembro de 2014) do admirável Boca do
Inferno, com o título “Antiantielitismo: como
o preconceito em torno da ideia de ensino
erudito condena a educação pública brasileira
a uma abordagem massificada e diluída do
conhecimento”, de autoria da estudante Suelen
Trevizan. Grosso modo, pretendo fazer da
comemoração do primeiro, um pretexto para
o elogio do segundo, e vice-versa. Começo,
então, resumindo em poucas linhas aquilo
que gostaria de discutir no artigo da Suelen
Trevizan. Basicamente, a autora sustenta
aquilo que o próprio título já anunciara: o
equívoco de, diante da tensão entre uma
educação inclusiva voltada ao contexto e às
necessidades mais imediatas dos alunos e uma
educação baseada na “alta cultura” e na crítica
à cultura de massas, optar pelo primeiro pólo a
fim de expurgar-se do irremediável elitismo do
segundo pólo. De modo direto e sem rodeios,
a autora se esmera em enfrentar com bons
argumentos o obscurantismo anti-elitista que
se abateu sobre a nossa escola pública: “somos
tão assombrados pelo medo da elitização
(...) que corremos para o extremo oposto – a
massificação da educação”. Mas ela não encara
a educação pública a partir de uma abstração.
Suelen desenvolve sua argumentação
alicerçada na memória da estudante que ela
foi (“tantas vezes voltei para casa ... louca de
vontade de amadurecer logo para ver que há
debaixo da pele das coisas”) e sobretudo nos
seus projetos para a professora que ela será
(“conheçamos o que veio antes de nós e o
conheçamos bem, pois só assim estaremos
cientes de onde podemos partir na construção
do conhecimento com nossos alunos”).
A Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras
do Paraná surgiu em meio a um movimento
de ideias e uma profusão de projetos para a
educação pública que, apesar da distância no
tempo, ainda guarda uma grande identidade
com as inquietações da Suelen e, quero crer,
de muitos outros estudantes dos cursos de
licenciatura da UFPR. Esse movimento ficou
conhecidocomoomovimentodosPioneirosda
Escola Nova, e foi liderado por Anísio Teixeira
e Fernando de Azevedo, entre outros. No
manifesto lançado em 1932, eles propuseram
algo extremamente revolucionário para a
época e cujas virtudes estão presentes ainda
hoje : a formação universitária de professores.
Àquela época, a única instituição voltada
à formação de professores eram as “escolas
normais”. Mas elas destinavam-se à formação
dos professores do que então se chamava
escola primária e, hoje, escola fundamental.
Para os professores do ensino secundário (o
atual ensino médio), não havia uma formação
específica – evidentemente, também eram
raras as escolas secundárias. As Faculdades
de Filosofia, Ciências e Letras passaram,
então, a ser projetadas como as instituições
responsáveis por suprir essa deficiência.
Em 1934, foi fundada, sob a liderança de
Fernando de Azevedo e com o apoio da família
Mesquita, proprietária do Jornal O Estado de
São Paulo, a Faculdade de Filosofia, Ciências e
Letras da USP. Em 1938, foi a vez da fundação
da nossa gloriosa Faculdade de Filosofia do
Paraná. E, no ano seguinte, foi fundada a
Faculdade Nacional de Filosofia, no Rio de
Janeiro, que mereceu da parte do Ministro
da Educação da época, Gustavo Capanema,
uma legislação específica, que foi estendida às
demais instituições congêneres.
As Faculdades de Filosofia, segundo o decreto-
lei nº 1.190/1939, destinavam-se a cumprir os
seguintes objetivos:
a) preparar trabalhadores intelectuais para
o exercício das altas atividades de ordem
desinteressada ou técnica�
b) preparar candidatos ao magistério do ensino
secundário e normal�
c) realizar pesquisas nos vários domínios da
cultura, que constituam objeto de ensino.
Esses eram exatamente os mesmos objetivos
– com ligeiras variações terminológicas –
que os idealizadores da nossa Faculdade de
Filosofia registraram na ata da sua fundação.
Ao longo dessas quase oito décadas de
existência, a Faculdade e os Setores que
a sucederam acumularam conquistas
importantes na realização de todos esses três
grandes objetivos. Todavia, do mesmo modo,
esse conjunto de proposições experimentou
também muitas revisões e reinterpretações,
que comprometeram sua consistência interna
e seu caráter sistêmico. Em particular,
uma certa divisão do trabalho acadêmico
– do qual emergiram as várias iniciativas
de desmembramento do núcleo inicial da
Faculdade – produziu uma dispersão dos
caminhos escolhidos para contemplar os
dois primeiros objetivos do referido decreto.
24
uma faculdade à altura
dos sonhos de Suellen
Creio que nessa dispersão se encontram as
origens da onda anti-elitista cujos excessos
foram apontados pela futura professora Suelen
Trevisan.
Há várias versões dos enunciados daqueles
três objetivos, que ocorrem em legislações e
documentos oficiais anteriores e posteriores à
fundação da Faculdade Nacional de Filosofia.
O que sempre perdura, a respeito do primeiro
objetivo, são as menções à “alta cultura” e
ao “saber desinteressado”. Trata-se de um
tema que mereceu um lugar de destaque no
manifesto escolanovista. Seus signatários
achavam escandaloso que no Brasil ainda
persistisse a idéia de que a “alta cultura” e o
“saber desinteressado” fossem exclusividade
das escolas destinadas às classes dominantes
da nossa sociedade. Às escolas destinadas aos
filhos das classes trabalhadoras, reservava-
se tão somente a formação técnica para o
trabalho, sem proporcionar-lhes os saberes e
bens culturas sem interesse prático imediato.
Para que a escola secundária antes destinada
às elites econômicas pudesse ser universalizada
e popularizada, seria necessário preparar
massivamente professores e proporcionar-
lhes uma formação para a “alta cultura” e o
“saber desinteressado”. Tudo indica que foi
justamente com essa motivação que os dois
primeiros objetivos foram pensados de modo
solidário e complementar.
Mas, exatamente quando e por quê, a
formação de professores divorciou-se da
preparação de “trabalhadores intelectuais”
habilitados ao “exercício das altas atividades
de ordem desinteressada ou técnica”? Essa
pergunta é apenas retórica, pois certamente
não haverá uma única resposta que a satisfaça.
No entanto, há indícios importantes do
ponto de partida desse divórcio e das razões
que levaram ao afastamento mútuo entre os
dois lados envolvidos, tanto que o segundo
reduziu-se àquilo a que justamente se destinava
a combater: o elitismo.
A meu ver, o ponto de partida dessa
divisão de águas estava presente no próprio
currículo dos cursos destinados à formação
de professor, previsto no mesmo decreto-lei
de 1939. São dessa legislação as designações
“bacharelado” e “licenciatura” e o atualmente
demonizado esquema “3+1”, isto é, para
formar-se professor, o estudante deveria
cursar três anos de disciplinas específicas da
área de conhecimento pela qual ele optou
(história, matemática, ciência ou filosofia,
por exemplo) e, em seguida, cursar mais um
ano de disciplinas pedagógicas. Se optasse por
encerrar o cursos após o cumprimento das
disciplinas específicas, o estudante poderia
requerer o grau acadêmico de bacharel. E,
se, além dos três primeiros anos, concluísse
também o quarto e último ano, ele estaria apto
a receber o grau de licenciado.
Nos últimos anos, vimos avolumarem-se as
críticas a esse esquema “3+1”, até o ponto
de decretá-lo extinto como condição para a
emergência de uma “identidade própria” para
a licenciatura (Res. CNE/CP 009/2001). Ora,
pergunto se no modelo anterior, estruturado
sobre o ideal da “formação universitária de
professores”, não havia de fato uma identidade
própria para a licenciatura. Não desconheço
que os bacharelados foram progressivamente
se insinuando como cursos autônomos (com
“terminalidade e integridade próprias”,
para usar os termos da mesma resolução
citada acima) e tornaram-se cada vez mais
valorizados que as licenciaturas, das quais
eram apenas uma etapa propedêutica. Mas
jogar com as armas do adversário, isto é,
exigir uma “terminalidade e uma integralidade
próprias” parece ter produzido um efeito
colateral altamente indesejável às licenciaturas:
o ocaso do projeto de “formação universitária
de professores” baseado no estreito nexo entre
o magistério e o trabalho intelectual.
Teremos nos próximos meses uma reforma
das licenciaturas, conforme prevê o Plano
Nacional de Educação, vigente desde 2014.
Seria uma grande notícia se, nas discussões
públicas sobre essa reforma, pudéssemos
contar com a participação de estudantes dos
cursos de licenciatura da nossa Universidade.
Sei que muitos deles têm inquietações e
propostas tão importantes e interessantes
quanto as que nos apresentou a Suelen no seu
ensaio. O Setor de Ciências Humanas, para
estar à altura de seguir com sua missão de ser
depositário do legado da antiga Faculdade de
Filosofia do Paraná, não poderá estar ausente
desse debate. Revisar, atualizar e defender os
objetivos norteadores dos nossos fundadores,
na forma de um renovado elitismo inclusivo,
entre outras tantas possibilidades menos
suspeitas de paradoxismo – talvez não haja
muitos outros modos de justificar por que
seguimos comemorando o 26 de fevereiro.
Eduardo Salles de O. Barra fez
graduação, mestrado e doutorado
em filosofia. Desde 2002, é professor
do Departamento de Filosofia da
UFPR. Suas pesquisas e orientações
concentram-se na área de história e
filosofia da ciência.
25
Entre e vistaTextículos
Elefante
Parece grande né. Pesado. Anda devagar. Como se nada afetasse muito. Eu também ando
devagar na rua. Queria aprender a ter essa indiferença. Cada passo parece um esforço, mas acho que
ele não se abala muito. Dizem que é um animal inteligente. Boa memória. Não sei se dá pra ter
muita inveja. Memória boa não parece ser uma das melhores qualidades pra um ser humano. Acho
que a vida seria melhor se a gente conseguisse esquecer rápido certas coisas.
Será que os elefantes – conhecem o perdão?
Nunca entendi muito bem aquela piada
decomo passar um elefantepordebaixodaporta.
Algumas lembranças antigas a gente
guarda na memória, sem muita distinção.
Geralmente, as que ficam são as memórias
associadas aos sentimentos, então não tem
muita regra, lembrar-se de fatos simples que
tenham algum significado pra vida inteira não
parece algo muito espantoso. As fotos ajudam
um pouco, nossa cabeça não é tão confiável
assim, dá uma embaralhada nas memórias de
vez em quando. A foto que tem na sala. Tenho
o que lá, dois anos? Com aquela camisa laranja,
comendo fandangos. Expressão inocente.
Foi você quem tirou. O gramado no fundo.
Zoológico no domingo. Acho que é uma das
poucas lembranças que eu tenho com você
nessa época. Mas no dia de que realmente me
lembro eu usava outra roupa. Era um pouco
mais velho, eu acho. Lembro-me daquele
portal de madeira na entrada, aquele gramado,
eu sentado na pedra, sol de meio de tarde. Não
distingo qualquer cheiro, nunca fui muito
bom com o olfato. Rinite. Deve ser. Apenas
aquela sensação de ar limpo que os campos
têm. Não é algo tão comum na cidade.
Você tirava todas aquelas fotos e
elas sempre saíam boas. Sempre foi assim,
também. E depois botava elas na parede da
sua sala. Algumas delas você nunca tirou de
lá, independente de ter se mudado de casa ou
de a gente passar vários anos se vendo muito
pouco. E aqueles quadros que fiz quando era
pequeno e te dei. Você sempre guardou. Um era
da escola, ainda. Por data festiva, essas coisas. A
casinha feita de desenhos geométricos e fundo
azul claro. Isso sempre me confundia quando eu
ia pra tua casa. Fazia-me questionar que talvez
você se importasse, mesmo que as circunstâncias
não indicassem muito isso. E eu nunca soube
muito bem como definir você. Tinha também
aquele outro, menos simples, o professor da vó
devia ter ajudado. O quadro de uma onça.
A onça não era um animal que eu
fazia tanta questão de ver quando a gente ia ao
zoológico. Ela geralmente ficava lá, no meio
das pedras, nem sempre aparecia. Quando
aparecia, era bonita. Tinha outros bichos
que eu gostava mais. O lobo-guará. Não
havia nenhum bicho parecido e eu o julgava
desconhecido. Gostava dele. A jaula dos leões,
de poder inquestionável, rei da selva. Também
não era meu preferido. O que eu mais gostava
era o tigre. Ficava fascinado, apesar daquela
jaula tão pequena. O Leão vivia numa espécie
de viveiro, com cabana, espaço pra correr
e um lago pra separar das pessoas, com um
par de leoas. O tigre não. Vivia numa jaula
pequena, de concreto, sozinho. Mesmo assim
não perdia a grandeza. Enquanto o Leão me
parecia aquele herói que esbanja e faz questão
de tornar público seus trunfos, o Tigre me
parecia aquele herói solitário, durão, que fazia
não por reconhecimento, mas por necessidade,
por honra. Um ronin do reino animal.
Eu me identificava com o tigre.
Queria ser como ele. Só que tentar lidar
com o mundo sozinho desgasta. O tigre foi
ganhando peso. Sua cor parecia estar, aos
poucos, desbotando. Apenas sua solidão e
sua inabalável postura sobreviviam ao tempo.
O tempo é um que não perdoa. Tente o que
for, ele nunca volta. Mas nada te impede de
tentar alguns truques para viver a ilusão de um
momento uma vez mais. Sem garantias.
Você também não escapou do tempo. Seus
cabelos foram ficando cada vez mais grisalhos.
Depois dos 50, a postura diante da vida
também já não parecia tão inabalável. Ainda
mais se ela continua a bater.
Você sempre me pareceu justo.
Honra. Não é de se ver muito isso, você parecia
tê-la. Você era o tigre. Sempre que me lembro
de você, o vejo sozinho. Mesmo quando estava
acompanhado, você sempre pareceu estar só.
Levando tudo nas tuas costas. Mas tudo em
relação a você. Sempre encarou os problemas da
sua vida sozinho, sem ter de recorrer a ninguém.
Digno. Mas seu caminho, afinal, é realmente
solitário. Fechado em seu próprio mundo,
não houve envolvimento seu em problemas a
sua volta, relacionados, indiretamente ou não,
a você. Talvez seja um fardo suficientemente
pesado carregar seu próprio peso. Não me
recordo de te ver em situação de contentamento
ou plena felicidade em momento algum da
minha vida, mas não seria capaz de entender.
Não o culpo por não se envolver, mas também
não compreendo. Há sempre uma escolha. O
que dói um pouco é saber disso.
A pele do elefante é dura.
Impenetrável talvez. De suas presas se
produz o marfim. Valiosa pedra. Mas de
difícil acessibilidade. Salvo um momento de
crise exacerbada, nunca me compartilhou
suas dores. Não sei muito bem que angústia
carrega, não sei muito bem o que sente. Sei
que o mundo te fez assim. Duro. Achava
que eu era diferente de você nesse aspecto.
Achava. Quanto mais vivo, mais sinto que me
aproximo de você nesse caminho. Talvez não
sejamos tão diferentes quanto eu achava que
fôssemos afinal. Talvez eu apenas ainda não
tenha vivido o suficiente pra me tornar como
você. Sangue não é água. Quem saberia dizer.
O elefante nunca me pareceu assim
tão interessante. Talvez a idade também mude
nosso mundo. Não é um animal que disponha
de artifícios suficientes para roubar de uma
criança a atenção que um ágil e majestoso
Gabriel Villatore Bigardi
26
Textículos
Dibujos
Seul Soldat
Miguel sigue molestando a Pablo y Juan. Allá de las
persecuciones y ofensas directas, dice a todos sus colegas que los dos no
pasan de maricones. Lo que ni imagina Miguel es que, al ver Pablo en
llantos, Juan ha elaborado un plan capaz de dar fin a la jodienda.
– Se van a acabar.
– ¿Qué?
– Las persecuciones de Miguel van a tener un fin.
– No van a terminar, Juan. Mientras seguimos en este
colegio, Miguel no va a dejarnos en paz. ¿Sabes qué? Anoche he hablado
con mi mamá y quiero cambiar de cole. Yo te pido que vengas conmigo.
– No, no vamos a ningún lado. Sólo eso te lo aseguro: que
sí, que van a acabar.
Más tarde, en clase.
– Profe, ¿has visto mi caja de lápices? Sí, hay más de cuarenta
y dos tonos de colores distintos. Mi mamá pidió que yo tuviera
cuidado porque costó muy caro. Le prometí que sí, que tendría. De
esta manera, he podido traerla al cole.
En el recreo, Juan pone tres lápices de la caja dentro de la
mochila de Miguel. Cuando todos vuelven a clase…
– ¡Profe, me han robado! ¡Me han robado algunos lápices de
la caja! Dime, ¿qué voy a hacer ahora? ¡No! ¡Seguro que me han robado!
Mi mamá me va a pegar, ¿qué voy a hacer? Tienes que buscar en las
mochilas, profe. Seguro que así los encontramos.
