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MANUAL
do
Curso de Equilíbrio Ácido-Base e
Hidroelectrolítico
Abril de 2009
AUTORES
António Carneiro (Medicina Intensiva)
João Pedro Pimentel (Nefrologia)
Paulo Paiva (Medicina Interna)
Ana Ventura (Nefrologia)
Irene Marques (Medicina Interna)
Josefina Santos (Nefrologia)
Versão Abril 2009 - Editado para:
Reanima – Associação para Formação em Reanimação e Medicina do Doente Crítico
UCIP - Hospital de Sto António – 4 099-001 PORTO – Tel 222 081 997; FAX: 222 009 483
Email: secretariado.ucip@hgsa.min-saude.pt
ÍNDICE
Capítulos Página
Sequência Universal de Avaliação 2
1. Introdução ao equilíbrio ácido-base e hidroelectrolítico 3
2. Avaliação sistemática da gasometria: A “Regra dos 3” 21
3. Acidose metabólica 28
4. Alcalose metabólica 44
5. Potássio 52
6. Sódio 64
7. Cálcio, fósforo e magnésio 85
SEQUÊNCIA UNIVERSAL DE AVALIAÇÃO
I - Avaliação CLÍNICA
• Informação clínica relevante
• Avaliação da volémia e hidratação
• Antecipação dos desvios esperados
II – Identificação de situações de
PERIGO IMINENTE
• Choque
• PaO2 < 50 mmHg
• Acidemia grave (pH < 7,1)
• Potássio < 2,5 ou > 7 mmol/L
• Na+ < 115 ou > 160 mmol/L, sintomático
• Ca++ ionizado >1,5 mmol/L
III – Análise da GASOMETRIA arterial e do IONOGRAMA
1. Oxigenação 2. Ácido-Base 3. Iões
1. CO2
2. Gradiente A-a
3. Resposta ao ↑↑↑↑
da FiO2
1. Desvio
primário
2.Compensações
3. Gap Aniónico
1. Sódio
2. Potássio
3. Cálcio
ionizado
Capítulo 1
Introdução ao equilíbrio ácido-base e hidroelectrolítico
Objectivos
Compreender os conceitos de concentração e pressão parcial
Reconhecer acidoses, alcaloses e respectivos desvios do pH
Identificar o estado de hidratação e circulatório
Introduzir a sequência universal de avaliação de um doente com desequilíbrio ácido-base e/ou
hidroelectrolítico
Conceitos básicos
Concentração: quantidade de uma substância dissolvida numa solução.
Os medicamentos vêm embalados com especificações como:
Lidocaína a 1%
Glicose a 5%
Adrenalina numa diluição de 1: 1 000
Adrenalina numa diluição de 1: 10 000
Sabe que quantidade de medicamento existe em cada uma destas embalagens? Para o saber basta
conhecer a convenção para representar as concentrações:
Lidocaína a 1% = 1 g de Lidocaína em 100 mL
Glicose a 5 % = 5 g de glicose em 100 mL
Adrenalina numa diluição de 1:1 000 = 1 g de adrenalina por 1 000 mL
Adrenalina numa diluição de 1:10 000 = 1 g de adrenalina por 10 000 mL
Solução molar = solução que contém o peso molecular de uma substância, expresso em g por litro.
Ex.: a concentração molar do cloreto de sódio é a concentração em g por litro = 58,4 g (peso molecular
do sódio = 23 g de Na+
+ 35,4 g de Cl-
).
Mas como no corpo humano as concentrações são muito mais baixas, há casos em que é necessário usar
unidades mais pequenas, como por ex:
Definição Abreviatura
Valor
relativo
Mole Peso molecular em g/L mol 1M
milimole Um milésimo de mole/L mmol 10-3
x M
micromole Um milionésimo de mole/L µmol 10-6
x M
nanomole Mil milionésimos de mole/L nmol 10-9
x M
O conceito de solução molar é importante porque o peso molecular em gramas, de todas as substâncias,
tem exactamente o mesmo nº de moléculas = 6x1023
. Assim sendo quando comparamos soluções de igual
molaridade já sabemos que têm exactamente o mesmo nº de moléculas e por isso é válida a
confrontação dos respectivos pesos moleculares.
A concentração de um ião pode ser apresentada em unidades de “equivalentes” (ex. 140 mEq/L de Na+
)
em vez de unidades molares, referindo-se ao número de cargas iónicas. Isto significa que a
concentração em mEq de um ião com 2 cargas (ex. Ca ++
) será o dobro da mesma em mmol/L.
No caso dos gases a sua concentração é habitualmente referida em percentagem. Ex.: Se a
percentagem parcial de oxigénio do ar que respira é 21%, isso quer dizer que por cada L de ar que
inspira 210 mL são de O2.
Composição habitual do ar atmosférico ao nível do mar:
Azoto = 78,06%,
Oxigénio = 20,98%,
Dióxido de Carbono = 00,04% e
gazes inertes = 00,92%
A percentagem de O2 no ar inspirado pode ser aumentada até 100%. Por convenção a fracção de O2 no
ar inspirado representa-se por FiO2 e expressa-se como fracção de 1. FiO2=1 significa que a
percentagem de O2 no ar inspirando é 100%. Assim se o ar inspirado tiver 50% de O2 diz-se que tem
uma FiO2 = 0,5.
Nota: quando referimos percentagens não explicitamos concentrações.
Figura 1.1 - Diferença entre percentagem e concentração.
Nestes dois recipientes a percentagem de cada uma das moléculas @ e + é igual mas a concentração de
moléculas no recipiente da direita é o dobro da concentração de moléculas no recipiente da esquerda,
por isso é preciso acrescentar à percentagem outra especificação. Este facto levou à introdução do
conceito de:
Pressão parcial = soma de todas as moléculas desse gás em colisão com as paredes do contentor.
Se o gás é uma mistura, como é o caso do ar, a pressão parcial é a soma das pressões parciais de cada
um dos seus componentes. Tendo em consideração a composição habitual do ar teremos:
Pressão atmosférica = pressão parcial do Azoto (= 78,06%) + Oxigénio (= 20,98%) + Dióxido de
Carbono (= 00,04%) + gazes inertes (= 00,92%).
Se a pressão atmosférica for 760 mmHg, a pressão parcial de cada um dos seus componentes será
respectivamente:
593,2 mmHg + 159 mmHg + 0,3 mmHg + 6,9 mmHg
Estes valores foram obtidos a partir da percentagem de cada gás, dividida por cem (percentagem) e
multiplicada pela pressão total da mistura.
Ex:PO2 = 20,98:100 x 760 mmHg = 159 mmHg
@ + @ + @ + @ + @ +
@ + @ + @ + @ + @ +
@ + @ + @ + @ + @ +
@ + @ + @ + @ + @ +
@ + @ + @ + @ + @ +
@ + @ + @ + @ + @ +
@ + @ + @ + @ + @ +
@ + @ + @ + @ + @ +
@ + @ + @ + @+ @ +
Contudo se o gás estiver em contacto com um líquido, parte desse gás dissolve-se no líquido, o que é
muito importante em fisiologia humana, já que a maior parte do organismo é líquido. O volume que se
dissolve no líquido depende de duas forças:
a pressão parcial que “empurra” o gás para dentro do líquido e
a solubilidade = que reflecte a facilidade com que as moléculas desse gás se misturam com o líquido.
O CO2, por ex., é 20 vezes mais solúvel no plasma do que o O2, o que quer dizer que para a mesma
pressão parcial, o CO2 se dissolve no plasma vinte vezes mais do que o O2.
Se o gás ficar em contacto com o líquido sem interferências, as moléculas que se dissolvem no líquido
acabam por se equilibrar com as do gás, sendo possível determinar a pressão parcial desse gás no
líquido. Por isso, para que não haja confusões é necessário explicitar onde é que a pressão parcial do gás
foi medida.
No caso do O2, essas variáveis são simbolizadas da seguinte forma:
PO2 = pressão parcial de O2 na atmosfera
PAO2 = pressão parcial de O2 no alvéolo
PaO2 = pressão parcial de O2 no sangue arterial
PvO2 = pressão parcial de O2 no sangue venoso
Os valores da pressão parcial são representados em mmHg ou em kPa (quilo Pascal), sendo que 1 kPa =
7,5 mmHg
Ex: PaO2 = 90 mmHg = 12 kPa
PaCO2 = 35–45 mmHg = 2,7–6 kPa
Ácidos, Bases e Alcalis
Ácido é toda a substância capaz de fornecer hidrogeniões (H+
), quando está em solução. Um ácido forte
fornece facilmente muitos H+
; um ácido fraco fornece poucos H+
. De entre os ácidos habituais no nosso
organismo salientam-se:
ácido clorídrico,
ácido láctico,
ácido carbónico,
cetoácidos,
ácido pirúvico,
ácido úrico,
proteínas.
