EDUCAÇÃO PARA VALORES: UMA ALTERNATIVA PARA A CONVIVÊNCIA HUMANA
1. 1
ESCOLA SUPERIOR DO MINISTÉRIO PÚBLICO
FERNANDA BROLL CARVALHO AHMAD
EDUCAÇÃO PARA VALORES: UMA ALTERNATIVA PARA A CONVIVÊNCIA
HUMANA
PORTO ALEGRE – RS
2006
FERNANDA BROLL CARVALHO AHMAD
2. 2
EDUCAÇÃO PARA VALORES: UMA ALTERNATIVA PARA A CONVIVÊNCIA
HUMANA
Trabalho apresentado como requisito para conclusão
do Curso de Pós-Graduação, Especialização em
Direito da Criança e do Adolescente da Escola
Superior do Ministério Público.
Orientadora: Professora Cládis Bassani Junqueira
PORTO ALEGRE – RS
2006
Fernanda Broll Carvalho Ahmad
3. 3
EDUCAÇÃO PARA VALORES: UMA ALTERNATIVA PARA A CONVIVÊNCIA
HUMANA
Trabalho apresentado como requisito para conclusão
do Curso de Pós-Graduação, Especialização em
Direito da Criança e do Adolescente da Escola
Superior do Ministério Público.
Aprovada em:
BANCA EXAMINADORA
Profo Dr Jorge Trindade
Profa Cládis Bassani Junqueira
4. 4
DEDICO este trabalho aos meus filhos GABRIEL E
LÍVIA, que, além de terem sido a inspiração desta monografia,
são a razão de meu sentir, pensar e agir. Dedico também ao
meu esposo NEMER, que, diariamente, simplifica nossa tarefa
de viver, tornando-a menos árdua e mais feliz.
5. 5
AGRADEÇO aos queridos FAMILIARES e AMIGOS,
que contribuíram com seu afeto, incentivo e apoio, sem os quais
esta tarefa seria mais difícil.
Agradeço de modo especial, a minha querida
ORIENTADORA, professora Cládis, pelos momentos
insuperáveis de dedicação, que me proporcionaram lições para
a vida toda.
6. 6
RESUMO
Os objetivos básicos da investigação consistem em identificar, por meio de entrevistas
pessoais (com alunos, seus responsáveis, professores e Direção da escola), visitas de
observação da escola e análise do regimento escolar e de fichas disciplinares individuais de
alunos, a participação da família e da escola no contexto da violência escolar, enfatizando a
função da educação, especialmente quanto à construção de valores. A problemática escolhida
como objeto de estudo derivou da observação das dificuldades enfrentadas pela sociedade
atual diante de dois desafios: a violência escolar e as funções da educação familiar e escolar
da atualidade, com ênfase à atribuição de promover uma educação que favoreça a
convivência humana. Ao selecionar as percepções dos alunos, responsáveis e educadores,
visando a identificar as múltiplas formas de violência escolar, bem como observar as relações
entre estas violências e as questões ético-valorativas, o estudo alerta sobre os riscos da
banalização da violência escolar. Na segunda parte, apresentam-se os resultados da
investigação, onde constatou-se que nas sociedades atuais, especialmente nas escolas, a
temática da construção de valores tem sido trabalhada de maneira inadequada, tampouco se
verifica política pública de valorização do tema e formação profissional nesse sentido.
Observou-se que a educação escolar atual foca sua atuação no aprimoramento intelectual,
negligenciando quanto ao desenvolvimento das qualidades humanas. Quanto à família,
verificou-se a tendência de tentar transferir algumas de suas atribuições para a escola. E,
assim, nenhuma das instituições assume a responsabilidade de contribuir para a formação do
caráter das crianças e adolescentes, impedindo, assim, a efetivação do Direito à Educação
Integral, na forma proposta pela Constituição Federal, pelo ECA e pela Lei de Diretrizes e
Bases da Educação. Observou-se, ainda, que as crises de identidade e de autoridade da
família e da escola, bem como o relacionamento tenso e confuso entre ambas e entre estas e o
Sistema de Justiça representam entraves no trato da violência escolar. Verificou-se a
inexistência ou a freqüente ineficácia da intervenção de profissionais de áreas estranhas à
educação no cenário da escola e o desconhecimento dos integrantes da comunidade escolar
pesquisados acerca do conteúdo do ECA. A importância do trabalho consistiu em chamar a
atenção para a necessidade de ser fomentada, no âmbito familiar e escolar, a educação para
valores universais, como a tolerância, a solidariedade, a fraternidade e a justiça, visando
favorecer a convivência qualificada a fim de combater e prevenir atos de violência e
indisciplina na escola. No mesmo intento, pretendeu sugerir a maior aproximação entre a
comunidade escolar e os profissionais de áreas diversas à educação, especialmente os
membros do Ministério Público. E, quanto a estes, antes de pretenderem divulgar a proposta
de universalização de direitos do ECA, atenta para necessidade de além de introjetarem os
princípios basilares do Estatuto (a proteção integral e a prioridade absoluta) em seu pensar e
em seu agir, aprimorem sua formação, ampliando-a com a inclusão de conteúdos
originalmente efeitos a outras áreas do conhecimento, como a educação, a psicologia (social e
educacional) e a antropologia.
Palavras-chave: Família. Escola. Violência escolar. Valores. Convivência humana.
7. 7
LISTA DE QUADROS
Quadro 1 – Transgressões e punições constatadas em escolas nacionais ............................... 71
8. 8
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
BM – Brigada Militar
CF – Constituição Federal
CT – Conselho Tutelar
ECA – Estatuto da Criança e do Adolescente
FICAI – Ficha de Comunicação de Aluno Infreqüente
MP – Ministério Público
PM – Policial Militar
PROERD – Programa Educacional de Resistência às Drogas e Violência
9. 9
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO ................................................................................................................. 11
PARTE I – QUADRO TEÓRICO DE REFERÊNCIA
2 VALORES, ÉTICA E CONVIVÊNCIA HUMANA ...................................................... 16
2.1 O ser humano integral: razão, emoção e valores ........................................................ 16
2.2 Uma Abordagem Histórico-Filosófica da Ética ........................................................... 22
2.3 A convivência humana possível: uma abordagem sociológica das éticas .................. 28
2.4 Ética e Valores na Educação .......................................................................................... 30
3 A FAMÍLIA E A EDUCAÇÃO PARA VALORES ........................................................ 38
3.1 O eclipse da família e a tendência de transferir suas responsabilidades ................... 38
3.2 A Crise de Autoridade nas Famílias e a Distorção Interpretativa do Estatuto da
Criança e do Adolescente ..................................................................................................... 41
3.3 A questão dos valores na família faz parte do direito à educação .............................. 43
3.4 Criar, cuidar, educar: com quem contar? .................................................................... 45
3.5 A Educação Para Valores ............................................................................................... 47
4 O VALOR DE EDUCAR: REFLEXÃO ACERCA DA EDUCAÇÃO ESCOLAR ..... 49
4.1 O que é educação: proposta reflexiva em torno da tarefa educativa ......................... 49
4.2 O Pensamento Sistêmico ou a Complexidade ............................................................... 51
4.3 Educar não é transferir conhecimento ......................................................................... 54
4.4 A Tensão Entre Autoridade e Liberdade e a Crise de Educação ............................... 56
5 A VIOLÊNCIA ESCOLAR .............................................................................................. 61
5.1 Violência nas escolas: conceitos e variáveis ................................................................. 61
5.1.1 Definições do Termo Violência ..................................................................................... 63
5.1.2 Classificação .................................................................................................................. 65
5.1.3 Variáveis Endógenas e Exógenas .................................................................................. 67
5.2 Regras na escola: transgressões e punições ................................................................. 70
5.3 Relacionamento Tenso e Confuso Entre Escola e Sistema de Justiça ....................... 72
5.4 Políticas Públicas para a Redução da Violência Escolar ............................................ 76
PARTE II – CONTRIBUIÇÃO PESSOAL
6 METODOLOGIA .............................................................................................................. 81
6.1 Tipo de Pesquisa ............................................................................................................. 81
6.2 População e Amostra ...................................................................................................... 81
6.3 Procedimento e Instrumento ......................................................................................... 82
6.4 Definições Operacionais ................................................................................................. 83
6.5 Coleta de Dados .............................................................................................................. 84
6.6 Análise de Resultados ..................................................................................................... 85
7 RESULTADOS E DISCUSSÃO ...................................................................................... 87
7.1 Observação da Escola ..................................................................................................... 87
7.1.1 Dados Gerais Sobre a Escola ......................................................................................... 87
10. 10
7.1.2 Ambiente Escolar ........................................................................................................... 87
7.2 Entrevistas ....................................................................................................................... 90
7.2.1 O Insucesso da Família Como Instituição Socializadora .............................................. 90
7.2.2 A Crise de Autoridade da Família e a Distorção Interpretativa do ECA .................... 103
7.2.3 Reflexão em torno da tarefa educativa: as crises de identidade e de autoridade da
escola ............................................................................................................................................
... 108
7.2.4 Alunos, família e escola: encontros e desencontros .................................................... 121
7.2.5 Relacionamento da Escola Com Profissionais de Áreas Diversas à Educação ........... 131
7.2.6 Violência e Indisciplina Escolar .................................................................................. 138
7.2.7 A Percepção da Atuação Ineficaz do Ministério Público no Cenário da Violência Escolar
............................................................................................................................................... 156
7.2.8 A Ausência de Proposta Para Valores na Escola ......................................................... 161
8 CONCLUSÕES E CONSIDERAÇÕES GERAIS ........................................................ 165
8.1 Os Quatro Pilares da Educação ................................................................................... 170
8.2 A Descoberta do Outro ................................................................................................. 172
8.3 Tender para objetivos comuns ..................................................................................... 173
9 IMPLICAÇÕES E SUGESTÕES ................................................................................... 177
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .............................................................................. 183
ANEXOS .............................................................................................................................. 188
11. 11
1 INTRODUÇÃO
Os objetivos básicos da investigação consistem em identificar, por meio de entrevistas
pessoais (com alunos, seus responsáveis, professores e Direção da escola), visitas de
observação da escola e análise do regimento escolar e de fichas disciplinares individuais de
alunos, a participação da família e da escola no contexto da violência escolar, enfatizando a
função da educação familiar e escolar, especialmente no que diz respeito à construção de
valores.
A problemática escolhida como objeto de estudo dessa monografia derivou da
observação das dificuldades enfrentadas pela sociedade atual diante de dois grandes desafios:
como lidar com a violência escolar e quais seriam as funções da educação familiar e escolar
da atualidade, com ênfase à atribuição de promover a educação para valores.
