O documento é um livro de poesia de Cláudio Schuster que reúne poemas de livros anteriores e novos poemas. Cláudio Schuster é um jornalista nascido em 1962 em Pelotas (RS) que vive em Florianópolis desde 1986.
2. livro de poesia reúne poemas dos livros crime perfeito (edição do autor, 1994), risco (edição
do autor,1997) e bluz (Editora Bloccos, 1999), além de alguns feitos posteriormente.
Cláudio Schuster é jornalista. Nasceu em 1962, em Pelotas (RS). Mora em Florianópolis
desde 1986.
agosto de 2013
5. de medo do escuro
morro de altura então
nem se fala de tudo
me assusta um sussurro
e gelo todo silêncio
me arrepia a alma penada
que salta pela janela do quarto
do pânico que entro
com um simples
beijo
11. quando ela descasca o sol
e come seu calor
derrete um cálice
em chuvas cortantes
como dentes de cristal
que cravam em colinas de sangue
temporais de sorrisos
que afundam de rir
arcas lotadas
de mim
14. giro
360 graus
de febre
suo vinho
me enrolo
nos fios
de alta tensão
e ilumino
um sabor
com a cabeça
nos pés
que dançam
descalços
na calçada
de cacos
de vidro
que brilham
na noite
como pequenos dias
derramados
sobre o solo
de uma guitarra
que explode
minhas veias
em meteoros
que grito
sob o riso
que me bebe
16. a obviedade
obviamente chutando a poesia
procurou-me na seção de achados
ora
tenha paciência!
perdidos não se encontram
na seção de achados
talvez na sessão de cinema
nunca na de achados
que achar é fugaz
e um tremendo azar
para quem quer apenas
estar perdido
18. ela me fodeu
louca
e estraçalhadamente
e tanto
que sobraram peças
quando tentei remontar
o que restou
na manhã embaralhada
será que por isso
saí flutuando?
20. lá vem um poema
se aproximando
desajeitado
tropeçando
cambaleando danças
acho que esse poema bebeu
se abraça em mim
e de repente
saímos pela rua
dançando
tropeçando
nas margens sóbrias
das calçadas
e zigue
e zague
descalços
rindo à toa
de nossos passos
humorísticos
acho que bebi
um poema
bêbado
26. duelo à sam peckinpah
o desejo tem o sabor
de uma nudez esvoaçante
montada na bala de um beijo
veloz como quem
num duelo com deus
saca antes da dúvida
27. o copo gira
com meus olhos dentro
o blues de buddy guy
é uma trepada
numa noite louca
de raios nas minhas veias
o mundo é uma besteira
dita por alguém
que nunca beijaria esta noite
no meio das pernas
hoje eu não saio
eu bebo meus olhos
que te olham
bêbados de música
hoje dá pra rir
do mundo
depois
não sei
e nem quero saber
28. era uma vez
uma saudade
de viver
como se só a vida
existisse
31. nada que reflete
arremessa
ameaça
estremece
a minha pressa
não permite
ver o visto
sem ver o vasto
o que não remete
não me interessa
não me atiça
o que não existe
é relativo
se num dia me matam
no outro
estou vivo
32. dia de mais nada
dormingar
e chover
sobre você
33. as palavras não me fogem
pois não as prendo
não me faltam
porque são livres
estão aqui
nestes poemas
apenas
para se divertir
34. toque
do toque
que me loque
um lance
num pique
de moleque
e o queéque
eu faço
em chequemateme?
