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I Colóquio (1999) - volume I
José Manuel Anes - O segredo debaixo de uma pedra
Ana Hatherly - Os prodígios da língua
A.M. Galopim de Carvalho - As raízes alquímicas da Mineralogia
Isabel Serra - Transmutação dos elementos
A. Bragança de Miranda - Alquimia e contemporaneidade
José Augusto Mourão - O discurso alquímico: um imanentismo transcendente?
José Augusto Mourão - Alquimia e religião: no cruzamento do visível e do invisível
Salomé Machado - O percurso alquímico em The Alchemist de Ben Jonson
Manuel Gandra - Alquimia em Portugal
Luís Filipe B. Teixeira - Nos jardins do ofício (Pessoa e a alquimia do verbo)
Maria Elisa Maia - Persistência de conceitos alquímicos nos dias de hoje
Raquel Gonçalves - Elementos alquímicos
DO DODÓ À FÉNIX:
I. François Leguat - O Dodó ou Solitário da Ilha Rodrigues
II. Nuno Marques Peiriço - Transmutação na iconografia científica
III. Maria Estela Guedes - Transmutação no discurso científico
COMISSÃO ORGANIZADORA
JOSÉ AUGUSTO MOURÃO (ISTA)
MARIA ESTELA GUEDES (CICTSUL)
NUNO MARQUES PEIRIÇO (CICTSUL)
I coloquio
1
O SEGREDO DEBAIXO
DE UMA PEDRA
José Manuel Anes
Umberto Eco, na sua obra Os Limites da interpretação1 refere a AMBIGUIDADE
CONSTITUTIVA da Alquimia, centrada em dois polos, a ALQUIMIA PRÁTICO-OPERATIVA e a
ALQUIMIA SIMBÓLICA, assentando a primeira na busca da transmutação metálica –
procura realmente produzir ouro, e representou um modo, embora ingénuo e pré-
científico, de interrogar a natureza, de vê-la como coisa viva e lugar de possíveis
transformações, escreve Eco2 – enquanto que a segunda, segundo ele, se move a nível
puramente metafórico, representando uma das manifestações da gnose hermética3 .
Este filão simbólico seria místico, esotérico e hermético e não teria nenhum valor
científico4 e encerraria apenas fantasias de regeneração e transfor-mação espiritual 5 .
Embora Eco produza, neste trabalho algumas considerações judiciosas sobre a
alquimia, não o poderemos seguir no que diz respeito à distinção radical entre as duas
alquimias, pois a sua nomenclatura leva a pensar que a alquimia operativa está isenta de
símbolos e a simbólica isenta de operatividade – o que desmentido por muito tratados
alquímicos e, em particular pelo ENNOEA. Também não poderemos acompanhar este
autor no que concerne à simbólica alquímica, a qual, como veremos, não é totalmente
polissémica, nem completamente aleatória como Eco parece sugerir.
A pesar de este autor salientar – muito acertadamente, ele que, no entanto, não é um
especialista da Alquimia – que o MOMENTO OPERATIVO E O MOMENTO SIMBÓLICO
ANDARAM SEMPRE A PAR E PASSO, ele quer, no entanto, dizer apenas com isso que eles
coexistiram historicamente, não admitindo Eco que esses dois “momentos” estivessem
presentes, ao longo da história da Arte de Hermes, num mesmo alquimista, a não ser,
como ele refere, excepcionalmente, no caso de muitos alquimistas simbólicos
contemporâneos, como o misterioso e celebrado Fulcanelli, os quais prosseguiram
práticas operativas6 . De facto – contrariamente ao que muitos alquimistas
contemporâneos afirmam, tentando extrapolar rectroactivamente a sua visão iniciática
da alquimia -, concedemos que é difícil sustentar que todos os autores alquímicos de
antanho tenham visado uma prática mística, esotérica certa alquimia do século XVII e
XVIII, quando ela, segundo Betty Dobbs, até aí assente em especulações místicas (…)
muito fortemente orientadas para a expeculação interior, passa a receber uma
influência calmante do racionalismo e da nova filosofia mecanista7 . No entanto, estes
I coloquio
2
dois momentos propostos por B. Dobbs, não são mutuamente exclusivos: a alquimia
racionalizada dos séculos XVII e XVIII apresenta ainda algumas características
místicas, como é o caso de muitos tratados alquímicos e como é o caso do ENNOEA do
nosso Castelo Branco, onde estão presentes, como veremos, quer um discurso racional
quer um simbolismo onírico.
É por vezes referida, como uma indicação do carácter iniciático – de transformação
pessoal - de um determinado livro alquímico, a advertência que é feita pelo adepto
relativa às condições espirituais prévias à Obra. O que acontece é que essas indicações
podem constituir , por parte do alquimista, apenas sinais de temência a Deus, do qual
depende o êxito da Obra e, por outro lado, conselhos de preserverança e de paciência,
essenciais a um trabalho tão longo, não constituindo por si sós, provas do carácter
vincadamente místico da obra – o que não quer dizer que esse carácter esteja
necessariamente ausente. O caso do ENNOEA parece não constituir excepção, mesmo
quando o autor refere a necessidade da solidão – que também é escola, pois os
divertimentos solitários são estudos- eventualmente encontrada nos bosques (próximos
da sua Soure natal), onde se acha Deus8 .
De facto, na Parte Segunda desta obra, diz o autor que só aos Adeptos, que são, e
forem, perfeitos, e justos concederá Deus esta grande ciência; porque a sabedoria não
entra no entendimento dos homens maus, nem preservera no corpo dos pecadores9 .
Por isso mesmo, Deus remunera esses homens – sejam eles cristãos, ou não, como o
gentio Hermes, o mouro Geber e o hereje Paracelso10 – com as utilidades da
Crisopeia, e outros bens temporais, para satisfazer os seus merecimentos, pois se eles
não tiveram estas virtudes, não os remuneraria Deus com estes prémios11 . Anselmo
Caetano continua a enumerar, pela voz de Enodato – que dialoga “hermeticamente”
com Enódio – as outras qualidades do Filósofo Hermético, o qual, segundo ele, Há-de
ser homem de claro entendimento, profundo juízo, subtil discurso, grande
compreensão, e bom engenho; e porque isto só não basta, deve ser também perito na
língua latina, consuma-do na Filosofia, inteligente na Matemática, e versado na lição
dos livros Químicos, para que o estudo aperfeiçoe o entendimento, e o entendimento
ilustrado alcance grandes segredos com a subtileza do juízo, e os reduza à prática com
o bom engenho. Além de todas estas qualidades há de ter indústria, constância riqueza,
prudência, sossego, paciência e segredo porque (…) em nenhuma coisa devem os
Adeptos ser mais acautelados, do que em ocultarem os segredos com que obram12 .
E mesmo na justificação do segredo alquimico, nunca Anselmo Caetano evoca
razões iniciáticas ou místicas – tais como as que são explicitadas hoje pelos cultores da
moderna alquimia operativa, mesmo que operativamente tradicional13 – antes enumera
razões que têm a ver com a dificuldade das operações - a razão deste misterioso
segredo é, porque as operações da Arte Magna são muito dificultosas, e não podem os
homens explicar-se com palavras, quando as coisas são muito difíceis14 - e outras que
têm a ver com questões de preservação do segredo por motivo de segurança de todos –
para que ficando estas operações duvidosas, não sejam inquiridas, nem averiguadas
por homens ignorantes, e malignos, que executem com elas grandes maldades (…)
para que os Herméticos inventores, e descobridores deste segredo não ficassem
obrigados a satisfazer os danos, que causariam ao Mundo todos aqueles Tiranos, e
Poderosos, que abusassem de tão ambiciosa potência, e tirania15 . Daí, ainda, a
necessidade (devido à natureza dificultosa do assunto e devido à conveniência de
I coloquio
3
protecção da Obra) de uma linguagem críptica, de natureza simbólica: se os Adeptos
não a descrevessem com enigmas, e metáforas, e sonhos, e fábulas, poderia ser
conhecida a matéria da Crisopeia, e preparada a Pedra Filosofal pelos rústicos, e
ignorantes16 . Note-se que aqui, Anselmo Caetano invoca uma razão utilitária (e não
iniciática) para a utilização so simbolismo: o afastamento dos (perigosos) ignorantes.
No entanto, ele refere ainda uma razão última para a manutenção do segredo – mesmo
para os que têm condições para encetar a Obra – e que consiste na exigência do esforço
individual nesta via operativa. Mas para aqueles que, hoje, verão facilmente aqui uma
indicação de tipo iniciático, o autor de ENNOEA menciona com singeleza a necesidade
de que o Adepto tenha em grande apreço a sua Obra: Bem sabeis, que vos não posso
revelar a matéria da Pedra Filosofal, senão em segredo; e para o segurar mais, quero
que vos custe algum trabalho, porque os homens não estimam senão aquilo, que pelo
seu trabalho adquiram17 .
Interessante é, sem dúvida, a referência ao tradicional preceito de Imitação da
Natureza. Diz Anselmo Caetano: (…) a Arte Magna para fazer a Crisopeia deve imitar
nas suas operações a Natureza18 . Uns verão, nesta asserção uma indicação de cariz
iniciático, uma via de comunhão com a Natureza, certamente inscrita na tradição
alquímica, que tem um forte registo de transformação dessa mesma Natureza – longe
portanto de uma atitude passiva e submissa. Mas não será legítimo ver nela apenas uma
estratégia operativa eficaz para levar a bom terno a Obra Grande? Cremos que sim.
Para terminar esta breve introdução ao carácter iniciático (ou ao carácter não
iniciático) do ENNOEA, referiremos uma passagem que, para um psicanalista como
Bachelard terá uma conotação evidentemente sexual, mas que para alguns jungianos
constituirá prova bastante da individuação alquímica, em busca do andrógino filosofal
(assim como para um cultor da chamada alquimia interna será uma clara revelação do
arcano): na geração dos Metais, o Enxofre é como a matéria seminal paterna, e o
Mercúrio é como a matéria com que concorre o sexo feminino para a geração do feto,
as quais ambas juntas formam no útero um só, e perfeito corpo. E daqui se segue que
esta matéria é uma só coisa19 . Mas não constituirá apenas esta descrição uma alegoria
biológica da união alquímica dos dois princípios, enxofre e mercúrio?