Ao selecionar as percepções dos alunos, responsáveis e educadores, visando a
identificar e caracterizar as múltiplas formas de violência escolar, bem como observar as
relações entre estas violências e as questões ético-valorativas, este estudo busca entrelaçar
narrativas e olhares, descrevendo o estado do conhecimento, o percebido, o expresso e o
silenciado, alertando sobre os riscos da banalização da violência escolar.
Partindo-se da constatação de que nas sociedades de hoje, especialmente nas escolas, a
temática da construção de valores tem sido trabalhada de maneira inadequada, tampouco se
verifica política pública de valorização do tema e formação profissional nesse sentido,
propõe-se a reflexão sobre o desinteresse social e científico pelo assunto, mormente em face
de sua relevância neste momento, em que é comum a constatação de que a sociedade
contemporânea vive uma “crise de valores”.
O presente trabalho, partindo de questionamentos como o por quê de nossos jovens
estarem tão infelizes, buscando auto-realização nos extremos, no perigo, no comportamento
12. 12
indisciplinado, violento, egoísta e indiferente, considera que a análise da violência infanto-
juvenil e familiar é indissociável da verificação da formação recebida, dos valores construídos
a partir da educação.
A importância das emoções na formação dos seres humanos, resultado de pesquisas
científicas, alerta para um aspecto essencial: a responsabilidade de os educadores
contribuírem para a educação das emoções e sentimentos das nossas crianças e jovens.
Integrando, ainda, à educação, o aspecto moral, tendo em vista que “valor” consiste em um
dos aspectos relevados ao decidir.
Observa-se, contudo, atualmente, que a educação escolar foca sua atuação no
aprimoramento intelectual, negligenciando quanto ao desenvolvimento das qualidades
humanas. Quanto à família, verifica-se a tendência de tentar transferir para a escola
atribuições que, historicamente, integram as responsabilidades daquela, como núcleo de
socialização primária. E, assim, nenhuma das instituições assume a responsabilidade de
contribuir para a formação do caráter das crianças e jovens, mediante uma educação que
priorize questões ético-valorativas, impedindo, assim, a efetivação do Direito à Educação
Integral, na forma proposta pela Constituição Federal, pelo ECA e pela Lei de Diretrizes e
Bases da Educação.
No primeiro capítulo, reflete-se em torno de valores, ética e convivência humana,
desenvolvendo-se o tema mediante a constatação da necessidade de o ser humano ser
considerado em sua integralidade: razão, emoção e valores, baseando-se principalmente nos
estudos do neurologista português Antônio Damásio e do biólogo chileno Humberto
Maturana. Damásio, ao considerar o espírito como parte integrante de um organismo que
possui cérebro e corpo totalmente integrados, aponta para a necessidade de o ser humano
continuar a recorrer à orientação de seu espírito, em que pese a constatação da vulnerabilidade
e da humildade deste. Assim, o ponto de partida da ciência e da filosofia deve ser
13. 13
anticartesiano: existo e sinto, logo penso. A Maturana atribui-se a importância de, ao
desenvolver pesquisas relacionando a biologia e a educação, e buscando as respostas a
questionamentos como se devemos fazer de nosso presente o futuro de nossos filhos ou se
podemos viver a nossa identidade fora de nós, trazer a proposta educacional inovadora,
centrada na formação humana e na capacitação dos educadores, entitulada “biologia do
amor”. Segue-se com abordagem histórico-filosófica e sociológica das éticas, encerrando-se
com a análise da ética e valores na educação.
No segundo capítulo, o tema foi desenvolvido mediante a análise da família e da
educação para valores. Partindo-se da reflexão sobre as dúvidas e inseguranças
experimentadas atualmente pelo núcleo de socialização primária acerca de suas funções, o que
vem a ocasionar a tendência em transferir as suas responsabilidades, prossegue-se com o
estudo sobre a crise de autoridade da família e a distorção interpretativa do ECA e acerca das
composições familiares atuais e apoios recebidos por estas na criação dos filhos. Encerra-se o
capítulo com a análise dos modelos e conteúdos da educação familiar contemporânea, a
evidenciar uma “crise de valores”, denunciando que o caráter de superficialidade,
individualismo e de “coisificação” impresso nas relações familiares é reproduzido nas demais
relações sociais, reforçando realidades como a violência, a tortura, a violação de direitos e a
guerra.
O terceiro capítulo traz uma proposta reflexiva em torno da tarefa educativa da escola,
neste momento em que o valor da educação é questionado. A partir da constatação de que o
Direito à Educação foi um dos direitos fundamentais que recebeu tratamento privilegiado
pelas normas constitucionais e legais em nosso país, propõe reflexões envolvendo as crises
educacionais da atualidade, especialmente quanto à sua identidade (quais seriam as funções da
escola?) e autoridade (como conciliar liberdade e autoridade?). Questiona, ainda, os reflexos
da educação escolar atual nos comportamentos indisciplinados e violentos dos alunos e o que
14. 14
pode vir a ser a educação. Em busca de respostas a esses questionamentos, fundamenta-se em
pensadores como Edgar Morin, que traz a discussão em torno da fragmentação do
conhecimento ao lançar a via do pensamento sistêmico ou da complexidade como solução; e
Paulo Freire, ao defender a amplitude da tarefa educacional, reconhecendo que educar não é
transferir conhecimento, difunde a idéia de uma pedagogia da autonomia e da tolerância,
visando a formação de seres pensantes, críticos, solidários, livres e responsáveis.
No quarto capítulo, procede-se ao estudo da violência escolar propriamente dita.
Analisando-se conceitos, classificações e variáveis desta, adota-se o conceito de violência
escolar que inclui os atos de violência e de indisciplina perpetrados no ambiente da escola.
Segue-se com o estudo acerca do funcionamento e relações sociais na escola, enfatizando-se
as transgressões e punições mais freqüentes e as repercussões da violência na vida dos
envolvidos, alertando para os riscos da banalização da violência escolar. Estuda-se, ainda, o
relacionamento tenso e confuso entre a escola e o Sistema de Justiça e busca-se aclarar
competências e atribuições, observando as distribuições de responsabilidades operadas pelo
ECA, por força do acolhimento da Doutrina da Proteção Integral e da Prioridade Absoluta
(artigos 1º e 4º), especialmente a Conselheiros Tutelares, Policiais, Promotores de Justiça e
Juízes da Infância e da Juventude. Finaliza-se com sugestões de políticas públicas para a
redução da violência escolar.
Na segunda parte do trabalho, apresenta-se, no capítulo 6, a metodologia aplicada, e,
no capítulo 7, os resultados obtidos com a investigação. A partir disso, discute-se os dados
coletados visando a responder os objetivos da investigação.
O universo pesquisado aponta que as crises de identidade (quanto às funções, inclusive
na construção de valores) e de autoridade (quanto à forma de educação) das instituições
família e escola, aliado às dificuldades da família como instituição socializadora e a ausência
de proposta de educação para valores (como tolerância, solidariedade, fraternidade e justiça)
15. 15
na escola, bem como o relacionamento desqualificado entre ambas e entre estas e o Sistema
de Justiça, representam entraves significativos no trato da problemática da violência escolar.
Observou-se, ainda, no contexto da violência escolar, a inexistência ou a freqüente
ineficácia da intervenção de profissionais de áreas estranhas à educação, além de muitas vezes
esta ser considerada uma intromissão pelos professores, principalmente em se tratando de
membros do Conselho Tutelar ou do Ministério Público. Por fim, constatou-se o
desconhecimento dos integrantes da comunidade escolar pesquisados (alunos, responsáveis e
educadores) acerca do conteúdo do Estatuto da Criança e do Adolescente e a necessidade de
ser aprimorada a formação dos profissionais do Direito, ampliando-a com a inclusão de
conteúdos originalmente afeitos a outras áreas, como a educação, a psicologia (social e
educacional) e a antropologia.
Finaliza-se, após as considerações gerais e conclusões (capítulo 7), com capítulo
destinado a implicações e sugestões.
16. 16
2 VALORES, ÉTICA E CONVIVÊNCIA HUMANA
Vivemos um momento em que as contradições mostram-se
particularmente visíveis: ao mesmo tempo em que as fronteiras e barreiras
são transpostas no domínio da virtualidade, no contexto da vida cotidiana,
vive-se certamente um tempo de delimitação de territórios e intolerância em
relação ao ‘outro (IRENE RIZZINI).
2.1 O ser humano integral: razão, emoção e valores
Os valores estão na base das ações e norteiam sentimentos e emoções.
Na polêmica obra intitulada “O Erro de Descartes”, o neurologista português
Antônio Damásio1, ao contestar a secular afirmação do filósofo Descartes – “Penso, logo
existo” – propõe que os sentimentos e as emoções são uma percepção direta de nossos estados
corporais e constituem um elo essencial entre o corpo e a consciência. Utilizando-se de
recentes descobertas da neurobiologia, oferecendo uma visão integrada do ser humano,
evidencia que a razão tem como companheira inseparável a emoção. Em suma, uma pessoa
incapaz de sentir pode até ter o conhecimento racional de alguma coisa, mas será incapaz de
decidir com base nessa racionalidade.
Como Descartes via o ato de pensar como uma atividade separada do corpo, sua
afirmação celebra a separação da “mente pensante” do corpo (organismo biológico) “não
pensante”. É exatamente aqui que reside o erro do filósofo: a separação abissal entre o corpo e
a mente, entre a substância corporal, divisível, com volume e funcionamento mecânico, de um
lado, e a substância mental, indivisível, sem volume, de outro; a sugestão de que o raciocínio,
o juízo moral e o sofrimento advindo da dor física ou agitação emocional poderiam existir
independentemente do corpo.
1
DAMÁSIO, Antonio. O Erro de Descartes: razão, emoção e cérebro humano. São Paulo: Companhia das
Letras, 1996.
17. 17
Assim, o ponto de partida da ciência e da filosofia deve ser anticartesiano: existo (e
sinto), logo penso. Existimos e depois pensamos e só pensamos na medida em que existimos,
visto o pensamento ser, na verdade, causado por estruturas e operações do ser.
Ao reconhecer-se a relevância das emoções no processo de raciocínio, não se está
relegando a razão para segundo plano. Pelo contrário, ao verificarmos a função alargada das
emoções, é possível realçar seus efeitos positivos e reduzir seu potencial negativo, protegendo
a razão, durante o processo de planejamento e decisão.