36. e então
todo o mundo parou
pra trepar de dia
na hora do trabalho
e à noite
o mundo dormiu
exausto
feliz
e não era mais
o mundo
quando acordou
era uma porra louca
voando no espaço
pra fecundar o sol
que nascia
da minha garganta
37. a vítima se aproxima
apunhalando o chão
como se apenas caminhasse
como se somente fossem sapatos doces
a vítima assalta meus olhos
apontando mísseis nucleares
como se apenas olhasse
como se somente fossem olhos os seus
a vítima esquarteja meu corpo
deslizando uma serra elétrica
como se apenas tocasse
como se somente fosse uma boca a sua
a vítima parte
sorrindo
como se apenas houvesse
cometido um avesso
38. walking the blues
com um pouco de silêncio
o mundo poderia ouvir
o compasso de teus saltos finos
sobre a rua deserta
um pouco mais de silêncio
e se ouviria nítido
como um absurdo
o blues que pensei
39. depois da meia-noite
é outro dia
é outra noite
depois do meio-dia
é outro
é meio
é coisa nenhuma
depois
quem sabe
mais tarde
se não for tarde
demais
43. as farsas estão cansadas
de ser repetidas
reprisadas
em sessões contínuas
de tortura
de tontura
da história
44. acabou
não há mais
o que escrever
o dito não foi vivido
a poesia não cortou
o sangue não correu
não saciou
a boca seca
calada
45. as luzes dançam
com o planeta
sob meus sapatos
que reclamam
que bebi demais
e ouvem
"mas não o suficiente
não o suficiente
meus caros
pra ver tudo duplo
como é
e não parece ser"
46. para onde me viro
lá está ele
real
e estupidamente desenhado
o mundo
47. não caibo
nas palavras
nas frases
na poesia
e não consigo
inventar nada
tudo já existe
ou não
beije-me
desafogue
minha língua
de tudo
o que já foi
dito
49. a chuva
não simboliza nada
a chuva
é água que entra
e sai
e cai
sobre uma dor
real
que inventamos
50. o homem acordou
com o som nos olhos
e os olhos no teto
de seu pequeno mundo
a mulher resmungou
pedaços de palavras
o homem riu
porque pensou
ter ouvido o terço
de trás para frente
riu mais
porque pensou
que não tinha diferença
do terço dito na ordem
o som aumentou
o teto abaixou
o terço no quarto
o homem empurrou seu corpo
para fora da cama
calçou sua bola de ferro
pois estava frio
e saiu pelo corredor
para reclamar da invasão
a seu pequeno mundo
a mulher que abriu a porta
disse que estranhava sua demora
para vir escutar música
escrever qualquer coisa
nas paredes
e usar a boca
para coisas mais interessantes
do que dizer o terço
na ordem ou ao revés
enquanto ouvia
atingiu sete pontos
na escala richter
51. a mulher pegou a bola de ferro
e colocou no cabide
pois pensou que fosse a causa do frio
e da tremedeira
que derrubou os dias
do calendário
em que cristo olha o teto
de um mundo pequeno
no apartamento do homem
o resto da noite
poderia levar richter
a repensar sua escala
pela manhã
cabelos atirando para todos os lados
atravessou o corredor
na contramão
das galinhas
patos porcos e sapos
matinais
a mulher preparava o café
e tudo o que o homem falou
foi assistido em silêncio
pelos dias do calendário
espalhados pelo chão
pela mulher
que cobria os ouvidos
com algodões amarelos
e pelo próprio homem
entorpecido com o eco
das implosões simultâneas
que vinham das noites seguintes
os dias
desde então
não mais existiram
varridos pela mulher
para debaixo do tapete
em que o homem voou
53. um instante
ludibriou
os ponteiros
cordeiros de deus
na distração do tempo
um momento fugiu
com um corte no olhar
fazendo jorrar
rios ameaçadores
e o mundo
virou um ponto
incapaz de deter frases embriagadas
pelos cachos de vinho
que colhi de tuas veias
54. lenda
consta que deus
antes de ditar os mandamentos
fez um teste com as aves
proibiu rasantes
estabeleceu um teto
limitou distâncias