Al ocurrir la inspección, tres lápices –similares a los de
la caja– fueron encontrados en la mochila de Miguel. Juan y Pablo
no volvieron a ser molestados. Ya Miguel, este tuvo que cambiar de
colegio puesto que todos le pasaron a decir: ladrón.
Seul Soldat nasceu em 1992, na capital da
Paraíba. Em Curitiba desde jan. de 2013, foi
o amor quem o trouxe pelo braço. Graduando
em Letras PT/ES desde então.
carnívoro proporciona. Agora já parece
admirável, a fortaleza que é. Apesar de todas
as suas limitações, ele é impossível de passar
despercebido. Ao menos eu achava isso. Não
sei se é você quem finge não ver, mas parece
que aquele elefante nunca sai da sua sala. Ele
também está lá quando eu estou aí com você.
Não sei dizer se você já se perguntou como
fazê-lo passar por debaixo da porta.
Conhece a história dos cegos? Que
cada um botava a mão sobre um elefante e
interpretava algo diferente? História da minha
vida. Sobre antes de eu ter qualquer noção
sobre ela, mais precisamente, mas não menos
importante. Cada um diz uma coisa e não
me resta nada a não ser tirar minhas próprias
conclusões. De qualquer forma, já não importa
muito. Certo ou errado, ausente ou não, tudo fica
pra trás. Castigo para o elefante ter boa memória.
O tempo que passa também
amadurece relações; confiança requer tempo,
tempo requer paciência. Outra qualidade
do elefante. Passa-se a haver envolvimento.
E sobre cinzas de cigarro, lembranças e
sentimentos, o elefante que estava na minha
sala pareceu ganhar forma. Também o ignorei.
Cansa um pouco assistir aquele gigante de
bruços no canto da sala. Deixava-o quieto.
Mas ele cresce. Vai ficando maior. Quando a
gente nota, ele já está ocupando um grande
espaço. Ignorá-lo não resolve mais. Quando
se resolve encará-lo de frente, ele toma forma.
Então o elefante se torna real.
Nunca me pareceu fazer sentido
um elefante conseguir passar por debaixo
da porta. Impossível, eu pensava, é grande
demais. Mesmo com a resposta, me parecia
algo absurdo. Agora talvez eu entenda.
Entenda que alguns elefantes vivem na nossa
casa. Entenda que um elefante possa ter
diferentes formas. Entenda que um papel de
carta também possa pesar uma tonelada.
Pensei se talvez um dia você lesse
isto e o elefante fosse embora.
Então resolvi botá-lo dentro de um envelope.
Pra ver se ele cabia.
Gabriel Villatore Bigardi, tem
20 anos e está no terceiro ano de
Filosofia na UFPR. Nasceu em
Curitiba, em 1995, já morou em
São Paulo e fora do país (o que
dependendo da interpretação pode
significar a mesma coisa). Escreve
desde os 13 anos, e se pudesse
escolher viveria fazendo isto. Esta
é a sua primeira publicação.
27
Entre e vistaTextículos
PODE FICAR COM ELA PRA VOCÊ
Eu trabalho numa dessas lojas
cheirosas cama-mesa-banho. Aqui você
encontra toalhas, o próximo departamento
é o de lençóis, depois cobertores, edredons.
Segue por esse corredor e você vai achar
tudo aquilo que procura. Tem uma seção de
pijamas, sabonetes e aqueles cheirinhos de
capim-limão pra botar na gaveta de calcinhas
e tudo mais. Faz uns dois anos que tô nessa.
Não era o projeto da minha vida, mas sabe
como é, a gente se acomoda e vai ficando.
Fiquei. A dona, que trabalha no caixa, nunca
para de falar. Como grita essa mulher. Com
o tempo a gente se acostuma e nem ouve
mais. É bom o movimento por aqui. Muita
gente procurando presente de casamento, não
moça, aqui não é a Zelo, não, senhor, aqui a
gente não vende a fragrância da mmartan.
Muitas pessoas gastando dinheiro à toa
também (quem é que precisa comprar dez
jogos de cama de uma só vez?)
Eu gosto mais de ficar organizando
o estoque, dobrando os lençóis de elástico
(sim, eu sei fazer isso) que as pessoas insistem
em tirar dos pacotes mesmo com vários
“Senhores clientes favor não abrir os lençóis,
Obrigado, à Gerência” espalhados pelas
paredes. Já fiquei muito tempo pensando
sobre essa crase aí. Sabe, do nada você tá lá
pensando onde é que vai crase. Enfim. Prefiro
ficar organizando a loja do que atendendo os
clientes. É meu jeito. A gente não ganha por
comissão e o silêncio é uma oportunidade
que não deveria ser desperdiçada com tanta
frequência. Devia dizer isso pra dona. Eu
fico pensando nessas coisas enquanto separo
as toalhas da Peppa e os roupões do Ben 10,
essas crianças de hoje em dia não têm jeito. Na
minha época era sentar e fazer cabaninha com
uma toalha tipo um pano de chão e esperar a
mãe vir me secar. E ainda tinha que dividir o
tapetinho de crochê com meu irmão. Daonde
essa história de roupão pra criança. Sério.
Com 59,90 eu pago um terço das minhas
contas, fora o aluguel. Enfim.
Esses dias eu estava etiquetando
umas mercadorias novas e uma senhorinha,
senhorinha mesmo, bem velhinha, dava uns
oitenta anos pra ela fácil, veio me perguntar
sobre essas colchas que tavam na promoção.
Que tamanho a senhora precisa? E ela tentou
mostrar pra mim com os braços qual era o
tamanho da cama dela. Porra, como é que
eu ia adivinhar um negócio desses. Não fode,
senhora. Pelo jeito que ela fez, parecia que
era casal normal. Ela não conseguia abrir os
braços direito. Talvez fosse uma cama box de
solteiro meio grande. Viuvinha que chama.
Acho que ela morava sozinha. Olhei em volta
procurando um parente. Ela parecia sozinha.
Mostrei as opções de florzinhas, as listradas, as
de bolinhas, patchwork da moda e tudo. Ela ficou
olhando uma por uma durante uma meia hora.
Ai meu saco, viu. Faz tempo que você trabalha
aqui? Faz, senhora, um tempo. Gostei dessa
florida, dá uma animada no ambiente, você não
acha? Deve combinar com o quarto da senhora,
senhora. As orelhas dela eram enormes, tipo
grandes mesmo. A pele pelancuda despencando.
O nariz até que nem tanto. Ouvi dizer que
nariz, orelha e cotovelo nunca param de crescer.
Cartilagem, parece. O rosto dela tinha várias
camadas, como se ela fosse uma árvore que troca
de casca todo ano e fica com um círculo a mais
se a gente corta ela de lado pra ver. Será que se
eu cortar a velhinha de lado ela vai ter tantas
camadas quantos anos ela parece?
E desse aqui, você gosta? Era um
listrado feio, meio-amarelo-meio-verde.
Estranho. Depende do ambiente, senhora.
Olhando assim não é muito bonito, não, mas
pode ficar bom, a cama arrumada, o quarto
limpinho, cada coisa no lugar. Uma cama bem
feita faz toda a diferença. Verdade. De todas, qual
você gosta mais? Acho que dessa azul aqui. Azul é
cor de quarto, a senhora não acha? Então eu vou
levar essa mesmo. Pareceu que eu fiquei umas
duas horas com a velhinha. Eu não consegui
parar de olhar as pintas dela. A cara dela. A cara
velha e as camadas. Acho que a gente levou uns
dez minutos até conseguir chegar no caixa. O
vestido comprido deixava ver as pernas verdes
de tantas varizes. Ela não usava bengala nem
nada, mas acho que tava precisando. Vendedor
tem que ser atencioso o tempo todo. Às vezes
é um porre. Chegando no caixa agradeci muito
a senhorinha e aí deu pra ver os olhos meio
amarelados dela por trás das lupas. Ela abriu a
bolsa e tinha várias caixas de remédio soterrando
a carteira. Ela pagou e eu ia pegar a sacola pra
levar até a entrada pra ela, tadinha. Aí ela disse
que estava muito cansada pra levar aquele peso
todo até em casa e perguntou se podia passar
pra pegar no dia seguinte. Pode sim, a gente
deixa com seu nome, Dona... (Pelancas, pensei,
rindo). Antônia. Dona Antônia. Ela agradeceu e
foi caminhando pra fora da loja. Ainda bem que
ela não levou a colcha porque eu não sei se ia
ter paciência de acompanhar ela até a entrada.
Voltei a colocar etiqueta nos produtos que
tinham chegado.
No dia seguinte era minha folga. Depois
me disseram que a senhora tinha passado na loja e
perguntado por mim. Disseram que eu não ia pra
loja naquele dia e mesmo assim ela ficou esperando,
conversando com os outros funcionários. Olhou a
loja toda, disseram, sempre perguntando. Quando
teve certeza que eu não ia mesmo, disse que não
ia levar a colcha, que eu podia ficar com ela. Não
teimei: o cliente tem sempre razão.
Tempos depois percebi que tava na
hora de trocar minha roupa de cama. Pensei
na colcha da velhinha. Cheguei em casa e
coloquei a colcha nova, aquela sensação boa
de lençol cheirando lavanda, o tecido muito
macio ainda. Escovei os dentes, liguei a tv.
Dona Antônia não apareceu mais na loja.
Fiquei pensando quantos edredons e colchas
e porta-travesseiros e panos de prato ela tinha
deixadoemoutraslojasporaí.Talvezelativesse
morrido. Tão velha que suas raízes saíram do
corpo e se fincaram no chão. A imagem era
bonita. Eram muitas camadas. Quem sabe ela
não estava passando férias com os netos, os
filhos ainda felizes de terem a mãe por perto e
com um remorso ruim por sentirem o peso de
ter que ficar cuidando de uma velha. Pensando
bem, acho que não. Ela não parecia ter os
braços de quem sabe abraçar, e avós servem
pra isso. Fechei os olhos, coloquei a colcha
sobre a cabeça e, conforme sentia o sono
chegar e o corpo esquentar, minha solidão ia
sendo, aos poucos, compartilhada.
***
Por muito tempo achei que a ausência é falta.
E lastimava, ignorante, a falta.
Hoje não a lastimo.
Não há falta na ausência.
A ausência é um estar em mim.
E sinto-a, branca, tão pegada, aconchegada nos
meus braços,
que rio e danço e invento exclamações alegres,
porque a ausência, essa ausência assimilada,
ninguém a rouba mais de mim.
Carlos Drummond de Andrade
(com o pensamento em Gabriela)
Gabriela Ribeiro nasceu em São
Paulo há 22 anos, é estudante de
Letras há 4, há 9 descobriu que gosta
de escrever, há 1 guarda textos no
agabilleria e há aproximadamente
3 minutos decidiu que acha legalzão
falar de si mesma na 3ª pessoa.
28
Entre e vistaTextículos
A MORTE SUTIL DE CAMILO CALADO
Você viu o que houve? Que horror! Que
pecado! Morreu de silêncio o Camilo Calado, esmagado
por tudo o que disse que disse e não disse de fato,
coitado... há quem mereça um destino tão triste?
Camilo, o poeta das coisas discretas, da tinta
pesada, das sinas secretas, o Camilo que um crítico
chamou de Caminski - Leminski e Bukowski com tons
de Kandinsky - olhou-se no espelho e viu-se cansado,
apagado e abatido, calado e gelado, gelado, gelado.
Gelado?
Sim, o inevitável: o gelo enfim havia chegado,
o legado maldito que tanto temia! Ali estava ele, o
cancro translúcido que consumira sua mãe, gelando-
lhe o peito como uma espada. Olhou mais de perto e
encarou a verdade: sim, o estigma gélido roubava-lhe a
carne! Cristais glaciais revestiam seus ossos, seu sangue
um rio de águas azuis. Sua pele era agora uma pequena
geleira, escotilha improvisada por onde podia espiar
suas entranhas, tão estranhas, tão brutalmente belas.
Viu suas costelas, tão brancas com suas seletas sequelas,
as mágoas que o tempo ali entalhou. Viu seus pulmões,
preenchidos de um ar siberiano magoado e mortal. Viu
seu coração, a atração principal: o pobre coitado ainda
batia, que alívio!, pulsando em silêncio em seu casulo
ululante, prisão de mais puro vidro invernal.
Há dias sabia que o gelo viria, alertado por
ataques de repentina apatia, avisado por vis calafrios,
sintoma-sentençaquereconheceudeimediato,pobrediabo.
Constatando enfim quão concreto o destino,
Camilo chorou sem lágrima alguma, como só ele
sabia chorar. Lembrou lentamente da morte da mãe,
já congelada dos pés ao pescoço quando fora ceifada,
levada por ventos de terras distantes, países sem nome
onde o sol já morreu.
Escrevera sobre ela, é claro, sonetos e odes e
versos amorfos, poemas bizarros que poucos amaram.
Admiravam a força de suas metáforas, sem saber que
não usava metáfora alguma. Não quando falava dela.
Não quando falava de si.
Era infeliz seu destino, mas havia improváveis
vantagens na morte vindoura: a proximidade do abismo,
lento e faminto, permitiu que compreendesse finalmente
por que diabos não o ouviam, por que o achavam tão
quieto e soturno, por que o chamavam Camilo Calado.
Era tão simples: não entendiam porque não
sabiam! Não sabiam quem era nem de onde vinha. Não
sabiam seu nome nem do que era feito. Não conheciam
os becos secretos e as ruas rebeldes de sua impossível
cidade natal, povoada por monstros e anjos caídos,
iluminada pela lua mais sincera e o sol mais senil.
Não conheciam a tristeza inerente à sua terra, onde os
homens caminhavam ao lado dos sonhos, onde tudo e
todos eram questões metafísicas e a poesia era o próprio
concreto do mundo.
Não, Camilo Calado não o era de fato! Tinha
muito a dizer, tinha gritos a dar, mas só na poesia é que
era escutado, coitado.
Suspirou e sorriu e socou o espelho. Gargalhou
e gritou e sangrou no banheiro. Deitou-se então, braços
cruzados sobre o peito gelado, um pecador em seu leito de
morte. Fechou os olhos, acolhendo a escuridão, e perdeu-
se em memórias ao som sem sentido do ventilador.
Teceu ao seu redor um casulo de silêncio
puro, silêncio proibido, o silêncio perfeito dos mudos e
mortos. Enclausurado em seu calabouço de ar, Camilo
Calado enfrentou seus pecados. O gelo implacável das
coisas não ditas o forçava a fazê-lo.
Sabia que nunca dissera o que era preciso. Não
confrontou o vizinho festeiro que não o deixava dormir,
nem o peixeiro malandro que lhe vendera meio quilo
de siri estragado. Não explicou ao mundo que era um
estranho. Não disse aos amigos que estava falido. Não
disse ao médico que não via mais cores. Não contou a
Marina que amava Lorena (e tampouco o contrário!),
nem admitiu a Vitória que sabia que o guri era seu. Não
disse à mãe que a amava, a louca!, não disse ao pai que
queria matá-lo, não disse a si mesmo que ainda não
queria morrer.
Torturado pelo silêncio carrasco, Camilo
entregou-se ao abraço dos sonhos, deixando a corrente
do sono o levar. Acordou em um novo universo, um
mundo inverso onde andou com os mortos, sonhou
com os vivos, passou muito perto da terra abstrata onde
nasceu. O gelo sumiu sob o sol desse mundo, farol que
desenhou pra guiá-lo em seu rumo. Caminhou sob
a luz de cabeça erguida, certo de que a morte ainda o
espreitava, mas sabendo que agora essa morte era sua, só
sua, e não aquela que o gelo queria, fria e solitária e sem
sentido nenhum.
Perdeu-se no labirinto letal de seus sonhos,
engolido por ventos e luzes e cores, apagado do mundo
como um breve borrão. Camilo morreu uma morte sutil,
melancólica e frágil, uma morte que poucos homens
morreram. Sem música ou flores, sem cor, sem poesia,
sem nada.
Era a morte que queria? Quem sabe. O morto
nunca o disse a ninguém.
Foi seu editor quem o encontrou - ou melhor,
encontrou suas roupas, pijamas vazios, molhados e
frios, dormindo em silêncio sozinhos no escuro, caídos
na cama estreita de onde o poeta partiu. O ventilador
ainda girava no teto, mas já não fazia barulho algum.
Não havia mais livros no quarto, outrora quase uma
biblioteca. Seus muitos poemas ainda incompletos
tiveram o mesmo súbito fim que o autor.
O poeta deixara apenas uma única página,
deitada na mesa como se arrependida: o obituário
solitário que poucos jornais se dispuseram a publicar.
Dezlinhasvazias,escritasaesmoemsilêncioincolor.
Luciano Simão cursa Letras na UFPR e Jornalismo
na PUC. A cada dez textos que escreve, queima
nove. Nunca se arrepende ao ver as cinzas.