As investigações científicas de Damásio (1) em torno das relações entre razão e
sentimento, emoções e comportamento social, demonstram que implicações socioculturais
advirão ao se admitir que a razão não é pura, impactando, por exemplo, na ética, no direito, na
arte, na ciência e na tecnologia.
A concepção de organismo humano integral, composto de corpo e mente, esboçada na
obra referida, e a relação entre emoção e razão, sugerem que o fortalecimento da
racionalidade requer maior atenção à vulnerabilidade do mundo interior.
Afirma Damásio (1), (1996, p. 278):
Em um nível prático, a função atribuída às emoções na criação da racionalidade tem
implicações em algumas das questões com que nossa sociedade se defronta
atualmente, entre elas a educação e a violência. Não é este o local para uma
abordagem adequada dessas questões, mas devo dizer que os sistemas educativos
poderiam ser melhorados se se insistisse na ligação inequívoca entre as emoções
atuais e os cenários de resultados futuros, e que a exposição excessiva das crianças à
violência na vida real, nos noticiários e na ficção audiovisual desvirtua o valor das
emoções na aquisição e desenvolvimento de comportamentos sociais adaptativos. O
fato de tanta violência gratuita ser apresentada sem um enquadramento moral só
reforça sua ação dessencibilizadora.
A contribuição de Damásio (1) apresenta valor inestimável ao concebermos a
Educação como o Direito de o ser humano realizar as potencialidades que traz consigo ao
nascer, e que precisam ser desenvolvidas ao longo de sua existência, rumo a formação do
homem integralmente apto a existir, sentir, raciocinar e ser feliz.
18. 18
A importância comprovada, resultado de pesquisas científicas, das emoções na
formação dos seres humanos, alerta para um aspecto essencial: a responsabilidade dos
educadores (pais e professores, sobretudo) de colaborar na promoção da educação das
emoções e dos sentimentos das crianças. Integrando, ainda, à educação, o aspecto moral,
tendo em vista que “valor” é um dos fatores que são relevados quando tomamos uma decisão.
Os valores humanos existem desde os primórdios da humanidade e são metas de todas
as religiões, códigos de ética e filosofias.
Consoante o dicionário Aurélio2, valor consiste na “qualidade que faz estimável
alguém ou algo, valia”; “importância de determinada coisa”; “legitimidade, validade”.
Portanto, podemos afirmar que constituem o conjunto de qualidades que nos
distinguem como seres humanos independentemente de credo, raça, condição social ou
religião, estando presentes em todas as filosofias ou crenças religiosas. São inerentes à
condição humana e dignificam e ampliam a capacidade de percepção do ser consciente, que
tem no pensamento e nos sentimentos sua manifestação palpável e aferível. São qualidades
que os homens consideram importantes, como a verdade, retidão, paz, amor e não violência,
que unificam e libertam as pessoas do individualismo, enaltecendo a condição humana e
dissolvendo preconceitos e diferenças.
O conceito referido é o comumente encontrado nas obras que tratam do assunto, como
por exemplo: Marilu Martinelli3 e Maria Fernanda Nogueira Mesquita4. Ambas propõem a
aplicação do novo método de ensino, o Programa de Educação em Valores Humanos –
EDUCARE, do educador indiano Sathya Sai Baba.
Vivencia-se hoje uma época de conflitos, de proporções mundiais. Nossa sociedade
atravessa um período de turbulência, diante da corrupção, dos jogos de poder, da violência, do
2
FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Minidicionário da Língua Portuguesa. 3.ed. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1993.
3
MARTINELLI, Marilu. Conversando sobre Educação em Valores Humanos. São Paulo: Petrópolis, 1999, p.
17.
4
MESQUITA, Maria Fernanda Nogueira. Valores Humanos na Educação: Uma nova prática na sala de aula.
São Paulo: Gente, 2003, p. 21.
19. 19
desprezo pelo ser humano e pelo meio ambiente. E, muitos desses problemas são reflexos de
comportamentos sociais que não observaram a importância dos valores e, ao não cultivá-los,
propiciaram a formação de adultos sem referenciais de cidadania e de respeito ao próximo.
Atribuímos, então, à Polícia, ao Ministério Público, ao Poder Judiciário e a outros órgãos
estatais, a função de responsabilizar- se pelo destino das pessoas em conflito com a lei, a fim
de que sejam afastadas do convívio social e (re)educadas. Ledo engano.
Considera-se que a solução dos problemas mencionados passa, necessariamente, por
uma revolução na forma de educar nossas crianças.
Atualmente, as crianças e adolescentes estudam visando à realização profissional e
preocupam-se, cada vez mais, em serem os melhores. Mas não estudam amor ao próximo,
solidariedade, respeito à diversidade, cooperação, lealdade e ética, tampouco aprendem
princípios e valores sólidos que os conduzam à felicidade.
Assistimos diariamente nos meios de comunicação histórias de pais que espancam
filhos, filhos que matam pais, jovens que matam mendigos. O homem vai à Lua e à Marte,
mas não consegue controlar seu mundo interior. Do ponto de vista intelectual, redige e realiza
operações matemáticas com brilhantismo, mas está engatinhando do ponto de vista das
emoções. Daniell Golleman, citado por Pires5, lembra que o Quociente Emocional Deficiente
impede o desenvolvimento pleno do ser, mesmo que o intelectual seja altíssimo.
A partir do momento em que a humanidade centrou-se excessivamente no
desenvolvimento científico e tecnológico, fator que inegavelmente refletiu em melhoras nas
condições materiais de vida, esqueceu-se do homem. Visando o conforto exterior, relegou ao
segundo plano o interior, esquecendo-se de que é formado por corpo, mente e espírito.
A educação fragmentada a que nos submetemos propiciou uma desestruturação do ser
humano que, muitas vezes, reflete-se na violência, presente em todas as camadas sociais,
evidenciando a nossa crise de valores.
5
PIRES, Heloisa. Educar para ser feliz. São Paulo: Camille Flamarion, 2002.
20. 20
A violência espreita-nos nas escolas, nas ruas, no trânsito, nos locais de lazer e no lar.
Em todos os segmentos sociais, raciais ou religiosos constatamos casos de
intolerância, indiferença e absoluta transgressão de princípios éticos e morais, evidenciando
que nossos jovens estão desnorteados, sem parâmetros claros de certo e errado, sem limites e
responsabilidades, sem projeto de vida.
Pelo descaso com a educação estamos pagando um preço. É mais simples culparmos o
estresse da vida quotidiana, a influência negativa dos meios de comunicação de massa, o
excesso de informação, as más companhias, as drogas, a desigualdade social. Realmente,
esses aspectos contribuem para o quadro atual. Contudo, consoante Mesquita (4), a essência
da questão é mais profunda: por que nossos jovens estão infelizes e buscam auto-realização
nos extremos, no perigo, no comportamento desregrado, egoísta e indiferente? É difícil para
eles evitar isso e, como adultos, não estamos contribuindo adequadamente na formação de seu
caráter.
A análise da violência infantil, juvenil e familiar é indissociável da verificação da
formação recebida, dos valores recebidos na educação.
Com o advento da Constituição Federal de 1988 e dos diplomas legais
complementares, o Direito à Educação foi o direito social que recebeu a regulamentação mais
explícita, contundente, completa e clara, por parte do legislador constituinte e ordinário.
Consoante Konzen6, (2000, p. 660):
Afirmado como o primeiro e o mais importante de todos os direitos sociais, fez-se
compreender a Educação como valor de cidadania e de dignidade da pessoa humana,
itens essenciais ao Estado Democrático de Direito e condição para a realização dos
ideais da República de construir uma sociedade livre, justa e solidária,
nacionalmente desenvolvida, com a erradicação da pobreza, da marginalização e das
desigualdades sociais e regionais e livres de quaisquer forma de discriminação
(artigo 3 º da Constituição Federal), imaginário de Nação inscrito na Carta Magna
Brasileira.
6
KONZEN, Afonso Armando. O Direito à Educação Escolar. Pela Justiça na Educação. Coordenação geral
Afonso Armando Konzen. Brasília: MEC, FUNDESCOLA, 2000.
21. 21
O artigo 1º da Lei nº. 9.394, de 20 de dezembro de 1996 (Lei de Diretrizes e Bases da
Educação), preceitua que “a educação abrange os processos formativos que se desenvolvem
na vida familiar, na convivência humana, no trabalho, nas instituições de ensino e pesquisa,
nos movimentos sociais e organizações da sociedade civil e nas manifestações culturais”.
O presente trabalho pretende limitar-se à abordagem dos temas da educação familiar e
escolar, utilizando como ferramenta indispensável os avanços legais introduzidos pelo
Estatuto da Criança e do Adolescente nessa questão, especialmente ao reconhecer o público
infanto-juvenil como sujeito de direitos em condição peculiar de desenvolvimento e, por essa
razão, contemplado pelos princípios da proteção integral e da prioridade absoluta. Focando
como destinatários da lei a família, a comunidade, a sociedade e o poder público.
João Batista da Costa Saraiva7, (2002, p. 13), ao comentar a mudança paradigmática
que inspirou o Estatuto da Criança e do Adolescente, aduz:
O advento do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/90, de 13-07-90)
representa um marco divisório extraordinário no trato da gestão da infância e da
juventude no Brasil. Na esteira do texto constitucional artigo 227 da CF/88), que se
antecipou à Convenção das Nações Unidas, introduzindo no Brasil a Doutrina da
Proteção Integral, em detrimento dos vestutos primados da arcaica Doutrina da
Situação Irregular, que presidia o antigo sistema. Operou-se uma mudança de
referências e paradigmas na ação da Política Nacional, com reflexos diretos em
todas as áreas, especialmente no trato da questão infracional.
Houve, a partir de então, com a introdução no sistema dos conceitos jurídicos de
criança e adolescente, em prejuízo da antiga terminologia “menor”. Esta servia para
conceituar aqueles em “situação irregular”. Pelo novo ideário norteador do sistema,
todos aqueles com menos de 18 anos, independentemente de sua condição social,
econômica ou familiar, são crianças (até os 12 anos incompletos) ou adolescentes
(até os 18 anos incompletos) segundo o art. 2 º da Lei n.º 8.069/90 – Estatuto da
Criança e do Adolescente – ECA, qualificando-se como sujeito de direitos.
Hoje, ao refletir-se sobre a educação, observa-se que a educação escolar foca sua
atuação no aprimoramento intelectual sem preocupar-se com o desenvolvimento das
qualidades humanas. Assim, é chegado o momento de a família ocupar seu espaço na
7
SARAIVA, João Batista. Direito Penal Juvenil – Adolescente e Ato Infracional – Garantias Processuais e
Medidas Socioeducativas. Ed. Livraria do Advogado, Porto Alegre, 2002.