Interessa agora ver que tipo de discurso realiza Anselmo Caetano, ao tratar Da
matéria com que os Herméticos fazem a Pedra Filosofal (ou a matéria com que os
Herméticos formam o Lapis, para … fazer a Crisopeia). Será (na hipótese
simplicissima20 de H. Eco) um discurso do tipo operativo, ou será um discurso do tipo
simbólico – por enigmas, e metáforas, sonhos, e fábulas, como diz Enodato,
questionado por Enódio? No que diz respeito à discussão da verdadeira matéria de que
o Lapis se forma – a primeira coisa que deveis conhecer, e averiguar, diz Enodato –, o
autor de ENNOEA utiliza uma argumentação de uma racionalidade transparente,
naturalmente no quadro das concepções alquímicas da época.
Na discusão DA MATÉRIA COM QUE OS HERMÉTICOS FAZEM A PEDRA FILOSOFAL,
Anselmo Caetano – revelando um notável conhecimento das vias e dos materiais
alquímicos, citando autores como Geber/Al-Djabir, Filaleto, Raimundo Lúlio, Alberto
Magno, Bernardo o Trevisano, Basílio Valentim e Becher – começa por rejeitar os
vegetais – como o spiritus vinii lulliani, o vinho vermelho, ou branco de (pseudo)
Raimundo Lúlio - e os animais – como o espírito de urina –, pois como diz Enodato,
I coloquio
4
ainda que estes menstruos têm o seu uso na Química, na Alquimia eles não têm nenhum
préstimo, pois são incapazes de dissolver radicalmente o Ouro, isto é, de reduzi-lo à
primeira matéria de que foi formado, separando os princípios do metal mais fixo e mais
perfeito21 . Refira-se que esta distinção entre Química e Alquimia, apenas subalterniza
a primeira face à segunda, mas não exclui o trabalho químico da Obra alquímica, já que
Anselmo Caetano aconselha mesmo, ao alquimista, o estudo prévio dos livros de
Química22 , embora afirme que mais se aprendia nos bosques do que nos livros,
sobretudo naqueles livros onde se acha muita ignorância do homem23 – uma vez que
será preciso estudo, experiência e paciência (…) para ler tantos autores, a fim de
conseguir realizar com êxito esta Filosofia (…) sumamente dificultosa24 .
Do mesmo modo e pelas mesmas razões, são rejeitados o Salitre e o Vitríolo, ambos,
segundo ele, totalmente imprórios e inúteis. Postos de lado os minerais, falta considerar
os metais. Primeiramente, são discutidos o Arsénico – no sentido literal, que é rejeitado,
já que no sentido enigmático, os Adeptos chamam Arsénico Filosófico à Matéria da sua
Pedra Filosofal25 –, o Antimónio – embora as Crisopeias de alguns Herméticos são
fabricadas com o Antimónio, ou Stibio26 , Enodato afirma que de nenhum modo
podereis tirar dele a matéria da nossa Obra27 – os quais são também rejeitados, pois
TODAS ESSAS MATÉRIAS, OU MINERAIS, SÃO IMPRÓPRIOS POR SEREM SUJEITOS À
CORRUPÇÃO, INTRODUZIDA NELAS PELA ACTIVIDADE DO FOGO28 . Mas, por outro lado,
também o Ouro, e a Prata, que no seu centro é Ouro29 , não são próprios para a Obra,
pois o Ouro tem uma natural e fortíssima composição, e não sofre nenhuma
calcinação, por não ter Enxofre combustível, como têm os outros metais30 . Ou seja,
enquanto que uns são rejeitados por serem demasiado vulneráveis ao fogo, o Ouro é
rejeitado, pelo contrário, pela sua invulnerabi-lidade ao fogo. A racionalidade, no
quadro da alquimia, é perfeita.
Então, Anselmo Caetano continua uma discussão racional tendente a demonstrar não
só o que afirmou anteriormente, mas também para justificar outras posteriroes escolhas
para a matéria do Lapis. Diz ele pela boca de Enódio – que primeiro tinha perguntado
SE ESTA MATÉRIA SE TIRA DE UM SÓ, OU DE TODOS OS METAIS31 –: A MATÉRIA, QUE
BUSCAMOS, É O CÁLIDO INATO, E O HÚMIDO RADICAL DOS METAIS32 , ou pela boca de
Enodato: A MATÉRIA DO LAPIS NÃO SE TIRA DE TODA A SUBSTÂNCIA METÁLICA, SENÃO DA
PRIMEIRA MATÉRIA RADICAL, QUE EM TODOS OS METAIS É IGUALMENTE A MESMA33 .
Porquê? Porque, quer o CÁLIDO INATO, quer o HÚMIDO RADICAL dos metais, são
INCORRUPTÍVEIS E RESISTEM À MAIOR ACTIVIDADE DO FOGO34 . Trata-se de procurar obter
a MATÉRIA RADICAL dos metais – tema central na teoria da Alquimia –, de os REDUZIR À
SUA PRIMEIRA MATÉRIA35 – núcleo imponderável aos olhos da moderna físico-química –
para conseguir que todos os metais imperfeitos se possam converter em outros36 .
Conseguir-se-à isto, a partir de qualquer metal?
Enódio refere que Todos os Adeptos confessam que eSTA MATÉRIA se acha, ou se tira
de COISAS VIS, OU DE POUCA ESTIMAÇÃO, e Enodato confirma que temos MUITOS
SUJEITOS DE QUE TIRAR A PEDRA FILOSOFAL37 . Então, para além dos já rejeitados, a
MATÉRIA VIL – comparando-a com o valor, que depois adquire por benefício da Arte
Magna38 – também não se pode tirar do Chumbo e do Estanho, por serem Metais
impurissimos, e imundos na sua raiz, ou no princípio da sua criação; porque é tão
impura a sua ESSENCIAL SUBSTÂNCIA, sendo ambos destituídos de SUBSTÂNCIA FIXA, que
I coloquio
5
permaneça constantemente no fogo, sendo apenas dotados de substância volátil 39 .
Ora, é esta SUBSTÂNIA FIXA, a verdadeira MATÉRIA DA OBRA.
Apesar de conterem imundices, Enodato/Castelo Branco aceita o Cobre, o Ferro e o
Mercúrio, pois deles se pode tirar mais facilmente a MATÉRIA DA PEDRA FILOSOFAL,
sobretudo no Mercúrio – como diz Geber sobre este assunto, o autor que Anselmo
Caetano mais cita, aqui e em outras partes do ENNOEA. A razão reside no facto de,
embora diversos na sua forma acidental, ou aparente, eles serem, na SUBSTÂNCIA
RADICAL (…) essencialmente o MESMO SUJEITO METÁLICO40 . Por esse motivo,
aconselhado por Enodato, Enódio afirma estar resolvido a trabalhar no Azougue,
pedindo-lhe, agora, que ele lhe ensine a PREPARAR A CRISOPEIA41 .
Enodato avisa logo que Nenhum Filósofo explica claramente ess preparação, porque
não é lícito falar nesta matéria com muita clareza42 . Contudo ele menciona, logo no
começo da sua discussão, que é necessário efectuar sobre o Mercúrio, uma SEPARAÇÃO
NO CORPO DO MERCÚRIO PARA DELE TIRAR A MATÉRIA DA PEDRA FILOSOFAL, uma vez
que o Azougue, ficou tão infeccionado pelo PECADO ORIGINAL MINERAL, que se ocultam
nele duas IMUNDICES, uma de natureza terrestre e outra de natureza líquida. No entanto,
como essa lepra,que mancha o corpo do Mercúrio, não procede da sua RAÍZ, nem se
identifica com a sua SUBSTÂNCIA, (…) só acidentalmente se une com ele, e facilmente se
pode SEPARAR PELA ARTE43 . Assim, separa-se a terra, por BANHO HÚMIDO, e pela
ENSABOADURA DA NATUREZA, enquanto que a água se separa por meio de um BANHO
SECO e CALOR BENIGNO, de tal modo que, COM TRÊS LAVAÇÕES E PURGAS se renova o
DRAGÃO, despindo as ESCAMAS, e antigas CONCHAS44 . Parece estar aqui uma referência
às LAVEURES DE NICOLAS FLAMEL45 , o que, eventualmente, apontaria para uma via
com Mercúrio e Antimónio46 (que seria animado pelo Mercúrio, através das POMBAS
DE DIANA, ou ÁGUIAS DE FILALETO), “via de amálgamas” que é mencionada por Betty
Dobbs47 , a propósito dos trabalhos alquímicos de Newton, e que um praticante
português revelou “caritativamente”48 . Outra hipótese seria a Obra do Mercúrio e do
Sol, em que se utiliza Mercúrio e Ouro (ou Prata); há quem refira, também, uma “obra
só com Mercúrio”49.
No Diálogo Terceiro da Parte Segunda do ENNOEA, são referidos, ainda mais
enigmativamente, os arcanos relativos ao MERCÚRIO FILOSÓFICO e à sua PREPARAÇÃO.
Aqui o “discurso” é, progressivamente, mais enigmático, mais hermético, e o emprego
das alegorias e dos símbolos passa a ser dominante, se não mesmo exclusivo. Estamos
pois na senda do discurso simbólico de que nos fala H. Eco, mas que aqui coexiste, num
mesmo autor e numa mesma obra, contrariamente ao que ele afirma (aceitando apenas
excepções em alquimistas do século XX).
Começemos pelos seguintes três enigmas alquímicos:
– … a matéria da nossa é o ninho onde nasce, e se cria a nossa ÁGUIA … é a chave
mestra, que abre as portas do PALÁCIO ENCENTADO da Natureza50
– Ainda que esta matéria não entra na Obra, serve de meio para alcançar, e
conhecer a matéria que nela entra. Esta é composta dos QUATRO ELEMENTOS51
– Esta matéria tem corpo, alma, e espírito, porque é filha do ESPÍRITO UNIVERSAL52
I coloquio
6
Não é agora, a ocasião de proceder a uma análise exaustiva da via operativa do
ENNOEA (nem sabemos sinceramente se, nesta fase, tal será possível, na totalidade),
pelo que apenas veremos, por alto, a estrutura da sua Obra Grande. Mas é importante
referir, antes disso a sua concepção de Espírito Universal – em consonância total com a
tradição alquímica –, o qual será uma substância puríssima, penetrantíssima, (…)
impalpável, invisível e imperceptível (…) que desce do Céu empíreo para os mixtos,e
que sobe do centro de terra, comunicando-lhe as suas virtudes, e embebendo-os, se faz
corporal, constituindo assim o SAL, que é a PRIMEIRA MATÉRIA DE TODO O COMPOSTO.