Base é toda a substância que aceita hidrogeniões quando está em solução. As bases mais importantes
no controlo do equilíbrio ácido-base (Eq a-b), são:
bicarbonato
fosfatos,
proteínas,
amónia.
As proteínas são compostos com propriedades particulares porque podem funcionar como dadoras e
como aceitadoras de H+
.
Alcalis = substância dadora de OH, por ex. NaOH, mas que também é capaz de aceitar H+
e por isso
pode comportar-se como alcali e como base. Por isso todos os alcalis são bases mas nem todas as bases
são alcalis.
pH, alcalemia e acidemia
A “acidez” de uma solução é uma propriedade que resulta do nº de hidrogeniões nela dissolvidos. No
organismo a concentração de H+
([H+
]) é baixíssima, quando comparada com a concentração de outros
iões essenciais à vida, por ex.:
[H+
] = 0,000 04 mmol/L
[Na+
] = 135-145 mmol/L
Para representar uma concentração tão baixa usa-se uma variável matemática, criada em 1909, que se
designa por pH e representa o inverso da concentração logarítmica de H+
.
Daqui resultam duas consequências:
quando a [H+
] sobe, o pH baixa e
quando a [H+
] baixa, o pH sobe
O pH normal varia entre 7,36 – 7,44.
Por definição quando o pH sai dos limites normais diz-se que o doente está em:
acidemia se a [H+
] subir e o pH ≤ 7,35
alcalemia se a [H+
] baixar e o pH ≥ 7,45
A pequenas variações do pH correspondem grandes variações da [H+
], por ex., a passagem do pH de 7,4
para 7,1 traduz uma variação da [H+
] de 40 para 80 nmol/L; ou seja, a uma variação de 0,3 do pH
corresponde a duplicação da [H+
].
Acidose e alcalose
Acidose e alcalose são termos que definem processos fisiopatológicos e identificam a origem da
perturbação, ao passo que as designações acidemia e alcalemia se referem apenas ao valor do pH
independentemente dos mecanismos fisiopatológicos que lhes dão origem.
As alterações do Eq a-b ocorrem primariamente dentro da célula, mas se não forem corrigidas e a
perturbação persistir acabam por se repercutir no plasma provocando acidemia ou alcalemia.
Do ponto de vista fisiopatológico poderemos considerar que:
Acidose metabólica = diminuição do HCO3
-
Alcalose metabólica = aumento do HCO3
-
Acidose respiratória = aumento do CO2
Alcalose respiratória = diminuição do CO2
Assim sendo, compreende-se que pode existir acidose com pH normal e alcalose com pH normal, por isso
é necessário distinguir acidemia de acidose e alcalemia de alcalose. Com base nesta definição também
se compreende que pode existir ao mesmo tempo mais do que uma perturbação fisiopatológica a alterar
o pH em sentidos opostos, p. ex: acidose respiratória (retenção de CO2) + alcalose metabólica (retenção
de HCO3
-
). Olhar só para o pH não chega para definir o estado do Eq. a-b.
Pode haver acidose sem acidemia (desde que esteja compensada), mas não pode haver acidemia sem
acidose.
A actividade metabólica normal liberta grande quantidade de hidrogeniões intracelulares. Se nada
fosse feito, a acumulação desses H+
provocaria graves alterações de pH a curto prazo. Como os
enzimas, essenciais à vida, só funcionam se o pH estiver numa estreita margem, sempre que o pH se
desvia grandemente da margem fisiológica há risco de vida.
Felizmente, há moléculas capazes de aceitar e ceder H+
para equilibrar o pH, que se designam
por tampões.
Os tampões, em presença de bases fortes, são igualmente capazes de ceder H+
, para equilibrar o pH.
Cerca de ¾ da capacidade de tamponamento intracelular é assegurada pelas proteínas e pelos fosfatos
(existentes em grande concentração dentro das células). A hemoglobina é um dos principais
protagonistas deste processo de tamponamento porque tem grande apetência e facilidade para receber
e dar H+
. O restante ¼ da capacidade tampão do organismo é assegurado por proteínas séricas e pelo
sistema bicarbonato - ácido carbónico. Enquanto as proteínas plasmáticas se encarregam de levar o H+
ao rim para ser eliminado, o sistema bicarbonato - ácido carbónico mantém o equilíbrio gerindo a
associação e a dissociação do H2CO3 em H2O + CO2 numa relação representada pela fórmula:
H+
+ HCO3
-
H2CO3 H2O + CO2
A capacidade de tamponamento das proteínas é limitada, o que não acontece com o sistema do
bicarbonato porque neste caso a reacção não acaba no bicarbonato, prossegue até H2O + CO2. E assim a
H2O, sendo o principal componente do organismo, dissolve-se no plasma enquanto o CO2 é eliminado com
a respiração. Esta reacção tende para a direita ou para a esquerda, conforme a pressão do ambiente
metabólico. Quando as reacções para a direita tendem a igualar as reacções para a esquerda atinge-se
um estado de equilíbrio que contribui para regular o pH.
Importante: o sistema do bicarbonato/ ácido carbónico nunca se satura porque há sempre a
possibilidade de o desdobrar em CO2 e H2O que são continuamente eliminados ou incorporados no
plasma.
O nível de bicarbonato é influenciado quer pelo funcionamento do aparelho respiratório quer pelos rins
(que têm a função de eliminar hidrogeniões e regenerar HCO3
-
).
A medição do bicarbonato sérico, por si só, não nos diz quantos hidrogeniões foram absorvidos pelos
restantes tampões, nomeadamente as proteínas. Para o sabermos temos de calcular a quantidade de
ácidos fortes ou de bases fortes que seria necessário adicionar à solução para que o pH fosse de 7,4.
Ora, esse valor necessário para corrigir o pH para 7,4 designa-se por “base excess” (BE) e o seu
interesse reside no facto de permitir demonstrar o tipo de desvio metabólico existente.
BE < – 2mmol/L = acidose metabólica
BE > + 2mmol/L = alcalose metabólica
BE < – 2mmol/L = défice de bases
BE > + 2mmol/L = excesso de bases
Produção e eliminação de ácidos
Cada um de nós produz, como subproduto dos mecanismos de produção de energia, cerca de 1
mmol/Kg/dia de H+
. A este valor soma-se a produção contínua de CO2. Se estas substâncias não fossem
eliminadas ou neutralizadas a vida seria impossível. Para compensar de imediato a produção desses
“tóxicos”, o organismo socorre-se de tampões. Mas os tampões têm uma capacidade limitada e por isso
o organismo tem de se libertar dos excedentes. Essa função é desempenhada pelo pulmão que elimina o
CO2 e pelo rim que elimina os H+
. O objectivo é atingir cerca de 40 nmol/L (40 x 10-9
mol/L) que é a
concentração normal de H+
.
A eliminação de CO2
5% do CO2 circula no plasma ligado às proteínas e uma quantidade idêntica dissolve-se no plasma e
líquido intracelular, mas 90% do CO2 liga-se à água e forma HCO3
-
e H+
. Nesta perspectiva o CO2
comporta-se como um ácido porque promove a libertação de H+
. Quanto mais CO2 existir mais H+
se
liberta.
Um indivíduo normal excreta diariamente pelos pulmões o equivalente à produção de cerca de 13 000
000 000 nmol de H+
e, por isso, se hipoventilar esses H+
podem ficar retidos, provocando acidose
respiratória.
Quando a capacidade dos sistemas tampão se esgota acumulam-se H+
que podem atingir valores tais
que o pH se desvia para baixo dos 7,35, o que se designa acidemia.
A eliminação de H+
Os cerca de 1 000 000 nmol de H+
/kg produzidos por dia são neutralizados pelos tampões de tal forma
que não devem existir mais de 40 nmol/L de H+
livres, no organismo. A maioria de H+
é tamponada pelo
HCO3
-
e eliminada no rim, onde se regenera o HCO3
-
, que é então reposto em circulação.
O rim é o principal regenerador de HCO3
-
, por acção da anídrase carbónica que cataliza a formação de
HCO3
-
, a partir do CO2 e H2O. O rim dispõe ainda de outros dois mecanismos que são a produção de
NH4
+
e os fosfatos que funcionam como aceitadores de H+
, eliminados na urina como ácidos tituláveis.
A ligação entre o sistema respiratório e metabólico faz-se pela produção de H2CO3. A velocidade dos
dois ramos da reacção é rápida quando reage no sentido da associação do HCO3
-
+ H+
e muito mais lenta
quando ocorre a dissociação em H2O e CO2. Essa reacção é acelerada pela anídrase carbónica
(localizada preferencialmente no eritrócito e rim). É esta ligação que permite que o sistema
respiratório (eliminando CO2) compense o metabólico e vice-versa (eliminando H+
).
Liquídos corporais e hemodinâmica
O corpo humano é constituído por um conjunto articulado de “blocos” líquidos, as estruturas celulares,
formando no seu conjunto o líquido intracelular (LIC, cerca de 40% do peso corporal), imersas numa
matriz mais ou menos líquida que constitui o líquido extracelular (LEC, cerca de 20% do peso corporal).