22. 22
educação integral de suas crianças, aliando-se aos professores na proposta educativa de
contribuir para a formação do caráter. Pois somente dessa forma, estar-se-á assegurando à
infância e à juventude brasileira o direito à educação na amplitude proposta pela legislação.
Nesse intento, imperiosa a responsabilização dos pais e professores, unidos na tarefa
de educar, na transmissão de valores às crianças, pelo exemplo, e com afetividade, amando-
as, respeitando-as e disciplinando-as. Segundo Pires (5), (2002, p. 25) “é preciso educarmos
nossas crianças na compreensão da importância de unirmos nossos esforços na construção de
um mundo melhor, no qual as diferenças sejam resultados da capacidade e nunca da falta de
oportunidades”.
O indivíduo não amado, ou mal amado, ou educado sem amor, ou através de um amor
egoísta, deseducador, que estimula o egoísmo, contribui para a formação da sociedade que
criamos, na qual a violência, a indiferença, a intolerância e o individualismo impedem o
homem de ser feliz.
Para enfrentarmos a atual crise de valores devemos nos empenhar na construção de um
novo paradigma no qual a nossa felicidade é proporcional à felicidade que asseguramos aos
outros, sendo que a solidariedade gera laços de confiança entre as pessoas, contribuindo para
uma cultura ética e de não violência.
2.2 Uma Abordagem Histórico-Filosófica da Ética
Segundo Walls8, (1994, p. 177)) “a ética é daquelas coisas que todo mundo sabe o que
são, mas que não são fáceis de explicar, quando alguém pergunta”.
Tradicionalmente, é entendida como estudo ou reflexão, científica ou filosófica, e
inclusive teológica, sobre os costumes ou sobre as ações humanas. Também chamamos de
8
WALLS, Álvaro L. M. O que é ética. 9.ed. São Paulo: Brasiliense, 1994. Coleção Primeiros Passos.
23. 23
ética a própria vida, quando conforme aos costumes que consideramos corretos. A ética pode
ser o estudo das ações ou dos costumes, e a própria realização de um tipo de comportamento.
Apenas didaticamente, pois na vida real essa separação não ocorre, costuma-se separar
os problemas teóricos da ética em dois campos: os problemas gerais e fundamentais (como
liberdade, consciência, bem, valor e lei); e os problemas específicos, de aplicação concreta,
como os de ética profissional, política, sexual, matrimonial, bioética, etc.
Uma questão absolutamente fundamental consiste em observarmos se a ética consiste
em listagem de convenções sociais provisórias, uma vez que os costumes são mutáveis, e o
que era considerado errado, hoje pode ser aceito.
Se assim fosse, um comportamento correto eticamente não seria nada mais do que um
comportamento adequado aos costumes vigentes. Assim, determinada ação seria errada
apenas enquanto ela não fosse o tipo de um novo comportamento vigente.
Cumpre ressaltar que a ética não retrata apenas os costumes, apresenta também
algumas grandes teorias, representando uma reflexão teórica, com validade mais ampla,
universal. Em alguns casos, para descobrir a ética vigente em uma sociedade mister analisar
documentos não escritos ou mesmo não filosóficos: pinturas, esculturas, tragédias e comédias,
formulações jurídicas (como as do Direito Romano), e políticas (como as leis de Atenas ou
Esparta), livros de medicina, relatórios históricos de expedições guerreiras e até os livros
penitenciais dos bispos medievais.
Ressalta-se, ainda, que não só os costumes variam, mas também os valores que os
acompanham, as normas concretas, os ideais, a própria sabedoria de um povo a outro e de um
tempo a outro.
Partindo-se da afirmação de que os valores éticos podem transformar-se, assim como a
sociedade se transforma, questiona-se: não haveria, então, uma forma ética absoluta?
Consoante Walls (8), uma boa teoria ética deveria atender à pretensão de
24. 24
universalidade, ainda que simultaneamente capaz de explicar as variações de comportamento,
características das diferentes formações culturais e históricas.
Nessa seara, dois pensadores obrigatoriamente devem ser citados: o grego antigo
Sócrates (470 – 399 a.C.) e o alemão Kant (1724 – 1804).
Questionamos por que Sócrates, o filósofo que aparece nos “Diálogos” de Platão,
usando o método da maiêutica (interrogar o interlocutor até que este chegue por si mesmo à
verdade, sendo o filósofo uma espécie de “porteiro das idéias”), foi condenado a beber
veneno? A acusação que pesava sobre o filósofo era a de que este seduzia a juventude, não
honrava os deuses da cidade e desprezava as leis da “polis” (cidade-estado). Salienta-se que
Sócrates obedecia às leis, mas as questionava, procurando fundamentar racionalmente a sua
validade, ousando perguntar se essas leis eram justas.
Embora concluísse positivamente, o conservadorismo grego não podia suportar este
tipo de questionamento, pois as leis existiam para serem obedecidas, não para serem
justificadas.
Sócrates, em que pese não tivesse a aprovação dos gregos em seus questionamentos,
foi chamado, muitos séculos depois de “o fundador da moral” (e moral é sinônimo de ética,
acentuando apenas o aspecto de interiorização de normas), pois sua ética não se limitava aos
costumes do povo e dos ancestrais, assim como nas leis exteriores, mas sim na convicção
pessoal, adquirida por intermédio de reflexão interior, na busca de compreender a justiça das
leis.
Esse movimento de interiorização da reflexão e de valorização da subjetividade ou
da personalidade, que começa com Sócrates, culmina com Kant, no final do século XVIII.
Ensina Walls (8), que Kant buscava uma ética de validade universal, que se
fundamentasse na igualdade fundamental entre os homens. Sua filosofia, conhecida como
transcendental, volta-se primeiramente, ao homem, buscando encontrar no homem as
25. 25
condições de possibilidade de conhecimento verdadeiro e do agir livre.
Como questão central da ética aparece o dever ou obrigação moral. E o dever obriga
moralmente a consciência moral livre, e a vontade verdadeiramente boa deve agir sempre
conforme o dever e por respeito ao dever.
Partindo do pressuposto, típico do movimento iluminista, da igualdade entre os
homens, Kant pretende chegar a uma moral igual para todos, uma moral racional, a única
possível para todo e qualquer ser racional. A forma do dever expressa-se no chamado
imperativo categórico (não baseado em hipóteses ou condições), a seguir: “devo proceder
sempre de maneira que eu possa querer também que a minha máxima se torne uma lei
universal”.
No grande rio do pensamento ético, movimentam-se pensadores do porte de Platão e
Aristóteles, Santo Agostinho e Santo Tomas de Aquino, Maquiavel e Spinoza, Hegel e
Kiergoard, Marx e Sartre e, no meio deles, todos nós, que diariamente enfrentamos problemas
teóricos e práticos, éticos ou morais e que precisamos resolvê-los.
Uma conclusão é imperiosa: não podemos ignorar as questões éticas, em que pese
tratar-se de assunto espinhos e tormentoso, sob pena de abdicarmos de nosso anseio de
liberdade.
Se concluirmos que agir moralmente significa agir de acordo com a própria
consciência, ainda assim permanecemos com dúvidas acerca de qual seria o ideal da vida
ética.
Historicamente, as respostas variam. Para os gregos, o ideal ético estava ou na busca
teórica e prática da idéia do Bem, da qual as realidades mundanas participariam de alguma
maneira (Platão), ou estava na felicidade, entendida como uma vida bem ordenada, virtuosa,
onde as capacidades superiores do homem tivessem a preferência, e as demais capacidades
não fossem desprezadas, na medida em que o homem necessitava de muitas coisas
26. 26
(Aristóteles).
Com o Cristianismo, os ideais éticos identificaram-se com os religiosos. O homem
viveria para conhecer, amar e servir a Deus, diretamente e em seus irmãos. O ideal socrático
do “conhece-te a ti mesmo” emerge com Santo Agostinho, que ensina que “Deus nos é mais
íntimo que o nosso próprio íntimo”. O ideal ético é o de uma vida espiritual, de acordo com o
espírito, vida de amor e fraternidade. Contudo nem sempre os cristãos estiveram à altura da
afirmação de seu mestre: “Nisto conhecerão que sois meus discípulos: se vos amardes uns aos
outros”.
Com o Renascimento e o Iluminismo (séc. XV e XVIII), a burguesia acentuou outros
aspectos éticos: o ideal seria viver conforme a própria liberdade pessoal, e em termos sociais,
o lema: liberdade, igualdade e fraternidade. O pensador da burguesia e do Iluminismo, Kant,
identificou o ideal ético com o da autonomia individual (o padrão de moralidade). O homem
racional, autônomo, autodeterminado, é o que age segundo a razão e a liberdade.
No século XX, os pensadores da existência insistiram sobre a liberdade como um ideal
ético, privilegiando o aspecto pessoal ou personalista da ética: autenticidade, opção,
resoluteza, cuidado.
Quanto ao pensamento social e dialético, buscou-se como ideal ético o ideal de uma
vida social mais justa, com a superação das injustiças econômicas, em busca da construção de
um mundo mais humano.
A reflexão ético-social do século XX trouxe ainda a observação sobre a massificação,
sendo que grande parte, hoje, talvez não mais se comporte eticamente, pois vive amoralmente.
Os meios de comunicação de massa, as ideologias, os aparatos econômicos e do Estado, e a
própria educação não permitem a existência de sujeitos livres, de cidadãos conscientes e
participantes, de consciências capazes de discernir e julgar.
Não há como falar em ética sem falar em liberdade e responsabilidade. A priori, a
27. 27
ética remete às normas e à responsabilidade. E só há sentido falar destas últimas
considerando-se que o homem é livre ou pode sê-lo.
A norma nos diz como devemos agir. E, assim, temos opção de obedecer ou não. A
ética transita entre dois extremos, que consistem em formas de negação da liberdade: o
determinismo absoluto e o liberalismo absoluto.
Atualmente, a ética preocupa-se com as indagações do ser humano para resolver as
contradições entre necessidade e possibilidade, tempo e eternidade, individual e social, o
econômico e o moral, o corporal e o psíquico, o natural e o cultural.
Atualmente, os grandes problemas éticos encontram-se em três instituições históricas e
sociais: a família, a sociedade civil e o Estado, onde a liberdade realiza-se eticamente.
