1. %HermesFileInfo:E-6:20140330: E6 Aliás DOMINGO, 30 DE MARÇO DE 2014 O ESTADO DE S. PAULO O ESTADO DE S. PAULO DOMINGO, 30 DE MARÇO DE 2014 Aliás E7
Christian Carvalho Cruz
Certascoisas não mu-dam.
Numa tar-de
sufocante de
segunda-feira, o Armando Prado chegou
para mostrar suas fotografias munido de
um velho projetor de slides (alô crianças
embasbacadas com o universo digital, fa-vor
consultar o... vocês sabem). Aparelho
na tomada, espera a lâmpada esquentar, o
carrossel fazendo “tecléc, tecléc” e lá es-tão
elas na parede. As fotos que o Arman-do
fez nas ruas de São Paulo entre 1976 e
1980 e que representam uma mudança na
vida dele. Mas também, vistas com olhos
de hoje, ele acha, alguma imutabilidade
desse ente chamado sociedade brasileira.
Na série composta no total por 55 ima-gens
está a origem do trabalho colorido
do Armando – que depois o conduziria às
polaroides que o tornaram nome grande
nas galerias, à fotografia de moda e publi-cidade
e ao tratamento ainda hoje dispen-sado
pelos amigos: “professor”. Até en-tão,
como fotógrafo do Jornal da Tarde,
ele só fotografava em preto e branco.
Seduzido pela nova fotografia america-na
de William Eggleston, Joel Meyerowitz
e Joel Sternfeld, enxergou na cor a força
necessária para, mais que documentar,
sentir aquela época. “Eram tempos conta-minados.
Tinham matado o Herzog, o Ma-nuel
Fiel Filho, virava e mexia prendiam
colegas do jornal, a gente só ouvia falar de
pau de arara, cadeira do dragão”, ele re-lembra.
“E nas ruas aquela complacência,
aquela alienação... Resolvi fotografar de
outro jeito numa tentativa de lidar com a
indignação que eu sentia.”
As fotos, depois de projetadas em casa
para a mulher, os filhos e poucos amigos,
foram para a gaveta. E lá esperaram por
quase 40 anos. Na hora de resgatá-las, a
indignação continuou. O Armando, ago-ra
com 61 anos, olha para as imagens ilu-minadas
na parede e vai pontuando:
“Ônibus executivo. Sempre as políticas
públicas favorecendo os mais abastados.”
“Mão segurando a moeda. Era uma pro-paganda
da poupança Haspa, cujo dono fu-giu
para Miami levando o dinheiro de 1,6
milhão de pessoas.”
“Menino com dificuldade de locomo-ção
no meio da rua. Vá lá fora e olhe a cal-çada;
dá para um cadeirante circular?”
“E aí você vê a reedição da Marcha da
Família, os conservadores completamen-te
sem vergonha... Eu acho que a gente
continua com os problemas de sempre, o
País pertence aos donos de sempre. Então
lembro sempre de O Leopardo, do Lampe-dusa,
e as célebres palavras ‘é preciso mu-dar
para que tudo fique como está’.”
E ainda se pode elucubrar sobre a soli-dão
de alguns retratados, o sumiço dos
grandes magazines de rua, a senhora as-sustada
engolfada pela escuridão e o céu
demoníaco, ou a majestade forçada do
milico de farda cheirando a naftalina. O
que mudou? O que não mudou? “A partir
de 1980 começa a mudar”, conta o Ar-mando.
“Aquelas pessoas tão caladas,
tão desesperançadas, passaram a ter cora-gem
de me interpelar: ‘Ei, tá me fotogra-fando
por quê?! Vai fazer o que com a mi-nha
foto?!’ Achei que o trabalho estava
concluído e parei.”
Um ano atrás o Armando resolveu foto-grafar
na rua de novo. Comprou uma câ-mera
digital. Mas diz que conseguiu fazer
apenas duas fotos boas até agora. Certas
coisas demoram pra mudar.
“Em 1980, aquelas pessoas
tão caladas começaram a ter
coragem de me interpelar: ‘Ei,
tá me fotografando por quê?!’.
O trabalho estava concluído”
Ensaio | Armando Prado
De mudanças
HARMONIZAÇÃO. Para embalar o lusco-fusco
paulistano dos anos 1970, o autor sugere Tropicália
(Caetano Veloso), Sinal Fechado (Paulinho da Viola) e
O Bêbado e a Equilibrista (João Bosco e Aldir Blanc).