Um pequena porção do LEC encontra-se em circulação permanente dentro dos diversos compartimentos
vasculares e constitui o volume intravascular (cerca de 1/5 do LEC). A manutenção do volume destes
compartimentos é regulada pela deslocação livre da água entre as membranas semipermeáveis que os
separam, de acordo com as forças oncóticas, osmolares, hidrostáticas e a permeabilidade capilar. O
teor de água corporal total é de cerca de 70% do peso em jovens e decresce com a idade, sendo de
cerca de 60% nos adultos masculinos e de 50% nas mulheres adultas. Nos idosos estes valores são de
cerca de 50% nos homens e de 45% nas mulheres.
O equilíbrio ácido-base e hidrolelectrolítico está fortemente relacionado com o estado dos diversos
compartimentos e com a dinâmica do compartimento intravascular (hemodinâmica).
I. Variáveis hemodinâmicas e eficácia circulatória
O funcionamento de todas as células depende do fornecimento de nutrientes e da sua capacidade de
produção de energia. Se tal não acontecer não há equilíbrio possível. Por essa razão é da maior
importância assegurar o bom funcionamento dos sistemas cardio-circulatório e respiratório, porque são
eles os principais responsáveis pelo fornecimento de condições para a homeostasia celular além de
serem dois dos componentes mais importantes na depuração dos produtos do catabolismo celular.
Os dados clínicos mais relevantes são os que traduzem a eficácia da circulação:
1. Pressão arterial e características dos pulsos periféricos
2. Estado de preenchimento do leito vascular
3. Estado da perfusão dos tecidos e órgãos nobres
1. Pressão arterial e características dos pulsos periféricos
A pressão arterial é a resultante da relação entre o fluxo e a resistência oferecida pelos vasos. Neste
caso o fluxo é gerado pelo volume sistólico multiplicado pela frequência cardíaca ou seja o débito
cardíaco.
PAM (Pressão arterial média) = DC (Débito cardíaco) x RVS (Resistências Vasculares Sistémicas)
DC = VS (Volume sistólico) x FC (Frequência Cardíaca)
Contudo, apesar de a PAM ser um indicador clínico da perfusão dos órgãos periféricos muito útil na
clínica, o seu valor absoluto é condicionado porque só é interpretável:
no contexto de acontecimentos médicos recentes (cirurgia, pós operatórios recentes, infecções com
expressão sistémica, trauma, queixa de toracalgia, administração de sedativos, doente em ventilação mecânica, …)
e quando confrontada com a pressão arterial habitual nesse indivíduo.
Para fins epidemiológicos e para a investigação clínica, é clássico definir hipotensão se PA sistólica <
90mmHg, se PAM < 65mmHg e/ou se há uma queda da PA sistólica habitual > 40-50mmHg. Estes dados
só têm valor se forem clinicamente contextualizados, p.ex. um jovem, habitualmente hipotenso pode
estar sem qualquer queixa e/ou manifestação de hipoperfusão celular apesar de ter PA = 85-55 mmHg,
mas ficará sintomático antes da sistólica cair 40mmHg. No outro extremo é possível ter um indivíduo
de 70 anos hipertenso não controlado, habitualmente com PA = 190-75mmHg que evidencia sinais de
hipoperfusão porque a pressão arterial baixou para 140-70 mmHg.
Por esta razão a valorização da pressão arterial deve ser associada à avaliação do funcionamento dos
órgãos nobres que manifestam alterações clínicas quando a perfusão é insuficiente, designadamente:
Cérebro: Síncope, deterioração do nível da consciência (que pode chegar ao coma), tonturas,
alterações do conteúdo da consciência (agitação, alucinações, alterações da memória e da percepção,
modificações do comportamento, …). Tem a grande vantagem de permitir uma monitorização imediata /
instantânea;
Rim: que apesar de representar apenas 4% do peso corporal recebe 20% do débito cardíaco
pelo que é muito sensível aos estados de hipoperfusão e traduz essas alterações na variação da
diurese que pode ser pronta e facilmente medida. Tem a grande vantagem de permitir uma
monitorização fácil e quantificável a médio prazo;
Pele: traduzida pelo arrefecimento das extremidades (frequentemente associada a redireccionamento do
sangue para órgãos vitais), pela aparência marmórea (a traduzir alterações da microcirculação). Tem a
vantagem de ser uma manifestação sensível, facilmente acessível, mas com o inconveniente de
ser pouco específica;
Territórios com estenose prévia da circulação arterial: coronárias: angor; carótidas e seus
ramos: défices neurológicos focais; mesentéricas: angina intestinal; artérias distais dos
membros = isquemia, claudicação intermitente. São indicadores de gravidade a sugerir
necessidade de intervenção focal imediata.
Ou seja, a baixa da pressão arterial associada a uma ou mais destas manifestações consolida a noção de
que os órgãos /tecidos estão em sofrimento por alterações da perfusão tecidular.
Mecanismos de compensação: Por outro lado o organismo esforça-se por compensar as alterações
circulatórias que podem influenciar a perfusão dos órgãos nobres, activando o sistema neuro-endócrino,
com particular ênfase para o sistema nervoso autónomo, o sistema renina-angiotensina e,
secundariamente, o sistema da hormona antidiurética (ADH). Por isso é importante que na avaliação
clínica se pesquisem manifestações que sugerem a activação dos mecanismos de compensação, entre as
quais se salientam a taquicardia, outros sinais de hiperactividade adrenérgica (sudação profusa, piloerecção,
vasoconstrição periférica) e a taquipneia (sinais de esforço respiratório).
Os doentes com reserva fisiológica conseguem compensar a disfunção, mantendo parâmetros de
monitorização em valores normais, enquanto as reservas fisiológicas não se esgotam, à custa da
vasoconstrição, do aumento do débito cardíaco (aumento do inotropismo e da frequência cardíaca) e da retenção
de fluídos (activação do sistema renina-angiotensina e do sistema da ADH). Os doentes com reservas fisiológicas
diminutas/insuficientes descompensam rapidamente.
2. Estado de preenchimento do leito vascular
O preenchimento do leito vascular é essencial para assegurar um débito cardíaco eficaz e por essa via a
perfusão periférica. O débito cardíaco depende do volume sistólico (o volume que o coração ejecta em cada
sístole) e da frequência cardíaca (nº de sístoles por minuto). Ora, o volume sistólico, além do inotropismo e da
afterload está na dependência do volume intravascular porque depende da préload (indicador indirecto do
volume de sangue existente no ventrículo no fim da diástole).
DC (Débito cardíaco) = VS (Volume sistólico) x FC (Frequência Cardíaca)
VS depende e correlaciona-se com:
préload (tensão sobre a parede do ventrículo no final da diástole)
inotropismo (força de contracção do miocárdio)
afterload (resistência à ejecção do sangue dos ventrículos)
Assim se percebe que para optimizar o débito é necessário que o leito vascular esteja adequadamente
preenchido (para que no final da diástole o ventrículo esteja bem preenchido), porque o volume sistólico depende do
volume de sangue existente no ventrículo no final da diástole.
Importa pois saber se, no caso concreto que estamos a tratar, a depleção de volume intravascular é
relevante ou não. A melhor forma de o fazer é:
Rever a existência de sintomas (sede, tonturas, hipotensão ortostática, …) e sinais clínicos de depleção
de volume (colapso inspiratório da onda de pulso, oligúria, colapso jugular…);
Enquadrar estas manifestações na situação clínica concreta;
Nos casos em que há instabilidade hemodinâmica fazer um teste de sobrecarga (“fluid
challenge”) = perfundir 500 mL de cristalóides, em 20-30min, avaliando de 10 em 10 min a
resposta da pressão arterial, frequência do pulso e respiratória, pressão venosa central, SatO2,
sinais de sobrecarga de volume (edema pulmonar) e evolução da função dos órgãos (cérebro, coração,
rim e pele). Uma resposta positiva sem efeitos indesejáveis sustenta o diagnóstico de depleção do
volume intravascular.
O preenchimento das jugulares é critério major na avaliação clínica do volume vascular. Contudo, só é
correctamente valorizável se for feito com o doente com o tronco elevado (de 30 a 45º). Nestas
condições aceita-se que o limite superior do ingurgitamento jugular pode ir até aos 3-5cm acima da
clavícula. Contudo, se as jugulares forem avaliadas com o doente na horizontal ficam preenchidas, já
que as jugulares não têm válvulas e portanto têm todo o sangue que retorna ao coração direito (sem que
daí se possa deduzir que há hipertensão venosa). Clinicamente será preocupante se as jugulares, com o doente na
horizontal, estiverem colapsadas, o que sugere que há grave depleção de volume intravascular. Pelo
contrário jugulares túrgidas, com o doente a 45ºC, traduzem hipertensão venosa que sugere sempre
patologia associada. Se a PVC (pressão venosa central) estiver a ser avaliada, medida por catéter venoso
central considera-se normal se for < 10mmHg. Na maioria das situações clínicas está entre 0-5 mmHg.