29
Carolina Soares F. de Araújo,
24 anos, trabalha como ilustradora
no momento, a maioria de seus
trabalhos são de ilustrações para
livros, livros infantis...
carolaraujoart.tumblr.com/
30
Entre e vistaVersário
Vê? Esse, o canino solitário,
essa, a boca mãe de filho único.
Vê? Como aquele canino é teimoso,
luta sozinho, uma luta com palavras,
pende quadrado da gengiva ensebada.
Ouve! Essas palavras saem raivosas,
cólera contra o pingente ancestral.
O canino solitário,
naquela boca enorme, rouba-lhes o sentido.
Ouviu o verbo profano que sai daquela boca?
...
Vê? É por isso que a palavra te atropela,
aquele mineral cria um ranço na tua atenção,
coloca um Eu no teu caminho.
VÊ?
Tiago Goes Cardoso
Tiago Goes Cardoso é
graduando em Letras pela
Universidade Tecnológica
Federal do Paraná.
31
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Boca do Inferno 29: Entrevistas e textos dos estudantes de Letras

  • 1. Jornal dos estudantes de Letras da UFPR | Edição 29 | Fevereiro 2016 NESTA EDIÇÃO Amyr Hamud, Bruna Motta, Carla Mota, Daniele Cristyne, Eduardo Salles O. Barra, Eduardo Soczek, Elizabeth Cristina Froma, Fábio Dantas Amaral Lisbôa da Silva, Gabriel Villatore Bigardi, Gabriela Ribeiro, Guilherme Bernardes, Iamni Reche, João Arthur Pugsley Grahl, João Vitor G. Candido, Leda Santos, Luciano Simão, Matheus Hatschbach, Raul Inoue, Rebeca Lessmann, Seul Soldat, Silvio Menezes da Silva, Tiago Goes Cardoso, Vinícius Figueiredo, Yuria Santamaria Pismel (Di Chiara)
  • 2. Entreevista Índice 03 Editorial Anna Legroski Juliana Correa 14 Entre e Vista João Arthur Pugsley Grahl Editores do Boca 23 Por um Elitísmo Inclusivo Eduardo Salles de O. Barra 32 Semana de Letras Carla Mota Menezes 04 Raul Inoue Silvio Menezes da Silva Guilherme Bernardes 05 Rebeca Lessmann 06 Yuria Santamaria Pismel 07 Iamni Reche Fábio D. A. Lisbôa da Silva 08 Bruna Motta 09 Matheus Hatschbach 31Tiago Goes Cardoso Versário Traduções 10 Vinícuis Lima Figueiredo 11 Guilherme Bernardes João Vitor G. Candido 12 Elizabeth Cristina Froma Mario Halley Mora 20 Amyr Hamud Textículos 18 Eduardo Soczek 22 Carla Mota Menezes 23 Leda Santos 24 Seul Soldat 27 Gabriela Ribeiro 29 Luciano Simão
  • 3. Entre e vistaEditorial Apesar de demorada, é com enorme prazer que trazemos à luz esta edição do Boca do Inferno. É uma edição que representa, antes de tudo, o crescimento do nosso jornal (nosso mesmo: meu, seu, de todos): recebemos cerca de 130 textos para a seleção (a título de comparação, na edição passada recebemos pouco mais de 30 textos). É claro que não foi possível publicar todos eles, devido ao espaço limitado, mas é certo que cada um deles ajudou a construir esta edição, mesmo os que não estão sendo publicados agora. A todos os autores que quiseram participar, fica o nosso agradecimento e o convite para que continuem mandando os textos para as próximas edições. Outro fato que ocorreu nesse meio tempo entre esta edição e a última foi a inclusão do Boca do Inferno no acervo de periódicos da Biblioteca Pública do Paraná, o que representa o reconhecimento do nosso trabalho (tanto dos editores, autores e colaboradores), que faz com que todo o esforço tenha valido ainda mais a pena. A isso também somos gratos e sempre seremos. Crescemos também no nosso corpo editorial, que aumentou para 14 pessoas. Temos agora alunos de licenciaturas e bacharelados em Português, Alemão, Francês, Espanhol, Grego e Inglês, além do Mestrado em Estudos Literários. Com certeza a adição dos novos membros, que são de todos os anos do curso, contribuiu em muito para o crescimento do jornal. Além disso, demos os primeiros passos em outros projetos importantes para o futuro do nosso periódico preferido e que devem aparecer em breve. O nosso objetivo, desde a edição 27, como membros do corpo editorial, segue maior do que apenas publicar textos, mas também oferecer aos nossos alunos a oportunidade de aprender. Aprender na prática a revisar, diagramar e avaliar textos com base no que aprendemos na faculdade, aprender a lidar com as críticas, com as discussões, com os elogios. Espero que essa experiência tenha sido tão engrandecedora para os nossos colegas editores como foi para nós duas. Quando desejamos vida longa ao Boca, desejamos, principalmente, que a oportunidade de ter um espaço para a publicação aberta, dos alunos pros alunos, seja mantida. Tentamos fazer, da melhor maneira que podemos, um jornal- com-cara-de-revista que une a voz artística dos alunos, seja por meio das poesias, dos contos, dos artigos, das ilustrações e de tudo que faz esse jornal ser o que é, e, perdoem a modéstia, estamos indo bem. Estamos na edição 29 com corpinho de 27 e a certeza de que muitas outras virão. Mas não custa repetir: vida longa ao Boca! Vida longa ao Boca! Anna Legroski Juliana Correa Juliana Correa foi uma das editoras-chefe desta edição do Boca e quase enlouqueceu no processo. Anna Legroski foi a outra editora-chefe e tentou ajudar a Juliana a não enlouquecer. 3
  • 4. Versário RaulInoue SAL E SOLIDÃO Eu venho do arco. Sangrado, singrado a barco. Sobrevivente carniçal. Navegante de presságios maus Que nessa noite azulada, Perde a bela nau entalhada. A madeira da proa desintegra. O estalo que encontra na pedra Parte o teixo marinado Enquanto ignoro os gritos do imediato. Sinto a onda me bofetear. Um misto de som e tato, Acompanhado da sensação de devagar. Imersar na fundura engolidora. A pilhagem me sobrevoa. Banham-me colares de rubis, Taças de ouro, broches de prata vis. Ainda afundo. Lembro-me dos amores imundos, Das mentiras que contei. Traições, assassínios, beijos que não dei. Do rapaz da pólvora, meu maior espólio. Todos somem, fecho os olhos. E de súbito o naufrágio cessa. Absorto, amaldiçoo o titã anil. Berro por cem anos, Morro depois de mil. (CÍRCULO EQUILÁTERO) não espero que o mundo dê as verdades e certezas que nos desesperamos a achar como se existisse sempre algum padrão escondido com a pretensão de tirar as dúvidas da existência pois aqui tudo é caos e eu [….] saudade vazio leito formado correndo sem rio Guilherme Bernardes SilvioMenezesdaSilva BIFURCAÇÃO para Aion Roloff Por muito manteve-se em linha reta (ou pelo menos era assim que via), até que, para o fim de sua alegria, por obrigação, seu andar aquieta. Forçado a seguir somente uma seta, não imaginou que chegasse o dia que, qualquer que fosse, a escolha seria sem linha ou volta, como foi em Creta. Por não saber onde o perigo espreita, achou melhor não ir pela direita e olhou atento para o outro lado. Temeu que significasse uma perda, por isso também não foi pela esquerda, ficando para sempre ali parado. 4
  • 5. Natural de Curitiba e nascido em 1992, Raul Inoue cursa Letras Português na UFPR. Faz poesia desde os doze anos e atualmente treina a arte do desenho livre. Guilherme Bernardes não faz a barba há anos e corta as unhas esquerdas antes das direitas. Publica esporadicamente em reconceber.wordpress.com Rebeca Lessmann estuda Letras na UFPR. Ama ler e criar histórias que, eventualmente, viram palavras em atmosferadeareia.wordpress.com. Silvio Menezes da Silva. Nascido em 14 de agosto de 1961 em Lages, SC. Ama os livros e escreve para poder sentir de perto o encanto das palavras, e suas múltiplas faces e amadas. Rebeca Lessmann CIRANDA DE PEDRA Afundei na calçada das cidades empoeiradas. Arranha-céus engolem constelações e derrubam esperanças infantis. Pessoas nas cirandas fixas por fina pedra e árvores de cimento frio e sol 5
  • 6. Versário Yuria Santamaria Pismel (Di Chiara) VENTANIA Cândida luz de teu orvalho Reflete em plena rua No cascalho Desenho em sombras saltitantes Sobras de vela que flutuam. Soprar do vento reduz o silêncio Rancoroso grita ao fogo e à cera E em seu gozo de seguir cantando Apaga a chama E derrama o orvalho Em sua veloz saideira. ALENTO Sobre as cabeças Lavando os traços De cada passo, Luar de outono Gotas de chuva Faróis da alma. Respiro fundo Sinto-me leve E acompanhada. ESSÊNCIA Teus olhos Cor de ouro Refletem o brilho Fresco De teu amanhecer. Yuria Santamaria Pismel adota o nome artístico de Yuria Di Chiara. Mora em Curitiba é estudante de História na UFPR, poeta e pianista. Para divulgar sua arte, participa de coletivos literários, saraus de declamação e varal de paesias. Quer um dia publicar um livro, mas enquanto isso não ocorre, divulga sua arte na página facebook.com/botoesdeprosa e no blog botoesdeprosa.wordpress.com 6
  • 7. Iamni Reche III. Quando a tua linguagem Introduzo na boca Me inventa Toda a realidade Com sentidos Que não alcanço Enquanto Os contornos de dentro Assumem uma intensidade Que não vai se repetir O toque arde na pele Se supondo último E, súbito, Outra lágrima Pende do rosto Desliza na pele: O tanto de carícia Que setembro guarda Iamni Reche nasceu e cresceu em Curitiba, de onde escreve o tempo todo. Fábio Dantas Amaral Lisbôa da Silva AFOGAMENTO Afogou-se... Viu a luz se perder Ao combater a lâmina d’água E perder o combate. Todas as coisas ondularam. Tudo que era plano e reto Dançou a dança mais sinuosa de todos os tempos E seus olhos deliraram com o claro do sol. Tanto se focava no apelo visual daquilo Que tardou para sentir a agonia chegar Trazendo-lhe o natural martírio da falta de ar. Quando deu pelo vazio de seus pulmões Quase nada mais havia Senão uma beleza translúcida Que já distante jazia. Afogou-se, então; Bolhas lhe saíram da boca Sem palavra de despedida. Afogou-se Lembrando-se só da beleza Sem dor, tédio ou agonia. Fábio Dantas Amaral Lisbôa da Silva, 3 de outubro de 1990. Escreve mais do que lê. Coleciona discos, tem mais discos do que relacionamentos. Preza as palavras. É poeta, historiador e escritor de todas as coisas. Encontre-o em fabiodalsilva@gmail.com. Versário 7
  • 8. Versário Bruna Motta PASSAGEM dentro do meu segredo me aconchego me refaço de pedra rochedo rijo que não desata. preciso do silêncio, do absoluto silêncio de infinitos de mar ou de mata; onde imensidões se encontram, onde desabam as águas das cataratas. descubro a solidão necessária para partir desfazendo-me do tempo e do espaço e vivendo momentos de íntima ilusão. sintomas de cansaço. na singela sinfonia o corpo vai dançando em direção aos braços da natureza agreste. nos atalhos nos desvios desvarios é onde está o novo recomeço! finalmente existo mesmo que dentro do meu esconderijo existo fuga vida regozijo exerço a minha loucura com permissão. delitos são desfeitos ao som do mantra a harmonia e o ritmo vão sendo restaurados o estômago borbulha alvoroçado as mãos tocam o caminho de veludo os olhos refletem as estrelas. da fina linha do equilíbrio vi meus pés escorregarem. caio desvairada cega virgem até me encontrar nas nuvens. nuvens são escadas rolantes que desembocam no átrio esquerdo do coração. lá eu esbarro no cerne de toda a vida a justificativa. sou embalada por um sono delicado repleto de entorpecimento e paralisia. sentidos e sentimentos se entrelaçam: duas grandes massas de ar que se chocam que se rompem que se criam. - fujo muito daqui, sabia? Bruna Motta. Aquariana. Estuda Letras. Publica em sua página Provável Véu da Farsa. Escreve versos para não soterrar. 8
  • 9. Entre e vistaVersário nunca fui de ler horrores de ter estilo próprio citava influências referências todas falsas quais sabia só frases nunca senti a beleza num poema senti já inveja ah! a inveja. não de poema, não, de sucesso. Todavia, me perseguem os poetas inapelavelmente cultos que nada foram senão líricos quem me dera ouvir uma voz humana. “EU TANTAS VEZES IRRESPONDIVELMENTE PARASITA” Matheus Hatschbach Matheus Hatschbach nasceu em novembro de 95, cursa História e Direito e participou do livro “Desnamorados”. Publica no blog devaneiostropicais.wordpress.com. Que vá torta a maldita linha. 9
  • 10. Traduções Vinícius Lima Figueiredo Nascemos para resistir àquilo que o corpo sustenta. Resistimos ao que veio e resistimos ao que virá, Resistimos ainda que tenhamos os segundos contados. Nosso corpo resiste até quinze minutos enforcado. Resistimos às chicotadas e que nos cortem os dois braços, Fraturas em qualquer osso: três semanas com um gesso. Resistimos a todo o tempo às vontades de ir ao banheiro. Para ver o cometa Halley, tem-se que resistir por setenta anos. Resistimos à escola, à faculdade, à Academia. À hora de jantar, resistimos aos arrotos. O povo de Burundi continua resistindo à fome. Resistimos por três dias para chegar à Lua. Resistimos ao frio do ártico, ao calor dos trópicos. Resistimos, com anticorpos, aos vírus microscópicos. Resistimos às tormentas, aos furacões, ao clima ruim. Resistimos a Nagasaki, resistimos a Hiroshima. Ainda que não queiramos, resistimos às novas leis. Resistimos, atualmente, que ainda existam reis. Castigamos o humilde e resistimos ao cruel. Resistimos a ser escravos por nossa cor de pele. Resistimos ao capitalismo, ao comunismo, ao socialismo, ao feudalismo, Resistimos até ao piá-de-prédismo. Resistimos ao culpado, quando se faz de inocente. Resistimos, a cada ano, ao nosso merda de presidente. Pelo que foi e pelo que podia ter sido, Pelo que há, pelo que pode faltar, Pelo que virá e por este instante, Um brinde à resistência Pelo que foi e pelo que podia ter sido, Pelo que há, pelo que pode faltar, Pelo que virá e por este instante, Levanta o caneco e vamos brindar pela resistência. Um brinde à resistência! Resistimos a qualquer tipo de dor, ainda que nos fira. Resistimos a Pinochet, resistimos a Videla, A Franco, Mao, a Ríos Montt, a Mugabe, a Hitler, a Idi Amin, a Stálin, Bush, a Truman, a Ariel Sharón e a Hussein. Resistimos a mais de vinte campos de concentração. Quando se nada embaixo d’água, resiste sem respiração. Para construir uma parede, a revestimos com azulejos. O que não fuma resiste ao cheiro do cigarro. Resistimos a que Monsanto infecte nossa comida, Resistimos ao agente Laranja e aos pesticidas. Quando navegamos, resistimos ao enjoo. Resistimos ao salário mínimo e ao desemprego. Resistimos às Malvinas e à invasão britânica e, na cidade de Pompeia, resistimos à lava vulcânica. E dentro da lógica Da nossa humanidade, acreditamos na mentira de que ninguém resiste à verdade. Pelo que foi e pelo que podia ter sido, Pelo que há, pelo que pode faltar, Pelo que virá e por este instante, Levanta o caneco e vamos brindar pela resistência. Um brinde à resistência! Resistimos ao ateu, ao mórmon, ao cristão, Ao budista, ao judeu, Resistimos ao pagão. Resistimos ao que vende balas e ao que as dispara, Resistimos à morte de Lennon, à de Víctor Jara. Resistimos a muitas guerras, à do Vietnam, à Guerra Fria, À guerra dos Cem Anos, à Guerra dos Seis Dias. Que resistam à revanche, viemos ao desquite. Hoje nosso fígado resiste ao que o balcão insiste! Pelo que foi e pelo que podia ter sido, Pelo que há, pelo que pode faltar, Pelo que virá e por este instante, Um brinde à resistência. Pelo que foi e pelo que podia ter sido, Pelo que há, pelo que pode faltar, Pelo que virá e por este instante, Levanta o caneco e vamos brindar pela resistência. Um brinde à resistência! Vinícius Lima Figueiredo é, antes de tudo, um aluno do curso de Letras da UFPR. A resistência René Pérez e Eduardo Cabra, banda Calle 13 Calle 13 10
  • 11. Charles Bukowski Traduções Engraçado, né? #2 quando éramos crianças deitados pelo gramado de barriga pra baixo conversávamos muito sobre como gostaríamos de morrer e todos nós concordávamos com a mesma coisa: todos nós gostaríamos de morrer fodendo (apesar de nenhum de nós ter fodido nada ainda) e agora que não somos mais nem um pouco crianças pensamos mais em como não morrer e apesar de estarmos prontos a maioria de nós iria preferir morrer sozinho debaixo dos lençóis agora que a maioria de nós já fodeu a vida inteira. Guilherme Bernardes é aquariano com ascendente em virgem, mas não acredita em nada dessas coisas. Publica esporadicamente em reconceber.wordpress.com. Gottfried Benn Circulação O molar solitário de uma puta que morreu desconhecida tinha uma obturação de ouro. Os outros tinham como que por um acordo tácito caído. O atendente do necrotério o arrancou, guardou consigo e saiu pra dançar. Porque, disse ele, só terra deve tornar-se terra. João Vitor G. Candido nasceu em 1989 em Londrina. Formou-se em Letras Português-Alemão. Atualmente é aluno do mestrado em Letras da UFPR. Gottfried Benn (1886- 1956) foi um médico e poeta alemão. É considerado um dosmaioresrepresentantesdo movimento expressionista. 11