Na verdade, esse Espírito Universal – na verdade o PAI DA PEDRA FILOSOFAL - é
idêntico (mas multiforme) em todos os mixtos, sendo a QUINTA ESSÊNCIA DA NATUREZA,
contendo os TRÊS PRINCÍPIOS, que são a MESMA SUBSTÂNCIA RADICAL: o ENXOFRE, ou
FOGO NATURAl, o MERCÚRIO, ou HÚMIDO NATURAL e o SAL, ou SECO RADICAL , que liga os
outros dois. 53
Voltando ao MERCÚRIO FILOSÓFICO, Anselmo Caetano diz-nos que ele é a MATÉRIA
DO LAPIS, DEPOIS DO SEU NASCIMENTO (isto é, quando o cálido e o húmido, estão unidos
perlo seco). Os sucessivos nomes que (ela, matéria, ou ele, mercúrio) vai tomar – o
Mercúrio, o Enxofre, etc. – são estados da matéria, que resultam dos GRAUS DE CALOR
que o Mercúrio teve na DIGESTÃO – os quais serão “explicados” no parágrafo IV deste
Diálogo Terceiro do ENNOEA. Assim sendo, O MERCÚRIO E O ENXOFRE serão
QUALIDADES DIFERENTES, resultantes de diversos graus DIGESTÃO DE UMA SÓ
MATÉRIA54 . Então, Quando pela força do fogo se destila a humidade radical,
juntamente com ela se destila o seu natural calor que tem cor de Ouro (…) o OURO
FILOSÓFICO – denominado ENXOFRE, ALMA, ou OURO, porque A SUA COR PARECE OURO.
É agora a altura de mencionarmos um relato sumanente simbólico que, longe de se
referir a experiências místico-esotéricas, parece referir-se a experiências bem tangíveis
de natureza operativo-laboratorial. Trata-se do CASAMENTO HERMÉTICO DO LEÃO COM A
ÁGUIA, o qual introduz aquilo que vai ser discutido no parágrafo seguinte. Vejamos as
suas partes mais importantes (que satisfarão, eventualmente, a imaginação de algum
psicanalista, ou jungiano):
TOMAI A Virgem com asas, LAVADA, LIMPA, e prenha da Seminal, e espiritual matéria
do primeiro contacto masculino, FICANDO ILESA A GLÓRIA DA SUA VIRGINDADE, COM AS
FACES TINTAS DE roxo; AJUNTAI-A COM O segundo sujeito masculino SEM SUSPEITA, NEM
PERIGO DE ADULTÉRIO; E POR FIM PARIRÁ UM venerável fruto de ambos os sexos, do qual
sairá uma imortal prosápia de poderosíssimos Reis (…) Nestes ajuntamentos de QUE
FAÇO MENÇÃO, TUDO É PURO, SEM MANCHA DE VÍCIO: NÃO SE PERDE A VIRGINDADE, NEM
SE COMETE ADULTÉRIO. JUNTAI POIS A Águia COM O Leão, E ESCONDEI-OS NO SEU
claustro diáfano, COM A PORTA MUITO BEM TAPADA, PARA QUE NÃO SAIA POR ELA A SUA
RESPIRAÇÃO, OU LHE ENTRE O AR ESTRANHO. A Águia ACOMETENDO O Leão, O
DESPEDEÇARÁ E O COMERÁ. E LOGO ADORMECERÁ COM UM PROFUNDO, E DILATADO
SONO, INCHANDO-LHE TANTO O ESTÔMAGO, QUE FEITA HIDRÓPICA, SE CONVERTERÁ COM
ADMIRÁVEL METAMORFOSE NUM Corvo MUITO NEGRO; ESTE PERDENDO PAULATINAMENTE
AS PENAS, PRINCIPIARÁ A VOAR, E COM O SEU VÔO SE REMONTARÁ TANTO, QUE SACUDIRÁ
SOBRE SI MESMO ÁGUA DAS NÚVENS, ATÉ QUE FICANDO MOLHADO DISPA DE BOA VONTADE
AS ASAS, E DESCENDO POR FALTA DELAS, SE CONVERTA EM UM BRANQUÍSSIMO Cisne 55 .
I coloquio
7
Sem pretender fazer a exegese completa deste texto – parecido, aliás, a outros textos
de autores clássicos que referem as BODAS ALQUÍMICAS DO ENXOFRE E DO MERCÚRIO –, a
qual necessitaria de ser vista também à luz daquilo que Anselmo Caetano escreve
adiante, quando refere os graus de digestão, parece-nos não ser de excluir a hipótese de
que a Virgem com asas, seja o Mercúrio, ou Azougue o qual ao sublimar-se, voa – o que
segundo Filaleto é uma Águia –, podendo transportar com ele um Ouro, intrínseco (a
sua semente radical) ou extrínseco (o Ouro “vulgar”). Este é o fundamento da “via das
amálgamas”
Através da discussão dos meios e extremos da Crisopeia e das quatro digestões
Herméticas, expõe Anselmo Caetano a Obra alquímica que propõe e segue. Desde logo,
os meios operativos, ou Chaves da Obra Grande, - que vai do Mercúrio Filosófico e
dos Metais Perfeitos até ao Elixir Perfeito – os quais poremos em correspondência com
os meios materiais ou diversos graus, e com os meios(ou sinais demonstrativos, na
realidade as cores sucessivas da Obra):
1º) – Dissolução ou Liquefacção: a) redução dos corpos à sua primeira e antiga
matéria, na verdade uma “reincrudação” dos corpos cozidos; b) congresso do macho e
da fêmea, que conduz ao corvo negro; c) separação dos quatro elementos contidos na
Pedra (quando retrocedem as luminárias).
Corresponde também ao 2º. meio material (depois do Mercúrio Filosófico e dos
Metais Perfeitos): os quatro elementos que circulam até se fixarem.
O NIGREDO – a CONFUSÃO DOS ELEMENTOS que surge no fim da liquefacção – é
também o 1º meio demonstrativo, a Cabeça de Corvo, que marca o PRINCÍPIO DA
PRIMEIRA NEGRIDÃO, A CORRUPÇÃO OU PUTREFACÇÃO (QUE DISPÕE PARA A GERAÇÃO).
Corresponde, ainda à primeira digestão (que é feita com CALOR BRANDO) – O
CONGRESSO DO MACHO E DA FÊMEA, A MISTURA DAS MATÉRIAS SEMINAIS, A DISSOLUÇÃO
do corpo E A RESOLUÇÃO dos elementos em ÁGUA HOMOGÉNEA (O CAOS TENEBROSO, O
TENEBROSO ABISMO).
2º.) – Lavação: faz do Corvo Negro, um Cisne Branco, de Saturno, faz nascer
Júpiter, o rei dos Deuses (símbolo da conversão do corpo em espírito).
2º. Meio ou sinal demonstrativo - cor Branca (o Cisne): - onde se dá a perfeição do
primeiro grau e do ENXOFRE BRANCO, também denominado TERRA BENDITA, TERRA
FOLIATA, onde os filósofos SEMEIAM O SEU OURO.
Corresponde ainda à 2ª. Digestão, onde o ESPÍRITO DO SENHOR ANDA SOBRE AS ÁGUAS
(COMEÇA A FAZER-SE LUZ, SEPARANDO AS ÁGUAS DAS ÁGUAS); RENOVA-SE O SOL E A LUA,
FAZ-SE UMA NOVA TERRA E UM NOVO CÉU. Dá-se a espiritualização de todos os corpos,
os Corvos negros dão origem às Pombas brancas. O espírito ígneo que desce em forma
de água, procede a REGENERAÇÃO DO MUNDO. A ÁGUIA E O LEÃO ABRAÇAM-SE NUM
ETERNO E ÍNTIMO ABRAÇO.
I coloquio
8
– Segundo escreve o autor de ENNOEA, nas duas últimas obras anteriores: O
DRAGÃO EXERCITA A SUA GRANDE CRUELDADE CONSIGO MESMO, POIS TRAGANDO A SUA
CAUDA, TODO SE ENGOLE E SE CONVERTE EM PEDRA
– Diz ele, também, que é necessário OBRAR COM GRANDE ADVERTÊNCIA, para que se
faça a separação das águas COM O PESO, E MEDIDA, de sorte que as águas que ficam
debaixo do Céu, não afoguem a terra, e as que sobem ao Firmamento, a não
desamparem de modo, que fique seca.
3º.) – REDUÇÃO: restitui a ALMA à Pedra desanimada, sustentando-a com LEITE
ORVALHADO E ESPIRITUAL, até que tenha perfeito vigor
Corresponde, também, à 3ª. Digestão, a qual dá de beber à terra, que acaba de
nascer, LEITE ORVALHADO, e todas as virtudes espirituais da quintaessência (…). ENTÃO
ESCONDE A TERRA EM SI UM GRANDE TESOURO, primeiramente semelhante à LUZ
RESPLANDESCENTE – A TERRA DA LUA - e depois, ao SOL RUBICUNDO – A TERRA DO SOL .
Corresponde aos 3º e 4º. meios demonstrativos que são, respectivamente: a cor
Amarela (a AURORA) – marca a transição entre O BRANCO E O VERMELHO e anuncia os
CABELOS DOURADOS DO SOL - e a cor Vermelha escura (o ENXOFRE SO SOL, ESPERMA
MASCULINO, FOGO DA PEDRA, COROA RÉGIA, FILHO DO SOL) – que se tira da Branca,
pelo fogo.
4º.) – FIXAÇÃO: fixa UM E OUTRO ENXOFRE – 3º) meio material, que marca o fim da
primeira Obra –, sobre o seu corpo fixo, mediante o ESPÍRITO; isto é feito, COZENDO os
FERMENTOS POR SEUS GRAUS (amadurecendo as coisas crtuas e dulcificando as
amargas)
Corresponde, também, ao 4º.) meio material: FERMENTOS produzidos sucessivamente
pela ponderada mistura das sobreditas coisas, e, também, à 4º. Digestão – que
aperfeiçoa todos os Mistérios do Mundo, e converte a terra em eXCELENTÍSSIMO
FERMENTO que fermenta todos os corpos imperfeitos.
Este último meio operativo – que MARCA O FIM DA PRIMEIRO TRABALHO DA OBRA
HERMÉTICA –, continua a cozer os fermentos por seus diversos graus, DERRETENDO,
PENETRANDO E TINGINDO, de tal modo que GERA O ELIXIR, e depois EXALTA-O56 . Na
verdade, a Pedra exalta-se por GRAUS – até chegar à sua ÚLTIMA PERFEIÇÃO –, com
SUCESSIVAS DIGESTÕES (QUATRO) que, na realidade, são os “regimes de fogo” de Filaleto.