PVC > 15 mmHg é hipertensão venosa que na maioria das vezes, mas nem sempre, traduz estados de
hipervolémia.
Em situação de depleção de volume intravascular o organismo tenta corrigir em primeiro lugar essa
deficiência e assegurar a perfusão de órgãos, condicionando a correcção de outros desequilíbrios.
Principais causas de depleção de volume
Gastrointestinais:
Gástricas – vómitos, aspiração nasogástrica
Intestinal - pancreática, biliar, diarreia, fístulas, ostomias, drenagem
Hemorragia
Renais:
Sódio e água – diuréticos, diurese osmótica, insuficiência suprarrenal, nefropatias
perdedoras de sódio
Água – diabetes insípida
Pele e respiratórias:
Perdas insensíveis
Suor
Queimaduras
Outras – lesões cutâneas, derrame pleural ou ascite
Terceiro espaço:
Oclusão intestinal ou peritonite
Traumatismos com fracturas
Pancreatite aguda
Hemorragia
Obstrução veia central
Alterações laboratoriais que sugerem deplecção de volume:
Sódio urinário inferior a 25 mmol/L. No caso do sódio estar a ser excretado com outro anião
(por exemplo bicarbonato na alcalose metabólica) ou quando há utilização actual de diuréticos é
o cloro baixo na urina que indica depleção de volume.
Excreção fraccional de sódio inferior a 1.
Aumento de osmolaridade de urina.
Ureia plasmática desproporcionadamente elevada em relação à creatinina.
Acidose láctica (mau prognóstico proporcional ao aumento).
Em resumo, podemos dizer que há 3 ”janelas“ para avaliar a volémia, atravez das quais o clínico deve
observar sistematicamente o estado circulatório do doente:
Uma janela arterial – pressão arterial, hipotensão ortostática, estado circulatório periférico e
central.
Uma janela venosa – turgescência venosa jugular, hepatomegalia, refluxo hepato-jugular e
edemas.
Uma janela pulmonar – ortopneia, dispneia paroxística nocturna, sinais de estase pulmonar,
presença de S3.
3. Estado da perfusão dos tecidos e órgãos nobres
O objectivo da circulação é fornecer à célula O2 e nutrientes em qualidade e quantidade suficiente para
assegurar as funções metabólicas essenciais à vida. Se a circulação não é eficaz a célula não produz
energia suficiente e todos os processos metabólicos entram em falência. A razão pela qual a utilização
de O2 é essencial tem a ver com dois pontos principais:
1º Se a célula não conseguir utilizar O2 não pode activar o ciclo de
Krebs e nesse caso por cada molécula de glicose só se produzem 2
moléculas de ATP, ao passo que se a célula for capaz de utilizar O2
pode produzir 38 moléculas de ATP por cada molécula de glicose.
Quando não há O2 (condições de anaerobiose), a clivagem da glicose
produz duas moléculas de piruvato que se transformam em lactato,
que quando acumulado pode provocar hiperlactacidemia. Se a célula
puder utilizar O2 o piruvato é encaminhado para o ciclo de Krebs em
vez de gerar lactato.
2º De cada vez que se forma uma molécula de ATP, por fusão de ADP +
Pi, liberta-se H+
, para o meio interno. A forma normal do organismo
compensar esta acumulação de H+
é conjugá-lo com O2, para formar
H2O e repor a electroneutralidade.
Estes conceitos constituem a base da definição dos estados de choque:
Choque = incapacidade da célula utilizar O2 (estado de disóxia celular)
Há duas razões fundamentais para que se instale o choque:
1ª o fornecimento de O2 é inadequado (solução: optimizar o DO2 = fornecimento de O2)
2ª a célula está tão doente que já não consegue utilizar o O2 que lhe chega (solução: reconhecer os
estados de hipoperfusão o mais precocemente possível para optimizar o DO2 e o tratamento da causa em tempo
oportuno)
Com base neste conceito afirmaremos que a optimização do fornecimento de O2 é uma prioridade no
tratamento de todo o doente crítico e a precocidade do reconhecimento dos estados de hipoperfusão é
essencial para que o tratamento “chegue a tempo” de ser eficaz.
Assim se percebe que pode haver hipotensão sem haver choque (desde que a perfusão celular seja suficiente para
assegurar o fornecimento de O2 de que o organismo precisa nessa circunstância) e pode haver choque (porque há
incapacidade de utilização de O2 e por isso células em disóxia) sem que haja hipotensão.
Normalmente a célula não extrai todo o O2 do sangue. O que é normal é que extraia apenas o
necessário, deixando uma reserva para as situações de crise / necessidades acrescidas. Esse O2 de
reserva pode ser medido no sangue venoso sob a forma de SvcO2 (Saturação do sangue venoso obtido por
catéter central > 70%). Quando a célula tem necessidades acrescidas e a DO2 não aumenta em proporção às
necessidades verifica-se uma baixa da SvO2, a traduzir um estado de disóxia celular (choque) que pode
não ter ainda tradução hemodinâmica explícita (choque críptico). De forma equivalente os doentes com
reserva fisiológica suficiente podem manter-se hemodinamicamente compensados mas já com disóxia
significativa (choque) traduzido pela elevação dos lactatos > 4mmol/L (anaerobiose por incapacidade de utilização
de O2).
Com base no que fica revisto, do ponto de vista hemodinâmico, o tratamento de todo o doente em
estado crítico deve centrar-se em três pontos essenciais:
1º Reconhecimento precoce, que significa valorização dos sinais de alerta (incluindo as
manifestações de SIRS, elevação dos lactatos e descida da SvcO2 = estados de choque críptico) e antecipação dos
desvios esperados;
2º Optimização da DO2, que significa estabilização do débito cardíaco e assegurar a melhor
oxigenação possível, guiado pelas regras expressas nas fórmulas:
DO2 = DC (Débito cardíaco) x CaO2 (conteúdo arterial em O2) x 10
DC = VS (Volume sistólico) x FC (Frequência Cardíaca)
CaO2 = (Hb x 1,37 x SatO2) + (0,003 x PaO2)
3º Correcção da causa
II. Estado de hidratação e do líquido extracelular
A avaliação do estado de preenchimento intravascular deve ser associada à pesquisa de manifestações
do estado de hidratação celular e extravascular (3ºespaço).
Os sinais de desidratação/hiperhidratação refletem sobretudo o estado de hidratação do espaço
intracelular e, portanto, são muito dependentes da osmolaridade plasmática.
Em situações de aumento da osmolaridade plasmática (desidratação com perda de água superior à de
partículas osmóticas) a água do compartimento intracelular desloca-se para o exterior e o doente
apresenta manifestações neuropsíquicas (ver “Hipernatrémia”) e cutâneo-mucosas (pele seca, olhos
encovados, prega cutânea aumentada).
Em situações de perda de partículas osmóticas superior à perda de água há deslocação intracelular da
água e a clínica neuropsíquica pode ser fruste até haver colapso circulatório (ex. golpe de calor).
Os estados de hiperhidratação cursam habitualmente com acumulação de líquido no espaço
extravascular (edemas, derrames nas serosas) embora isso seja mais frequente por alterações
oncóticas, hidrostáticas ou da permeabilidade vascular interferindo no equilíbrio entre o líquido
intravascular e o terceiro espaço. Nestes casos o doente tem habitualmente um volume circulante
efectivo diminuído embora com LEC aumentado (ex. cirrose, insuficiência cardíaca congestiva, sépsis).
Interpretação dos desequilíbrios a-b
A interpretação das alterações do equilíbrio ácido-base e hidroelectrolítico deve fazer-se com uma
sequência universal de avaliação:
1º avaliação dos dados clínicos e antecipação dos desvios esperados;
2º identificação e tratamento de situações de perigo iminente
3º análise sistemática dos dados da gasometria e ionograma.
Esta 3º análise pode ser sistematizada, por sua vez, em 3 avaliações:
1. Como está a oxigenação
2. Como está o equilíbrio ácido-base
3. Como estão os iões
Como veremos, cada uma destas avaliações passa pela resposta a 3 perguntas. A esta série de 3,
decidimos chamar “A Regra dos 3” (Cap. 2).
SEQUÊNCIA UNIVERSAL DE AVALIAÇÃO
Figura 1.2 - Sequência universal de avaliação ácido-base e hidroelectrolítica.