  • 12. Entre e vistaTraduções O Fantasma Mario Halley Mora Elizabeth Cristina Froma 12
  • 13. Quando me mudei para este casarão velho “...e tempos longínquos e de sólidas paredes de pedra...”, disseram- me que aqui havia um fantasma. Tal fato não me preocupou muito, pois, embora eu seja imaginativo, sempre pensei que algo incorpóreo não pudesse fazer muito estrago, sendo tão somente uma figura abstrata e assustadora. Logo entenderão o que aconteceu. Há três noites que durmo no maior quarto da casa. E não senti a presença do fantasma, de quem a história conheço bem. Comentam que é a alma penada de uma jovem. Em 1865, em pleno segundo ano da Grande Guerra, conhecida também como Guerra do Paraguai, seu amado foi para o front. Ela prometeu esperá-lo, nessa mesma casa, mas seu amado nunca regressou. Asunción foi ocupada pelas tropas brasileiras e parece que uma noite, antes de ser violada, ela preferiu suicidar-se. Assim, de maneira simples e romântica, é a história do “meu” fantasma que... Interrompi a escrita. Ouvi um barulho, como se alguém caminhasse pela sala com cuidado, nas pontas dos pés. Fui abrindo a porta lentamente... e então eu a vi. Atravessou o quarto, e foi se sentar na poltrona de couro escuro, de encosto alto de estilo eclesiástico, que está próxima à janela. Olhava para fora, em direção a esse esboço de paisagem que provavelmente há um século fosse um caminho aberto no jardim, mas que agora não era mais que uma rua sem saída com alguns paralelepípedos salpicados. Tudo em sua atitude revelava uma branda e mansa espera. Nenhuma impaciência. Imagino que é assim que alguém se sente após esperar um século. Continuo escrevendo. Deve estar ali ainda. Que espere em paz. Eu vou dormir. Aconteceu de noite. “Meu fantasma” chorava. Ou pelo menos foi isso que pensei quando eu acordei com uma inquietude estranha no coração. Seu pranto me despertou, ou o gemido do vento nos corredores. Mas tive que me levantar e ir para a sala. Não estava lá. Mas seu pranto sim, um som triste que se afastava, como se ela fosse caminhando pela rua, ao encontro impossível desse amor tão esperado, porém sabendo de antemão que vai ao encontro de uma ausência. Leio o parágrafo anterior. Estava procurando uma frase poética para concluí-lo, quando bateram à porta. Delicadamente, com infinita educação, com timidez feminina. Nunca pensei que os fantasmas batessem às portas com tão fina discrição. Deslizam pelos corredores desertos, vaporosos e fugazes, se perdem embaixo da sombra da tinta nanquim de um bosque escuro. Mas não batem às portas. Por isso, não me assustei quando seus dedos delicados tocaram timidamente a madeira. Pensei que era uma visita e abri a porta, e fiquei de cabelo em pé. Ela estava ali, reluzindo um vestido simples, longo até os pés, com sua postura humilde e senhorial ao mesmo tempo, com as mãos juntas, e os olhos baixos, tal como corresponde a uma donzela frente a um cavaleiro mais velho que ela, e ainda por cima um solteiro convicto. Não estive à altura das circunstâncias. E me condeno pelo que fiz, pois, como o mais vulgar e tosco dos homens, fechei a porta na sua cara, de tão assustado que estava. Ela não aparece há três dias. Estará ofendida. Devo-lhe uma desculpa. Seja formada de vapores tristes, de esperanças e de sofrimentos, ou de carne e osso, ainda é uma dama. Devo-lhe reparar meu erro. Tomara que reapareça. Prometi a mim mesmo não me assustar, ou pelo menos não demonstrar. Já se passou uma semana. É perto da meia-noite. E não aparece. Vou procurá- la. Pai nosso que estais no céu... Eu a vi. Estava no jardim, sentada no banco de ferro enferrujado, com madeiras se desfazendo. Talvez nesse mesmo banco se despediram muito tempo atrás. Fui me aproximando com estas ágeis pernas que alguma vez puderam ser de um famoso jogador de futebol, mas que agora tremiam como duas varas verdes. Virou a cabeça e me viu. Que o leitor me perdoe por este absurdo, mas jamais vi tanta vida contida em dois olhos que deveriam estar mortos. Um pedido de socorro, súplica ansiosa, uma desesperada ansiedade de expressar alguma coisa brilhavam nesses olhos, deixando-me com a garganta seca. Levantou-se, e me estendeu a mão, como se quisesse me conduzir a algum lugar. Confesso com muita vergonha: saí em disparada e me tranquei no meu quarto. Estive lendo todo o escrito. E um parágrafo me deteve: “...como se quisesse me conduzir a algum lugar”. Sou um cínico, confesso. Estou começando a relacionar esse “algum lugar” com o local de um tesouro enterrado. Pelo menos isso é o que reza a lenda. Que os fantasmas não descansam até que seus velhos pertences estejam em mãos vivas. Deveria ter mais Elizabeth Cristina Froma, professora de Língua Espanhola. Formada em Licenciatura pela PUCPR (2008); Especialista em Metodologia de Ensino de Língua Estrangeira pela UTP (2012) e cursa atualmente o curso de Letras - Ênfase em Estudos da Tradução na UFPR. Amante incondicional da língua castelhana. vergonha, mas a verdade é que a ganância excita meus sentidos. De certo modo não é de toda mal. Será uma troca justa: uma ânfora repleta de úteis moedas de ouro em troca da paz eterna. Será um bom negócio para “meu fantasma”. E para mim, é claro! Procurei-a e a encontrei. Isso aconteceu há quinze dias. Estava no mesmo lugar. No mesmo banco. Dessa vez, tive mais coragem, ou menos medo, ou mais ganância. Quando me estendeu a mão, imitei-a e caminhei em sua direção, rezando mentalmente sem nenhuma vergonha. E me pegou pela mão. E não era uma mão com a frieza mortal, senão viva, morna, mão de noiva que esperou cem anos e durante esses cem anos acumulou carícias em cada um de seus poros. Conduzindo- me suavemente, me levou para os fundos. Descemos por uma escada que levava para o porão, cuja existência eu desconhecia, percorremos um estreito corredor até encontrar uma parede que o dividia, e quando pensei que ia atravessar a parede deixando-me sozinho, ela se deteve, e apontou para o piso. Em uma grande lápide se desenhava nitidamente, no centro, uma enferrujada argola de ferro. Logo compreendi, ali se encontrava o tesouro. Trabalhei como um louco durante duas horas, cavando ao redor da pesada pedra. Ela estava sentava perto de mim, com o formoso rosto graciosamente apoiado nas mãos, e me contemplava em uma atitude de fina dama que vê um escravo seu trabalhar. Finalmente a pedra se soltou do local. Fiz um esforço supremo, e a abertura ficou descoberta. Porém, não havia ali um jarro antigo, mas sim uma longa corrente de ouro com um medalhão. Retirei do esconderijo, abri o medalhão e vi o retrato do barbudo e valente oficial Marechal López sorrindo para mim com o seu mais profundo heroísmo. Entreguei-o à dama. Mãos de fantasma também tremem de emoção. Eu juro. Apertou o retrato contra o peito, e se foi devagarzinho, flutuando em posição de reza, e desta vez sim atravessou a parede, com seu medalhão no aconchego de um caloroso encontro. Enfim se reencontraram. Onde quer que estejam são felizes. Mas eu não. Ela não aparece mais, definitivamente se foi. E não consigo deixar de me sentir um pouco ciumento. Além disso, embora tenha cavado mais três metros naquele local, não encontrei mais nada. Parece que os brasileiros se adiantaram, enfim... MarioHalleyMora(Coronel Oviedo, 1926 – Assunção 2003). Dramaturgo, romancista e jornalista paraguaio. Em vida, foi membro da Academia de História Militar e da Academia Hispano-americana de Letras de Bogotá. 13
  • 14. Entre e vista João Arthur Pugsley Grahl 14
  • 15. Nessa edição, o Jornal Boca do Inferno teve a honra de entrevistar o então coordenador do curso de Letras, professor João Arthur Pugsley Grahl. Mesmo com algumas interrupções de alunos, do Sandro (#todossomosSandro #Sandronósteamamos) e até mesmo de sua filha (fofa!), o clima da entrevista foi leve, tranquilo e descontraído. Ele nos contou sobre sua vida acadêmica, sobre sua experiência estudando Matemática e a ligação que ele encontrou entre as duas áreas, Matemática e Letras, sua experiência como coordenador, o envolvimento e crescimento pessoal que ele teve durante esse período e de sua experiência como professor de Francês. Como a entrevista foi realizada em fevereiro deste ano, com a greve dos professores estaduais em vigor, ele também opinou sobre a situação política e da educação no nosso cenário atual. Boca: Vamos começar pelo começo. Você tem duas graduações em Letras, bacharelado e licenciatura. Como foi a graduação pra você? Foi tranquila? João Arthur: Foi ótima. Foi muito bom. Boca: Você era um bom aluno? João Arthur: [hesita] Eu acho que eu... pra mim, eu era um bom aluno! Boca: Quanto tempo você levou pra se formar? João Arthur: Eu acho que foram uns seis anos, por aí. Foi mais ou menos isso. Eu levei um pouco mais de tempo porque no primeiro semestre eu estava na Bahia, trabalhando em um resort. Na verdade, na cozinha. Daí eu desisti de todas as matérias e só assumi o curso no segundo semestre. E não podia trancar, então eu tive que reprovar as matérias do primeiro semestre. Eu fiz Francês-Português, que hoje não tem mais. Boca: E Centro Acadêmico e Boca do Inferno? Qual era a diferença daquela época [tempo de graduação] para agora? João Arthur: Eu nunca fiz parte do centro acadêmico, então eu não saberia dizer. Nunca participei de absolutamente nada, eu era totalmente alheio a toda questão política que havia na universidade na época em que eu era estudante. Eu trabalhava paralelamente, tinha outras coisas. Então eu vinha para a universidade [Chamado da coordenação e da Maite, filha do João.] Boca: Tivemos um aumento de alunos, e o nosso curso já era enorme mesmo antes disso, não é? João Arthur: Sim. São 857 alunos. Boca: E como é gerenciar todo esse pessoal correndo loucamente pela coordenação pedindo ajuda? João Arthur: Pois é, isso aí é uma coisa que você aprende com o passado, com a experiência, principalmente. A gente não tem muita cancha, né [pausa para atender uma aluna]. Da coordenação a gente ouve tudo quanto é tipo de história de vocês, aqui é o catalisador das histórias. A gente fica sabendo de um background. Dá pra fazer uma tipologia de alunos. É interessante ver esse tipo de coisa. Aqui a gente tem a pretensão da universalização da universidade, que tem que ser igual pra todos. E isso gera um monte de problemas. As especificidades de curso, as especificidades de alunos. A gente tem 54 habilitações no curso. É o único curso que tem essa quantidade. Depois de Letras, algum curso talvez tenha 4 ou 5, né. [risos] Administrativamente,  a gente tenta arrumar as coisas, mas também esbarra em outras. Algumas dão certo, outras não. A gente vai também empurrando com a barriga, acaba esquecendo alguma coisa, às vezes, porque vão aparecendo outras. É mais ou menos assim que as coisas acontecem. Você tem que agir muito rápido pra tentar resolver. Então, a princípio, você apaga muito incêndio, porque você não está acostumado. As coisas vão acontecendo e você vai tentando agir em conformidade com o problema. Depois de um tempo você já age conforme aquilo que sabe que pode fazer, aquilo que tem autonomia, aquilo que você não tem. Pra você descobrir leva um tempo. Na verdade, não é fácil. Boca:Seasuafilha[queestavaengatinhando entre as cadeiras da coordenação] dissesse quevaifazerLetras,vocêficariapreocupado? João Arthur: Não, de nenhuma maneira. Eu acho que ela pode fazer aquilo que ela quiser. A gente tem que saber que as coisas mudam, os tempos mudam. Nos anos 90 eu fiz um curso de Mecânica Industrial no CEFET, e eu ia atrás de trabalho e não tinha. Não tinha trabalho pra engenheiro, ganhava muito mal. E agora é o contrário, você está buscando engenheiro, todWos pagam muito, recebem muito bem. O professor também já teve a sua época, vamos dizer assim, de receber. Infelizmente a coisa é complicada, hoje existe um descaso com a profissão. Passa por um monte de elementos que a gente não vai poder destrinchar aqui, agora, mas depende “ Da coordenação a gente ouve tudo quanto é tipo de história de vocês, aqui é o catalisador das histórias.” de governo, depende da economia, depende de um monte de coisa. Eu não acho que Letras é um curso de pobre. Eu não acho que seja. Financeiramente, é lugar-comum falar que você não vai enriquecer. A priori não é o objetivo, como professor ou trabalhando em uma editora, em qualquer coisa que seja, enriquecer. Mas pra mim, pelo menos, o curso representou muito mais do que eu buscava, no sentido de enriquecimento intelectual, enriquecimento cultural, enriquecimento humano. Eu acho que consegui encontrar um lugar pra mim nessa questão de trabalho. Eu estudei francês, então eu pude sempre dar aula de francês. Eu fiz pesquisa na parte de linguística, depois fiz o meu mestrado na área de linguística. E tinha a literatura, que era uma das coisas que mais me incentivava a fazer Letras. O curso mesmo foi superinteressante pra ler os livros que os professores colocaram, mas só agora, que eu sou professor de língua e literatura, que eu estou levando a parte literária mais sistematicamente, lendo a parte de teoria, esse tipo de coisa. Mas aquilo que me incentivou mais, a literatura, na verdade ficou em segundo do plano durante o curso. É interessante, né, mas a parte de educação e a parte da linguística foram as minhas descobertas. Boca: Deu pra perceber que você é um pouco ator, modelo e dançarino. Você trabalhou em várias frentes com Letras. Isso é muito interessante, porque, às vezes, a gente não pensa na possibilidade de realizar tantas coisas. Você também revisou literatura, que é uma coisa que pra muita gente aqui é um sonho. Muito calouro chega pensando só em dar aula ou sem saber o que vai fazer. As pessoas têm que chegar e saber que é uma possibilidade, que também é uma carreira que dá pra seguir. João Arthur: É, o problema é que a gente não tem isso regularizado. Isso é um dos problemas que a gente tem de falta de organização de classe. Se você tivesse uma organização sindical, “Mas pra mim, pelo menos, o curso representou muito mais do que eu buscava, no sentido de enriquecimento intelectual, enriquecimento cultural, enriquecimento humano.” 15