censurou canções
condenou timbres
cobriu de culpa os cortejos
por isso
enquanto pardais trepam na rua
águias perdem-se nas distâncias
andorinhas veraneiam manobras ousadas
e sabiás cantam à sombra
temos medo das alturas
o que é uma sensação
que demonstra a utilidade
do teste divino
pois deus percebeu
que não era um publicitário
e contratou profissionais de primeira
capazes de nos convencer
da anomalia de nossas asas
que cresciam por dentro
e das vantagens de pedirmos perdão
por comprarmos um produto mais caro
mas que
dizem
lava mais branco
as roupas que usaremos
no céu
55. o menino
pensava seriamente em atirar-se
num abismo imenso
para assistir seu funeral
e ver o quanto chorariam por ele
e dele sentiriam falta
quando cresceu
viu que o lugar
não tinha mais que dois
ou três metros de altura
achou graça
e para zombar-se
pulou
quebrou uma perna
recebeu visitas
atenções maternais
assinaturas no gesso
mas nada comparável
ao desejo infantil
de querer jogar-se
de uma ilusão
56. ela sussurrou
ao meu ouvido
que era uma serial killer
que meu número era 17
que sentia muito
pois eu dançava bem
eu danço bem
disse
pois sou um tira
de filme preto & branco
nos afastamos para o duelo
mas rapidamente
voltamos ao beijo mortal
são engraçadas as coisas que às vezes
vêm à cabeça da gente quando estamos
dentro de alguém
57. por engano
acho
ela comeu minha poesia
e começou a rir
como uma panela
cheia de milho pipoca
e trocou o garfo
pelo tridente
a faca pelo punhal
e saiu
matando todas as saudades
dos pratos
que nunca havia comido
pois nunca estão nestes cardápios
mal humorados
59. o reflexo de uma mulher
na poça d’água
engole a madrugada
como espadas
como elefantes
que saltam da cartola
de um bêbado
levito sobre a calçada
e desapareço
noite a dentro
60. pensava
nos estoque de poesia
que ainda resta
se ainda resta
insanidade suficiente aos músicos
imagens nos filmes
que garimpem lágrimas
e sorrisos infantis
fazia sol
e adormeci
sob a sombra da interrogação
62. a luta começa
com meu nocaute
depois
vêm os rounds
e eu nu
do último segundo
até o primeiro
não sou Tyson
sou Chaplin
na lona
ao soar do gongo
danço com porradas
na pesagem
mais leve do que nunca
solto gargalhadas
63. esgano o mundo
como um lobo faminto
e alimento
o grito
com palavras
que solto
da prisão perpétua
dos dicionários
65. às vezes
escrevo coisas
que não entendo
tanta vezes
você lê essas coisas
e não entende
mas nossos
nãoentenderes
juntam-se
beijam-se
e riem
por razões
que não sabemos
e que talvez
nem razões
sejam
70. convidei o mar
para dançar descalço
sobre meus pés estelares
a canção lunática
que guarda escondida
sob o atlântico disfarce
de um aparente vaivém
71. frio
e no lixo
o sol passa
pelos furos
de um velho guarda-chuva
caindo
em gotas de luz
sobre palavras
que comem bergamota
e se esquentam
como lagartos
72. eu bem que gostaria
de ser normal
se o normal
fosse ser
como este grito
que solto de ti
73. por tuas cordas vocais
desço
rodopio
rodogrito
e amorreço
no calor
do teu canto
flambado
74. os guizos
de um poema
cintilam cheiros
que te fazem dançar
sobre meu beijo
secular
sob meu tempo
circular
escultor
de seixos
no ar
75. talvez tudo
não dê em nada
não dê um dia
os pedaços
que junto
todos os dias
por via das dúvidas
81. vim vida da água
sou líquido e amo
meu deus meus dedos nos teus
minha língua me deixa brincar
sorrio sou rio que corre e já sou mar
viro chuva e orvalho na pele
suor e lágrimas à flor da pétala
que cobre meu corpo copo de vinho
venha me beba bêbada me tenha
venha me tenha bêbado de você
86. palavras desesperadas
formam um dia na palma da mão
um dia que recebe outro nome aqui
que nome você daria a um outro dia?