I - Avaliação CLÍNICA
• Informação clínica relevante
• Avaliação da volémia e hidratação
• Antecipação dos desvios esperados
II – Identificação de situações de
PERIGO IMINENTE
• Choque
• PaO2 < 50 mmHg
• Acidemia grave (pH < 7,1)
• Potássio < 2,5 ou > 7 mmol/L
• Na+ < 115 ou > 160 mmol/L, sintomático
• Ca++ ionizado >1,5 mmol/L
III – Análise da GASOMETRIA arterial e do IONOGRAMA
1. Oxigenação 2. Ácido-Base 3. Iões
1. CO2
2. Gradiente A-a
3. Resposta ao ↑↑↑↑
da FiO2
1. Desvio
primário
2.Compensações
3. Gap Aniónico
1. Sódio
2. Potássio
3. Cálcio
ionizado

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  • 1. MANUAL do Curso de Equilíbrio Ácido-Base e Hidroelectrolítico Abril de 2009
  • 2. AUTORES António Carneiro (Medicina Intensiva) João Pedro Pimentel (Nefrologia) Paulo Paiva (Medicina Interna) Ana Ventura (Nefrologia) Irene Marques (Medicina Interna) Josefina Santos (Nefrologia) Versão Abril 2009 - Editado para: Reanima – Associação para Formação em Reanimação e Medicina do Doente Crítico UCIP - Hospital de Sto António – 4 099-001 PORTO – Tel 222 081 997; FAX: 222 009 483 Email: secretariado.ucip@hgsa.min-saude.pt
  • 3. ÍNDICE Capítulos Página Sequência Universal de Avaliação 2 1. Introdução ao equilíbrio ácido-base e hidroelectrolítico 3 2. Avaliação sistemática da gasometria: A “Regra dos 3” 21 3. Acidose metabólica 28 4. Alcalose metabólica 44 5. Potássio 52 6. Sódio 64 7. Cálcio, fósforo e magnésio 85
  • 4. SEQUÊNCIA UNIVERSAL DE AVALIAÇÃO I - Avaliação CLÍNICA • Informação clínica relevante • Avaliação da volémia e hidratação • Antecipação dos desvios esperados II – Identificação de situações de PERIGO IMINENTE • Choque • PaO2 < 50 mmHg • Acidemia grave (pH < 7,1) • Potássio < 2,5 ou > 7 mmol/L • Na+ < 115 ou > 160 mmol/L, sintomático • Ca++ ionizado >1,5 mmol/L III – Análise da GASOMETRIA arterial e do IONOGRAMA 1. Oxigenação 2. Ácido-Base 3. Iões 1. CO2 2. Gradiente A-a 3. Resposta ao ↑↑↑↑ da FiO2 1. Desvio primário 2.Compensações 3. Gap Aniónico 1. Sódio 2. Potássio 3. Cálcio ionizado
  • 5. Capítulo 1 Introdução ao equilíbrio ácido-base e hidroelectrolítico Objectivos Compreender os conceitos de concentração e pressão parcial Reconhecer acidoses, alcaloses e respectivos desvios do pH Identificar o estado de hidratação e circulatório Introduzir a sequência universal de avaliação de um doente com desequilíbrio ácido-base e/ou hidroelectrolítico Conceitos básicos Concentração: quantidade de uma substância dissolvida numa solução. Os medicamentos vêm embalados com especificações como: Lidocaína a 1% Glicose a 5% Adrenalina numa diluição de 1: 1 000 Adrenalina numa diluição de 1: 10 000 Sabe que quantidade de medicamento existe em cada uma destas embalagens? Para o saber basta conhecer a convenção para representar as concentrações: Lidocaína a 1% = 1 g de Lidocaína em 100 mL Glicose a 5 % = 5 g de glicose em 100 mL Adrenalina numa diluição de 1:1 000 = 1 g de adrenalina por 1 000 mL Adrenalina numa diluição de 1:10 000 = 1 g de adrenalina por 10 000 mL Solução molar = solução que contém o peso molecular de uma substância, expresso em g por litro. Ex.: a concentração molar do cloreto de sódio é a concentração em g por litro = 58,4 g (peso molecular do sódio = 23 g de Na+ + 35,4 g de Cl- ). Mas como no corpo humano as concentrações são muito mais baixas, há casos em que é necessário usar unidades mais pequenas, como por ex: Definição Abreviatura Valor relativo Mole Peso molecular em g/L mol 1M milimole Um milésimo de mole/L mmol 10-3 x M micromole Um milionésimo de mole/L µmol 10-6 x M nanomole Mil milionésimos de mole/L nmol 10-9 x M O conceito de solução molar é importante porque o peso molecular em gramas, de todas as substâncias, tem exactamente o mesmo nº de moléculas = 6x1023 . Assim sendo quando comparamos soluções de igual molaridade já sabemos que têm exactamente o mesmo nº de moléculas e por isso é válida a confrontação dos respectivos pesos moleculares.
  • 6. A concentração de um ião pode ser apresentada em unidades de “equivalentes” (ex. 140 mEq/L de Na+ ) em vez de unidades molares, referindo-se ao número de cargas iónicas. Isto significa que a concentração em mEq de um ião com 2 cargas (ex. Ca ++ ) será o dobro da mesma em mmol/L. No caso dos gases a sua concentração é habitualmente referida em percentagem. Ex.: Se a percentagem parcial de oxigénio do ar que respira é 21%, isso quer dizer que por cada L de ar que inspira 210 mL são de O2. Composição habitual do ar atmosférico ao nível do mar: Azoto = 78,06%, Oxigénio = 20,98%, Dióxido de Carbono = 00,04% e gazes inertes = 00,92% A percentagem de O2 no ar inspirado pode ser aumentada até 100%. Por convenção a fracção de O2 no ar inspirado representa-se por FiO2 e expressa-se como fracção de 1. FiO2=1 significa que a percentagem de O2 no ar inspirando é 100%. Assim se o ar inspirado tiver 50% de O2 diz-se que tem uma FiO2 = 0,5. Nota: quando referimos percentagens não explicitamos concentrações. Figura 1.1 - Diferença entre percentagem e concentração. Nestes dois recipientes a percentagem de cada uma das moléculas @ e + é igual mas a concentração de moléculas no recipiente da direita é o dobro da concentração de moléculas no recipiente da esquerda, por isso é preciso acrescentar à percentagem outra especificação. Este facto levou à introdução do conceito de: Pressão parcial = soma de todas as moléculas desse gás em colisão com as paredes do contentor. Se o gás é uma mistura, como é o caso do ar, a pressão parcial é a soma das pressões parciais de cada um dos seus componentes. Tendo em consideração a composição habitual do ar teremos: Pressão atmosférica = pressão parcial do Azoto (= 78,06%) + Oxigénio (= 20,98%) + Dióxido de Carbono (= 00,04%) + gazes inertes (= 00,92%). Se a pressão atmosférica for 760 mmHg, a pressão parcial de cada um dos seus componentes será respectivamente: 593,2 mmHg + 159 mmHg + 0,3 mmHg + 6,9 mmHg Estes valores foram obtidos a partir da percentagem de cada gás, dividida por cem (percentagem) e multiplicada pela pressão total da mistura. Ex:PO2 = 20,98:100 x 760 mmHg = 159 mmHg @ + @ + @ + @ + @ + @ + @ + @ + @ + @ + @ + @ + @ + @ + @ + @ + @ + @ + @ + @ + @ + @ + @ + @ + @ + @ + @ + @ + @ + @ + @ + @ + @ + @ + @ + @ + @ + @ + @ + @ + @ + @ + @ + @+ @ +
  • 7. Contudo se o gás estiver em contacto com um líquido, parte desse gás dissolve-se no líquido, o que é muito importante em fisiologia humana, já que a maior parte do organismo é líquido. O volume que se dissolve no líquido depende de duas forças: a pressão parcial que “empurra” o gás para dentro do líquido e a solubilidade = que reflecte a facilidade com que as moléculas desse gás se misturam com o líquido. O CO2, por ex., é 20 vezes mais solúvel no plasma do que o O2, o que quer dizer que para a mesma pressão parcial, o CO2 se dissolve no plasma vinte vezes mais do que o O2. Se o gás ficar em contacto com o líquido sem interferências, as moléculas que se dissolvem no líquido acabam por se equilibrar com as do gás, sendo possível determinar a pressão parcial desse gás no líquido. Por isso, para que não haja confusões é necessário explicitar onde é que a pressão parcial do gás foi medida. No caso do O2, essas variáveis são simbolizadas da seguinte forma: PO2 = pressão parcial de O2 na atmosfera PAO2 = pressão parcial de O2 no alvéolo PaO2 = pressão parcial de O2 no sangue arterial PvO2 = pressão parcial de O2 no sangue venoso Os valores da pressão parcial são representados em mmHg ou em kPa (quilo Pascal), sendo que 1 kPa = 7,5 mmHg Ex: PaO2 = 90 mmHg = 12 kPa PaCO2 = 35–45 mmHg = 2,7–6 kPa Ácidos, Bases e Alcalis Ácido é toda a substância capaz de fornecer hidrogeniões (H+ ), quando está em solução. Um ácido forte fornece facilmente muitos H+ ; um ácido fraco fornece poucos H+ . De entre os ácidos habituais no nosso organismo salientam-se: ácido clorídrico, ácido láctico, ácido carbónico, cetoácidos, ácido pirúvico, ácido úrico, proteínas. Base é toda a substância que aceita hidrogeniões quando está em solução. As bases mais importantes no controlo do equilíbrio ácido-base (Eq a-b), são: bicarbonato fosfatos, proteínas, amónia. As proteínas são compostos com propriedades particulares porque podem funcionar como dadoras e como aceitadoras de H+ .