Em relação à família, colocam-se de maneira muito aguda as questões das exigências
éticas do amor. As questões como o amor livre, a fidelidade, relacionamentos homossexuais,
educação dos filhos. As transformações histórico-sociais exigem reformulações nas doutrinas
tradicionais éticas sobre o relacionamento entre pais e filhos. Novos problemas advieram com
a presença maior da escola e dos meios de comunicação na vida diária dos filhos. Os novos
papéis materno e paterno exigem hoje nova reflexão sobre os direitos e os deveres dos pais e
dos filhos.
Em relação à sociedade civil os problemas atuais continuam urgentes, referindo-se
especialmente ao trabalho: desemprego, trabalho escravo, baixos salários, falta de auto-
realização, falta de qualificação profissional, analfabetismo.
No que se refere ao Estado, os problemas éticos são muito ricos e complexos. As leis,
a Constituição, as declarações de direitos, a definição dos poderes, a divisão destes poderes
para evitar abusos, e a própria prática das eleições periódicas aparecem hoje como questões
éticas fundamentais. A liberdade do indivíduo só completa-se como liberdade do cidadão
de um Estado livre e de direito e que respeita a liberdade do outro, reconhecendo-a
28. 28
como legítima e atribuindo-lhe valor idêntico ao da sua.
2.3 A convivência humana possível: uma abordagem sociológica das éticas
Demo9, na obra “Éticas multiculturais: sobre convivência humana possível”, faz uma
abordagem sociológica das éticas. Ao afirmar que vida, natureza, evolução e história são
mistérios, uma vez que a ciência limita-se a explicar fragmentos da realidade, considera que o
ser humano precisa de transcendência, já que visivelmente não se basta: é incompleto,
imperfeito, morre, desespera-se (2005, p. 15)
Não se refere à transcendência eterna, absoluta e completa, pois esta se situa no
terreno das religiões, mas vislumbra, no campo sociológico, uma transcendência imanente,
citando pensadores como Kant (em face da proposta ética ou de justiça de não fazer ao
próximo o que não gostaríamos que ele fizesse conosco, procura estabelecer um princípio de
validade universal que transcende a cada indivíduo), e Hobbes, que menciona ser comum no
contexto social a indicação de dimensões que transcendem o indivíduo, seja para evitar que os
indivíduos entregues ao egoísmo, matem-se, seja para privilegiar a ordem comum sobre
comportamentos desviados, seja para consagrar princípios de solidariedade que ultrapassam
os limites individuais.
Diferentemente das religiões, a sociologia não prega alguma ética específica, mas
pode estudá-las e ainda evidenciar as vantagens de sociedades que sabem assumir padrões
éticos de convivência. Mas, ao sugerir que sociedades éticas são preferíveis a sociedades não
ou pouco éticas, não pode filiar-se a uma delas, pois não seria ético.
Contudo, no mínimo, a sociologia pode afirmar que a sociedade humana mais
tolerável seria aquela em que a pluralidade dos conviventes pudesse conviver em relativa
9
DEMO, Pedro. Éticas multiculturais: sobre convivência humana possível. Petrópolis, RJ: Vozes, 2005.
29. 29
harmonia e conflito, de maneira que o bem comum pudesse sempre prevalecer, ao final. Esse
seria o ideal de democracia.
É inegável que a ética comparece como referência crucial no cenário da convivência
humana, pois a vida de um ser humano tem impacto inevitável na vida do outro, de forma
que nunca podemos alegar que o outro não nos diz respeito. Sociologicamente, o outro nos
constitui.
Um dos esteios da ética é a responsabilidade. Ao falarmos em autonomia,
costumamos perder de vista que o excesso de autonomia de um compromete a autonomia do
outro, daí a impossibilidade de autonomias absolutas. Ainda, mister termos em mente que o
exercício da liberdade penetra o exercício da liberdade do outro e, vice-versa, de maneira que
será sempre necessário negociar um tipo aceitável de convivência para ambas as partes.
Autonomia supõe, assim, as habilidades de impor-se, bem como de ceder. Como meu
comportamento impacta o comportamento do outro, sou responsável por isso. Não posso
alegar que nada tenho a ver.
E essa concepção, que traz ínsita em sua proposta os ideais de respeito, solidariedade e
tolerância, para ser implementada em uma sociedade, depende da forma como os integrantes
desta são educados. A educação tem um efeito reprodutivo (Demo, 2004), na medida em que
a mesma expectativa comportamental de uma geração é imposta à nova geração. Mas não se
trata de transmissão rígida, na medida em que sempre há alguma renovação geracional.
Hoje, a distância geracional é cada vez maior. A nova geração apresenta grandes
diferenças sobre, por exemplo, como ganhar a vida ou preparar-se para ela. Assim, as normas,
valores e sanções valem relativamente, que não se confunde com relativismo.
O relativismo é impraticável, pois não seria coerente afirmar que tudo é relativo e
também porque, em sociedade, não há verdades absolutas tampouco se aceita o vale-tudo.
Neste último caso, esse tipo de liberdade ignora a liberdade do outro e impede o exercício do
30. 30
senso de responsabilidade.
Nesse sentido, indispensável que se tenha em mente que a dimensão da liberdade é
diretamente proporcional à responsabilidade.
Oportuno mencionar um outro princípio importante: a solidariedade, que será
desenvolvido neste trabalho, partindo-se da afirmação segundo a qual o importante nas éticas
é a organização da convivência em favor do bem comum do grupo, reforçando
comportamentos construtivos para o grupo.
Seres humanos precisam de orientação. E consiste em dever legal da família e da
escola a educação que trabalhe com as crianças a noção de fraternidade universal, capaz de
congregar a diversidade social e histórica infinita. O gesto de percebermos o outro como
concorrente deve ser substituído, sob a orientação de éticas multiculturais, pelas noções de
bem comum e de sociedades igualitárias, formadas por homens que sabem sentir e pensar, na
busca da convivência possível.
2.4 Ética e Valores na Educação
Conforme Maturana10, a ética e a espiritualidade relacionam-se com a emoção. A ética
tem a ver com a preocupação pelas conseqüências das próprias ações sobre o outro. Assim,
para ter preocupações éticas, devo ter a capacidade de ver o outro como um legítimo outro em
convivência comigo e o amor seria a emoção que embasa a preocupação ética.
Em nossa cultura usamos a razão para negar ou obscurecer nossas emoções e avaliar
nossas condutas. Segundo Maturana (10), o mesmo ocorre com a ética e a experiência
espiritual onde criamos cegueiras frente ao outro e ao nosso âmbito de pertença social e
cósmica com argumentos racionais.
10
MATURANA, Humberto; REZEPKA, Sima Nisis. Formação Humana e Capacitação. Traduzido por: Jaime
A. Clasen. Petrópolis, RJ: Vozes, 2000.
31. 31
É chegado o momento de questionar: em que mundo queremos viver? É preciso
termos a consciência de que a resposta a essa indagação é fundamental, pois nossos desejos
guiarão nosso agir subordinando nossa razão a eles, e determinarão que âmbito de vida
criaremos para nossas crianças, oportunizando a elas as possibilidades de conservar um viver
humano num ato responsável e livre a partir delas.
O que se observa nas sociedades atuais, especialmente nas escolas, é que a temática da
construção de valores não têm sido muito explorada, sendo trabalhada pelas escolas do país,
indiretamente e de forma desorganizada. Tampouco se constata política pública de
valorização do tema e formação profissional adequada.
Partindo-se dessa observação, questiona-se sobre as razões para o desinteresse social e
científico pelo tema, especialmente em face de sua relevância atual, em que é comum a
constatação de que a sociedade contemporânea vive uma “crise de valores”. As respostas a
essas questões não são simples, mas é chegado o momento de a sociedade brasileira despertar
para essa problemática, promovendo investimentos em políticas públicas, pesquisas,
publicações e na formação e capacitação de profissionais da área da educação para
desenvolver esse trabalho.
A expectativa é que esse quadro seja alterado mediante uma proposta de conteúdos
que referenciem e orientem a estrutura curricular das escolas brasileiras, apresentando a
inserção transversal, aos conteúdos curriculares tradicionais, de conteúdos como Ética, Meio
Ambiente, Pluralidade Cultural, Saúde, Orientação Sexual, Trabalho e Consumo. Esses
conteúdos podem não ser concebidos como novas disciplinas, mas devem ser trabalhados nas
escolas de todo o país de maneira integrada, interdisciplinar e transversal.
De acordo com essa proposta, os conteúdos relacionados à ética e alguns valores
universais (como os presentes na Declaração Universal dos Direitos do Homem) passam a ser
reconhecidos pelo Estado como essenciais para a formação dos futuros cidadãos, devendo ser
32. 32
trabalhados nas escolas.
Esse será um dos maiores desafios dos educadores, que terão de atender aos anseios de
uma sociedade plural e democrática. Mas como realizar toda essa articulação sem incorrer nos
erros do passado de disciplinas como Educação Moral e Cívica e Estudos de Problemas
Brasileiros, buscando promover uma educação em valores que não se baseie em mera
transmissão dos valores da classe dominante?
É indispensável voltar-se para a formação docente nas áreas da psicologia e da
educação, objetivando a instrumentalização dos profissionais da educação que já foram
tocados pela necessidade e premência de criação de programas para uma educação em
valores, ou ainda, para os educadores que buscam a formação integrada de seus alunos, em
que os valores vinculados à construção da democracia, cidadania e de relações interpessoais
mais justas e solidária coexistiam de maneira articulada com as disciplinas curriculares
tradicionais.
Uma das características mais importantes do trabalho do professor Puig11, (professor
da Universidade de Barcelona, e um dos autores espanhóis mais conhecidos na área de
investigações sobre a moralidade humana) é sua intenção de construir um programa de
educação moral que procura integrar diversas concepções teóricas e experiências em um
quadro amplo, rico e próximo à realidade.
Posiciona-se contra tanto às concepções de moralidade fundamentadas em valores
absolutos, quanto contra o relativismo dos valores. Rompe com o discurso sobre a existência
de uma moral universal indiscutível válida para todas as culturas e tempos, da qual devem
derivar os valores a serem transmitidos, e com a moralidade relativa a cada contexto cultural e
momento histórico, que dependem da preferência de cada sujeito.
11
PUIG, Josep Maria. Ética e valores: métodos para um ensino transversal. Tradução Ana Venite Fuzatto;
revisão técnica Ulisses Ferreira de Araújo. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1998.
33. 33
Enquanto a primeira concepção supõe uma relação autoritária em que os valores da
sociedade já se encontram predeterminados, a segunda torna-se muito subjetiva e
individualista.