O autor de ENNOEA, comenta a Obra que acaba de expôr, em linhas gerais, com as
seguintes afirmações, que constituem os segredos operativos (debaixo da pedra):
Toda a fabrica da Obra Filosófica não é outra coisa mais que DISSOLVER E
COAGULAR: DISSOLVER O CORPO E COAGULAR O ESPÍRITO (…) PELA REDUÇÃO SE FIXA O
CORPO VOLÁTIL EM PERMANENTE CORPO, E A NATUREZA VOLÁTIL ULTIMAMENTE PASSA A
SER FIXA, DO MESMO MODO QUE A FIXA TINHA PASSADO A SER VOLÁTIL.57
–A PRODUÇÃO DA PEDRA DOS FILÓSOFOS É COMO A CRIAÇÃO DO MUNDO, porque é
necessário que tenha o seu CAOS, e a sua MATÉRIA PRIMA, em que nadem confusos os
I coloquio
9
elementos, até que separados pelo ESPÍRITO ÍGNEO, e que seja elevada a parte leve desta
separação para cima, e a grave seja precipitada para baixo. NASCENDO A LUZ,
DESAPARECEM AS TREVAS: AJUNTANDO-SE AS ÁGUAS EM UM LUGAR, APARECE A TERRA SECA
OU ÁRIDA. FINALMENTE SAEM SUCESSIVAMENTE OS DOIS LUMINARES GRANDES, e
produzem as virtudes Minerais, Vegetais, e Animais na Terra Filosófica58 .
– A CRIAÇÃO DA PEDRA FILOSOFAL É POR TODAS AS CIRSCUNSTÂNCIAS SEMELHANTE À
DE ADÃO, porque do corpo terrestre e grave dissoluto pela água se faz o limo, que
mereceu chamar-se TERRA ADÂMICA, na qual residem as qualidades e virtudes de todos
os elementos. Também se lhe infunde A ALMA CELESTE pelo eSPÍRITO DA QUINTA
ESSÊNCIA, e o influxo solar, e pela benção, e ORVALHO DO CÉU se lhe dá a virtude
infinitamente multiplicativa, mediante a CÓPULA DE AMBOS OS SEXOS59 .
ESTA OBRA SÓ SE PODE FAZER HAVENDO UM RADICAL DISOLVENTE DO OURO, E DA SUA
MESMA NATUREZA (…), QUE É O MERCÚRIO FILOSÓFICO; PORÉM QUEM NÃO O TIVER, NÃO
PODERÁ COLHER O FRUTO DESTA ÁRVORE DA VIDA, AINDA QUE SAIBA CONHECÊ-LA60 .
– O maior segredo desta obra consiste NO MODO DE OBRAR, O QUAL TODO DEPENDE
DA CIRCULAÇÃO DOS ELEMENTOS, PORQUE A MATÉRIA DO LAPIS VAI PASSANDO DE UMA
PARA OUTRA NATUREZA61 .
– Quase que não há maior segredo em toda a praxe da obra, que o CERTO E
AJUSTADO MOVIMENTO DESTE CÍRCULO – o segundo círculo, da restauração, o que PESA
A ÁGUA, e QUE EXAMINA AS MEDIDAS – porque dá forma ao INFANTE FILOSÓFICO62 .
Depois de uma discussão de temas como A Circulação da água (onde se inclui esse
arcano do círculo, acima citado), o Fogo da Natureza e a Circulação dos Eelementos, o
Fogo Filosófico, Enódio pede a Enodato que lhe faça uma breve relação da aplicação
destas coisas, ao que ele anui, noutra descrição – uma verdadeira súmula da Obra
Grande - cheia de simbolismo operativo:
TOMAI O Dragão Ruivo, ANIMOSO E BELICOSO, EM CUJO NASCIMENTO NÃO FALTOU
NENHUMA FORÇA. DEPOIS ESCOLHEI sete OU NOVE Águias GENEROSAS, CUJA VISTA SE NÃO
OFENDA COM OS RAIOS DO SOL. LANÇAI AS Aves COM A Fera EM UM caárcere claro, E
FORTEMENTE fechado, DEBAIXO DO QUAL POREIS UM vapor tépido, PARA QUE SE ACENDA
A peleja. EM BREVE TEMPO SE COMETERÃO COM DILATADA E OBSTINADA BATALHA, ETÁ
QUE FINALMENTE, DEPOIS DE QUARENTE E CINCO OU CINQUENTE DIAS, PRINCIPIARÃO as
Águias a picar e a despedaçar a Fera. MORRENDO ESTA, INFECTARÁ TODO O CÁRCERE
DE PODRIDÃO…… (ver texto a pp. 65-67).
Uma síntese, que poderemos dizer equivalente a esta, acha-se no TESTAMENTO
HERMÉTICO (em castelhano), ao mesmo tempo simbólico e operativo:
SI EN MERCÚRIO NO ALTERADO,/ DISSUELVES ORO NATIVO,
EL REBIS HAS CONSEGUIDO,/ Y EL FERMENTO DESEADO:
PONLE EN VASO SIGILADO,/EN FOGO LENTO A COSER,
I coloquio
10
ADVERTIENDO, QUE HA DE SER/ TAN SUAVE EL MOVIMIENTO,
QUE SOLO ELENTENDIMIENTO,/PUEDA LLEGARLO A ENTENDER.
(…)
EN DOS ALAS SOLAMENTE,/ CONSISTE TODA LA OBRA,
Y LO DE MÁS TODO SOBRA,/ PORQUE ÉS ENGAÑO PATENTE:
TOMA UN CUERPO PERMANENTE,/ Y AUN TE CUSTE DISUELO,
ABATE EL ÁGUIA AL SUELO,/ Y NO LA DEXES BOLAR;
PORQUE EL INTENTO ES HALLAR,/ MODO DE UNIR TIERRA Y CIELO.
(…) texto completo nas pp. 81-83
Existem algumas passagens de tratados clássicos de Alquimia que referem, o papel
central que a IMAGINAÇÃO CRIADORA teria nesse processo místico de transformação
espiritual que muitos reclamam – vide o caso de M. Eliade . Um exemplo interessante é
o do Rosário dos Filósofos (obra de alquimia operativa que surgiu na Idade Média e no
Renascimento, como sendo atribuida ao alquimista catalão do século XIII, Arnaldo do
Vilanova), podemos ler: A Natureza efectua a sua operação pouco a pouco. E quero
que tu actues assim, e SOBRETUDO QUE A TUA IMAGINAÇÃO SE CONDUZA SEGUNDO A
NATUREZA. E DEVES VER SEGUNDO A NATUREZA, graças à qual os corpos são
regenerados nas entranhas da terra. IMAGINA-O POR MEIO DA IMAGINAÇÃO VERDADEIRA
E NÃO FANTÁSTICA63 . Paracelso distingue a FANTASIA da IMAGINAÇÃO – A FANTASIA NÃO
É IMAGINAÇÃO MAS UM JOGO DO PENSAMENTO64 – não tendo a primeira, como refere
Alexandre Koyré, fundamento na natureza e sendo apenas puramente intelectual, onde
as imagens flutuam no nosso espírito sem ligação profunda entre elas e entre elas e nós
próprios65 . Pelo contrário, a IMAGINAÇÃO é CRIADORA, no sentido em que ela é a
produção MÁGICA de uma IMAGEM66 .Ora esta ACTIVIDADE IMAGINATIVA é muitas
vezes – como refere Yvette Centeno no seu prefácio ao ENNOEA67 – expressa sob a
forma relatos de sonhos, de visões, pelos próprios autores alquímicos. É o caso de
Anselmo Caetano de Castelo Branco, com o seu Sonho Enigmático, descrição
simbólica, onírica, visionária e altamente imaginativa que vem, no fim de ENNOEA –
portanto numa mesma obra de um mesmo autor-, suceder a discursivas e racionais
aplicações do entendimento, embora de uma racionalidade simbólica, sobre a teoria e a
prática da alquimia operativa. Vejamos o seu texto:
Tendo examinado todas as opiniões dos Filósofos Herméticos, e ponderado todos os
enigmas com que os Adeptos explicaram a maior obra, que a Natureza produz com os
instrumentos da Arte, cançado já de tão grande trabalho, ADORMECI E COMECEI A
SONHAR, que estava embarcado, e dava logo à vela, navegando com bonança, pelas
I coloquio
11
inquietas ondas do Oceano. Como não descobria mais que Mar, e Céu, desejava avistar,
ou descobrir terra….
Tendo chegado à Cidade Morgana, ele vislumbra depois um vale, que ficava entre
dois montes muito altos e um admirável e delicioso bosque, onde as cores dos frutos são
ascores da Obra. Encontra aí uma Poderosísima Imperatriz, e um Filósofo, cuja
ocupação era ensinar ignorantes Peregrinos (como ele) e, que de um modo enigmático e
alegórico lhe ensina os Mistérios da Arte que conduzem ao talo precioso – ver texto
completo a pp. 67-70.
CONCLUSÃO
O Tratado ENNOEA constitui a demonstração do erro da hipótese de Eco, pois
estamos em presença (como noutros tratados, p.e. Filaleto, Cosmopolita, etc.) de um
discurso simbólico que não se refere a experiências místico-esotéricas, mas sim a
experiências operativo-laboratoriais.
Se alguma eficácia mística existe na alquimia operativa, ele deverá residir:
– Na ìntima união do operador com a matéria (Canseliet)
– Na utilização da simbolização das operações materiais
Portanto, embora os materiais, descritos mais ou menos simbólicamente, não sejam
estados de alma (como quer Jung), eles podem conduzir a uma transformação psico-
espiritual, resultado de:
a) um estado de espírito sagrado ou religioso.
b) um longo e paciente percurso de comunhão com a Natureza e com as Operações
da Arte.
c) uma capacidade poética de simbolizar os materiais e as operações e de manter a
vivência permenente dessas simbolizações.
NOTAS
1 Unberto Eco, Os limites da interpretação, Lisboa, Difel, 1992 (trad. do original I
limiti dell'interpretacioni, 1990), p. 79 e seguintes – O Discurso alquímico e o
segredo diferido.
2 Op. cit., p. 80.
I coloquio
12
3 Ibidem
4 Ibidem
5 Ibidem. No entanto, é por este discurso alquímico – discurso elaborado pelos cultores
da alquimia simbólica, um discurso ao quadrado, pois é um discurso da alquimia
sobre os discursos dos alquimistas - que Umberto Eco se interessa, para dissertar
sobre a semiose hermética desse discurso polissémico de sinonimia total, do
remoinho metalinguistico sobre o qual assenta o discurso alquímico.