  • 8. Alcalis = substância dadora de OH, por ex. NaOH, mas que também é capaz de aceitar H+ e por isso pode comportar-se como alcali e como base. Por isso todos os alcalis são bases mas nem todas as bases são alcalis. pH, alcalemia e acidemia A “acidez” de uma solução é uma propriedade que resulta do nº de hidrogeniões nela dissolvidos. No organismo a concentração de H+ ([H+ ]) é baixíssima, quando comparada com a concentração de outros iões essenciais à vida, por ex.: [H+ ] = 0,000 04 mmol/L [Na+ ] = 135-145 mmol/L Para representar uma concentração tão baixa usa-se uma variável matemática, criada em 1909, que se designa por pH e representa o inverso da concentração logarítmica de H+ . Daqui resultam duas consequências: quando a [H+ ] sobe, o pH baixa e quando a [H+ ] baixa, o pH sobe O pH normal varia entre 7,36 – 7,44. Por definição quando o pH sai dos limites normais diz-se que o doente está em: acidemia se a [H+ ] subir e o pH ≤ 7,35 alcalemia se a [H+ ] baixar e o pH ≥ 7,45 A pequenas variações do pH correspondem grandes variações da [H+ ], por ex., a passagem do pH de 7,4 para 7,1 traduz uma variação da [H+ ] de 40 para 80 nmol/L; ou seja, a uma variação de 0,3 do pH corresponde a duplicação da [H+ ]. Acidose e alcalose Acidose e alcalose são termos que definem processos fisiopatológicos e identificam a origem da perturbação, ao passo que as designações acidemia e alcalemia se referem apenas ao valor do pH independentemente dos mecanismos fisiopatológicos que lhes dão origem. As alterações do Eq a-b ocorrem primariamente dentro da célula, mas se não forem corrigidas e a perturbação persistir acabam por se repercutir no plasma provocando acidemia ou alcalemia. Do ponto de vista fisiopatológico poderemos considerar que: Acidose metabólica = diminuição do HCO3 - Alcalose metabólica = aumento do HCO3 - Acidose respiratória = aumento do CO2 Alcalose respiratória = diminuição do CO2 Assim sendo, compreende-se que pode existir acidose com pH normal e alcalose com pH normal, por isso é necessário distinguir acidemia de acidose e alcalemia de alcalose. Com base nesta definição também se compreende que pode existir ao mesmo tempo mais do que uma perturbação fisiopatológica a alterar
  • 9. o pH em sentidos opostos, p. ex: acidose respiratória (retenção de CO2) + alcalose metabólica (retenção de HCO3 - ). Olhar só para o pH não chega para definir o estado do Eq. a-b. Pode haver acidose sem acidemia (desde que esteja compensada), mas não pode haver acidemia sem acidose. A actividade metabólica normal liberta grande quantidade de hidrogeniões intracelulares. Se nada fosse feito, a acumulação desses H+ provocaria graves alterações de pH a curto prazo. Como os enzimas, essenciais à vida, só funcionam se o pH estiver numa estreita margem, sempre que o pH se desvia grandemente da margem fisiológica há risco de vida. Felizmente, há moléculas capazes de aceitar e ceder H+ para equilibrar o pH, que se designam por tampões. Os tampões, em presença de bases fortes, são igualmente capazes de ceder H+ , para equilibrar o pH. Cerca de ¾ da capacidade de tamponamento intracelular é assegurada pelas proteínas e pelos fosfatos (existentes em grande concentração dentro das células). A hemoglobina é um dos principais protagonistas deste processo de tamponamento porque tem grande apetência e facilidade para receber e dar H+ . O restante ¼ da capacidade tampão do organismo é assegurado por proteínas séricas e pelo sistema bicarbonato - ácido carbónico. Enquanto as proteínas plasmáticas se encarregam de levar o H+ ao rim para ser eliminado, o sistema bicarbonato - ácido carbónico mantém o equilíbrio gerindo a associação e a dissociação do H2CO3 em H2O + CO2 numa relação representada pela fórmula: H+ + HCO3 - H2CO3 H2O + CO2 A capacidade de tamponamento das proteínas é limitada, o que não acontece com o sistema do bicarbonato porque neste caso a reacção não acaba no bicarbonato, prossegue até H2O + CO2. E assim a H2O, sendo o principal componente do organismo, dissolve-se no plasma enquanto o CO2 é eliminado com a respiração. Esta reacção tende para a direita ou para a esquerda, conforme a pressão do ambiente metabólico. Quando as reacções para a direita tendem a igualar as reacções para a esquerda atinge-se um estado de equilíbrio que contribui para regular o pH. Importante: o sistema do bicarbonato/ ácido carbónico nunca se satura porque há sempre a possibilidade de o desdobrar em CO2 e H2O que são continuamente eliminados ou incorporados no plasma. O nível de bicarbonato é influenciado quer pelo funcionamento do aparelho respiratório quer pelos rins (que têm a função de eliminar hidrogeniões e regenerar HCO3 - ). A medição do bicarbonato sérico, por si só, não nos diz quantos hidrogeniões foram absorvidos pelos restantes tampões, nomeadamente as proteínas. Para o sabermos temos de calcular a quantidade de ácidos fortes ou de bases fortes que seria necessário adicionar à solução para que o pH fosse de 7,4. Ora, esse valor necessário para corrigir o pH para 7,4 designa-se por “base excess” (BE) e o seu interesse reside no facto de permitir demonstrar o tipo de desvio metabólico existente. BE < – 2mmol/L = acidose metabólica BE > + 2mmol/L = alcalose metabólica BE < – 2mmol/L = défice de bases BE > + 2mmol/L = excesso de bases
  • 10. Produção e eliminação de ácidos Cada um de nós produz, como subproduto dos mecanismos de produção de energia, cerca de 1 mmol/Kg/dia de H+ . A este valor soma-se a produção contínua de CO2. Se estas substâncias não fossem eliminadas ou neutralizadas a vida seria impossível. Para compensar de imediato a produção desses “tóxicos”, o organismo socorre-se de tampões. Mas os tampões têm uma capacidade limitada e por isso o organismo tem de se libertar dos excedentes. Essa função é desempenhada pelo pulmão que elimina o CO2 e pelo rim que elimina os H+ . O objectivo é atingir cerca de 40 nmol/L (40 x 10-9 mol/L) que é a concentração normal de H+ . A eliminação de CO2 5% do CO2 circula no plasma ligado às proteínas e uma quantidade idêntica dissolve-se no plasma e líquido intracelular, mas 90% do CO2 liga-se à água e forma HCO3 - e H+ . Nesta perspectiva o CO2 comporta-se como um ácido porque promove a libertação de H+ . Quanto mais CO2 existir mais H+ se liberta. Um indivíduo normal excreta diariamente pelos pulmões o equivalente à produção de cerca de 13 000 000 000 nmol de H+ e, por isso, se hipoventilar esses H+ podem ficar retidos, provocando acidose respiratória. Quando a capacidade dos sistemas tampão se esgota acumulam-se H+ que podem atingir valores tais que o pH se desvia para baixo dos 7,35, o que se designa acidemia. A eliminação de H+ Os cerca de 1 000 000 nmol de H+ /kg produzidos por dia são neutralizados pelos tampões de tal forma que não devem existir mais de 40 nmol/L de H+ livres, no organismo. A maioria de H+ é tamponada pelo HCO3 - e eliminada no rim, onde se regenera o HCO3 - , que é então reposto em circulação. O rim é o principal regenerador de HCO3 - , por acção da anídrase carbónica que cataliza a formação de HCO3 - , a partir do CO2 e H2O. O rim dispõe ainda de outros dois mecanismos que são a produção de NH4 + e os fosfatos que funcionam como aceitadores de H+ , eliminados na urina como ácidos tituláveis. A ligação entre o sistema respiratório e metabólico faz-se pela produção de H2CO3. A velocidade dos dois ramos da reacção é rápida quando reage no sentido da associação do HCO3 - + H+ e muito mais lenta quando ocorre a dissociação em H2O e CO2. Essa reacção é acelerada pela anídrase carbónica (localizada preferencialmente no eritrócito e rim). É esta ligação que permite que o sistema respiratório (eliminando CO2) compense o metabólico e vice-versa (eliminando H+ ). Liquídos corporais e hemodinâmica O corpo humano é constituído por um conjunto articulado de “blocos” líquidos, as estruturas celulares, formando no seu conjunto o líquido intracelular (LIC, cerca de 40% do peso corporal), imersas numa matriz mais ou menos líquida que constitui o líquido extracelular (LEC, cerca de 20% do peso corporal). Um pequena porção do LEC encontra-se em circulação permanente dentro dos diversos compartimentos vasculares e constitui o volume intravascular (cerca de 1/5 do LEC). A manutenção do volume destes compartimentos é regulada pela deslocação livre da água entre as membranas semipermeáveis que os separam, de acordo com as forças oncóticas, osmolares, hidrostáticas e a permeabilidade capilar. O teor de água corporal total é de cerca de 70% do peso em jovens e decresce com a idade, sendo de