A concepção do autor tenta integrar as duas anteriores, reconhecendo que uma
educação moral deve respeitar a autonomia dos sujeitos, partindo do diálogo que considera os
interesses pessoais e coletivos, os valores de cada cultura e os universais. Por isso pensa que
“a educação deve converter-se em um âmbito de reflexão pessoal e coletiva que permita
elaborar racional e autonomamente princípios gerais de valor, princípios que ajudem a
defrontar-se criticamente com a realidade” (PUIG, 1998, p. 15).
Visando a atingir o objetivo de formação de pessoas autônomas e dialogadoras, que
utilizam sua razão criticamente nas relações interpessoais e no respeito aos direitos alheios,
elenca as finalidades desse modelo de educação moral e apresenta sugestões de atividades e
recursos metodológicos aos educadores.
Os objetivos gerais propostos são a formação de consciências morais autônomas; a
percepção e o controle dos sentimentos e emoções e a competência.
A formação de pessoas autônomas e dialogadoras dispostas a comprometer-se na
relação pessoal e na participação social com o uso crítico da razão, supõe formar um perfil
moral caracterizado pelas seguintes finalidades:
a) desenvolver a consciência moral autônoma enquanto capacidade para regular e dirigir
por si mesmo a própria vida;
b) propiciar a produção de razões e argumentos morais justos e solidários e usa-los
correta e habitualmente nas controvérsias que implicam conflito de valores;
c) desenvolver as capacidades de compreensão crítica da realidade pessoal e social;
d) adquirir a sensibilidade necessária para perceber os próprios sentimentos e emoções,
para aceita-los e usa-los;
34. 34
e) fomentar as competências dialógicas que predispõem ao acordo, ao entendimento e à
autodireção, assim como à tolerância e à participação democrática;
f) reconhecer e assimilar aqueles valores morais que podemos entender como
universalmente desejáveis, como, por exemplo, justiça, liberdade, igualdade,
solidariedade, benevolência, tolerância, respeito, participação, compromisso e
cooperação, em se tratando de perspectiva macroética ou pública. A partir de uma
perspectiva privada: renúncia, reconhecimento, verdade, abertura para com os
demais, empatia, consideração, amor, coerência, responsabilidade. E como valores
comuns, a ambos os espaços éticos, destaca-se a autonomia e a crítica;
g) conhecer toda a informação relevante moralmente que possa tornar-se formativa;
h) participar de diálogos democráticos que permitam mediar as próprias posições
valorativas com as dos demais indivíduos e grupos, a fim de construir espaços
emancipatórios e definir espaços de participação social, assumindo compromissos de
ação concretos;
i) valorizar o pertencer às comunidades habituais de convivência, integrar-se
participativamente nelas e refletir criticamente sobre suas formas de vida e tradições
valorativas.
Como elementos para um currículo de educação moral são elencadas: atividades
específicas, transversais (inseridas nas disciplinas curriculares existentes) e sistemáticas
(observar seqüência e freqüência) de educação moral; participação democrática na vida da
escola (coerência entre juízo e ação moral dentro e fora da escola) e educação moral e
participação social (facilitar aos alunos a possibilidade de implicar-se pessoalmente em algum
tipo de participação social que suponha comprometimento e responsabilização por auxiliar
alguém ou instituição que busque fins sociais ou humanitários).
35. 35
Salienta-se a importância de a educação moral contribuir para desenvolver a
capacidade para criar empatia ou conectar-se com o ponto de vista alheio, implicando
progressiva descentração do sujeito. Descentração que somente é possível na medida em que
vivenciam abundantes experiências de interação social. Estas experiências produzem uma
progressiva diminuição do egocentrismo, o qual permite avançar na aquisição de consciência
mais aguda das perspectivas alheias.
Em que pese a interessante proposta do professor Puig (11), entende-se que só será
implementada com êxito se os educadores conscientizarem-se de que não se transmitem
valores sem vivenciá-los e exemplifica-los na convivência diária e sem considerar os
enfoques sócio-afetivos.
As experiências e exercícios sócio-afetivos têm como primeiro objetivo o
desenvolvimento da sensibilidade para reconhecer situações moralmente relevantes e para
sentir-se pessoalmente afetado por elas. Sua pretensão, portanto, é trabalhar sobre os
sentimentos e emoções dos alunos, complementando com atitude de reflexão e com a adoção
de atitudes e de compromissos pessoais coincidentes com os sentimentos experimentados e as
opiniões formuladas.
Ver a realidade de perto é o melhor modo de entendê-la e de sentir-se tocado por ela.
Contudo, apesar da importância desse modo de proceder, muitas vezes, em face à
impossibilidade de experimentar diretamente certas situações, mister usar procedimentos de
sensibilização moral baseado na simulação. Os enfoques sócio-afetivos são uma modalidade
de trabalho dessa natureza, tentando oferecer, mesmo que artificialmente, oportunidade de
vivenciar experiências moralmente significativas.
Segundo Puig (11), (1998, p. 118), os enfoques sócio-afetivos partem da crítica às
metodologias de transmissão de conhecimentos. Seus principais cultivadores constatam que,
freqüentemente, alunos que passaram por cursos meramente informativos sobre situações de
36. 36
injustiça ou miséria, acabaram limitando-se a olhar com alívio para a sua própria situação.
Constantemente alegravam-se em ser diferentes e sentiam-se, não raras vezes, superiores,
culpando as vítimas pelos contratempos que sofriam. Foi evidenciado que a informação nem
sempre supõe uma mudança de atitude nem um desenvolvimento da sensibilidade empática.
Era necessário provocar um tipo de experiência pessoal mais completa do que a
proporcionada pela recepção de informação descritiva sobre situações moralmente relevantes.
Assim, quando o cognitivo e o afetivo ficam vinculados pela atividade do sujeito,
duplica-se sua eficácia e persistem na memória suas conquistas. A mera sensação emocional
tende a diluir-se quando não está acompanhada de processo de reflexão e de valoração moral.
Ainda, a mera informação tende a induzir a idéias cristalizadas, que caem no esquecimento
quando os sentimentos não oferecem motivação pelas idéias.
Em razão disso, as experiências emotivas, que dispensam as vivências, assim como as
idéias e os valores que a reflexão constrói, devem ser entendidas como dois momentos
inseparáveis de um mesmo processo de formação moral.
A importância comprovada das emoções na formação dos seres humanos, resultado de
pesquisas científicas, alerta para um aspecto essencial: a responsabilidade dos educadores
colaborarem na promoção da educação das emoções e dos sentimentos das crianças.
Integrando, ainda, à educação, o aspecto moral, tendo em vista que “valor” é um dos fatores
que são relevados ao decidir.
A contribuição de Damásio (1) apresenta valor inestimável ao concebermos a
Educação como o Direito de o ser humano realizar as potencialidades que traz consigo ao
nascer, e que precisam ser desenvolvidas ao longo de sua existência, rumo a formação do
homem integralmente apto a existir, sentir, raciocinar e ser feliz.
37. 37
3 A FAMÍLIA E A EDUCAÇÃO PARA VALORES
Muitas pessoas passam pela nossa vida. Poucas, no entanto, são
capazes de se fazer realmente presentes em nossa existência. Menos ainda
são aquelas cuja presença, pela influência construtiva que exerceram sobre
nós, assumiram uma significação que o tempo não foi capaz de apagar. Essas
38. 38
são as pessoas significativas de nossas vidas (ANTÔNIO CARLOS GOMES
DA COSTA).
3.1 O eclipse da família e a tendência de transferir suas responsabilidades
Parte-se da constatação de que as crianças, antes de entrarem em contato com seus
professores, já experimentaram a influência educacional de seu meio social, que continuará
sendo determinante durante a infância.
Na família, a criança aprende, ou deveria aprender, atitudes fundamentais, que
compõem a “socialização primária”. Após, a escola, os grupos de amigos, o lugar de trabalho
e outros irão realizar a socialização secundária, que será mais frutífera se a primária tiver se
realizado de modo satisfatório, pois terá uma base sólida.
Assim, o principal agente da efetividade do Direito à Educação é a família. Se a escola
deve atuar como associada, essa associação não deve ensejar o afastamento da noção de que
os pais ou responsáveis são os agentes principais pela educação dos filhos.
O dever de educar está previsto na legislação brasileira desde 1916, no antigo Código
Civil. Na legislação civil atual, está previsto no artigo 1.634, inciso I, como obrigação dos
pais quanto à pessoa dos filhos, inerente ao exercício do poder familiar, “dirigir-lhes a
educação e a criação”. E, ainda, como dever recíproco dos cônjuges, no artigo 1.566, inciso
IV, a educação dos filhos. A Constituição Federal elevou a obrigação de educar os filhos à
condição de preceito constitucional (artigo 229). E o Estatuto da Criança e do Adolescente
arrolou o descumprimento injustificado desse dever como causa explícita para a perda do
poder familiar (artigos 22 e 24).
Contudo, não obstante o pesado aparato legal prevendo a obrigação da família em
relação à educação das crianças, os educadores tem percebido que estas chegam a escola com
um núcleo básico de socialização insuficiente para enfrentar com êxito a tarefa de
39. 39
aprendizado. Queixam-se que, em razão dessa falha na família, a escola, além de não
conseguir realizar sua tarefa específica como no passado, também começa a ser objeto de
novas demandas, para as quais não está preparada.
Um dos outros motivos, apontado pelos estudiosos, do eclipse da família como fator
de socialização primária, decorre da transformação do “status” das próprias crianças; com o
“desaparecimento da infância”.
Renomados autores sobre a infância evocam a tendência atual de os adultos
apressarem o crescimento das crianças, atribuindo-lhes responsabilidades que muitas vezes
não estão preparadas para assumir, sem perceberem que este amadurecimento forçado não é
acompanhado pelo desenvolvimento emocional.
Os modelos de comportamento e de interpretação do mundo que se ofereciam à
criança não podiam ser escolhidos voluntariamente nem rejeitados, porque careciam de
alternativa. Com a maturidade, quando a informação revelava as alternativas possíveis aos
dogmas familiares, dando lugar às angustias da escolha, a pessoa estava suficientemente
formada.
Segundo Savater12 (1998) a televisão acabou com esse desvendamento progressivo das
realidades ferozes e intensas da vida humana. As “verdades” sobre doenças, morte,
procriação, sexo, violência, guerra, ambição, que antes eram escondidas dos olhares infantis,
hoje, são expostas pela televisão, que ocupa espaço cada vez maior na educação, sem
observância de trâmites pedagógicos.