o resto resta lá fora
indescritível
com qualquer coisa real
só o que não há
deve ser descrito
para ser visto
escrevo para chegar ao poema que não há
talvez chegue a ele
sem chegar a ninguém
minha poesia
minhas palavrasdedesordem
minha ilusão em você
o vício de imaginar que posso viciar você com inquietude crônica
ilusão em minhas palavras
tão desesperadas que são minha única esperança
de ver o pássaro ver
de ver o pássaro verde
saudar a grande orgia do mundo num dia
que nasce na palma da mão
movido pela poesia
existo pela inexistência
87. a luva despe a mão
na uva leva à boca
a lua fruta o gesto
veste o rosto visto
do ponto de vista
deste ritmo livre
a poesia vive
e eu de persegui-la
89. o pássaro
humorista e morto em minhas mãos
me falou de amores ventanias verões pedradas de garotos
contou piadas e achou graça
quando disse que ia contar nosso encontro numa poesia
só você me vê e ouve assim
e isso tudo não faz qualquer sentido não existe é impossível
que é do que me interessa falar
falei
voou
sorrindo
e morto
90. só preciso de um poema malcriado
para dizer foda-se essa porra toda
dou vivas ao palavrão
bem-vindo ao meu poema
que eu quero mais é mandar deus à puta quem nem o pariu
91. tomava café e ele veio falar sobre a poesia das pequenas coisas
talvez fosse apenas uma desculpa de um solitário
talvez estivesse atraído apenas pelo cheiro de café
mas tudo bem
bebemos juntos
estava frio
sorrimos como meninos para mulheres bonitas
soltamos baforadas sobre as mãos geladas
comentei que do ponto de vista daquele instante
o andar decidido das pessoas parecia absolutamente sem sentido
ainda mais quando o cachorro curtia um facho de sol
por onde todos passavam como ponteiros
para ele ainda faltava alguma coisa na cena
algo que ninguém visse
que só pudesse ser escrito
foi quando o cachorro sorriu
depois falamos besteiras sem direção
tão deliciosas como baforadas sobre mãos frias
e por fim
depois do último gole
antes de sair em busca de algum facho de sol
disse-lhe que se fosse um dia como ele
um poema
num dia como aquele
não pensaria duas vezes
aliás nem pensaria
antes de sentar com alguém numa mesa de bar
para bebermos poesia expressa
que encanta o ar com seu perfume de café
92. deixei o mundo
que se foda
vou ser um poema
não direi coisa com coisa
não darei o endereço
quem quiser me achar
que se perca
93. ninguém cabe no mundo
nem em si
ou num poema
a gente simplesmente
não tem cabimento
94. beber vinho
uvas no lugar de estrelas
num céu verde
tão verde
imensa infinita parreira
para nunca saber
se dormimos ou estamos acordados
quem está dentro de quem
em pé ou deitado
girando só estaremos girando
luminosos pássaros em bando
cagando sobre a bolsa de nova iorque
95. futebol no barro
banho de chuva
uva com melancia
não faz mal
o que mata mesmo
é perder pro tempo
97. os presos estão rebelados
e sobre o telhado sem telhas onde estão
há um homem morto
o helicóptero da polícia
iça o homem morto
o homem morto que gordo flutua no ar
com sua bala no corpo do helicóptero da polícia
o corpo pousa num campo de futebol de várzea
no meio do campo onde começam os jogos e o plantão da Tv termina
pois não é a transmissão de um jogo decisivo
entra a programação normal os comerciais as liquidações
fora de cena longe do que existe
pousa um quero-quero ao lado do homem morto
e sobre seu corpo gordo o canário que fugiu de uma gaiola
e teve mais sorte que seu camarada que só voou morto
informa o plantão de inutilidade pública
da poesia que flutua crivada de ilusão e morte
direto do campo de futebol sem futebol do homem morto
que flutuou com sua bala
sobre a cidade que não viu nada pois via tudo pela TV
102. não entro
não empurro
vou ficar na rua
se chover me molho
me seco quando vier o sol
na rua é que fico
não entro
não empurro
que negócio é esse de porta me dar ordens?
104. silêncio
ouço o delírio
os elefantes tocam blues
calo as horas
lincho os dias
lancho as notas
ela canta como lágrimas
sinto-me vivo
chamem seus amores
por favor
é uma emergência
os elefantes tocam blues
é preciso ouvir
Linch dirige seu carro
o vento contra o rosto de meus delírios
ela canta e é sua carícia lenta na imagem impossível
estou aqui a ouvir-me
leia-me ao sabor do impossível sabor
descrevo minha loucura com a língua na sua
por favor é uma emergência
isso aqui é um grito
pois os elefantes tocam blues
ela canta como quem embala a morte delicadamente em suas mãos
e se ninguém vier
dançarei sozinho
105. se tenho sede
vou com sede ao pote
tudo acaba
meu bem
também sou pote
também tem sede
a morte
107. jogo os olhos pra fora do corpo
que liberdade há no rosto?
de cima da loucura vem teu beijo
e corro e corro que não paro
que é preciso dizer que no fim há o fim
que liberdade virá depois?
a sanidade cansa
de cima de teu beijo mais loucura vejo
e corro e corro que não paro
que liberdade haverá
antes de te alcançar?