  • 11. cerca de 60% nos adultos masculinos e de 50% nas mulheres adultas. Nos idosos estes valores são de cerca de 50% nos homens e de 45% nas mulheres. O equilíbrio ácido-base e hidrolelectrolítico está fortemente relacionado com o estado dos diversos compartimentos e com a dinâmica do compartimento intravascular (hemodinâmica). I. Variáveis hemodinâmicas e eficácia circulatória O funcionamento de todas as células depende do fornecimento de nutrientes e da sua capacidade de produção de energia. Se tal não acontecer não há equilíbrio possível. Por essa razão é da maior importância assegurar o bom funcionamento dos sistemas cardio-circulatório e respiratório, porque são eles os principais responsáveis pelo fornecimento de condições para a homeostasia celular além de serem dois dos componentes mais importantes na depuração dos produtos do catabolismo celular. Os dados clínicos mais relevantes são os que traduzem a eficácia da circulação: 1. Pressão arterial e características dos pulsos periféricos 2. Estado de preenchimento do leito vascular 3. Estado da perfusão dos tecidos e órgãos nobres 1. Pressão arterial e características dos pulsos periféricos A pressão arterial é a resultante da relação entre o fluxo e a resistência oferecida pelos vasos. Neste caso o fluxo é gerado pelo volume sistólico multiplicado pela frequência cardíaca ou seja o débito cardíaco. PAM (Pressão arterial média) = DC (Débito cardíaco) x RVS (Resistências Vasculares Sistémicas) DC = VS (Volume sistólico) x FC (Frequência Cardíaca) Contudo, apesar de a PAM ser um indicador clínico da perfusão dos órgãos periféricos muito útil na clínica, o seu valor absoluto é condicionado porque só é interpretável: no contexto de acontecimentos médicos recentes (cirurgia, pós operatórios recentes, infecções com expressão sistémica, trauma, queixa de toracalgia, administração de sedativos, doente em ventilação mecânica, …) e quando confrontada com a pressão arterial habitual nesse indivíduo. Para fins epidemiológicos e para a investigação clínica, é clássico definir hipotensão se PA sistólica < 90mmHg, se PAM < 65mmHg e/ou se há uma queda da PA sistólica habitual > 40-50mmHg. Estes dados só têm valor se forem clinicamente contextualizados, p.ex. um jovem, habitualmente hipotenso pode estar sem qualquer queixa e/ou manifestação de hipoperfusão celular apesar de ter PA = 85-55 mmHg, mas ficará sintomático antes da sistólica cair 40mmHg. No outro extremo é possível ter um indivíduo de 70 anos hipertenso não controlado, habitualmente com PA = 190-75mmHg que evidencia sinais de hipoperfusão porque a pressão arterial baixou para 140-70 mmHg. Por esta razão a valorização da pressão arterial deve ser associada à avaliação do funcionamento dos órgãos nobres que manifestam alterações clínicas quando a perfusão é insuficiente, designadamente: Cérebro: Síncope, deterioração do nível da consciência (que pode chegar ao coma), tonturas, alterações do conteúdo da consciência (agitação, alucinações, alterações da memória e da percepção, modificações do comportamento, …). Tem a grande vantagem de permitir uma monitorização imediata / instantânea;
  • 12. Rim: que apesar de representar apenas 4% do peso corporal recebe 20% do débito cardíaco pelo que é muito sensível aos estados de hipoperfusão e traduz essas alterações na variação da diurese que pode ser pronta e facilmente medida. Tem a grande vantagem de permitir uma monitorização fácil e quantificável a médio prazo; Pele: traduzida pelo arrefecimento das extremidades (frequentemente associada a redireccionamento do sangue para órgãos vitais), pela aparência marmórea (a traduzir alterações da microcirculação). Tem a vantagem de ser uma manifestação sensível, facilmente acessível, mas com o inconveniente de ser pouco específica; Territórios com estenose prévia da circulação arterial: coronárias: angor; carótidas e seus ramos: défices neurológicos focais; mesentéricas: angina intestinal; artérias distais dos membros = isquemia, claudicação intermitente. São indicadores de gravidade a sugerir necessidade de intervenção focal imediata. Ou seja, a baixa da pressão arterial associada a uma ou mais destas manifestações consolida a noção de que os órgãos /tecidos estão em sofrimento por alterações da perfusão tecidular. Mecanismos de compensação: Por outro lado o organismo esforça-se por compensar as alterações circulatórias que podem influenciar a perfusão dos órgãos nobres, activando o sistema neuro-endócrino, com particular ênfase para o sistema nervoso autónomo, o sistema renina-angiotensina e, secundariamente, o sistema da hormona antidiurética (ADH). Por isso é importante que na avaliação clínica se pesquisem manifestações que sugerem a activação dos mecanismos de compensação, entre as quais se salientam a taquicardia, outros sinais de hiperactividade adrenérgica (sudação profusa, piloerecção, vasoconstrição periférica) e a taquipneia (sinais de esforço respiratório). Os doentes com reserva fisiológica conseguem compensar a disfunção, mantendo parâmetros de monitorização em valores normais, enquanto as reservas fisiológicas não se esgotam, à custa da vasoconstrição, do aumento do débito cardíaco (aumento do inotropismo e da frequência cardíaca) e da retenção de fluídos (activação do sistema renina-angiotensina e do sistema da ADH). Os doentes com reservas fisiológicas diminutas/insuficientes descompensam rapidamente. 2. Estado de preenchimento do leito vascular O preenchimento do leito vascular é essencial para assegurar um débito cardíaco eficaz e por essa via a perfusão periférica. O débito cardíaco depende do volume sistólico (o volume que o coração ejecta em cada sístole) e da frequência cardíaca (nº de sístoles por minuto). Ora, o volume sistólico, além do inotropismo e da afterload está na dependência do volume intravascular porque depende da préload (indicador indirecto do volume de sangue existente no ventrículo no fim da diástole). DC (Débito cardíaco) = VS (Volume sistólico) x FC (Frequência Cardíaca) VS depende e correlaciona-se com: préload (tensão sobre a parede do ventrículo no final da diástole) inotropismo (força de contracção do miocárdio) afterload (resistência à ejecção do sangue dos ventrículos) Assim se percebe que para optimizar o débito é necessário que o leito vascular esteja adequadamente preenchido (para que no final da diástole o ventrículo esteja bem preenchido), porque o volume sistólico depende do volume de sangue existente no ventrículo no final da diástole. Importa pois saber se, no caso concreto que estamos a tratar, a depleção de volume intravascular é relevante ou não. A melhor forma de o fazer é: Rever a existência de sintomas (sede, tonturas, hipotensão ortostática, …) e sinais clínicos de depleção de volume (colapso inspiratório da onda de pulso, oligúria, colapso jugular…);
  • 13. Enquadrar estas manifestações na situação clínica concreta; Nos casos em que há instabilidade hemodinâmica fazer um teste de sobrecarga (“fluid challenge”) = perfundir 500 mL de cristalóides, em 20-30min, avaliando de 10 em 10 min a resposta da pressão arterial, frequência do pulso e respiratória, pressão venosa central, SatO2, sinais de sobrecarga de volume (edema pulmonar) e evolução da função dos órgãos (cérebro, coração, rim e pele). Uma resposta positiva sem efeitos indesejáveis sustenta o diagnóstico de depleção do volume intravascular. O preenchimento das jugulares é critério major na avaliação clínica do volume vascular. Contudo, só é correctamente valorizável se for feito com o doente com o tronco elevado (de 30 a 45º). Nestas condições aceita-se que o limite superior do ingurgitamento jugular pode ir até aos 3-5cm acima da clavícula. Contudo, se as jugulares forem avaliadas com o doente na horizontal ficam preenchidas, já que as jugulares não têm válvulas e portanto têm todo o sangue que retorna ao coração direito (sem que daí se possa deduzir que há hipertensão venosa). Clinicamente será preocupante se as jugulares, com o doente na horizontal, estiverem colapsadas, o que sugere que há grave depleção de volume intravascular. Pelo contrário jugulares túrgidas, com o doente a 45ºC, traduzem hipertensão venosa que sugere sempre patologia associada. Se a PVC (pressão venosa central) estiver a ser avaliada, medida por catéter venoso central considera-se normal se for < 10mmHg. Na maioria das situações clínicas está entre 0-5 mmHg. PVC > 15 mmHg é hipertensão venosa que na maioria das vezes, mas nem sempre, traduz estados de hipervolémia. Em situação de depleção de volume intravascular o organismo tenta corrigir em primeiro lugar essa deficiência e assegurar a perfusão de órgãos, condicionando a correcção de outros desequilíbrios. Principais causas de depleção de volume Gastrointestinais: Gástricas – vómitos, aspiração nasogástrica Intestinal - pancreática, biliar, diarreia, fístulas, ostomias, drenagem Hemorragia Renais: Sódio e água – diuréticos, diurese osmótica, insuficiência suprarrenal, nefropatias perdedoras de sódio Água – diabetes insípida Pele e respiratórias: Perdas insensíveis Suor Queimaduras Outras – lesões cutâneas, derrame pleural ou ascite Terceiro espaço: Oclusão intestinal ou peritonite Traumatismos com fracturas Pancreatite aguda Hemorragia Obstrução veia central Alterações laboratoriais que sugerem deplecção de volume: Sódio urinário inferior a 25 mmol/L. No caso do sódio estar a ser excretado com outro anião (por exemplo bicarbonato na alcalose metabólica) ou quando há utilização actual de diuréticos é o cloro baixo na urina que indica depleção de volume. Excreção fraccional de sódio inferior a 1. Aumento de osmolaridade de urina.