Assim, a tarefa atual da educação familiar e escolar é complicada. Espera-se do
educador (familiar e professor) que auxilie as crianças e jovens a organizar as informações
que recebem dos meios de comunicação, fornecendo-lhes ferramentas cognitivas para torná-
las proveitosas e não nocivas.
12
SAVATER, Fernando. O valor de educar. Tradução: Mônica Stahel. São Paulo: Martins Fontes, 1998.
40. 40
Entretanto, essa nova situação da educação também alarga as possibilidades para a
formação moral e social dos futuros cidadãos, favorecendo a superação de preconceitos e de
modelos impostos pelo núcleo familiar.
Juan Carlos Tedesco, citado por Savater (12), (1998, p. 90), afirma acreditar ser
preciso,
... mostrar as potencialidades libertadoras oferecidas por uma socialização mais
flexível e aberta. Se a responsabilidade pela formação ética, pelos valores e
comportamentos básicos passa a depender agora, muito mais do que no passado, de
instituições e agentes secundários, também se abrem maiores possibilidades de
promover concepções tolerantes e diferentes.
Outra causa para essa renúncia da família a suas funções educacionais, apontada por
Savater (12) é o fanatismo pelo juvenil nos modelos contemporâneos de comportamento. O
jovem, a moda jovem, a despreocupação juvenil, o corpo ágil e bonito, eternamente jovem à
custa de qualquer sacrifício, dietas e correções, a “espontaneidade artificial”, a capacidade
incansável para o festivo... são os ideais de nossa época, a ponto de ser considerado ofensivo
“ser velho”.
Mas, para que o núcleo de socialização primária atue de forma eficaz na educação, é
imprescindível que alguém nela assuma o papel de adulto e assuma responsabilidades,
evitando transferi-las para as instituições públicas da comunidade.
Observa-se com freqüência situações em que os pais, reconhecendo sua impotência
quanto ao estabelecimento de regras e limites, exigem que o Estado adote medidas de
vigilância para limitar seus filhos. E o surpreendente é a naturalidade e a facilidade com que
os progenitores assumem uma posição de incapacidade de cuidar e de educar seus rebentos,
transferindo a obrigação para os órgãos estatais.
Trata-se de uma crise de autoridade nas famílias. E o que supõe essa crise?
41. 41
3.2 A Crise de Autoridade nas Famílias e a Distorção Interpretativa do Estatuto da
Criança e do Adolescente
Observa-se uma antipatia e uma desconfiança não tanto contra o próprio conceito de
autoridade (cada vez mais as instituições são criticadas por faltar-lhes autoridade e reclama-se
“linha dura”), mas contra a possibilidade de se ocupar pessoalmente dela no âmbito familiar
pelo qual se é responsável.
Se os pais não auxiliam os filhos a crescer, com sua autoridade amorosa, as
instituições públicas ver-se-ão obrigadas a impor o princípio da realidade quase sempre, não
com afeto, mas à força. Assim não se conseguem crianças que serão cidadãos adultos livres.
Existe um consenso no pensamento pedagógico de que é negativa a educação baseada
no medo autoritariamente inculcado. Hoje, estamos convencidos do avanço que constitui
aliviar de intimidações abusivas os primeiros anos do ensino. No entanto, também é preciso
compreender que o desaparecimento de toda a forma de autoridade na família não predispõe à
liberdade responsável, mas a uma forma de frágil insegurança.
A atenuação ou abolição da figura paterna tradicional traz algumas dificuldades de
identificação positiva para os jovens, que vários estudiosos relacionam diretamente à
delinqüência juvenil e a perda destrutiva de modelos de auto-estima.
Consoante a pedagoga e terapeuta de Casal e Família, Tânia M. Vanoni Polanczyk13:
A desqualificação como homem e como pai é uma experiência humilhante, que afeta
as relações interpessoais e desestabiliza as relações familiares. Os jovens passam a
perceberem-se em falta, esvaziados. Eles não possuem um pai suficiente, ema
família organizada, uma escola que os aceite, um futuro promissor. Sentem-se como
pessoas de segunda categoria e agem de acordo com a sua condição.
13
POLANCZYK, Tânia M. Vanoni. Não à Violência. Infância em Família: um compromisso de todos: anais.
Organizadoras: Maria Regina Fay de Azambuja e outros. Porto Alegre: Instituto Brasileiro de Direito de Família,
2004, págs. 222/223.
42. 42
Outro fator atual que reforça a desresponsabilização familiar consiste na interpretação
distorcida e equivocada da legislação brasileira, protetiva da infância e da juventude.
Integra o senso comum, traduzido no discurso da sociedade brasileira, que o referido
estatuto é sinônimo de desautorização familiar, de “quebra das relações de autoridade com a
família e a escola”, de “porta aberta à impunidade”, afinal “os ‘menores’ não podem ser
responsabilizados por seus atos”!
Insta difundirmos que a proposta do Estatuto da Criança e do Adolescente é a de
universalização dos direitos fundamentais, alcançando a todas as crianças e adolescentes
brasileiros. Como precisamente traduzido por uma senhora de origem muito simples, catadora
de papel da cidade de Curitiba, durante a participação do Procurador de Justiça do Estado do
Paraná, Olympio de Sá Sotto Maior Neto14, em um Seminário organizado pelo Movimento de
Defesa dos Favelados do Estado do Paraná para conhecimento e discussão do ECA: “Doutor,
agora eu acho que entendi este tal de Estatuto da Criança e do Adolescente, ele diz que é para
a gente querer para os filhos dos outros o mesmo bem que a gente quer para os nossos filhos”
Ou seja, nessa perspectiva de justiça e solidariedade, pela qual é impossível criticar-se
o ECA, a lei propõe que todas as crianças e adolescentes possam exercitar os direitos que
parte dessa população já exercita.
Aliado a isso, ressalta-se que, além de serem contempladas com direitos, as crianças e
adolescentes são alcançadas por obrigações previstas no ordenamento jurídico, estando
sujeitos a responder e serem responsabilizados, em variadas instâncias, especialmente A
Justiça da Infância e da Juventude e o Conselho Tutelar, pelos atos anti-sociais que praticam,
notadamente quando atingem a categoria de atos infracionais (condutas descritas na lei penal
como crime ou contravenção).
É indispensável que os pais tomem parte das discussões com os filhos em torno do
14
NETO, Olympio de Sá Maior. Ato Infracional, Medidas Sócio-Educativas e o papel do Sistema de Justiça na
Disciplina Escolar. RevistaPela Justiça na Educação. Coordenação geral Afonso Armando Konzen. Brasília:
MEC. FUNDESCOLA, 2000. p. 513.
43. 43
amanhã, mas conscientes de que futuro é de seus filhos e não seu. Pois é decidindo com
liberdade que se aprende a decidir. E assumindo as conseqüências de suas decisões, os filhos
estarão tornando-se pessoas responsáveis.
Quanto ao filho, é preciso que assuma, de forma ética e responsável, sua decisão,
fundante de sua autonomia. Pois ninguém é autônomo primeiro, para decidir depois.
3.3 A questão dos valores na família faz parte do direito à educação
Indissociável ao abordarmos a discussão sobre valores na família a análise de aspectos
inerentes à dinâmica familiar como as suas composições e as bases de apoio familiares.
Para Ângela Mendes de Almeida15, o estudo da família oferece o desafio de fazer um
recorte que possibilite a apreensão adequada do objeto de estudo no campo das pesquisas
sobre a família e a criação e educação dos filhos. A complexidade do conceito de família, as
diferentes pesquisas que abordam esse grupo social, desde a estrutura organizacional
patriarcal, nuclear, até os arranjos mais recentes, decorrentes, sobretudo da necessidade de
sobrevivência das famílias das camadas populares e os padrões de comportamento
determinados pelas mudanças culturais das últimas décadas, recomendam pensar a família na
perspectiva das relações de poder e da história dos valores éticos, dos padrões morais
dominantes e de suas formas desviantes, uma vez que a história da criação e educação dos
filhos vincula-se diretamente a esses aspectos da cultura familiar.
O contexto familiar complexo, para ser compreendido na sua singularidade, necessita
ser estudado quanto as suas formas ou composições estruturais, a fim de compreendermos as
relações entre seus membros.
15
ALMEIDA, Ângela Mendes de. Pesando a família no Brasil. Rio de Janeiro: Espaço e Tempo, 1987.
44. 44
Vannúzia Leal Andrade Peres16 (2000, p. 11), no artigo “Desenhos de Família” afirma
que o movimento histórico de transformação da família vem alterando não somente em sua
estrutura, mas também o padrão de seu ciclo de vida, levando a apresentar uma independência
de modelos e, em razão disso, uma singularidade. Isso significa, segundo ARIÈS17, que não
podemos mais falar de família como um padrão único a ser seguido ou como um sistema
universalizado, mas sim de famílias, entendendo que cada qual te sua estrutura e estilo de
funcionamento.
Assim, não se pode ignorar as novas composições de famílias: as monoparentais; as
reconstituídas; as decorrentes de uniões estáveis, onde, não raras vezes coabitam filhos de
uniões anteriores; as homossexuais e ainda as famílias em que os responsáveis são os avós.
Consoante Luiza Pereira Monteiro e Norma A. Cardoso18, a família é uma instituição
de mediação entre indivíduo e sociedade. Produtora e reprodutora de ideologias influencia a
sociedade e é por ela influenciada, nos diferentes momentos históricos. Assim, os modelos de
relações sociais estabelecidos fora do espaço doméstico apresentam, como pressupostos, os
padrões morais, éticos e comportamentais familiares.
Daí a importância de estruturas e modelos familiares que reforcem positivamente seus
integrantes, promovendo efetivamente a formação do homem integral.
3.4 Criar, cuidar, educar: com quem contar?
As definições dos termos criar, cuidar e educar são importantes para o estudo, pois
evidenciam o esforço para chegar a uma caracterização de família baseada nos vínculos e
relações entre as pessoas.
16
PERES, Vannúzia Leal Andrade. Desenhos de Família. Desenhos de família: criando os filhos: a família
goianense e os elos parentais. Sônia M. Gomes e Irene Rizzini. (Coord.). Goiânia: Cânone Editorial, 2000.
17
ARIÈS, Philippe. História Social da Criança e da Família. Rio de Janeiro: Guanabara, 1981.
18
MONTEIRO, Luiza Pereira; CARDOSO, Norma A. Família e Criação de Filhos. Desenhos de família:
criando os filhos: a família goianense e os elos parentais. Sônia M. Gomes e Irene Rizzini. (Coord.). Goiânia:
Cânone Editorial, 2000.