  • 16. você poderia profissionalizar o sistema, justamente pra que você pudesse ter uma base salarial que pudesse discutir. Pelo que eu vejo, tem gente hoje que ganha a mesma coisa que eu ganhava dez anos atrás trabalhando de revisor. Como é que pode isso? Tem alguma coisa errada. No regime democrático isso é previsto pra que você, enquanto trabalhador, possa exigir os seus direitos e ter o mínimo pra poder se estabelecer. Então, tudo passa pela questão política, pela questão crítica, de espírito crítico, tudo passa por essas coisas. Eu acho que no curso de Letras, da maneira que eu vejo, é possível criar esse tipo de coisa, nos nossos alunos. Com a literatura, é possível criar outro imaginário nas pessoas. Assim como existe o imaginário religioso, existe um imaginário que pode ser literário, pode ser filosófico, que pode ser outro mundo possível pra estabelecer a maneira como você pensa, a maneira como você age, a maneira como você vai tomar decisões. Acho que a literatura é um dos elementos que, se você quiser, pode ser uma dessas coisas que não dá pra gente controlar, mas faz parte da vida. Então eu identifico isso na minha trajetória, eu aprendi esse tipo de coisa no curso, de ver qual que é o espaço de todas as coisas que a gente aprende aqui. É interessante que se faça algo e acho que o curso de Letras dá essa possibilidade. A gente vê muita coisa interessante, inclusive a possibilidade de trabalhar. Pra mim foi assim, pelo menos. Eu descobri uma profissão, outra profissão. Eu já tinha uma, mas descobri outra. Boca: Você é coordenador, você mesmo disse que você fica sabendo de todo o background dos alunos... João Arthur: Acontece uma porção de coisas. A gente tem que aprender a ser coordenador do curso, a gente tem que aprender a ser professor, aprender a ser tudo. É uma questão de política também, é uma figura política. Política não no sentido, obviamente, partidário, que não é o caso, mas política no sentido de que todo mundo tem uma representação política, uns mais, outros menos. Mas o que eu quero dizer é que como coordenador se espera uma posição na questão de relações interpessoais, e é isso que eu estou chamando de política. E dai é interessante, porque pra mim conhecer os alunos tá sendo um aprendizado humano. Muitos preconceitos se desfizeram e eu não consigo identificar nenhum preconceito gerado por causa dessa passagem. Mas o que foi interessante nesse período que eu estou aqui, que vai até julho [de 2015], é que eu pude compreender como é que a universidade funciona. E, compreendendo como é que a universidade funciona, se tem uma ideia de como funcionam todos os outros setores do ensino no Brasil. Pelo menos toda essa parte administrativa, burocrática e de relacionamento interpessoal é superinteressante de ver e ter uma ideia muito mais consequente do funcionamento da instituição, e de como, por exemplo, hoje, em que a gente vive em um regime democrático, isso influencia em todas as instituições. Eu imagino que quando se vivia em um regime ditatorial isso também influenciava em todas as relações, em toda a parte administrativa, em toda a parte interpessoal. Digo isso porque em todas as instâncias a gente tem representação direta. Isso vem de uma estrutura democrática que começa a ter os tentáculos em todas as direções, e é interessante que a gente aprenda esse tipo de coisa. Com um regime que é democrático a gente tem que saber se colocar, tem que saber ser político, e isso diz respeito a todo mundo. Alguns têm mais responsabilidades do que outros, obviamente. A gente, como professor, tem mais responsabilidade do que um aluno, nesse sentido, porque você influencia mais pessoas, interfere em mais pessoas. Mas diz respeito a todo mundo. Então é interessante de ver que funciona dessa maneira. E a gente, com a autonomia que a gente tem, a gente pode tentar fazer coisas usando a estrutura da universidade. Mas eu acho que todo mundo tem essa possibilidade e essa responsabilidade, maior ou menor. Principalmente nessa criação, seja de imaginário, seja você fazer pesquisa, seja de você atuar como professor. A gente é professor, todos nós somos professores, essa é a parte que todos nós temos em comum, e é uma responsabilidade que a gente tem, que a gente compartilha. Boca: Você começou e interrompeu uma graduação em Matemática Industrial, não é isso? Como que foi isso, Matemática e Letras? João Arthur: Uma das coisas que me interessou nesse esquema de matemática foi o ensino de Linguística, que eu estudei aqui para fazer o bacharelado (eu fui bolsista de Iniciação Científica do Luís Arthur [Pagani] e estudava lógica e esse tipo de coisa). As primeiras matérias que eu fiz lá foram justamente de lógica. Eu já tinha terminado o mestrado, daí eu pensei “ah, vou fazer lá, porque não precisa de nada, é só se inscrever que você passa”. Pra ver como que era! Mas o curso é bem complicado. Não foi pra frente, não. Boca: E você pretende retomar? João Arthur: Isso eu faço sempre, estudo um pouco sempre. Inclusive eu apresentei com o Ernani [professor Luiz Ernani Fritoli] uma coisa que tem a ver, em uma das Semanas de Letras. A gente apresentou “Matemática e Literatura”, de um grupo francês chamado Oulipo. Eles têm essa prática. Inclusive, Ítalo Calvino e Georges Perec, de não ter divisão entre esse tipo de coisa. Mais importante que o poema e que o romance, ou qualquer coisa assim, é justamente a forma em que você vai fazer o poema ou o romance. E o Ernani gosta muito do Ítalo Calvino, e eu acho o Perec e o Queneau bacanas. E até hoje esse grupo funciona, ele fez 50 anos há uns dois anos. Eles dizem que todas as formas são olimpianas. Boca: É difícil imaginar a semelhança da Matemática Industrial com a Literatura... João Arthur: Essa é uma divisão que foi planejada. É uma questão histórica mesmo, de não se ver nenhuma interlocução entre humanas e a parte mais técnica, tecnológica. A gente podia pensar numa outra maneira. Não é o caso. A literatura foi pra um lado, a matemática pra outro e justamente por isso que a gente não pode pensar nisso. Existe uma didática, um tipo de pedagogia, uma questão muito mais vocacional do que prática. Boca: Pegando por esse viés e juntando com o enrosco que está a educação no Paraná, queríamos saber qual é a tua concepção de ensino. João Arthur: Eu gostaria que essa parte educacional fosse mais valorizada porque, enfim, faz parte do todo do governo. É importante pra pólis que as pessoas sejam bem formadas para a democracia. Não dá pra desvincular uma coisa da outra. E a gente, na universidade, espera que os alunos possam aprender (se não aprenderam ainda) a ter e a agir em conformidade com o espirito crítico. Então eu acho que isso aí é uma das coisas principais que tem e pode formar a população justamente para que ela possa criticar o que quer que seja. O Ensino, com letra maiúscula, seria nesse sentido. A gente faz parte de um sistema que vai desde a escola básica, passa pelo ensino regular e chega na universidade. Na universidade é isso que a gente faz. Você não encara nada a priori, dogmaticamente. Tudo pode ser questionado, criticado, todas as coisas podem passar por esse tipo de crivo racional, sistemático ou metodológico para que se possa refletir ou, pretensiosamente, avançar. Talvez não no sentido de progresso, como era no século 19, mas no sentido de você descobrir outras coisas, outras maneiras de pensar, outros tipos de reflexão, e é isso que na universidade, que é especificamente diferente do ensino regular, a gente faz. O que a gente tem em comum é o espirito critico, que deve ser valorizado exatamente para que a gente não chegue no que a gente está vendo. Boca: O que você está achando das manifestações dos professores? [A entrevista foi realizada em março de 2015] João Arthur: A gente não tá muito acostumado com as manifestações desse ano, mas nos anos 80, essa era a regra: os professores na rua, sendo abatidos pelo governo, esse tipo de coisa. Agora a gente não tá (aparentemente) nesse mesmo ciclo, como era nos anos 80, e na mesma frequência que o pessoal democraticamente possa questionar o descaso do governo com a educação e, pra que isso possa ser melhorado, afinal de contas a gente tem representação, pelo menos teoricamente, pra que o pessoal possa pensar em ensino, e se eles não têm condições financeiras, como eles afirmam que não têm mais, que alguém resolva. E a gente precisa prever esse tipo de coisa, a gente precisa de gente mais criativa para tentar dar conta de todo esse processo educacional, que possa trabalhar de maneira consciente, participar da vida democrática de maneira consciente, pressionando, porque eu “ Acontece uma porção de coisas. A gente tem que aprender a ser coordenador do curso, a gente tem que aprender a ser professor, aprender a ser tudo”. “Mas o que foiinteressantenesseperíodo queeu estouaqui[...]équeeupudecompreendercomo équeauniversidadefunciona.E,compreendendo comoéqueauniversidadefunciona,setemuma ideia de como funcionam todos os outros setores doensinonoBrasil.” 16
  • 17. acho que isso deve ser mantido. Pra própria universidade isso é essencial, essa liberdade de pesquisa, pra que a gente possa trabalhar todas as coisas sem nenhum tabu. Boca: Inclusive você tem um grupo de estudos sobre democracia e tudo o mais, não é isso? João Arthur: Isso! Bem, eu participo. É um grupo de estudos do pessoal de Direito. Eu trabalho junto por causa do projeto dos haitianos e com os imigrantes. Esse grupo de estudos parte daí, dessa pegada dos direitos humanos, que tem a ver com todo esse aspecto político-educacional. Eu acredito, eu sei que é uma coisa meio lugar-comum falar desse jeito. Por isso que a gente fica muito chateado com o descaso do governo: porque a gente vê que é sempre a mesma coisa. O discurso é uma coisa, a prática é outra. No meu bacharelado, eu estudei sobre o convento de Port-Royal, na França, do século 17. Eles já sabiam, por exemplo, que quanto menos alunos nas salas, melhor seria o ensino. E não há nenhuma preocupação do governo pra diminuir o número de alunos em sala. Boca: Pelo contrário, né? João Arthur: Justamente. Você acha que com 30 alunos na sala eles vão aprender? Eles vão aprender apesar disso, porque a gente tem um instrumental muito bom, que é muito melhor do que aquilo que a escola pode oferecer. Em Port–Royal, eles já tinham esse tipo de mentalidade, de menos alunos. O Racine fala que aprendia com o Arnaut, ou com o Lancelot, que tinham oito alunos. Aí eu acredito que saia um Racine daí, entende? Porque o professor pode ensinar tudo o que ele sabe, estar muito mais próximo dos alunos. Por exemplo, eles viram que, se você ensinasse latim em francês, os alunos aprendiam melhor do que se você aprendesse latim em latim. O que pra gente hoje é óbvio, mas na época não era. Eles começaram a implementar isso, questionavam o percurso de ensino jesuítico, tentando refletir sobre novas maneiras de se ensinar. Eu acho que, enquanto o governo não diminuir o número de alunos em sala e investir mais no professor, é absolutamente inútil. Eu sinceramente nem ouço, porque me chateia, sabe? Qual seria o ideal? A gente já sabe faz quatro séculos. Daí o pessoal vem e diz “não, finalmente a gente vai ter 30 alunos por turma”. 30 alunos por turma não pode, cara! Não pode. Não vem me falar que isso é um elogio pro governo. Isso daí é você assinar o descaso, a incompetência e a inutilidade do teu governo com a educação. Pra mim soa como se o cara estivesse rindo da minha cara. Eu acho que o problema é maior do que “ Pra própria universidade isso é essencial, essa liberdade de pesquisa, pra que a gente possa trabalhar todas as coisas sem nenhum tabu”. “ Então, o que a gente pode dizer? É uma chateação completa o descaso com a carreira de professor, o descaso com os alunos”. “ Minha trajetória na universidade sempre foi de fazer um monte de coisa diferente”. isso que tá acontecendo. Hoje a gente está numa situação que é longe de ser a ideal e está piorando, ainda. Então, o que a gente pode dizer? É uma chateação completa o descaso com a carreira de professor, o descaso com os alunos. E a gente sabe o que fazer, a gente sabe. Só que querem investir? Querem contratar o dobro do número de professores para reduzir o número de gente por sala de aula? Querem construir mais sala de aulas para alojar esses alunos? Se existe a retórica de que a educação é mais importante, é isso que se faz. Mas vão fazer isso? Têm o budget? Eles precisam dar conta do orçamento. E aí, na prática, acham que isso não é importante. Mas é. Boca: Isso que você falou de espírito crítico, lugar no mundo e tudo mais lembrou bastante aquele outro projeto que você está engajado, com o Neab, de tradução de textos de literatura africana, de história e filosofia também... João Arthur: Esse foi um convite que eu recebi logo que eu entrei aqui na universidade. Achei interessante, e minha trajetória na universidade sempre foi de fazer um monte de coisa diferente. Eu não sei se isso acontece pra todos os professores, mas pra mim tem sido interessante, bem desafiante, pelo menos nos quatro anos que eu estou aqui. Isso que é legal, a universidade possibilita todas essas atividades. Então foi interessante pra descobrir a tradução. Nunca tinha, a priori, feito nenhuma tradução que não fosse de textos pequenos. E eu tive que orientar os alunos pra fazer. Então você tem que aprender muito rápido. Chamei o Mauricio [professor Mauricio Mendonça Cardozo], pra “pô, fala aí o que você acha, como que é”. Ele foi bem interessante, ele falou: “não, ó, a princípio pode ser uma coisa mais... Não existe um dogma tradutório, não existem os textos que você vai traduzir”. E eu achei interessante o approach dele. Aqui, a universidade já é um polo de tradução. O pessoal já está traduzindo um monte de coisa, está ganhando prêmio, é interessante de ver. Mas, pra mim, foi interessante descobrir essa literatura, na verdade. Essa literatura africana, que eu não tinha ideia e que é extremamente rica. Boca: Precisa bastante resistência, né. Inclusive importante quando a gente discute democracia e tudo mais. João Arthur: É, enfim, o que eu descobri, pelo menos nessa parte de literatura africana e literatura do Caribe, é que você tem todo um movimento de protesto que você não encontra com a mesma intensidade, a meu ver, em outras literaturas. Então pra mim foi uma descoberta. Ter, por exemplo, um Jacques Roumain, que tem como matéria-prima para os poemas um ódio, uma ira muito forte, você percebe como pode ficar bom usar esses sentimentos que tradicionalmente eu não estava muito acostumado a ler. E você consegue ver, através da história poética desses continentes, toda a história deles, como que eles vão lidar com um continentequetradicionalmentetemumatradição oral muito forte. Como você vai lidar com essa coisa de escrever a tradição oral, de calcificar em uma forma específica todo um conhecimento que vinha de geração e que mudava através do tempo. E os autores procuram lidar com esses paradoxos, com essas maneiras literárias. O que pra mim foi superinteressante de ler os textos filosóficos, inclusive. Boca: Então, João, a gente está falando de escrita de poesia e tudo mais. Você escreve literatura? João Arthur: Ah, isso daí, eu... É, como que posso dizer...[risos] Olhe, escrever não significa nada enquanto não publica a coisa. Boca: Então... A gente tem um jornal que publica coisas... João Arthur: Só existe literatura na prática quando existe leitor, que vai passar pelo crivo do leitor. Então, baseado nessa definição, não, não escrevo. [risos] Boca: Pra gente finalizar: o que você está lendo, o que você está ouvindo e o que você está vendo? João Arthur: Ai, deixa eu ver, então.[risos]Estou lendo Octavio Paz. Do Octavio Paz eu estou lendo, nesse instante, Los Hijos del Limo. Estou lendo também Guerra e Paz, mas esse está bem mais devagar, eu estou na página 750, mas como são quase 3.000 vai levar um bom tempo ainda. E estou lendo pra ela, inclusive [Maite, filha do João]. [risos] E eu estava ouvindo ontem um som do Nick Cave, Jubilee Street, que não me sai da cabeça já faz alguns dias. E esses dias eu vi um filme japonês bem doido, Battle Royale, que é bem interessante, tem a ver com a gente. Você envia os estudantes pra uma ilha deserta pra que eles se matem. É, eu gosto de filme japonês. Esse está bem fresco na memória. Eu assisti um que foi bem legal... o tal do Jubilee Street é ligado aos Vinte Mil Dias na Terra. É um documentário do Nick Cave, esse eu assisti também. 20,000 Days on Earth, que é bem bacana, bem bonito. Eu estou lendo poema sempre, né, nessas férias eu li o livro que o Marcelo Sandmann traduziu, muito bom. Essas férias foram bem produtivas. Ah, e um do Knut Hamsun, A Fome 17