6 op. cit., p. 81
7 Betty Dobbs, Les Fondements de l'alchimie de Newton, Paris, Trédaniel, 1981, p. 87
8 Anselmo Caetano Munhoz de Abreu Gusmão e Castelo Branco, ENNOEA ou
Aplicação do Entendimento sobre a Pedra Filosofal,seguida de outras obras, Nota
preambular de Manuel J. Gandra, Mafra, 1987, Segunda parte, Diálogo segundo,
cap. Únic. # 2, p. 29
9 opp. Cit., p. 9
10 ibid.; a actualização da ortografia é nossa (mantivemos a pontuação).
11 ibid. (idem)
12 op. cit., p. 10
13 cf. José Manuel M. Anes, Hermes redivivo I: Ressurgimentos actuais da Alquimia
Tradicional europeia, Tese de Doutoramento em Antropologia, a defender em breve
na FCSH/UNL.
14 Anselmo Caetano…, op. cit., p. 12
15 op. cit., p. 13
16 op. cit., p. 16
I coloquio
13
17 op. cit., p. 17
18 op. cit., p. 15
19 op. cit-, p. 22
20 H. Eco, op. cit., p. 80
21 op. cit., p. 18 e 19; Castelo Branco/Enodato rejaita assim a via de Weindelfeld, do
spiritus vinii lulliani, expressa em De Secreti Adeptorum (1685), que Enódio refere
nos seguintes termos: Conforme o que ensina Raimundo Lúlio em vários lugares das
suas doutíssimas obras, escolheria o Vinho vermelho, ou branco, para separar dele
o espírito, que é uma quintaeesência, a qual animada com o Sal volátil de tártaro, é
um menstruo radicalmente dissolvente do Ouro (ibid.).
22 vide supra
23 op. cit., p. 29
24 op. ,cit., p. 32
25 op. cit., p. 21
26 op. cit., p. 7
27 op. cit., p. 21
28 ibid.
29 op. cit., p. 23
30 op. cit., p. 23
31 op. cit., p. 22
32 op. cit., p. 22
I coloquio
14
33 op. cit., p. 23
34 op. cit., p.21
35 op. cit., p. 23
36 op. cit., p. 24
37 ibid.; o que dá aso a Anselmo Caetano, pela boca de Enodato, a fazer uma bem
humorada dissertação sobre as (más) qualidades dos Esvrivães, dos Requerentes, das
Sogras, dos lisonjeiros,dos Fidalgos e de outros muitos…
38 op. cit., p. 25
39 ibid.
40 op. cit., p. 26
41 op. cit., p. 27
42 ibid.
43 ibid.
44 op. cit., p. 28
45 cf. Le Livre des Laveures, in Les Oeuvres de Nicolas Flamel, Paris, Pierre Belfond,
1973
46 Note-se que os antigos denominavam o nosso Antimónio metálico, de Régulo de
Antimónio, sendo a nossa Estibina (Sulfureto de Antimónio) denominada de
Antimónio, ou Estíbio – que não era útil para a Obra Grande (como afirma Anselmo
Caetano), mas sim o Régulo….
47 Op. cit., Cap. V
I coloquio
15
48 Rubellus Petrinus, A Grande Obra Alquímica, Lisboa, Hugin, 1997, em particular a
primeira parte.
49 Manuel Algora Corbi, La Tabla Redonda de los Alquimistas, Luís Caárcamo,
Madrid, 1980, pp. 183-195
50 op. cit., p. 33; registe-se o que nos parece uma evidente alusão ao tratado de Filaleto,
A Entrada Aberta no Palácio Fechado do Rei – cf. L'Entrée Ouverte au Palais du
Roi, Paris, Retz, 1976.
51 ibid.
52 ibid.; Manuel Algora Corbi (op. cit.), refere as Vias do Espírito Universal, assentes
(quase) apenas no Antimónio, o que parece não ser o caso da via de Anselmo
Caetano, centrada no Mercúrio, ou Azougue.
53 Op. cit., pp.34-36
54 op. cit., pp. 37-38
55 op. cit., pp. 39-40
56 op. cit., pp. 42-47
57 op. cit., p. 48
58 op. cit., pp. 48-49
59 op. cit., p. 50
60 Op. cit., p. 48
61 op. cit., p. 50
62 op. cit., p. 55
I coloquio
16
63 El Rosario de los Filósofos, Barcelona, Munoz, Moya e Montraveta eds., 1986, p.
31 (a tradução é nossa).
64 citado por Alexandre Koyré, in Mystiques, Spirituels, Alchimistes du XVIe. Siècle
allemand, Paris, Gallimard, 1971, p. 97 (a tradução é nossa).
65 op. cit., p. 96 (idem)
66 op. cit., p. 97
67 Anselmo Caetano Munhoz de Abreu Gusmão e Castelo Branco, ENNOEA ou
Aplicação do Entendimento sobre a Pedra Filosofal, Nota de Apresentação de Y.C.
Centeno, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1987.– gnóstico-hermética –, de
transformação espiritual. Isso é sobretudo claro numa
I coloquio
17
OS PRODÍGIOS
DA LÍNGUA
Ana Hatherly
Agradeço aos organizadores deste Encontro terem-me sugerido o título da
minha comunicação, o qual, parafraseando o meu livro A Experiência do Prodígio, me
encaminhou directamente para ele sem que eu tivesse de fazer qualquer esforço.
Considerando o tema geral deste Colóquio, tudo me encaminharia no sentido de
fazer uma aproximação entre os processos da prática da alquimia - originalmente
relacionada com o secreto processo de transmutação de metais vis em puro ouro - e os
da prática da escrita, originalmente ligada a uma determinada concepção do segredo,
que, operando com um material tão dúctil como é o vulgar material da língua, procurava
obter construções que fossem, tanto quanto possível, incorruptíveis na sua consistência
intrínseca, aspirando a um eterno (a memória ou a fama) que se opunha a um efémero (a
vida) , o que equivalia a um ideal de perfeição.
Porém, como não sou especialista em matéria de alquimia, não me sinto
preparada para fazer uma abordagem comparativa. Por outro lado, embora seja para
mim evidente que existe uma íntima relação entre o segredo e o sagrado, também não
I coloquio
18
irei aqui ocupar-me do aspecto transcendente da palavra como verbo, que me levaria
para regiões onde não desejo agora entrar. Modestamente, irei apenas abordar o aspecto
construtivo que, dentro do sistema duma língua e ao serviço de uma intencionalidade
concreta, a palavra pode desempenhar, tomando como exemplo a construção do objecto
cultural denominado poema. Na minha opinião, nesse processo construtivo a palavra
pode sofrer uma verdadeira transmutação e, de comum objecto material, transformar-se
em puro signo. Nesse caso, através da escrita poética, a palavra reencontra a sua original
consistência de materia prima e, se para os velhos alquimistas, a pedra filosofal é uma
pedra que não é pedra, para os velhos poetas, a palavra não é só palavra: tanto no seu
todo como nos seus elementos constitutivos, a palavra, sobretudo escrita, surge como
uma representação do mundo como enigma, enigma que ela simultaneamente revela e
mimeticamente recria.
Essa concepção da palavra escrita, que se insere numa espécie de cosmologia
poética que pode ser verificada ao longo de toda a história da cultura, é particularmente
nítida na Europa durante o período barroco, quando se produz uma enorme confluência
de saberes antigos em que predomina um pensamento hermético aliado a um culto do
prodigioso, do fantástico e do misterioso, que incendeia as sensibilidades da época e que
a modernidade de então incorpora nos objectos-actos que produz. E é precisamente esse
o aspecto que me remete para os meus livros A Experiência do Prodígio (1) e A Casa
das Musas (2) em que é abordada e ilustrada essa questão, retomada de outro ângulo em
O Ladrão Cristalino (3) e em Poesia Incurável, ainda no prelo.
Em A Experiência do Prodígio, obra que, como sabem os que a conhecem, é
uma antologia de textos visuais dos séculos XVII e XVIII, verifica-se que o fundamento
teórico desses textos repousa numa concepção esotérica da escrita que se apoia numa
tradição que, nalguns casos, é mantida e noutros transformada, pois o pacto lúdico que
então passa a dominar sobrepõe-se por vezes aos ecos de um passado que assim se des-
sacraliza, Por fim, o que se verifica é que essa concepção esotérica.ora se sacraliza ora
se des-sacraliza, num vai-vem alternativo que ilustra as variedades criadas pela
circunstância da sua produção.
Um dos exemplos mais flagrantes de persistência de um pensamento hermético
(de origem sobretudo pitagórico-cabalística) podemos encontrá-la nos Anagramas
I coloquio
19
Poéticos, construções que se baseiam em fundamentos teóricos que, em parte chegaram
até nós, em que a língua, ou se quisermos, a palavra, e até a letra (não se usava ainda a
designação de fonema) como mais tarde viria a acontecer no Concretismo, surgem
como puros signos, sinais autónomos, substantivos, que, no entanto, se integram no
sistema geral duma representação múltipla: por um lado, como representação codificada
do sistema verbo-voco-visual a que pertencem; por outro, como representação dum
universo de significação reservado, parcialmente secreto, o qual, por sua vez, é um
simile (embora imperfeito) do universo geral que é o mundo da criação, pois se o
mundo é um labirinto de Deus, como dizia o Padre Nieremberg na esteira de Plotino,
esse mundo é um livro, onde a criação está escrita.
Justifica-se assim a importância da letra - sinal para ser lido. Luís Nunes
Tinoco, um notável poeta-pintor-caígrafo português do século XVII, é autor de uma
representativa colecção de anagramas poéticos em honra da Rainha D. Maria Sofia
Isabel, segunda esposa de D. Pedro II, colectânea intitulada A Feniz de Portugal
Prodígiosa, que se encontra num manuscrito de 1678, reproduzido em A Experiência do
Prodígio. No texto introdutório, Luís Nunes Tinoco tece as seguintes admiráveis
considerações:
He o mundo todo hum grande livro de que emana a Sciencia da Orthographia:
cujos Tratados são as Idades, os Capítulos, os Séulos, as folhas os annos, os
paragrafos os mezes, as Regras os Dias e as Letras as Horas. Logo que este admirárel
Iivro sahio a luz acabado das mãos do seu Divino Autor, teve encadernação dourada
na primeira Idade de Ouro. Perdeu este Lustre por cometer erratas em o Prologo o
primeiro Leytor dele.