45. 45
Áries (17) registra, na composição da família moderna, que a infância é um dos
elementos de organização desta e que esse novo modelo trouxe um novo conjunto de atitudes
em relação à criança. Nessa nova forma de organização, a família retira a criança do convívio
social para o espaço familiar, tomando para si a tarefa de cuidá-la e educá-la.
Nesse clima de privacidade, a família isola-se no papel de educar os filhos. A
sociedade em geral também atribui-lhe essa responsabilidade desde que ela crie e eduque seus
filhos conforme os princípios vigentes nessa mesma sociedade
Para as famílias que se afastam desse modelo organizacional e falham na tarefa
educacional de seus filhos, resta a intervenção estatal. E, historicamente, a escola constitui-se
como a outra instituição que divide com a família a responsabilidade de educar as crianças.
O termo “criar” é amplo, incluindo os conceitos “educar” e “cuidar”. Exige, portanto,
empreendimento visando atender ao seu desenvolvimento integral. Assim, a família é um dos
espaços privilegiados do processo de socialização dos sujeitos, uma vez que tende a ser o
primeiro espaço responsável pela tarefa socializadora.
Já o termo “cuidar” expressa mais uma atenção voltada para a criança: o zelo dedicado
a ela, a assistência ao seu desenvolvimento, o atendimento às suas necessidades básicas, bem
como a relação afetiva, o acesso à educação.
“Educar” significa desenvolver as faculdades físicas, intelectuais e morais do ser
humano. Significa ainda disciplina, instrução, ensino.
Cabe à família, tenha ela a estrutura e organização que tiver, a função criadora,
cuidadora e educativa, e, na sua intimidade, via de regra, está tentando exercer essa tarefa.
Para isso, buscam como bases de apoio cônjuges ou companheiros, avós, igrejas, escola,
meios de comunicação, profissionais da área da saúde, vizinhos, Conselho Tutelar e
Ministério Público.
Observa-se, contudo que o Estado pouco privilegiou as famílias nas suas políticas
46. 46
sociais, privilegiando apenas o indivíduo como portador de direitos. Em seu modelo de
atendimento, o Estado fragmentou a família num somatório de necessidades, identificando-a
como carente de bens e serviços.
Com o Estatuto da Criança e do Adolescente, a família “ressurge como unidade
19
econômica e direito da criança” (CARVALHO, 1995, p. 12) e, assim, entra na agenda das
políticas públicas para ser atendida em suas carências, a fim de garantir os direitos dos
indivíduos”.
O artigo 4 º do Estatuto da Criança e do Adolescente afirma a responsabilidade
primeira da família na função de educar a criança e garantir seus direitos, considerando-a um
ser em desenvolvimento e sujeito de direitos. O artigo 19 reforça esse pensamento.
Contudo, atribui também à sociedade e ao poder público a garantia desses direitos, por
intermédio de políticas sociais e atividades voltadas para o apoio da família na tarefa de
criação/educação dos filhos. Objetivo, na prática, ainda não atingido, em face a quase
inexistência de serviços multiprofissionais de atenção à família e em razão da ineficiência,
descontinuidade, setorização e fragmentação dos serviços oferecidos.
Assim, o mesmo Estado que contribuiu para a construção do discurso de família
desestruturada, incompetente, carente, pouco ofereceu em suas ações, serviços, auxílio e
orientação a este núcleo de socialização primária. E, ainda, tentou retirar-se do cenário das
políticas sociais, repassando essa iniciativa para as organizações não-governamentais, que não
dispõe de recursos humanos e financeiros para assegurar a continuidade e a qualidade das
atividades, e/ou para a iniciativa privada, que não tem compromisso com o grupo que atende
(18), (2001, p.16).
3.5 A Educação Para Valores
19
CARVALHO, Maria do Carmo Brandt de (Org.). A família contemporânea em debate. São Paulo: Cortez,
1995.
47. 47
Consoante mencionado, o efeito direto do esvaziamento da família como autoridade na
criação/educação dos filhos é a estigmatização da instituição familiar, que assumiu a posição
de “incompetente” nessa tarefa. E essa desqualificação da família, que a instala
simultaneamente na condição de vítima e de responsável por sua condição, fragiliza seus
laços afetivos e sua coerência interna, contribuindo para que influências externas, nem sempre
positivas, obtenham “êxito” na socialização da criança.
Dos estudos da família brasileira, observa-se que se encontra num momento histórico
de mudanças significativas no que diz respeito aos valores éticos e morais, aos padrões de
comportamento e a educação dos filhos.
Sendo a família o sujeito principal das estratégias de reprodução dos comportamentos
sociais, verificamos que ela encontra-se em vias de constituir uma nova configuração,
determinada pelo modelo de relações sociais no mercado consumidor. Nesse campo das
relações sociais, destaca-se o aspecto “descartável” ou de superficialidade das relações sociais
e o caráter de “redução do sujeito à condição de coisa”. Essas características das relações,
lamentavelmente, transparecem no campo afetivo e familiar.
Contrariamente as formas educativas tradicionais que entendem a educação moral
como uma imposição de valores e normas, entende-se que aquela deve proporcionar a
reflexão individual e coletiva permitindo a elaboração racional e autônoma de princípios de
valor, que auxiliem a defrontação crítica com realidades como a violência, a violação de
direitos, a tortura ou a guerra.
A educação moral deve promover a análise crítica da realidade e das normas sócio-
morais vigentes, contribuindo para a idealização de formas mais justas e adequadas de
convivência. Deve pretender, ainda, aproximar os educandos de condutas e hábitos mais
coerentes com os princípios e normas que vão construindo. E finalmente formar hábitos de
48. 48
convivência que reforcem valores como a justiça, a solidariedade, a cooperação ou o cuidado
com os demais.
Busca-se, com a educação moral, conseguir que os jovens desenvolvam os tipos de
comportamentos coerentes com os princípios e normas que pessoalmente construíram e
adquiriram também as normas que a sociedade, de modo democrático e justo, oferece-lhe.
Essa educação busca o equilíbrio pessoal e coletivo.
Com base nessas reflexões, espera-se que as famílias recebam a base de apoio
necessária para que possam evoluir a um modelo de educação marcado pela autonomia e
independência de filhos responsáveis por si e pelo outro. Tendo sempre clara a lição de
Maturana (10), segundo a qual não se ensina valores, cooperação e respeito se não vivenciá-
los.
49. 49
4 O VALOR DE EDUCAR: REFLEXÃO ACERCA DA EDUCAÇÃO ESCOLAR
Reformar o pensamento para reformar o ensino e reformar o ensino
para reformar o pensamento (EDGAR MORIN).
4.1 O que é educação: proposta reflexiva em torno da tarefa educativa
Em 1990, no Brasil, com o advento do Estatuto da Criança e do Adolescente, em
contraposição a concepção do direito do menor (que mascarava profundas violações aos
Direitos Humanos mais elementares), nasceu historicamente o paradigma da Proteção
Integral, cuja idéia central está em considerar crianças e adolescentes como sujeitos de
direitos em suas relações com a família, a sociedade e o Estado.
Complementa-se com a noção de que são seres humanos em fase de desenvolvimento
físico, psíquico e emocional, e essa peculiar condição merece respeito. E, nesse sentido,
mister a compreensão de que os seus direitos fundamentais são especiais em relação aos
direitos dos adultos. São prioritários e prevalentes, consoante Marta de Toledo Machado20.
Da aceitação dessas premissas, emerge que os direitos elencados nos artigos 227 e 228
da Constituição Federal são direitos fundamentais do ser humano e direitos fundamentais de
um ser humano especial.
Dentre os direitos fundamentais está a educação, intimamente ligada ao
desenvolvimento da personalidade infanto–juvenil. O direito à educação, além de receber
respaldo constitucional (artigos 7 º, inciso XXV; 22, inciso XXIV; 24, inciso IX; 205 e 208),
é previsto pela legislação infraconstitucional, sobretudo pelo Estatuto da Criança e do
Adolescente (artigos 53 a 59), que busca orientar o direito à educação ao pleno
desenvolvimento do destinatário e a Lei de Diretrizes e Bases da Educação, a qual, segundo
2020
MACHADO, Marta de Toledo. A Proteção Constitucional de Crianças e Adolescentes e os Direitos
Humanos. São Paulo: Manole, 2003, p. 32.
50. 50
Munir Cury21, não pretendeu tornar-se diploma único da educação no Brasil, esgotando a
disciplina jurídica do assunto, mas estruturou-se apenas na definição do que se entende por
diretrizes e bases da educação.
Marcos Cezar de Freitas22 atenta-nos para as análises acerca da infância
proporcionadas pelos organismos governamentais e supragovernamentais, como a UNICEF,
cujos dados oferecidos têm sido alarmantes sobre a situação geral da criança no planeta e
atestado a grande dificuldade operacional que acompanha as instituições diretamente
relacionadas ao bem-estar infantil, como a escola e a saúde.
Assim, observa-se que em vários países fala-se em crise da educação, e, em meio as
inúmeras questões que envolvem a temática em nosso país, parece oportuno analisarmos
alguns pontos essenciais: o que é educação? O que ela pode vir a ser? O que esperamos: que
continue sendo mera transmissão de conhecimento ou que promova a educação integral do
homem? Quais os reflexos da educação escolar atual nos comportamentos indisciplinados e
violentos dos alunos? Como prevenir a violência escolar?
Nesse intento, é pertinente a análise dos seguintes aspectos: a compartimentalização
dos saberes, a tensão entre disciplina e liberdade, o papel da família, os limites da
neutralidade na escola, a formação moral e sua relação com a violência.
O biólogo Maturana (10), ao lançar sua proposta reflexiva e de ação em torno da tarefa
educativa, centra suas indagações na formação humana e na capacitação. Defende que o
futuro deve surgir dos homens e mulheres que viverão no futuro, que deveriam ser íntegros,
autônomos e responsáveis pelo seu viver e pelo que fazem, porque o fazem a partir de si.
Homens e mulheres sensíveis, amorosos, conscientes de seu ser social e de que o mundo em
que vivem surge com seu viver. Mas só serão assim se não crescerem alienados, mas no
respeito por si e pelo outro, capazes de aprender qualquer atividade, porque sua identidade
21
CURY, Munir. Pela Justiça na Educação. Coordenação Geral: Afonso Armando Konzen. Brasília:
MEC/FUNDESCOLA, 2000, p. 680.
22
FREITAS, Marcos Cezar de (org). História Social da Infância no Brasil. 5. ed. São Paulo: Cortez, 2003.