  • 18. Textículos E o improvável se fez fato e habitou entre nós Creio que só agora começamos a assimilar o que se passou no mandato de Beto Richa (PSDB), eleito sob aprovação da maioria dos paranaenses e em primeiro turno. Voltemos, pois, a fevereiro de 2015: no dia 10, mais de 30 mil educadores de todos os cantos do Paraná gritavam contra o tal pacotaço, oriundo do Poder Executivo do Estado e que poderia ser aprovado pelo Legislativo. Em nome de uma crise econômica não causada por nós, o governador queria lançar mão do dinheiro do Paraná Previdência, nossa garantia de aposentadoria futura. Enviamos e-mails e mensagens via whatsapp, telefonamos e visitamos os deputados, expondo nossa oposição ao projeto. Solicitamos apoio, assim como eles fazem, quando enchem nossas caixas de correio com seus santinhos sorridentes em tempos de eleição. Mas, mesmo com todo o apelo popular que havia nas galerias da Assembleia Legislativa e na praça, a Comissão Geral foi instaurada para que tudo se aprovasse rapidamente. Foi nesse dia que ocupamos o prédio da Alep: a grade que separa o povo de sua casa de leis foi rompida. Em meio a confusão, alguém me deu a mão, agarrei a perna de outro, um terceiro me impulsionou pela bunda e subimos correndo pela rampa. Havia, naquela ocasião, poucos PMs e nada podiam fazer. Os deputados da ala governista fugiram tiveram de sair escoltados, sob muita vaia. Tomamos o plenário e ali acampamos por dois dias. Neste ínterim, o ar-condicionado e a energia eram ligados e desligados e o uso dos banheiros foi limitado. Porém, nada foi vandalizado. Eu realmente acreditei que os deputados se emendariam, vendo aquele povo entrando na Assembleia e escutando os clamores de retira. Contudo, não foi o que aconteceu. Compreendem? Recordando: a Alep deveria representar os interesses do povo paranaense, apresentar projetos que beneficiassem a população em geral, mas o que vemos é que sua atual composição, na grande maioria, representa os interesses de um governo apenas. Foi, então, no dia 12 de fevereiro que o primeiro improvável ocorreu – porque o melhor ainda estava por vir! [sic] Oscar Wilde escrevia: A vida Sobre o episódio de um deputado, literalmente, se cagar no camburão: quando a sátira sai da ficção e se torna realidade. Mas afinal, satiriza-se a vida ou a vida já é uma sátira? Eduardo Soczek imita a arte muito mais do que a arte imita a vida. Tive de concordar. Desde pequeno, a Literatura fez parte de minha vida. Na primeira série me deparei com Marcelo, marmelo, martelo, de Ruth Rocha, e me encantei. Depois, amei a acidez de Eça em sua sociedade católica, burguesa e hipócrita, bem como a de Machado e a de Dalton. Poemas de Pessoa e de seus heterônimos, de Leminski e o trabalho estético em I-Juca Pirama são alguns de minha predileção. E por que lembrar isso? Porque diante de algumas obras eu já parei e pensei: poderia ter acontecido isso no mundo factual? Os enredos funcionam dentro de uma realidade ficcional, mas ainda é mais fácil, creio eu, pensar na realidade factual quando o narrador de Aluísio Azevedo, em O Cortiço, nos faz sentir o mesmo odor que João Romão sentiu ao deitar-se ao lado de Bertoleza – misto de suor, cebola e gordura – ou em Capitães da Areia, de Jorge Amado, quando Pedro Bala sente medo e revolta ao ser aprisionado em um quarto por baixo da escada, onde não se podia estar em pé, porque não havia altura, nem tampouco estar deitado ao comprido, porque não havia comprimento. (...) O ar entrava pelas frestas finas e raras dos degraus da escada. Aí, junto com a personagem, entendemos que a liberdade é como o sol. É o bem maior do mundo. Entretanto, quando uma obra extrapola o que poderia ser real (o que é muito aceitável na Literatura) a minha reação era de desconforto. Em Frei Genebro, conto de Eça, como pode o frade ver a mão de Deus nos céus, parecendo o festim de Baltazar a pedir contas de um pernil de leitão, arrancado com um podão para matar a fome de outro frade? Parece improvável factualmente, apesar de funcionar na economia da narrativa. Em Macunaíma, de Mario de Andrade, a personagem principal vira uma feijoada, depois é reconstruída e segue viva. Possível? Sou bastante cético. Porém, isso nos faz pensar. Retorno, agora, ao fatídico dia 12/02. Se João, o evangelista, fizesse um Prólogo desse dia, como o fez em seu relato, poderia escrever ao invés de O Verbo se fez carne e habitou entre nós, a expressão: O improvável se fez entre nós, porque o fictício se tornou palpável e o impensável se fez fato! E pior: um fato risível. Quando, nesse dia, fechávamos as entradas da Alep, chegaram, pois, boa parte dos deputados em um camburão blindado e escoltado pela Tropa de Choque. É o próprio improvável: deputados em um camburão. As grades foram serradas para que pudessem entrar, já que o então Secretário de Segurança, Fernando Francischini (SD), não havia conseguido retirar os parlamentares de dentro do carro blindado. Francischini, humilhado, bailou um belo tango com um professor que impediu a abertura do camburão, mas a ordem do governador era expressa: votar, a qualquer custo, o projeto de confisco da Previdência dos servidores em uma sessão que aconteceria em um restaurante da Alep, já que o plenário continuava ocupado. Foi aí que houve uma segunda ocupação do parlamento. Os deputados ficaram sitiados e tiveram de negociar a saída pelos fundos. Reafirmo: não é ficção! Porém, quando penso que o improvável havia acabado aí, leio a Gazeta do Povo do dia 20/02 na coluna de Dante Mendonça: “[...] Depois de embarcar na ideia do secretário de Segurança, Fernando Francischini, os momentos de maior tensão dentro do camburão ocorreram diante da Assembleia, como relatou o repórter Rogerio Galindo: ‘Os deputados se dividiram. Acostumados a tomar decisões com calma, em plenário, dessa vez davam palpites desconexos sobre o que fazer. [...] Enquanto isso, alguns manifestantes que tinham conseguido chegar ao local começaram a bater na lataria’. Vários deputados ouvidos pelo jornalista acharam que os professores iriam conseguir virar o ônibus: ‘Essa foi a hora mais tensa’, disse um deles. ‘O que a gente sentiu foi cagaço!’, confidenciou um outro. [...] À beira da piscina e de um ataque de nervos, um mal-aventurado passageiro deixou vazar o chorume: ‘Não posso dizer o nome, mas um dos nossos se borrou nas calças!’ [...]As mulheres gritavam com uma mão no nariz, outra no celular, enquanto os homens tentavam controlar a náusea”. Percebam: estamos falando de algo real. Não é Literatura ou telenovela. Parece realmente que a vida imita a arte. É um 18
  • 19. episódio trágico e cômico. Trágico porque os que deveriam representar os interesses da população, são eleitos e mantidos por ela, passam pelo povo em um camburão. Cômico porque os deputados, apesar de tanta vaidade, se desvelaram não divinos: sentem a tensão, passam pelo medo, feitos de carne e de sangue, citando a Compadecida, podem perder o controle dos próprios intestinos. Já, no dia 12 de fevereiro, havia cães, muito spray de pimenta, Tropa de Choque, balas de borracha e também bombas. Beto Richa, porém, que se viu forçado a retirar o projeto em fevereiro enviou algo muito semelhante no mês de abril para o mesmo plenário. Dessa vez, Francischini, com medo de ter de dançar outro tango cercou todo o entorno da Alep com um efetivo de 2.516 policiais militares. Oficiais que foram, inclusive convocados do interior do Paraná e viajaram em pé, abarrotados em poucos ônibus e tiveram de abandonar os hotéis em que estavam hospedados por falta de pagamento. Na verdade, o Secretário- dançarino queria bloquear praças públicas e ruas, mas foi impedido. O presidente da Alep, Ademar Traiano (PSDB), não permitiu a entrada do povo. Votariam a todo custo e com galerias vazias. Na madrugada entre 26 e 27/04, professores foram agredidos enquanto acampavam e o caminhão de som foi guinchado. No dia 28, pela manhã, a simples passagem de outro caminhão de som pelas ruas do Centro Cívico foi reprimida pela Tropa de Choque. Ou seja, a tragédia estava orquestrada, encenada e pronta para ser apresentada. Foi, então, no dia 29 de abril que o segundo ato inusitado ocorreu: nem senadores enviados de Brasília conseguiram argumentar com Traiano para que a votação fosse adiada. Iniciada a sessão, um simples chacoalhar de grades por parte dos manifestantes fez com que muitas bombas fossem lançadas sobre estudantes, professores e servidores. Mas as bombas não eram lá dentro, afirmava o presidente da Alep, e podiam votar. Jatos d’água, cassetetes, cães, Tropa de Choque, spray de pimenta, balas de borracha e mais bombas. Rasca, deputado pelo PV, foi mordido por um cão policial e Luiz de Jesus, cinegrafista da Band, foi atacado na coxa por um pitbull, enquanto trabalhava, ambos na rampa da Alep. E os senadores, enviados de Brasília, pediam cessar fogo, mas não adiantava. Foram mais de duas horas de terror contra pessoas desarmadas. No balanço: 2.323 balas de borracha e 1.413 bombas de fumaça, gás lacrimogêneo e de efeito moral, além de 25 garrafas de spray de pimenta, de acordo com a Gazeta do Povo do dia 29 de maio. E, segundo a mesma reportagem: a ação custou R$ 948,3 mil aos cofres públicos. Mais de 200 pessoas feridas. E para colocarmos a cereja no bolo: um policial tingido com uma tinta groselha-rosada para simular sangue e agressão. Muitos black blocs, de acordo com Francischini. Tudo desmentido pela Reitora da UEL e pelo Ministério Público. É... Ficou difícil de justificar toda a barbárie. Penso, por fim, nos versos de Pessoa, em Mensagem, sobre Dom Sebastião. Fomos loucos? Certamente. Porque não somos acostumados a enfrentar polícia, bombas, cassetetes, balas de borracha, spray de pimenta e cães, mas Sem a loucura que é o homem / Mais que a besta sadia, / Cadáver adiado que procria? Eduardo Soczek, professor da rede estadual, graduado em Letras pela UFPR, aluno do Mestrado em Literatura pela mesma Universidade. 19
  • 20. Traduções Durante meio século A poesia foi O paraíso do bobo solene. Até que eu cheguei E me instalei com minha montanha russa. Entrem, se quiserem. Claro que eu não respondo caso desçam Jorrando sangue por boca e narizes. Amyr Hamud tem 21 anos e gosta de poesia. Nicanor Parra A Montanha Russa Amyr Hamud Nicanor Parra, é um poeta e matemático chileno, inventor da antipoesía. Sua extensa obra influenciou outros reconhecidos escritores, como Gonzalo Rojas, Enrique Lihn e Roberto Bolaño. 20
  • 21. 21
  • 22. Entre e vistaTextículos Observar Carla Mota Menezes Gostava de olhar para cima. Ao caminhar pelas ruas, estava sempre à procura de algo acima do nível dos olhos. Nem mesmo os trôpegos passos conseguiam desviar sua atenção das construções arquitetônicas que beijavam o céu. Com o pescoço projetado para trás, desafiava-se a descobrir as possíveis influências clássicas nas edificações, analisando os detalhados ornamentos que conferiam tanto charme àquelas pilhas de concreto colossais. Gelosias graciosas, ogivais elegantes e rebuscados, vilíssimos detalhes ignorados. Insólitas obras de arte de ruas que tinham muito a dizer. O asfalto sussurrava-lhe segredos aos ouvidos, os pilares suspiravam lôbregas reminiscências, as paredes descreviam atrocidades e ah, as paredes! Quantas histórias tinham para contar! A melancolia que não se foi com seu inquilino, a angústia que se apoderava daqueles que ali procuraram abrigo; quanta violência já omitiram, quantos gritos mudos se desprenderam de gargantas roucas pelo esforço de clamar clemência, quantas pessoas amaram aquelas paredes, decorando-as; em quantas cores seus semblantes se metamorfosearam desde suas tonalidades originais, quantas pessoas já suspiraram ou choramingaram ao ver o que aqueles ávidos olhos viam? Os infinitamente numerosos questionamentos enchiam-lhe por dentro e a faziam inflar até voar, tocando a mais alta gótica gárgula no topo da igreja. Suas passadas eram suaves e curtas, graciosas. Por vezes, seu tornozelo virava- se ao pisar em algum buraco. A frequência dos solavancos não a oprimia, contudo. Só continuava andando. Sua jornada, na maioria das vezes, era longa – raramente se deslocava pela cidade de ônibus, menos ainda de carro; percorria vastas distâncias contando com seus velozes pés, que por todo canto a conduziam. O ato de caminhar era sagrado. Desrespeitoso seria com o universo tornar obsoleto aquele par de pernas perfeitamente funcional. E não parava de olhar. Os glóbulos oculares dançavam nas órbitas, atraídos magneticamente pelo topo dos edifícios, cinza contrastando com o azul do céu. Árvores solitárias, imersas no mórbido concreto sem vida, exibiam suas mais belas flores, colorindo a vista. O aroma amadeirado, esverdeado, doce e fresco lhe acariciava as narinas, que bebiam cada requintada gota. Ficava com vontade de rir. E ria. Estava andando. Sincronizou o som de seus passos com as sístoles e diástoles compassadas de seu coração. Com seu corpo apóstolo de um mesmo ritmo, varria com o castanho dos olhos as rachaduras fustigadas pela água e carcomidas pelo tempo. Se a questionassem a respeito, confirmaria que conseguia sentir o cheiro do suor daqueles que carregaram pedras e cimento, que era capaz de ver os calos das mãos que fizeram com que a charmosa massa cinzenta ascendesse; podia ouvir a respiração ofegante e a canção da pá que misturava aquela pasta nojenta, molhada e dura; os engenheiros também protagonizavam devaneios, com seus projetos, cálculos e desenhos milimétricos, suas púrpuras olheiras e dentes amarelados pelo café, as noites de sono perdidas pra cumprir o prazo do projeto; quantos estagiários estariam envolvidos no processo, rezando todas as noites para que aquela tortura acabasse logo e eles pudessem finalmente voltar a fazer nada; os proprietários do edifício tampouco fugiam de sua mente, com seus sapatos italianos ou saltos altíssimos, martelando pisos de mármore, carvalho e pino, imersos em expectativas ao passar a lâmina da tesoura pela fita vermelha. O passar dos minutos e dos telhados cobertos de excretas aviárias e frutos mutilados trouxe-lhe aos olhos um arcaico sobrado, rememorando-a um episódio triste, capaz de provocar imensa mágoa para com a espécie humana: certa vez perguntara a uma amiga de faculdade o que ela achava da magnífica construção que era o tenebroso sobrado, forjado em glorioso e irresistível enigma. A garota lhe disse que não fazia ideia de que construção era essa. Foi como receber um murro bem no meio da cara. Só pôde perguntar, horrorizada: “Para onde você olha quando anda?” A perplexidade estava entalhada na esbofeteada face. Demorou um pouco para se recuperar do choque: a charmosa massa concreta ficava em frente à casa da colega. Atravessava o agitado centro da cidade, era pouco menos que sete da noite. O soturno céu sem estrelas derramava penumbra Carla é caloura de Letras e também gosta de observar, mas (ainda) não foi atropelada. Considera-seamadoraprofissional na arte de contar histórias. pela rua parcamente iluminada. Adentrou uma praça esplêndida. Engolida pela sombra das árvores, contemplava o musical ruído da água descendente. Disparou sobre os paralelepípedos e desceu as escadas. Os atentos olhos foram atraídos pela coruja solitária que procurava insetos, empoleirada em um galho na árvore que jazia no meio-fio, do outro lado da rua. Fascinada, mergulhou no asfalto quente. A corujinha-do-mato estava perto o suficiente para vê-la. Com os amarelados olhos, observava a garota, que correspondia com intensidade no olhar. Mexeu-se ligeiramente em seu galho, provocando um ruído que a sobressaltou. A garota esperou. Aproximou- se mais, perdendo-se naqueles pequenos olhos dourados, tão curiosos e ávidos para entender que bicho ela deveria ser. E então uma van a quarenta quilômetros por hora atravessou a pista, chocando-se de frente com a observadora, lançando seu frágil corpo para frente, passando por cima dele. O motorista mal percebeu a presença da pequena sombra que pairava na rua escura. Freou depois de passar com a roda por cima da cabeça da moça. Horrorizado, o homem deixou o veículo, agarrando o boné que usava para secar as lágrimas. Seu rosto expressava um pavor sincero. Pessoas que passavam pararam para olhar. Para alguns, a visão era digna de enjoos e arrotos que precediam o corrosivo jato do vômito. Lágrimas brotavam de olhos chocados e aterrorizados. Quase todos os maxilares ali presentes cederam à incredulidade do surreal acidente. Gritos cortaram aquele silêncio pesado que a morte trouxera consigo. E aquele corpo descabeçado jazeu ali, enquanto a polícia não chegava. O sangue e os miolos coloriam o negro asfalto da rua que tanto tinha pra contar. 22
  • 23. Entre e vistaTextículos Chuteira no pé. Uniforme pronto. Na saída do túnel as luzes do estádio se encontram com o brilho de onze pares de olhos ansiosos e animados. A arquibancada está lotada. A torcida canta, grita, aplaude, comemora. Execução do hino. Mão no peito e lágrimas nos olhos. A moedinha sobe rodopiando. O juiz apita e mais um show começa. A pelota vai de um lado para o outro, brincando com os pés dos jogadores, até que o Camisa 10 a pega. A torcida delira. Um sorriso orgulhoso aparece no canto dos lábios. Dribla um, passa por outro e com maestria vai guiando a bola até o seu destino. E ela chega! Feliz, ele comemora com os colegas! Segundo tempo e mais uma vez ele brilha. Joga como se estivesse dançando, brincando. Mas o rosto está sério, muito compenetrado. Em frente ao gol um companheiro lhe passa a bola e, com agilidade, surge uma bicicleta. Marca mais um! Fim do jogo, fim do Campeonato! O time comemora. Ergue-o nos ombros. A plateia aplaude emocionada. Aquele era o seu momento. Ao longe, ele ouve uma voz conhecida. - Garoto, vem almoçar! Camisa 10 Leda Santos Leda Santos é mais um ser humano perdido. As únicas certezas que ela tem é que cursa Letras e que não sabe escrever sobre si em 150 caracteres. Aos poucos a torcida some. Os companheiros de time se desmancham ao vento, como fumaça. O estádio desmorona. No seu lugar reaparece o terreno baldio, a terra vermelha batida, a velha trave de madeira. O menino se abaixa, pega a bola remendada. Descalço e sozinho, vai para casa atender o chamado da mãe. 23