  • 14. Ureia plasmática desproporcionadamente elevada em relação à creatinina. Acidose láctica (mau prognóstico proporcional ao aumento). Em resumo, podemos dizer que há 3 ”janelas“ para avaliar a volémia, atravez das quais o clínico deve observar sistematicamente o estado circulatório do doente: Uma janela arterial – pressão arterial, hipotensão ortostática, estado circulatório periférico e central. Uma janela venosa – turgescência venosa jugular, hepatomegalia, refluxo hepato-jugular e edemas. Uma janela pulmonar – ortopneia, dispneia paroxística nocturna, sinais de estase pulmonar, presença de S3. 3. Estado da perfusão dos tecidos e órgãos nobres O objectivo da circulação é fornecer à célula O2 e nutrientes em qualidade e quantidade suficiente para assegurar as funções metabólicas essenciais à vida. Se a circulação não é eficaz a célula não produz energia suficiente e todos os processos metabólicos entram em falência. A razão pela qual a utilização de O2 é essencial tem a ver com dois pontos principais: 1º Se a célula não conseguir utilizar O2 não pode activar o ciclo de Krebs e nesse caso por cada molécula de glicose só se produzem 2 moléculas de ATP, ao passo que se a célula for capaz de utilizar O2 pode produzir 38 moléculas de ATP por cada molécula de glicose. Quando não há O2 (condições de anaerobiose), a clivagem da glicose produz duas moléculas de piruvato que se transformam em lactato, que quando acumulado pode provocar hiperlactacidemia. Se a célula puder utilizar O2 o piruvato é encaminhado para o ciclo de Krebs em vez de gerar lactato. 2º De cada vez que se forma uma molécula de ATP, por fusão de ADP + Pi, liberta-se H+ , para o meio interno. A forma normal do organismo compensar esta acumulação de H+ é conjugá-lo com O2, para formar H2O e repor a electroneutralidade. Estes conceitos constituem a base da definição dos estados de choque: Choque = incapacidade da célula utilizar O2 (estado de disóxia celular) Há duas razões fundamentais para que se instale o choque: 1ª o fornecimento de O2 é inadequado (solução: optimizar o DO2 = fornecimento de O2) 2ª a célula está tão doente que já não consegue utilizar o O2 que lhe chega (solução: reconhecer os estados de hipoperfusão o mais precocemente possível para optimizar o DO2 e o tratamento da causa em tempo oportuno) Com base neste conceito afirmaremos que a optimização do fornecimento de O2 é uma prioridade no tratamento de todo o doente crítico e a precocidade do reconhecimento dos estados de hipoperfusão é essencial para que o tratamento “chegue a tempo” de ser eficaz. Assim se percebe que pode haver hipotensão sem haver choque (desde que a perfusão celular seja suficiente para assegurar o fornecimento de O2 de que o organismo precisa nessa circunstância) e pode haver choque (porque há incapacidade de utilização de O2 e por isso células em disóxia) sem que haja hipotensão.
  • 15. Normalmente a célula não extrai todo o O2 do sangue. O que é normal é que extraia apenas o necessário, deixando uma reserva para as situações de crise / necessidades acrescidas. Esse O2 de reserva pode ser medido no sangue venoso sob a forma de SvcO2 (Saturação do sangue venoso obtido por catéter central > 70%). Quando a célula tem necessidades acrescidas e a DO2 não aumenta em proporção às necessidades verifica-se uma baixa da SvO2, a traduzir um estado de disóxia celular (choque) que pode não ter ainda tradução hemodinâmica explícita (choque críptico). De forma equivalente os doentes com reserva fisiológica suficiente podem manter-se hemodinamicamente compensados mas já com disóxia significativa (choque) traduzido pela elevação dos lactatos > 4mmol/L (anaerobiose por incapacidade de utilização de O2). Com base no que fica revisto, do ponto de vista hemodinâmico, o tratamento de todo o doente em estado crítico deve centrar-se em três pontos essenciais: 1º Reconhecimento precoce, que significa valorização dos sinais de alerta (incluindo as manifestações de SIRS, elevação dos lactatos e descida da SvcO2 = estados de choque críptico) e antecipação dos desvios esperados; 2º Optimização da DO2, que significa estabilização do débito cardíaco e assegurar a melhor oxigenação possível, guiado pelas regras expressas nas fórmulas: DO2 = DC (Débito cardíaco) x CaO2 (conteúdo arterial em O2) x 10 DC = VS (Volume sistólico) x FC (Frequência Cardíaca) CaO2 = (Hb x 1,37 x SatO2) + (0,003 x PaO2) 3º Correcção da causa II. Estado de hidratação e do líquido extracelular A avaliação do estado de preenchimento intravascular deve ser associada à pesquisa de manifestações do estado de hidratação celular e extravascular (3ºespaço). Os sinais de desidratação/hiperhidratação refletem sobretudo o estado de hidratação do espaço intracelular e, portanto, são muito dependentes da osmolaridade plasmática. Em situações de aumento da osmolaridade plasmática (desidratação com perda de água superior à de partículas osmóticas) a água do compartimento intracelular desloca-se para o exterior e o doente apresenta manifestações neuropsíquicas (ver “Hipernatrémia”) e cutâneo-mucosas (pele seca, olhos encovados, prega cutânea aumentada). Em situações de perda de partículas osmóticas superior à perda de água há deslocação intracelular da água e a clínica neuropsíquica pode ser fruste até haver colapso circulatório (ex. golpe de calor). Os estados de hiperhidratação cursam habitualmente com acumulação de líquido no espaço extravascular (edemas, derrames nas serosas) embora isso seja mais frequente por alterações oncóticas, hidrostáticas ou da permeabilidade vascular interferindo no equilíbrio entre o líquido intravascular e o terceiro espaço. Nestes casos o doente tem habitualmente um volume circulante efectivo diminuído embora com LEC aumentado (ex. cirrose, insuficiência cardíaca congestiva, sépsis). Interpretação dos desequilíbrios a-b A interpretação das alterações do equilíbrio ácido-base e hidroelectrolítico deve fazer-se com uma sequência universal de avaliação: 1º avaliação dos dados clínicos e antecipação dos desvios esperados; 2º identificação e tratamento de situações de perigo iminente
  • 16. 3º análise sistemática dos dados da gasometria e ionograma. Esta 3º análise pode ser sistematizada, por sua vez, em 3 avaliações: 1. Como está a oxigenação 2. Como está o equilíbrio ácido-base 3. Como estão os iões Como veremos, cada uma destas avaliações passa pela resposta a 3 perguntas. A esta série de 3, decidimos chamar “A Regra dos 3” (Cap. 2). SEQUÊNCIA UNIVERSAL DE AVALIAÇÃO Figura 1.2 - Sequência universal de avaliação ácido-base e hidroelectrolítica. I - Avaliação CLÍNICA • Informação clínica relevante • Avaliação da volémia e hidratação • Antecipação dos desvios esperados II – Identificação de situações de PERIGO IMINENTE • Choque • PaO2 < 50 mmHg • Acidemia grave (pH < 7,1) • Potássio < 2,5 ou > 7 mmol/L • Na+ < 115 ou > 160 mmol/L, sintomático • Ca++ ionizado >1,5 mmol/L III – Análise da GASOMETRIA arterial e do IONOGRAMA 1. Oxigenação 2. Ácido-Base 3. Iões 1. CO2 2. Gradiente A-a 3. Resposta ao ↑↑↑↑ da FiO2 1. Desvio primário 2.Compensações 3. Gap Aniónico 1. Sódio 2. Potássio 3. Cálcio ionizado