E mais adiante escreve: Foy Adam a primeira Letra do Alfabeto Racional que
Deus tirou e criou do Nada, que hé Anagramma de Adam na língua espanhola (...) Com
Estrellas de brilhante ouro escreveu Deus as Letras redondas sobre o azul dos Celestes
Orbes: com flores de varias cores formou Alfabetos de diferentes matizes na Terra:
com aves de diversas formas delineou vistozas penadas no Ar. Nesta cristalina lamina
desse humido Elemento abriu o subtil buril da Divina Providencia Letras de prata que
posto sejam só Mutas, e Líquidas não deixam de se soletrar nellas innumeraveis
maravilhas da Natureza, que se lêm como Agua. (...) Finalmente nesta Machína do
I coloquio
20
Orbe todas as criaturas são A B C de Deos, como diz Santo Ambrosio, por onde cada
natureza he huma letra cada vínculo huma sylaba e cada geração muytas dicções: não
havendo criatura alguma por pequena que seja que não sirva de folhano volume do
Mundo. (pp. 210-211).
Como já noutro local observei, para o pensamento da época, a representação
toma-se, mais do que nunca, um espaço de reflexão, não só do visível mas do invisível e
"se essa preocupação com a decifração dos sinais do oculto no visível atinge todas as
formas de expressão, as artes da palavra e as artes visuais são veículos privilegiados
para transmitir pela representação (e pela interpretação que suscitam) simultaneamente
o oculto e o patente, o sagrado e o profano, o visível e o invisível, uma vez que, para o
pensamento cristão, o Criador pode ser conhecido através da criação". (4)
Os esforços para atingir a compreensão desse saber, esteticizados no pacto
lúdico que é a escrita poética, são o que nos transmitem as prodigiosas construções que
são os poemas-visuais da época barroca (e seus antepassados históricos, gregos
alexandrinos e medievais), construções em que o processo de codificação (que é o da
sua escrita, da sua construção) é tão complexo quanto o da sua des-codificação (que é a
sua leitura), representando, uma, o poder de criar, e a outra, o poder de interpretar,
igualmente criador, que em si mesmo encontra a recompensa. Mas é preciso merecê-la,
e assim nem todos podem aceder a ela, ou seja, nem todos atingem esse ouro, essa
forma de perfeição reservada, de certo modo demiúrgica.
Considerando o Anagrama como um dos textos-visuais tipicos do periodo
barroco escolhido para ilustrar esses princípios, direi que o fundamento teórico do
anagrama como composição poética está claramente descrito em A Experiência do
Prodígio nos textos de Alonso de Alcalá y Herrera e de Luís Nunes Tinoco, incluídos
nessa Antologia, onde se pode verificar a complexa origem e a complexa prática desses
enigmáticos textos-visuais que a sua construção e a sua descodificação exigem e que
aqui não poderemos abordar em profundidade. Remetendo os interessados para a leitura
dessa teorização, limitar-me-ei aqui a citar Alonso de Alcalá y Herrera, que na sua
extraordinária obra intitulada Jardim Anagramatico de Divinas Flores, impresso em
Lisboa, na Officina Craesbeckiana em 1654, onde apresenta 683 Anagramas em prosa e
em verso, do ponto de vista teórico define assim o anagrama:
I coloquio
21
He pois ANAGRAMA nome Grego, cõposto de duas dicções - ANA -
preposiçaõ, & GRAMMA - nome que significa letra - que delle tambem se deriva
Grãmatica -, E assi ANAGRAMA val o mesmo que trãsposisçaõ de letras, porque se
deriva de Anagrammatizin, que he o mesmo que trãsposiçaõ dellas, assi no escrever,
como no falar: de sorte, que com as mesmas letras de hum nome, ou nomes, & periodos,
trocadas as syllabas, ou as letras, se pronuncie, ou escreva outro nome ou nomes, &
periodos differentes, sem que se tire nem acrescente letra algua, porque em se lhe
tirando ou acrecentando, já naõ fica verdadeiro Anagrama. (pp.195-196).
Simples exemplos da aplicação do princípio do anagrama podemos ver nas
seguintes transposições: Maria=Arima; Isabel=Belisa; Paraiso=Rosa Pia, etc. .Mas há
aqui a notar a diferença entre anagrama e palindroma, uma vez que, se no anagrama a
transposição das letras pode fazer-se por qualquer ordem, no palindroma a transposição
das letras é feita apenas na leitura, sem inversão da sua ordem escrita: por exemplo: Ana
que se lê sempre do mesmo modo, quer a leitura seja feita a direito ou ao revés e o
mesmo se pode fazer com frases inteiras.
Voltando ao anagrama, a questão da transposição das letras complica-se quando
o seu processo se aplica á construção de todo um texto. Sendo o anagrama um texto
essencialmente programático, é necessário comprovar a sua exactidão, quer dizer, a sua
fidelidade ao princípio estruturante, daí que os Anagramas Poéticos Aritméticos venham
acompanhados do seu respectivo quadro de verificação. Considerem-se os seguintes
exemplos, atribuídos a Luís Nunes Tinoco.
Em primeiro lugar, o Anagrama Poético, que faz parte da extensa obra
manuscrita com data de 1678, atribuída a Luís Nunes Tinoco e intitulada A Pheniz de
Portugal Prodigiosa em seus nomes Maria Sofia Isabel Raynha Sereníssima & Sra.
Nossa, que já referimos e que é um prodigioso Panegirico,
I coloquio
22
Estamos aqui perante um soneto que é um complexo anagrama poético
acróstico sobre as letras que constituem o nome da Rainha - Maria Sofia lsabel - que,em
anagrama, dá là LI Sabia Fermosa. Sendo o nome da Rainha constituído por 16 letras,
na Tábua de Comprovação verifica-se que, somado o número de vezes que no nome da
rainha, como no seu anagrama, e ao longo do poema, aparecem as letras que o
constituem, obtém-se o número 16, com o que se comprova a sua exactidão,
independentemente do seu valor simbólico.
Vejamos agora um outro exemplo, retirado do mesmo Panegírico, em que o
valor simbólico de letras e de números é considerado:
Quanto à sua leitura descodificadora escreve o seu autor (aqui citado em
ortografia actualizada para melhor compreensão):
I coloquio
23
Todos os números estão cheios de Mistérios e contêm grandes virtudes, como
dizem muitos Autores. Os nomes de Maria Sofia Isabel têm 16 letras e são constituídos
por três unidades. O número 3 sign!fica a apreensão da Divina Vontade. O número 6
denota perfeição e bondade. O número 10 é a ideia de Perfeição. Têm mais os 3 nomes
que em cada um dos primeiros há o número 5 e no terceiro 6. O número 5 significa
Bondade e o 6 perfeição da Bondade. Ambos se provam pelo 5° e 6° Dia da Criação,
que no 5° se diz (Gen. 25 e 31) Vidu Deus quod esset Bonum e no 6° Et erant valdi
Bona. Dá-se na Aritmética estas 3 casas ou termos: Unidade, Dezena, Centena (e assim
se vão seguindo outras, como Unidade de Milhar, dezena de Milhar, Centena de
Milhar, etc.) que fazem triângulo e se expressam pelo nosso Anagrama. Ensinam-se
também 4 espécies que fazem um quadrado (e se estendem pelos 4 lados do quadrado,
os quais se nomeiam; somar, diminuir, multiplicar, repartir, começando em 4 letras).
Raro prodígio! E que outra cousa vem a ser estas 4 letras senão umas breves cifras da
Rainha N. Sra. que dizem Dona Maria Sofia Rainha. E dizendo muito, estas 4 letras
não dizem mais nada, deixando o discurso suspenso na última dicção e não sofrendo a
curiosidade que fique em silêncio o Reino de que é Rainha, o explique a Ortografia.
Há outros tipos de Anagramas Poéticos, como sejam os Cronológicos, em cuja
base de construção está a atribuição de um valor numérico, um valor de ordem, sistema
de numerologia, que duplica o valor simbólico do signo. Assim se estabelece uma
complicada trama processual em que a materia prima do alfabeto, como elemento de
representação da fala, ou seja, da lingua, do qual resulta o texto poemático, sofre uma
fantástica transmutação, passando de simples matéria-prima a espelho da complexa
significação cifrada do mundo.
Vejam-se os seguintes dois exemplos de uma Hymnodia Chronologica da
Autoria de Alonso de Alcalá y Herrera, incluída no já referido volume Jardim
Anagramático de Divinas Flores:
I coloquio
24
No primeiro podemos ver a explicação do processo utilizado nos seis Hinos que
compõem esse capítulo da obra. No segundo a aplicação do processo. Tudo para
celebrar o ano de 1651. Estas elaboradas composições são acompanhadas de uma
extensa exposição em que são interpretadas especulativamente e a uma luz mística o
valor das letras e o das cifras, em que claramente se revela a sua origem esotérica,
cabalística, aliás declarada como tal pelo seu autor.
Esta breve incursão no universo enigmático da escrita poética baseada numa
tradição tão esotérica e proibida como foi a da alquimia, permitir-nos-ia talvez
estabelecer entre ambas curiosas pontes, se para tal dispuséssemos aqui de tempo. Como
isso não sucede, fico por aqui, desejando que os presentes ouvintes se tornem futuros
leitores.
Obrigada pela vossa atenção.
NOTAS
(1) Lisboa. INCM. 1983
(2) Lisboa; Editorial Estampa. 1995
(3) Lisboa. Edições Cosmos. 1997
(4) O Ladrão Cristalino. ob. Cit.. p. 98
I coloquio
25
AS RAÍZES ALQUÍMICAS
DA MINERALOGÍA
A. M. Galopim de Carvalho
I coloquio
26
Vinda da antiguidade, com raízes na China, na Índia na Babilónia e no
Egipto, através da tradição e dos textos eruditos dos clássicos gregos e
latinos, a Mineralogia percorreu toda a Idade Média, de mãos dadas com
a Alquimia, tendo aí crescido bastante, deixando para trás muitas das
concepções fantasistas e místicas dos escolásticos, até se tornar ciência,
a par da química, a partir do século XVIII, fazendo-a progredir e tirando
dela o essencial do seu próprio aprofundamento como disciplina de
acentuada organização sistemática.
A alquimia, nome que radica no grego chymeia, e que significa
mistura, chegou à Europa trazida pelos árabes, seus cultores, que a
transformaram em al kimia, ou pedra filosofal, expressão de um conceito
carregado de sabedoria. Através do Egipto, a alquimia chegou à Grécia
antiga onde ficaram célebres Hermes Trismegisto e Zózimo de Tebas. Em
Roma teve protecção de Calígula e enfrentou a perseguição de
Diocleciano devido aos abusos a que se entregou.
Na escola árabe antiga florescia a “polifarmácia”, actividade alquímica
em que se queimava, sublimava, dissolvia, precipitava, na crença de que
a maioria dos metais era composta de mercúrio e enxofre. À escola árabe
se deve, por exemplo, o termo bórax, nome ainda em uso para referir um
borato natural de sódio. Como acontece em qualquer domínio da
actividade humana, cultural, técnica ou científica, os alquimistas não
partiram do zero; tinham atrás deles um saber antigo que herdaram não
só por via tradicional, veiculado por sucessivas gerações de prática
mineira e metalúrgica, mas também por via erudita, através dos textos
dos clássicos recuperados nas traduções que judeus e eles próprios
fizeram.