  • 24. Entre e vistaTextículos Por um elitísmo inclusivo: Eduardo Salles O. Barra No último dia 26 de fevereiro, completou-se 76 anos de fundação da antiga Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras do Paraná. A Faculdade foi fundada, então, em 1938 e agrupada em 1946 às demais faculdades que já integravam o núcleo inicial da futura UFPR, que somente veio a assim se chamada em 1950. Dos seus diversos desmembramentos, surgiram vários dos atuais setores da UFPR. A maior parte dos cursos fundadores da antiga Faculdade – nominalmente, filosofia, letras, ciências e pedagogia – foi conservado no atual Setor de Ciências Humanas, que se autorreconhece, então, como a continuação histórica dessa septuagenária Instituição. Sirvo-me desse curtíssimo relato histórico tanto para registrar a efeméride transcorrida há pouco quanto para introduzir o contraponto das minhas considerações sobre um maravilhoso ensaio publicado na edição 28 (novembro de 2014) do admirável Boca do Inferno, com o título “Antiantielitismo: como o preconceito em torno da ideia de ensino erudito condena a educação pública brasileira a uma abordagem massificada e diluída do conhecimento”, de autoria da estudante Suelen Trevizan. Grosso modo, pretendo fazer da comemoração do primeiro, um pretexto para o elogio do segundo, e vice-versa. Começo, então, resumindo em poucas linhas aquilo que gostaria de discutir no artigo da Suelen Trevizan. Basicamente, a autora sustenta aquilo que o próprio título já anunciara: o equívoco de, diante da tensão entre uma educação inclusiva voltada ao contexto e às necessidades mais imediatas dos alunos e uma educação baseada na “alta cultura” e na crítica à cultura de massas, optar pelo primeiro pólo a fim de expurgar-se do irremediável elitismo do segundo pólo. De modo direto e sem rodeios, a autora se esmera em enfrentar com bons argumentos o obscurantismo anti-elitista que se abateu sobre a nossa escola pública: “somos tão assombrados pelo medo da elitização (...) que corremos para o extremo oposto – a massificação da educação”. Mas ela não encara a educação pública a partir de uma abstração. Suelen desenvolve sua argumentação alicerçada na memória da estudante que ela foi (“tantas vezes voltei para casa ... louca de vontade de amadurecer logo para ver que há debaixo da pele das coisas”) e sobretudo nos seus projetos para a professora que ela será (“conheçamos o que veio antes de nós e o conheçamos bem, pois só assim estaremos cientes de onde podemos partir na construção do conhecimento com nossos alunos”). A Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras do Paraná surgiu em meio a um movimento de ideias e uma profusão de projetos para a educação pública que, apesar da distância no tempo, ainda guarda uma grande identidade com as inquietações da Suelen e, quero crer, de muitos outros estudantes dos cursos de licenciatura da UFPR. Esse movimento ficou conhecidocomoomovimentodosPioneirosda Escola Nova, e foi liderado por Anísio Teixeira e Fernando de Azevedo, entre outros. No manifesto lançado em 1932, eles propuseram algo extremamente revolucionário para a época e cujas virtudes estão presentes ainda hoje : a formação universitária de professores. Àquela época, a única instituição voltada à formação de professores eram as “escolas normais”. Mas elas destinavam-se à formação dos professores do que então se chamava escola primária e, hoje, escola fundamental. Para os professores do ensino secundário (o atual ensino médio), não havia uma formação específica – evidentemente, também eram raras as escolas secundárias. As Faculdades de Filosofia, Ciências e Letras passaram, então, a ser projetadas como as instituições responsáveis por suprir essa deficiência. Em 1934, foi fundada, sob a liderança de Fernando de Azevedo e com o apoio da família Mesquita, proprietária do Jornal O Estado de São Paulo, a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP. Em 1938, foi a vez da fundação da nossa gloriosa Faculdade de Filosofia do Paraná. E, no ano seguinte, foi fundada a Faculdade Nacional de Filosofia, no Rio de Janeiro, que mereceu da parte do Ministro da Educação da época, Gustavo Capanema, uma legislação específica, que foi estendida às demais instituições congêneres. As Faculdades de Filosofia, segundo o decreto- lei nº 1.190/1939, destinavam-se a cumprir os seguintes objetivos: a) preparar trabalhadores intelectuais para o exercício das altas atividades de ordem desinteressada ou técnica� b) preparar candidatos ao magistério do ensino secundário e normal� c) realizar pesquisas nos vários domínios da cultura, que constituam objeto de ensino. Esses eram exatamente os mesmos objetivos – com ligeiras variações terminológicas – que os idealizadores da nossa Faculdade de Filosofia registraram na ata da sua fundação. Ao longo dessas quase oito décadas de existência, a Faculdade e os Setores que a sucederam acumularam conquistas importantes na realização de todos esses três grandes objetivos. Todavia, do mesmo modo, esse conjunto de proposições experimentou também muitas revisões e reinterpretações, que comprometeram sua consistência interna e seu caráter sistêmico. Em particular, uma certa divisão do trabalho acadêmico – do qual emergiram as várias iniciativas de desmembramento do núcleo inicial da Faculdade – produziu uma dispersão dos caminhos escolhidos para contemplar os dois primeiros objetivos do referido decreto. 24
  • 25. uma faculdade à altura dos sonhos de Suellen Creio que nessa dispersão se encontram as origens da onda anti-elitista cujos excessos foram apontados pela futura professora Suelen Trevisan. Há várias versões dos enunciados daqueles três objetivos, que ocorrem em legislações e documentos oficiais anteriores e posteriores à fundação da Faculdade Nacional de Filosofia. O que sempre perdura, a respeito do primeiro objetivo, são as menções à “alta cultura” e ao “saber desinteressado”. Trata-se de um tema que mereceu um lugar de destaque no manifesto escolanovista. Seus signatários achavam escandaloso que no Brasil ainda persistisse a idéia de que a “alta cultura” e o “saber desinteressado” fossem exclusividade das escolas destinadas às classes dominantes da nossa sociedade. Às escolas destinadas aos filhos das classes trabalhadoras, reservava- se tão somente a formação técnica para o trabalho, sem proporcionar-lhes os saberes e bens culturas sem interesse prático imediato. Para que a escola secundária antes destinada às elites econômicas pudesse ser universalizada e popularizada, seria necessário preparar massivamente professores e proporcionar- lhes uma formação para a “alta cultura” e o “saber desinteressado”. Tudo indica que foi justamente com essa motivação que os dois primeiros objetivos foram pensados de modo solidário e complementar. Mas, exatamente quando e por quê, a formação de professores divorciou-se da preparação de “trabalhadores intelectuais” habilitados ao “exercício das altas atividades de ordem desinteressada ou técnica”? Essa pergunta é apenas retórica, pois certamente não haverá uma única resposta que a satisfaça. No entanto, há indícios importantes do ponto de partida desse divórcio e das razões que levaram ao afastamento mútuo entre os dois lados envolvidos, tanto que o segundo reduziu-se àquilo a que justamente se destinava a combater: o elitismo. A meu ver, o ponto de partida dessa divisão de águas estava presente no próprio currículo dos cursos destinados à formação de professor, previsto no mesmo decreto-lei de 1939. São dessa legislação as designações “bacharelado” e “licenciatura” e o atualmente demonizado esquema “3+1”, isto é, para formar-se professor, o estudante deveria cursar três anos de disciplinas específicas da área de conhecimento pela qual ele optou (história, matemática, ciência ou filosofia, por exemplo) e, em seguida, cursar mais um ano de disciplinas pedagógicas. Se optasse por encerrar o cursos após o cumprimento das disciplinas específicas, o estudante poderia requerer o grau acadêmico de bacharel. E, se, além dos três primeiros anos, concluísse também o quarto e último ano, ele estaria apto a receber o grau de licenciado. Nos últimos anos, vimos avolumarem-se as críticas a esse esquema “3+1”, até o ponto de decretá-lo extinto como condição para a emergência de uma “identidade própria” para a licenciatura (Res. CNE/CP 009/2001). Ora, pergunto se no modelo anterior, estruturado sobre o ideal da “formação universitária de professores”, não havia de fato uma identidade própria para a licenciatura. Não desconheço que os bacharelados foram progressivamente se insinuando como cursos autônomos (com “terminalidade e integridade próprias”, para usar os termos da mesma resolução citada acima) e tornaram-se cada vez mais valorizados que as licenciaturas, das quais eram apenas uma etapa propedêutica. Mas jogar com as armas do adversário, isto é, exigir uma “terminalidade e uma integralidade próprias” parece ter produzido um efeito colateral altamente indesejável às licenciaturas: o ocaso do projeto de “formação universitária de professores” baseado no estreito nexo entre o magistério e o trabalho intelectual. Teremos nos próximos meses uma reforma das licenciaturas, conforme prevê o Plano Nacional de Educação, vigente desde 2014. Seria uma grande notícia se, nas discussões públicas sobre essa reforma, pudéssemos contar com a participação de estudantes dos cursos de licenciatura da nossa Universidade. Sei que muitos deles têm inquietações e propostas tão importantes e interessantes quanto as que nos apresentou a Suelen no seu ensaio. O Setor de Ciências Humanas, para estar à altura de seguir com sua missão de ser depositário do legado da antiga Faculdade de Filosofia do Paraná, não poderá estar ausente desse debate. Revisar, atualizar e defender os objetivos norteadores dos nossos fundadores, na forma de um renovado elitismo inclusivo, entre outras tantas possibilidades menos suspeitas de paradoxismo – talvez não haja muitos outros modos de justificar por que seguimos comemorando o 26 de fevereiro. Eduardo Salles de O. Barra fez graduação, mestrado e doutorado em filosofia. Desde 2002, é professor do Departamento de Filosofia da UFPR. Suas pesquisas e orientações concentram-se na área de história e filosofia da ciência. 25
  • 26. Entre e vistaTextículos Elefante Parece grande né. Pesado. Anda devagar. Como se nada afetasse muito. Eu também ando devagar na rua. Queria aprender a ter essa indiferença. Cada passo parece um esforço, mas acho que ele não se abala muito. Dizem que é um animal inteligente. Boa memória. Não sei se dá pra ter muita inveja. Memória boa não parece ser uma das melhores qualidades pra um ser humano. Acho que a vida seria melhor se a gente conseguisse esquecer rápido certas coisas. Será que os elefantes – conhecem o perdão? Nunca entendi muito bem aquela piada decomo passar um elefantepordebaixodaporta. Algumas lembranças antigas a gente guarda na memória, sem muita distinção. Geralmente, as que ficam são as memórias associadas aos sentimentos, então não tem muita regra, lembrar-se de fatos simples que tenham algum significado pra vida inteira não parece algo muito espantoso. As fotos ajudam um pouco, nossa cabeça não é tão confiável assim, dá uma embaralhada nas memórias de vez em quando. A foto que tem na sala. Tenho o que lá, dois anos? Com aquela camisa laranja, comendo fandangos. Expressão inocente. Foi você quem tirou. O gramado no fundo. Zoológico no domingo. Acho que é uma das poucas lembranças que eu tenho com você nessa época. Mas no dia de que realmente me lembro eu usava outra roupa. Era um pouco mais velho, eu acho. Lembro-me daquele portal de madeira na entrada, aquele gramado, eu sentado na pedra, sol de meio de tarde. Não distingo qualquer cheiro, nunca fui muito bom com o olfato. Rinite. Deve ser. Apenas aquela sensação de ar limpo que os campos têm. Não é algo tão comum na cidade. Você tirava todas aquelas fotos e elas sempre saíam boas. Sempre foi assim, também. E depois botava elas na parede da sua sala. Algumas delas você nunca tirou de lá, independente de ter se mudado de casa ou de a gente passar vários anos se vendo muito pouco. E aqueles quadros que fiz quando era pequeno e te dei. Você sempre guardou. Um era da escola, ainda. Por data festiva, essas coisas. A casinha feita de desenhos geométricos e fundo azul claro. Isso sempre me confundia quando eu ia pra tua casa. Fazia-me questionar que talvez você se importasse, mesmo que as circunstâncias não indicassem muito isso. E eu nunca soube muito bem como definir você. Tinha também aquele outro, menos simples, o professor da vó devia ter ajudado. O quadro de uma onça. A onça não era um animal que eu fazia tanta questão de ver quando a gente ia ao zoológico. Ela geralmente ficava lá, no meio das pedras, nem sempre aparecia. Quando aparecia, era bonita. Tinha outros bichos que eu gostava mais. O lobo-guará. Não havia nenhum bicho parecido e eu o julgava desconhecido. Gostava dele. A jaula dos leões, de poder inquestionável, rei da selva. Também não era meu preferido. O que eu mais gostava era o tigre. Ficava fascinado, apesar daquela jaula tão pequena. O Leão vivia numa espécie de viveiro, com cabana, espaço pra correr e um lago pra separar das pessoas, com um par de leoas. O tigre não. Vivia numa jaula pequena, de concreto, sozinho. Mesmo assim não perdia a grandeza. Enquanto o Leão me parecia aquele herói que esbanja e faz questão de tornar público seus trunfos, o Tigre me parecia aquele herói solitário, durão, que fazia não por reconhecimento, mas por necessidade, por honra. Um ronin do reino animal. Eu me identificava com o tigre. Queria ser como ele. Só que tentar lidar com o mundo sozinho desgasta. O tigre foi ganhando peso. Sua cor parecia estar, aos poucos, desbotando. Apenas sua solidão e sua inabalável postura sobreviviam ao tempo. O tempo é um que não perdoa. Tente o que for, ele nunca volta. Mas nada te impede de tentar alguns truques para viver a ilusão de um momento uma vez mais. Sem garantias. Você também não escapou do tempo. Seus cabelos foram ficando cada vez mais grisalhos. Depois dos 50, a postura diante da vida também já não parecia tão inabalável. Ainda mais se ela continua a bater. Você sempre me pareceu justo. Honra. Não é de se ver muito isso, você parecia tê-la. Você era o tigre. Sempre que me lembro de você, o vejo sozinho. Mesmo quando estava acompanhado, você sempre pareceu estar só. Levando tudo nas tuas costas. Mas tudo em relação a você. Sempre encarou os problemas da sua vida sozinho, sem ter de recorrer a ninguém. Digno. Mas seu caminho, afinal, é realmente solitário. Fechado em seu próprio mundo, não houve envolvimento seu em problemas a sua volta, relacionados, indiretamente ou não, a você. Talvez seja um fardo suficientemente pesado carregar seu próprio peso. Não me recordo de te ver em situação de contentamento ou plena felicidade em momento algum da minha vida, mas não seria capaz de entender. Não o culpo por não se envolver, mas também não compreendo. Há sempre uma escolha. O que dói um pouco é saber disso. A pele do elefante é dura. Impenetrável talvez. De suas presas se produz o marfim. Valiosa pedra. Mas de difícil acessibilidade. Salvo um momento de crise exacerbada, nunca me compartilhou suas dores. Não sei muito bem que angústia carrega, não sei muito bem o que sente. Sei que o mundo te fez assim. Duro. Achava que eu era diferente de você nesse aspecto. Achava. Quanto mais vivo, mais sinto que me aproximo de você nesse caminho. Talvez não sejamos tão diferentes quanto eu achava que fôssemos afinal. Talvez eu apenas ainda não tenha vivido o suficiente pra me tornar como você. Sangue não é água. Quem saberia dizer. O elefante nunca me pareceu assim tão interessante. Talvez a idade também mude nosso mundo. Não é um animal que disponha de artifícios suficientes para roubar de uma criança a atenção que um ágil e majestoso Gabriel Villatore Bigardi 26
