Tada, um médico japonês de agulhas, tratou Carlos após uma lesão no tornozelo. Tada sobreviveu ao bombardeio de Hiroshima aos 6 anos e ainda sente os efeitos na pele. Ele usa poucas palavras para descrever a tragédia, misturando substantivos como "tragédia", "tristeza" e "política". Carlos passou a entender melhor porque não gosta de política, confundindo-a com tragédia e tristeza.
2. Pisei de mau jeito num
desses caminhos da vida e
peguei uma dor no
tornozelo que não passava
com os recursos da
medicina ocidental.
Aconselharam-me a
alternativa que sempre se
busca nessas horas: os
complicados macetes da
medicina oriental.
Daí que adentrou em minha
sala um japonês simpático,
com o simpaticíssimo nome
de Tada.
3. Ele e suas agulhas. Tada espetou-as não exatamente no
local avariado mas em quase todo o corpo. Identificou
problemas no baço – e eu nem sabia que tinha baço
dentro de mim.
Para amenizar o
agulheiro em que me
transformei, falou de
sua vida e de sua
quase morte.
Morava em Hiroshima,
tinha 6 anos quando viu
um sol nascer do chão
e matar todo mundo
em volta.
4. Tada não sabe nem quer
saber por que sobreviveu
– nem perde tempo em
pensar nisso.
Todos os anos, em
agosto, faz silêncio de um
minuto para lembrar o que
viu e não entendeu – e
não entende até hoje.
5. Seu vocabulário em
português é pobre, na
realidade, é paupérrimo.
Não usa verbos, usa
apenas substantivos.
Descreve aquela manhã de
agosto de 1945 misturando
alguns desses substantivos:
tragédia – tristeza – política.
6. Para ele, política não é apenas companheira da tragédia
e da tristeza.
Mais do que um sinônimo, é uma causa.
Esqueci de dizer que rosna
algumas interjeições, como
“ai”, “ui”, “oooh” e uma variante
dessa última, que é “iiih”.
O resultado é que o meu
diálogo com ele corre
naturalmente, pois insisto
também nas mesmas
interjeições, sobretudo
na primeira.
7. Diz ele que a sua pele
ainda tem vestígios
daquela manhã.
Suas agulhas também.
De maneira que me sinto,
de certa forma,
um sobrevivente
de Hiroshima.
8. Passei a entender por que
não gosto de política.
E a confundo com
tragédia e tristeza.
Carlos Heitor Cony
9. Imagens recebidas por email Música: “Memories”– Andre Rieu
Formatação: Christina Meirelles Neves