Uns mais outros menos, os alquimistas “colocaram várias pedras” no
vasto e complexo edifício do conhecimento mineralógico que temos ao
nosso dispor. O legado que nos deixaram é algo que lhes devemos, e
muito. E a maneira de saldarmos essa dívida é reconhecer-lhe a obra e
procurar divulgá-la como património cultural, da mesma maneira que
I coloquio
27
divulgamos as artes, as letras ou os feitos heróicos da História da
humanidade.
Desde os tempos mais recuados que o mundo mineral despertou o
interesse e a curiosidade humanas. A utilização intensiva de sílex,
quartzo, calcedónia ou jade como matérias primas no fabrico de
utensílios ou de objectos de adorno e votivos, demonstra que o homem
pré-histórico os procurou sistematicamente e que, portanto, lhes
dedicou tratamento racional, primitivo talvez, mas eficaz. Por outro
lado, a sua condição humana permitiu-lhe acumular conhecimentos que
foi legando aos descendentes ao longo de sucessivas gerações. Os
pigmentos naturais à base de óxidos de ferro (os ocres vermelho e
amarelo respectivamente, hematite e limonite) e de manganês (preto,
pirolusite) e outros, usados nas pinturas rupestres do Paleolítico
superior ou sobre os próprios corpos, mostra que os nossos
antepassados pesquisaram e exploraram os respectivos minerais. O
fabrico de objectos em ouro, bronze ou ferro revela, por outro lado,
que as primeiras civilizações não só prospectaram e extraíram, como
também transformaram os minerais correspondentes, numa actividade
tão importante que levou os historiadores a falar em idades da Pedra,
do Cobre, do Bronze e do Ferro. Os Celtas e também os Babilónicos,
de entre os quais surgiram os primeiros alquimistas, já praticavam a
prospecção mineira e a metalurgia do ferro.
Na Antiguidade, Aristóteles (384-322 a. C.) dissertava sobre os “seus”
quatro princípios ou elementos primordiais da natureza, ar, água, terra e
fogo,1 ao mesmo tempo que produziu os primeiros escritos sobre
objectos naturais inorgânicos, tendo designado por metalóides os
minerais com aspecto metálico. Teofrasto (372-287 a. C.), seu discípulo,
escreveu um tratado sobre “As Pedras” e um outro sobre metais, minas e
metalurgia, que se perdeu. A ele se deve a primeira classificação de
minerais, que tinha por base a utilidade desses produtos naturais como
minérios, pedras preciosas, pigmentos, etc., tendo descrito vários tipos
de minerais, sobretudo gemas, e algumas rochas, utilizando para tal
I coloquio
28
propriedades físicas, entre as quais, a densidade, o brilho, a fusibilidade
e a dureza. Por essa altura já os gregos aplicavam o teste de avaliação da
dureza relativa dos minerais, e esboçavam os primeiros cálculos de
densidade, na sequência dos trabalhos de Arquimedes (287-212 a. C.).
Por outro lado, a utilização de metais, como ouro, cobre, prata e ferro,
permitia-lhe o conhecimento, ainda que empírico, daquelas propriedades
físicas.
Mais tarde e no que toca à civilização romana, Plínio, o Velho, de seu
nome Caius Plinius Secundus (23-79 d. C.), morto na histórica erupção
do Vesúvio, ocupa lugar de destaque através da sua monumental História
Natural em 37 volumes. Aí se encontram mais algumas descrições de
minerais, em especial dos pigmentos, dos minérios e das gemas.
Na Idade Média o alquimista árabe Gabir Ibn Haiyan (721-803), mais
conhecido por Geber, propôs uma classificação baseada em propriedades
físicas observáveis ou determináveis. Segundo ele, as substâncias
minerais repartiam-se por três grupos: “minerais quebradiços e
pulverizáveis”, fusíveis ou não; “minerais metálicos”, fusíveis e
maleáveis; e “minerais vaporizáveis” pelo fogo, a que chamou
“espíritos”. Neste longo período da História, os árabes, que haviam
assimilado as culturas helénica e indiana, progrediram, ao contrário dos
povos da Europa cristã acorrentados aos dogmas da Sagrada Escritura,
sob a vigilância constante e repressiva do poder da Igreja.
Avicena (Ibn-Sinã) que viveu entre 980 e 1037, outro árabe que fez
história no panorama alquímico, propôs no seu Tratado das Pedras a
primeira classificação a partir das características externas observáveis
directamente, como a cor, a forma e o brilho, e das propriedades físicas
determináveis, entre as quais, a fusibilidade. “Pedras e terras”, “minerais
fusíveis e sulfurosos”, “metais” e “sais” foram algumas das divisões que
estabeleceu.
Albertus Magnus, monge dominicano de nome Albert von Bollstadt
(1206-1280), interessou-se pelas rochas e pelos minerais, e, no livro que
I coloquio
29
nos legou, De Rebus Metallicis et Mineralibus, este teólogo e grande
alquimista do seu tempo, tido por muitos como mago e a que foi dado o
nome de Doutor Universal, tratou como minerais todo o tipo de pedras e
os metais. Estudou as propriedades do enxofre e de muitos sais
metálicos, além de que contribuiu para redescobrir Aristóteles através
das traduções dos rabinos e árabes eruditos. Com efeito, após a queda do
Império Romano do Ocidente, grande parte do conhecimento produzido e
ensinado na Antiguidade, só sobreviveu, como já referimos, graças a
essas traduções e a outras relativas a textos de saber alquímico, de
babilónios e egípcios. Foi assim que a alquimia oriunda destes povos,
bem como a Filosofia grega, reapareceram na Europa medieval. Foi a
época dos Lapidários, assim se chamavam os livros, primeiro
manuscritos e depois (a partir do século XV) impressos, no geral,
pequenos, com algumas descrições ainda imprecisas das propriedades dos
minerais e de outras pedras, plenos de alusões às suas qualidades
medicinais e mágicas, de que o mais conhecido é o célebre De Gemminis,
da autoria do bispo de Rennes, Marbode (1035-1123). Foi igualmente a
época dos enciclopedistas árabes e cristãos, muito subordinados aos
textos de Aristóteles, Teofrasto e Plínio, valiosas fontes de saber antigo
ao dispor dos alquimistas.
No século XIII, o franciscano inglês Roger Bacon (1214-1292), que
ficou conhecido por Doctor Mirabilis, interessou-se profundamente pelo
conhecimento experimental, campo em que alcançou a celebridade.
Apesar de condenar a magia, Bacon era tido por praticante dessa
actividade oculta e, como tal, temido. A sua crença na alquimia foi
compartilhada pelos sábios do seu tempo e as suas divergências face aos
escolásticos focalizam-nas na separação entre a ciência e a teologia,
atitude coincidente com a dos comentadores árabes de Aristótoles, entre
os quais se distinguiu o filósofo do século XII, Averróis, nascido em
Córdova. Ao tempo, entre os alquimistas, os minerais eram classificados
em quatro grupos, “gemas”, “minerais”, “combustíveis” ou “flogistos” e
“sais”, e a procura das suas qualidades com interesse em medicina fez
crescer a alquimia, que evoluiu, acumulando conhecimentos e
I coloquio
30
experiência até ao século XVIII, época em que começou a confundir-se
com a Química Mineral, um estágio inicial da actual Química Inorgânica
como ciência.
Na Idade Média acreditava-se na transmutação dos metais, o que deu
lugar a experiências sem conta, numa busca desorganizada mas de que
resultou um significativo avolumar de conhecimentos que, associados à
prática dos metalurgistas, numa tradição cultural vinda da pré-história,
permitiram avanços do conhecimento químico e mineralógico nem
sempre suficientemente reconhecidos quando, simplisticamente, se fala
em Idade das Trevas e do obscurantismo a ela associado. Não obstante a
preponderância da escolástica e as restrições impostas à experimentação
pelos dogmas da Igreja, os alquimistas ensaiaram e compreenderam
muitas reacções químicas, conheceram novos sais e alguns elementos
químicos como antimónio e o bismuto, cujas descobertas, em 1413, se
devem ao alquimista Basile Valentini.
Na Renascença, os grandes pensadores defendiam os métodos
experimentais na química e, consequentemente, na mineralogia, dado o
paralelismo que caracterizou as respectivas marchas. Leonardo da Vinci
(1452-1519) foi um dos primeiros a pôr em causa os quatro princípios ou
elementos ditos de Aristóteles, bem arreigados no espírito da época após
cerca de dois mil anos de vigência inquestionável. Como em todos os
antigos ramos do saber, é na Renascença que a alquimia começa a dar
passos no caminho da mineralogia e, assim, a tomar corpo de ciência.
Citem-se, desta idade, os livros De la Pirotechnia, do italiano Vanoccio
Biringuccio (1540), e De Natura Fossilium (1546) e De Re Metallica
(1556) de Agrícola, médico alemão, de nome, Georg Bauer (1495-1555).
Deve dizer-se que o termo fóssil, em latim, fossilium, significa tudo o
que está enterrado no solo e que, portanto, compreende os minerais e as
rochas. Só muito mais tarde, no século XVIII, o termo fóssil passou a ser
usado no sentido que hoje lhe atribuímos, isto é, o de referir os restos de
seres vivos petrificados. Nestas duas obras de Agricola, dois marcos na
história da mineralogia, dá-se conta do estado dos conhecimentos de
I coloquio
31
então, sendo considerados os primeiros compêndios de mineralogia,
mineração e metalurgia, numa época em que já havia alguma prática
mineira, estando em exploração os importantes jazigos da Saxónica, da
Boémia, da Itália, entre outros da velha Europa.
Agricola acabou por se tornar num dos mineralogistas mais célebres de
sempre, ao expurgar da alquimia tudo o que ela tinha de magia e de
imposição escolástica. Este homem de grande sabedoria propunha então a
existência de seis tipos de minerais: “minerais fusíveis”, “terras”, “sais”,
“pedras preciosas”, “metais” e “ligas metálicas”, dando relevo ao uso de
propriedades físicas na identificação dos minerais, tais como cor, brilho,
transparência, densidade, dureza, fusibilidade, solubilidade, cheiro e
sabor. Este “Plínio da Saxónia”, assim era apelidado, não dispunha
porém de dados químicos, ainda por descobrir. Os seus conhecimentos
sobre a génese e modos de ocorrência dos minerais influenciaram várias
gerações de estudiosos europeus, entre os quais, o português Garcia de
Orta (1501-1568) nas suas referências às gemas do Oriente no “Colóquio
dos Simples e Drogas e Cousas Medicinais da Índia”, publicado em Goa,
em 1563.