111. corro e beijo pedras
brilho pois tem sol
e peixes pulando em mim
112. que me importa o quanto já se falou de amor
como pode ser lugar comum o incomum da gente?
estou a fim de te falar uma longa frase de amor
pra que você chegue ao fim cansada e durma sobre mim
mesmo que eu acorde de uma longa frase de amor
cansado com tua falta dormindo sobre mim
que me importa?
estou a fim de te falar uma longa frase de amor
do amor que me faz humano e mesmo sem amor amante
116. meu bem maybe
baby talvez
rime em inglês
não sei
quem sabe
em que língua calar
depois de se deixar
dentro de alguém?
dá vontade de dormir sem dormir
palavras sonâmbulas
dançam com óvulos
e fazem filhas
e lágrimas correm como crianças
lágrima
que outra palavra assim
tão linda em minha língua
poderia trazer tal gosto de sal?
moondo da lua
venha me visitar
aprendeu com o sol a me esquentar
virei lagarto
se alguém olhar atravessado
e estiver preocupado
que prenda os versos
motim
fuga em massa
cubro você com cobertores que incendeiam a rebelião
durma assim como se fosse acordar criança
sonhe como se nunca fosse acordar
off
117. on
descansar é bom
entre demências e dormências
flutuam minhas mil cabeças
moderno dilema eterno
arder ou não arder
no fogo do inferno?
temperado pro banquete
levo comigo um bilhete
ao diabo bom apetite
piano
cobras
joaninhas verdes
gritos
lábios
tiros
é cedo para dormir
é tarde para dormir
afinal
a noite acorda
ou dorme de manhã?
ou é
a noite
o café
da manhã
e somos
sonhos
servidos
quentes?
118. giro como a terra
em torno
de uma só(l) poesia
120. poemas não são escritos
são pintados
são imagens que vêm do exílio
para criar a breve ilusão
de que não somos cegos
121. gostava das imagens
que os delírios exibiam
nas febres de 40
dos cinco anos
gosto de sonhar
gosto de cinema
não gosto de AAS
122. eu saí correndo
e aquele amor louco
como um brócolis bom para o coração
me perseguia
e ria da minha cara
de fósforo apavorado
aquele louco amor
me amava
loucamente
e dançava
como uma pitanga pirada
que nem sabia dançar
e ria muito
deslizando
como uma bola de ferro
sobre uma janela de vidro de febre
fazendo voltas
em minha respiração
e em minhas pernas
com uma corda da guitarra
do Jimi Hendrix
e sorriu
como quem lambe o sol
quando caí como chuva
e rolei como um morango com chantilly
para sua boca
123. vou beijar ameixas na boca
e ver se viro uma gueixa louca
para que você me tenha
como uma lenda
124. cheguei ao bar
sentei ao balcão
e pedi uma dose de batom vermelho
puro
sem gelo
nacional ou estrangeiro
dei de ombros
já havia bebido tantos vestidos pretos
naquela madrugada
por outros bares
que nem sentiria mais
o gosto de um bom batom vermelho
era o que achava
até perceber que a temperatura
subiu logo aos 40 graus
assim que o garçom colocou
o termômetro no copi
meus caninos cresceram
pela primeira vez
em séculos
e eu bebi aquela página
vermelha
num gole só
com todos me olhando
num inglês em rotação alterada
pelo tempo
de repente
tudo ficou em silêncio
e todos tiveram que ouvir
aqueles beijos
descendo
rubros
pelo meu pescoço
pelo meu peito
ninguém respirava
qualquer outra cor
e o batom
vermelho
125. desceu ainda mais
me lambendo
e sugando
por dentro
enquanto eu cravava os dentes
no copo
sem notar
que todos saíam
em câmera lenta
deixando seus vestidos de noiva
seus pijamas
e dentaduras
nos copos
sobre as mesas
trêmulas
126. seus olhos
cortaram minha lâmina
e você me serviu aos pedaços
a você
e seus desejos
musicais
me perfuraram
e cortaram
como talheres sem fim
127. então eu disse
fodam-se
e nenhum dos pingos nos is entendeu
e os pingos
foram fazer queixa
ao bispo dos pingos
e eu disse
foda-se o bispo
os pingos disseram
que iriam me processar
por desacato
ao bispo dos pingos
porra do caralho
filhos da puta
fodam-se todos
os pingos
nos is
128. primeiro
só o baixo
depois
o beijo
contornando
com os outros instrumentos
os limites
que não existem
do perfume
das cerejas
que me embalam
como anjos endiabrados
na rede movediça
que me enterra no céu
do teu blues
como num estágio para a morte
129. uma pipa
erguia o menino
que ria da vida
lá embaixo
descer?