  • 27. Textículos Dibujos Seul Soldat Miguel sigue molestando a Pablo y Juan. Allá de las persecuciones y ofensas directas, dice a todos sus colegas que los dos no pasan de maricones. Lo que ni imagina Miguel es que, al ver Pablo en llantos, Juan ha elaborado un plan capaz de dar fin a la jodienda. – Se van a acabar. – ¿Qué? – Las persecuciones de Miguel van a tener un fin. – No van a terminar, Juan. Mientras seguimos en este colegio, Miguel no va a dejarnos en paz. ¿Sabes qué? Anoche he hablado con mi mamá y quiero cambiar de cole. Yo te pido que vengas conmigo. – No, no vamos a ningún lado. Sólo eso te lo aseguro: que sí, que van a acabar. Más tarde, en clase. – Profe, ¿has visto mi caja de lápices? Sí, hay más de cuarenta y dos tonos de colores distintos. Mi mamá pidió que yo tuviera cuidado porque costó muy caro. Le prometí que sí, que tendría. De esta manera, he podido traerla al cole. En el recreo, Juan pone tres lápices de la caja dentro de la mochila de Miguel. Cuando todos vuelven a clase… – ¡Profe, me han robado! ¡Me han robado algunos lápices de la caja! Dime, ¿qué voy a hacer ahora? ¡No! ¡Seguro que me han robado! Mi mamá me va a pegar, ¿qué voy a hacer? Tienes que buscar en las mochilas, profe. Seguro que así los encontramos. Al ocurrir la inspección, tres lápices –similares a los de la caja– fueron encontrados en la mochila de Miguel. Juan y Pablo no volvieron a ser molestados. Ya Miguel, este tuvo que cambiar de colegio puesto que todos le pasaron a decir: ladrón. Seul Soldat nasceu em 1992, na capital da Paraíba. Em Curitiba desde jan. de 2013, foi o amor quem o trouxe pelo braço. Graduando em Letras PT/ES desde então. carnívoro proporciona. Agora já parece admirável, a fortaleza que é. Apesar de todas as suas limitações, ele é impossível de passar despercebido. Ao menos eu achava isso. Não sei se é você quem finge não ver, mas parece que aquele elefante nunca sai da sua sala. Ele também está lá quando eu estou aí com você. Não sei dizer se você já se perguntou como fazê-lo passar por debaixo da porta. Conhece a história dos cegos? Que cada um botava a mão sobre um elefante e interpretava algo diferente? História da minha vida. Sobre antes de eu ter qualquer noção sobre ela, mais precisamente, mas não menos importante. Cada um diz uma coisa e não me resta nada a não ser tirar minhas próprias conclusões. De qualquer forma, já não importa muito. Certo ou errado, ausente ou não, tudo fica pra trás. Castigo para o elefante ter boa memória. O tempo que passa também amadurece relações; confiança requer tempo, tempo requer paciência. Outra qualidade do elefante. Passa-se a haver envolvimento. E sobre cinzas de cigarro, lembranças e sentimentos, o elefante que estava na minha sala pareceu ganhar forma. Também o ignorei. Cansa um pouco assistir aquele gigante de bruços no canto da sala. Deixava-o quieto. Mas ele cresce. Vai ficando maior. Quando a gente nota, ele já está ocupando um grande espaço. Ignorá-lo não resolve mais. Quando se resolve encará-lo de frente, ele toma forma. Então o elefante se torna real. Nunca me pareceu fazer sentido um elefante conseguir passar por debaixo da porta. Impossível, eu pensava, é grande demais. Mesmo com a resposta, me parecia algo absurdo. Agora talvez eu entenda. Entenda que alguns elefantes vivem na nossa casa. Entenda que um elefante possa ter diferentes formas. Entenda que um papel de carta também possa pesar uma tonelada. Pensei se talvez um dia você lesse isto e o elefante fosse embora. Então resolvi botá-lo dentro de um envelope. Pra ver se ele cabia. Gabriel Villatore Bigardi, tem 20 anos e está no terceiro ano de Filosofia na UFPR. Nasceu em Curitiba, em 1995, já morou em São Paulo e fora do país (o que dependendo da interpretação pode significar a mesma coisa). Escreve desde os 13 anos, e se pudesse escolher viveria fazendo isto. Esta é a sua primeira publicação. 27
  • 28. Entre e vistaTextículos PODE FICAR COM ELA PRA VOCÊ Eu trabalho numa dessas lojas cheirosas cama-mesa-banho. Aqui você encontra toalhas, o próximo departamento é o de lençóis, depois cobertores, edredons. Segue por esse corredor e você vai achar tudo aquilo que procura. Tem uma seção de pijamas, sabonetes e aqueles cheirinhos de capim-limão pra botar na gaveta de calcinhas e tudo mais. Faz uns dois anos que tô nessa. Não era o projeto da minha vida, mas sabe como é, a gente se acomoda e vai ficando. Fiquei. A dona, que trabalha no caixa, nunca para de falar. Como grita essa mulher. Com o tempo a gente se acostuma e nem ouve mais. É bom o movimento por aqui. Muita gente procurando presente de casamento, não moça, aqui não é a Zelo, não, senhor, aqui a gente não vende a fragrância da mmartan. Muitas pessoas gastando dinheiro à toa também (quem é que precisa comprar dez jogos de cama de uma só vez?) Eu gosto mais de ficar organizando o estoque, dobrando os lençóis de elástico (sim, eu sei fazer isso) que as pessoas insistem em tirar dos pacotes mesmo com vários “Senhores clientes favor não abrir os lençóis, Obrigado, à Gerência” espalhados pelas paredes. Já fiquei muito tempo pensando sobre essa crase aí. Sabe, do nada você tá lá pensando onde é que vai crase. Enfim. Prefiro ficar organizando a loja do que atendendo os clientes. É meu jeito. A gente não ganha por comissão e o silêncio é uma oportunidade que não deveria ser desperdiçada com tanta frequência. Devia dizer isso pra dona. Eu fico pensando nessas coisas enquanto separo as toalhas da Peppa e os roupões do Ben 10, essas crianças de hoje em dia não têm jeito. Na minha época era sentar e fazer cabaninha com uma toalha tipo um pano de chão e esperar a mãe vir me secar. E ainda tinha que dividir o tapetinho de crochê com meu irmão. Daonde essa história de roupão pra criança. Sério. Com 59,90 eu pago um terço das minhas contas, fora o aluguel. Enfim. Esses dias eu estava etiquetando umas mercadorias novas e uma senhorinha, senhorinha mesmo, bem velhinha, dava uns oitenta anos pra ela fácil, veio me perguntar sobre essas colchas que tavam na promoção. Que tamanho a senhora precisa? E ela tentou mostrar pra mim com os braços qual era o tamanho da cama dela. Porra, como é que eu ia adivinhar um negócio desses. Não fode, senhora. Pelo jeito que ela fez, parecia que era casal normal. Ela não conseguia abrir os braços direito. Talvez fosse uma cama box de solteiro meio grande. Viuvinha que chama. Acho que ela morava sozinha. Olhei em volta procurando um parente. Ela parecia sozinha. Mostrei as opções de florzinhas, as listradas, as de bolinhas, patchwork da moda e tudo. Ela ficou olhando uma por uma durante uma meia hora. Ai meu saco, viu. Faz tempo que você trabalha aqui? Faz, senhora, um tempo. Gostei dessa florida, dá uma animada no ambiente, você não acha? Deve combinar com o quarto da senhora, senhora. As orelhas dela eram enormes, tipo grandes mesmo. A pele pelancuda despencando. O nariz até que nem tanto. Ouvi dizer que nariz, orelha e cotovelo nunca param de crescer. Cartilagem, parece. O rosto dela tinha várias camadas, como se ela fosse uma árvore que troca de casca todo ano e fica com um círculo a mais se a gente corta ela de lado pra ver. Será que se eu cortar a velhinha de lado ela vai ter tantas camadas quantos anos ela parece? E desse aqui, você gosta? Era um listrado feio, meio-amarelo-meio-verde. Estranho. Depende do ambiente, senhora. Olhando assim não é muito bonito, não, mas pode ficar bom, a cama arrumada, o quarto limpinho, cada coisa no lugar. Uma cama bem feita faz toda a diferença. Verdade. De todas, qual você gosta mais? Acho que dessa azul aqui. Azul é cor de quarto, a senhora não acha? Então eu vou levar essa mesmo. Pareceu que eu fiquei umas duas horas com a velhinha. Eu não consegui parar de olhar as pintas dela. A cara dela. A cara velha e as camadas. Acho que a gente levou uns dez minutos até conseguir chegar no caixa. O vestido comprido deixava ver as pernas verdes de tantas varizes. Ela não usava bengala nem nada, mas acho que tava precisando. Vendedor tem que ser atencioso o tempo todo. Às vezes é um porre. Chegando no caixa agradeci muito a senhorinha e aí deu pra ver os olhos meio amarelados dela por trás das lupas. Ela abriu a bolsa e tinha várias caixas de remédio soterrando a carteira. Ela pagou e eu ia pegar a sacola pra levar até a entrada pra ela, tadinha. Aí ela disse que estava muito cansada pra levar aquele peso todo até em casa e perguntou se podia passar pra pegar no dia seguinte. Pode sim, a gente deixa com seu nome, Dona... (Pelancas, pensei, rindo). Antônia. Dona Antônia. Ela agradeceu e foi caminhando pra fora da loja. Ainda bem que ela não levou a colcha porque eu não sei se ia ter paciência de acompanhar ela até a entrada. Voltei a colocar etiqueta nos produtos que tinham chegado. No dia seguinte era minha folga. Depois me disseram que a senhora tinha passado na loja e perguntado por mim. Disseram que eu não ia pra loja naquele dia e mesmo assim ela ficou esperando, conversando com os outros funcionários. Olhou a loja toda, disseram, sempre perguntando. Quando teve certeza que eu não ia mesmo, disse que não ia levar a colcha, que eu podia ficar com ela. Não teimei: o cliente tem sempre razão. Tempos depois percebi que tava na hora de trocar minha roupa de cama. Pensei na colcha da velhinha. Cheguei em casa e coloquei a colcha nova, aquela sensação boa de lençol cheirando lavanda, o tecido muito macio ainda. Escovei os dentes, liguei a tv. Dona Antônia não apareceu mais na loja. Fiquei pensando quantos edredons e colchas e porta-travesseiros e panos de prato ela tinha deixadoemoutraslojasporaí.Talvezelativesse morrido. Tão velha que suas raízes saíram do corpo e se fincaram no chão. A imagem era bonita. Eram muitas camadas. Quem sabe ela não estava passando férias com os netos, os filhos ainda felizes de terem a mãe por perto e com um remorso ruim por sentirem o peso de ter que ficar cuidando de uma velha. Pensando bem, acho que não. Ela não parecia ter os braços de quem sabe abraçar, e avós servem pra isso. Fechei os olhos, coloquei a colcha sobre a cabeça e, conforme sentia o sono chegar e o corpo esquentar, minha solidão ia sendo, aos poucos, compartilhada. *** Por muito tempo achei que a ausência é falta. E lastimava, ignorante, a falta. Hoje não a lastimo. Não há falta na ausência. A ausência é um estar em mim. E sinto-a, branca, tão pegada, aconchegada nos meus braços, que rio e danço e invento exclamações alegres, porque a ausência, essa ausência assimilada, ninguém a rouba mais de mim. Carlos Drummond de Andrade (com o pensamento em Gabriela) Gabriela Ribeiro nasceu em São Paulo há 22 anos, é estudante de Letras há 4, há 9 descobriu que gosta de escrever, há 1 guarda textos no agabilleria e há aproximadamente 3 minutos decidiu que acha legalzão falar de si mesma na 3ª pessoa. 28
  • 29. Entre e vistaTextículos A MORTE SUTIL DE CAMILO CALADO Você viu o que houve? Que horror! Que pecado! Morreu de silêncio o Camilo Calado, esmagado por tudo o que disse que disse e não disse de fato, coitado... há quem mereça um destino tão triste? Camilo, o poeta das coisas discretas, da tinta pesada, das sinas secretas, o Camilo que um crítico chamou de Caminski - Leminski e Bukowski com tons de Kandinsky - olhou-se no espelho e viu-se cansado, apagado e abatido, calado e gelado, gelado, gelado. Gelado? Sim, o inevitável: o gelo enfim havia chegado, o legado maldito que tanto temia! Ali estava ele, o cancro translúcido que consumira sua mãe, gelando- lhe o peito como uma espada. Olhou mais de perto e encarou a verdade: sim, o estigma gélido roubava-lhe a carne! Cristais glaciais revestiam seus ossos, seu sangue um rio de águas azuis. Sua pele era agora uma pequena geleira, escotilha improvisada por onde podia espiar suas entranhas, tão estranhas, tão brutalmente belas. Viu suas costelas, tão brancas com suas seletas sequelas, as mágoas que o tempo ali entalhou. Viu seus pulmões, preenchidos de um ar siberiano magoado e mortal. Viu seu coração, a atração principal: o pobre coitado ainda batia, que alívio!, pulsando em silêncio em seu casulo ululante, prisão de mais puro vidro invernal. Há dias sabia que o gelo viria, alertado por ataques de repentina apatia, avisado por vis calafrios, sintoma-sentençaquereconheceudeimediato,pobrediabo. Constatando enfim quão concreto o destino, Camilo chorou sem lágrima alguma, como só ele sabia chorar. Lembrou lentamente da morte da mãe, já congelada dos pés ao pescoço quando fora ceifada, levada por ventos de terras distantes, países sem nome onde o sol já morreu. Escrevera sobre ela, é claro, sonetos e odes e versos amorfos, poemas bizarros que poucos amaram. Admiravam a força de suas metáforas, sem saber que não usava metáfora alguma. Não quando falava dela. Não quando falava de si. Era infeliz seu destino, mas havia improváveis vantagens na morte vindoura: a proximidade do abismo, lento e faminto, permitiu que compreendesse finalmente por que diabos não o ouviam, por que o achavam tão quieto e soturno, por que o chamavam Camilo Calado. Era tão simples: não entendiam porque não sabiam! Não sabiam quem era nem de onde vinha. Não sabiam seu nome nem do que era feito. Não conheciam os becos secretos e as ruas rebeldes de sua impossível cidade natal, povoada por monstros e anjos caídos, iluminada pela lua mais sincera e o sol mais senil. Não conheciam a tristeza inerente à sua terra, onde os homens caminhavam ao lado dos sonhos, onde tudo e todos eram questões metafísicas e a poesia era o próprio concreto do mundo. Não, Camilo Calado não o era de fato! Tinha muito a dizer, tinha gritos a dar, mas só na poesia é que era escutado, coitado. Suspirou e sorriu e socou o espelho. Gargalhou e gritou e sangrou no banheiro. Deitou-se então, braços cruzados sobre o peito gelado, um pecador em seu leito de morte. Fechou os olhos, acolhendo a escuridão, e perdeu- se em memórias ao som sem sentido do ventilador. Teceu ao seu redor um casulo de silêncio puro, silêncio proibido, o silêncio perfeito dos mudos e mortos. Enclausurado em seu calabouço de ar, Camilo Calado enfrentou seus pecados. O gelo implacável das coisas não ditas o forçava a fazê-lo. Sabia que nunca dissera o que era preciso. Não confrontou o vizinho festeiro que não o deixava dormir, nem o peixeiro malandro que lhe vendera meio quilo de siri estragado. Não explicou ao mundo que era um estranho. Não disse aos amigos que estava falido. Não disse ao médico que não via mais cores. Não contou a Marina que amava Lorena (e tampouco o contrário!), nem admitiu a Vitória que sabia que o guri era seu. Não disse à mãe que a amava, a louca!, não disse ao pai que queria matá-lo, não disse a si mesmo que ainda não queria morrer. Torturado pelo silêncio carrasco, Camilo entregou-se ao abraço dos sonhos, deixando a corrente do sono o levar. Acordou em um novo universo, um mundo inverso onde andou com os mortos, sonhou com os vivos, passou muito perto da terra abstrata onde nasceu. O gelo sumiu sob o sol desse mundo, farol que desenhou pra guiá-lo em seu rumo. Caminhou sob a luz de cabeça erguida, certo de que a morte ainda o espreitava, mas sabendo que agora essa morte era sua, só sua, e não aquela que o gelo queria, fria e solitária e sem sentido nenhum. Perdeu-se no labirinto letal de seus sonhos, engolido por ventos e luzes e cores, apagado do mundo como um breve borrão. Camilo morreu uma morte sutil, melancólica e frágil, uma morte que poucos homens morreram. Sem música ou flores, sem cor, sem poesia, sem nada. Era a morte que queria? Quem sabe. O morto nunca o disse a ninguém. Foi seu editor quem o encontrou - ou melhor, encontrou suas roupas, pijamas vazios, molhados e frios, dormindo em silêncio sozinhos no escuro, caídos na cama estreita de onde o poeta partiu. O ventilador ainda girava no teto, mas já não fazia barulho algum. Não havia mais livros no quarto, outrora quase uma biblioteca. Seus muitos poemas ainda incompletos tiveram o mesmo súbito fim que o autor. O poeta deixara apenas uma única página, deitada na mesa como se arrependida: o obituário solitário que poucos jornais se dispuseram a publicar. Dezlinhasvazias,escritasaesmoemsilêncioincolor. Luciano Simão cursa Letras na UFPR e Jornalismo na PUC. A cada dez textos que escreve, queima nove. Nunca se arrepende ao ver as cinzas. 29
  • 30. Carolina Soares F. de Araújo, 24 anos, trabalha como ilustradora no momento, a maioria de seus trabalhos são de ilustrações para livros, livros infantis... carolaraujoart.tumblr.com/ 30
  • 31. Entre e vistaVersário Vê? Esse, o canino solitário, essa, a boca mãe de filho único. Vê? Como aquele canino é teimoso, luta sozinho, uma luta com palavras, pende quadrado da gengiva ensebada. Ouve! Essas palavras saem raivosas, cólera contra o pingente ancestral. O canino solitário, naquela boca enorme, rouba-lhes o sentido. Ouviu o verbo profano que sai daquela boca? ... Vê? É por isso que a palavra te atropela, aquele mineral cria um ranço na tua atenção, coloca um Eu no teu caminho. VÊ? Tiago Goes Cardoso Tiago Goes Cardoso é graduando em Letras pela Universidade Tecnológica Federal do Paraná. 31