só quando o tempo
romper o fio
para ele cair
leve
dançante
como uma folha de outono
130. que lei explica
a gravidade desse nosso caso?
ao se juntarem
nossos corpos
mais pesados
que esse ar pesado
sobem
131. não vivo sem você
meu clichê
não vivo sem você
meu cachê
não vivo sem você
meu sakê
não vivo sem você
e já esqueci porquê
132. escrevo para mudar
então mudo de linha
ali encontro
uma ilusão
sorrindo
zombando do mundo
imenso globo ocular
de um olhar perdido
escrevo para mudar
então mudo de linha
assim mudo de mundo
133. que nada
é a preguiça
que encurta
meus versos
as palavras
que se virem
poesia
134. dia de sol e vento
velhos papéis voam para o além
e outros vêm
ao acaso da alma
ao sabor das horas
sinto o gosto
que ainda nem sei
136. não me leve
a lugar algum
nem me fale
algo incomum
diga boa noite
acorde comigo
simples assim
como um sol
nasce todo dia
nos horizontes
mares
e folhas
de desenhos infantis
simples assim
como um sol
dentro de mim
138. um escritor que não ama
escreve um lindo poema de amor
e sem entender de onde vem
chora
e adormece só
sem respostas
sem ver
sem beijar
seu amor
sorrindo
dormindo
profundamente
ao seu lado
140. para Leonard Cohen
velhos poetas
caem sobre o mundo
envelhecido
de novidades sufocantes
chovem suas canções
cortam meu coração
sufocado por sonhos
envelhecidos
e aos prantos
lavo minha alma
para o caso
de chegar alguém
141. rime qualquer coisa
com coisa alguma
mas arrume um jeito
de me fazer feliz
bata todos os recordes
tome anabolizantes
chegue antes
me faça feliz
na contramão e embriagada
na velocidade da luz
me jogue pra fora da estrada
me faça feliz
politicamente incorreta
a meta justifica os meios
corrompa meus medos
me faça feliz
cometa pecados
me mate e me engula
me come com gula
me faça feliz
não meça as palavras
não seja educada
me mande a merda
só me faça feliz
142. doenças verdadeiras
doenças inventadas
tudo mata
tristezas verdadeiras
alegrias inventadas
tudo arrasa
verdades absolutas
mentiras relativas
tudo acaba
crimes passionais
guerras venais
tudo ou nada
notícias vendidas
notícias compradas
tudo cala
esperanças perdidas
teu olhar que me acha
tudo é pouco
nada basta
143. bebeu como se fosse água
que um cara sem nada para dar
trouxe em sua jarra vazia
saciou-se com a miragem
que um cara sem nada para dizer
disse em sua poesia
provou do mundo
que um cara sem nada para fazer
fez em apenas um dia
e descansaram
domingos a fio
145. aonde você vai
tão depressa
que não possa
cair na desgraça
dessa noite lenta
que me abraça?
146. e eu que perdi meus dentes de sabre
vagueio até o dia em que tudo se acabe
147. eu só queria
um café à tarde
e que o sol me tomasse
também
e o açúcar do fim
não fosse um doce fim
dos sonhos
que mal provei
148. como vive
um vivente
a beber como água
a aguardente
do amor?
cambaleantes
dançam nas calçadas
embriagadas
as verdades do amor
dançam
e mentem
e creio
e rezo
como vive
um vivente
sem beber como água
a aguardente
do amor?
embriagado
cambaleante
escrevo torto
e atordoadamente
a dúvida
é para os sóbrios
para os sábios
lábios ardentes
línguas incandescentes
palavras delirantes
loucas
e impossíveis
roucas
e improváveis
tantas
e tão poucas
lentas
e insanas
149. a sussurrar
sorrindo
que o amor
não passa
de um velho
e solitário
poeta bêbado
teimando
infinita
e aguardentemente
em embriagar verdades
e rimar agente