Pela mesma época, o suíço Paracelso (1493-1541) trabalhava
quimicamente os minerais com vista a conhecer-lhes o interesse em
medicina. De nome Philipp Theophrast von Hoherheim, este médico vale
um dos mais célebres alquimistas do seu tempo insistia na importância da
observação dos objectos naturais e entre eles também os minerais, tendo
sido o primeiro a reconhecer que os processos vitais são de natureza
química e a concluir que a cura das doenças deveria ser encontrada no
estudo da respectiva disciplina. Mostrou várias utilizações do enxofre,
do chumbo, do cobre e do antimónio, já então conhecidos e isolados.
Paracelso deixou uma obra que culminou toda a alquimia dos séculos que
o precederam e admitia a existência de um dissolvente universal a que
deu o nome de alcaeste.
I coloquio
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Após a época de Paracelso e de um seu contemporâneo, o alemão
Conrad Geoner (1516-1565) autor do célebre De Rerum Fossilium,
Lapidum et Gemmarum (Zurique, 1566), os alquimistas começaram a
dividir-se em dois grupos: os que trabalhavam no sentido da química
científica e os cultores de uma outra atitude, fantasista e extravagante,
responsável pela imagem negativa que, injustamente, tem sido a mais
divulgada em torno da alquimia e dos alquimistas.
No século XVI e na tradição de uma crença antiga, ressuscitada pelos
árabes e divulgada, sobretudo, por Albertus Magnus, três séculos antes,
estes últimos aceitavam que determinadas pedras, ou calculi, incluindo
alguns minerais, cresciam no corpo de certos animais , a par de outras,
geradas no reino vegetal, nos mares e lagos, no interior de cavernas, etc.
No seu livro Speculum Lapidum (1505), Camilus Leonardus, muito
embora não sendo considerado alquimista, descreve uma quinzena de
pedras nascidas no corpo de animais como a cabra, o burro, o frango
capão, o dragão, o gato, a hiena, o veado, o lince, a ostra (na pérola), o
galo, o abutre, etc.. Assim, pedras como asinius, gerada no burro,
extraída da urina do lince, e muitas outras constavam dos receituários
médicos e dos textos de magia. De todos, ficaram-nos algumas
recordações como draconites nascida na cabeça do dragão e a célebre
pedra de bezoar ou lapis bezoaris, retirada da cabra, panaceia para
muitos males e poderoso antídoto contra os venenos.
Até finais da Idade Média, a alquimia e a busca da Pedra Filosofal
fascinaram a imaginação de muitos eruditos, tendo como resultado
retardar o avanço da química, pois, embora o conhecimento e a
experiência tivessem progredido, outro tanto não sucedeu com a
sistematização do saber acumulado e, assim, esta disciplina só começou a
ganhar foros de ciência com o alvor do século XVIII. À alquimia sucedeu
uma química mineral onde radica a que é conhecida por mineralogia
empírica, esboçada muito antes por Agricola. Só então teve lugar o corte
definitivo com o passado alquimista.
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No século XVII, a Inquisição mostrava já alguma tolerância pelas
teorias de pendor matemático que não questionassem o saber dogmático,
mas já assim não sucedia com outros domínios do conhecimento que, na
visão da Igreja, questionassem os princípios tidos por intocáveis. O
químico inglês Robert Boyle (1627-1691) inovou sobre o conceito de
elemento químico, mas as suas ideias, que punham em causa princípios
tidos por intocáveis, tiveram de esperar um século para serem
definitivamente aceites. Boyle foi mais um, á semelhança de Leonardo da
Vinci, a pôr em causa (no seu livro Skeptical Chymist, 1677) a visão
aristotélica dos quatro elementos, só definitivamente rejeitada após mais
de vinte séculos de ensino escolástico que percorreu e dominou todo o
período efervescente dos alquimistas.
O fim da prática alquímica no mundo das pedras terminou com a
primeira proposta de classificação dos minerais com base em critérios
químicos (através do uso da chama e do maçarico de sopro), surgida em
1758, da autoria do alemão Alex Fredrik Cronstedt (1702-1765). Por seu
turno, em França, Antoine Laurent Lavoisier (1743-1794), tragicamente
apanhado na voragem da Revolução Francesa, criava os fundamentos da
química moderna, contribuindo decisivamente para que a mineralogia se
elevasse acima do saber empírico que sempre fora até aí e se tornasse
uma entre as demais ciências.
NOTAS
1 - Vulgarmente atribuídos ao ilustre filósofo estes quatro elementos
são o culminar de uma concepção muito anterior ao grande mestre e
fundador do Liceu de Atenas, que se desenvolveu gradualmente até ser
objecto de uma formulação, mais completa e abrangente, por Empédocles
(circa 450 a.C.) como Teoria das Substâncias ou Teoria dos Quatro
elementos. Nesta visão do mundo coube a Aristóteles o mérito de a
divulgar e lhe dar crédito tal que a fez singrar, incóetume, por quase dois
mil anos, inclusive, com a aceitação da Igreja romana, que a adoptou e
impôs, no essencial do seu conteúdo, opondo-a constante e tenazmente à
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“teoria atómica, também ela fruto do pensamento grego antigo”.
BIBLIOGRAFIA
ELLENBERGER, François — Historia de la Geología. Vol I. De la
Antigüedad al siglo XVII. Ed. Labor, Madrid. 1989.
ADAMS, Frank Dawson — The birth and development of the Geological
Sciences. Dover Publications, Inc., Nova Yorque, 1938.
FRANÇOIS, Elenbeger (1988) — Histoire de La Géologie. Tome I, Des
Anciens à la première moitié du XVII e Sciècle.
TRANSMUTAÇÃO
DOS ELEMENTOS
Isabel Serra
FÍSICA E ALQUIMIA
I coloquio
35
Os físicos têm, em geral, poucos conhecimentos sobre Alquimia, mas sabem que ela
está associada às palavras ouro e transmutação. Em especial esta última contém
ressonâncias importantes para um físico do século XX. É durante os primeiros anos
deste século que a transmutação passa a ser um fenómeno físico. Processo mediante o
qual um elemento se transforma noutro, a transmutação contém algo de mágico,
também para os físicos. Para o compreender é necessário conhecer um pouco da história
da radioactividade, um ramo da física que nasceu no fim do século XIX e que viria a
revolucionar a física no século XX. A descoberta da radioactividade deu origem a uma
área completamente nova na física - a microfísica- e que, por diversas razões, ganhou
uma enorme dimensão. Mas para além disso, a radioactividade veio finalmente permitir
a realização de um dos sonhos alquímicos - a transmutação dos metais em ouro.
Essa história do “encontro” entre a física e a Alquimia pode ser caracterizada por
quatro momentos principais:
1. DESCOBERTA DA RADIOACTIVIDADE (1896)
2. INTERPRETAÇÃO DA RADIOACTIVIDADE COMO RESULTANTE DA
TRANSMUTAÇÃO DE UM ELEMENTO NOUTRO (1902)
3. TRANSMUTAÇÕES PROVOCADAS (1919)
4. TRANSMUTAÇÃO E ACELERADORES DE PARTÍCULAS (1928-1932)
Estas quatro fases correspondem a verdadeiros progressos da investigação em física e
traduzem-se pela possibilidade de compreender, e depois realizar, as transmutações que
se queiram, inclusive as de um metal em ouro.
A história da radioactividade não pode ser reduzida, é claro, ao problema das
transmutações, mas se estivermos interessados unicamente nesse aspecto, são aqueles
quatro os passos fundamentais que conduzem a uma verdadeira “apoteose” com a
invenção dos aceleradores de partículas. Os aceleradores permitem, em princípio,
transformar um dado elemento noutro qualquer, ou seja, realizar qualquer transmutação.
Depois da invenção do acelerador não foram realizados progressos decisivos para a
realização de transmutações provocadas, mas apenas melhoradas as condições e os
rendimentos de tais reacções.
A DESCOBERTA DA RADIOACTIVIDADE
Há quem ponha em causa a utilização da palavra descoberta em muitas situações da
ciência, mas creio que a radioactividade é um daqueles fenómenos sobre o qual todos
estarão de acordo em usar tal palavra. Impossível de detectar por simples observação
visual, táctil ou sonora, a radioactividade é a capacidade de certos elementos emitirem
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radiação espontaneamente. Presentes na natureza desde a formação da terra, embora
com fraca intensidade, só no limiar do século XX os fenómenos radioactivos são
descobertos e estudados.
Foi Becquerel, em 1896, quem descobriu que o Urânio emite espontaneamente uma
radiação de natureza desconhecida. Essa radiação, as suas propriedades, as propriedades
dos elementos que a emitem é estudada, nos anos seguintes, por um grande número de
físicos, e entre os mais conhecidos estão Pierre e Marie Curie. Eles conseguem, em
particular, obter, por purificação, amostras de várias substâncias radioactivas, algumas
delas inteiramente desconhecidas até então.
É indispensável dizer que, mesmo depois de bem estudado o fenómeno da
radioactividade e as suas propriedades e efeitos, a origem da emissão de radiação
permaneceu um mistério, durante muitos anos. Foi necessária uma teoria física sobre a
constituição microscópica da matéria, para compreender as razões pelas quais certos
elementos emitem espontaneamente radiação.
A primeira explicação sobre a origem do fenómeno resulta da colaboração entre um
físico neo-zelandês, Ernest Rutherford (1871-1937) e de um químico inglês, Frédérick
Soddy (1877-1956), trabalhando em conjunto na universidade de MacGill, em
Montréal.
A TRANSMUTAÇÃO RADIOACTIVA
Rutherford desempenha um papel central no estudo da radioactividade, ao qual se
dedica quase logo após a sua descoberta. Em 1902, trabalhando em conjunto com
Soddy, Rutherford interpreta a emissão de radioactividade usando a hipótese de que ela
está associada à transmutação de um elemento químico noutro elemento. Quando
dessa descoberta Rutherford hesita.... “se falamos de transmutação vão chamar-nos
alquimistas”, enquanto que Soddy “exalta por ser, de entre os químicos de todos os
tempos, aquele que torna realidade o velho sonho alquímico - o da transmutação” (1)
Mas, embora identificado, durante muitos anos não se soube controlar, nem mesmo
compreender esse processo de transmutação espontânea dos elementos. Durante os
primeiros vinte anos do século XX, físicos de vários países dedicaram-se a estudar os
processos de transmutação dos elementos radioactivos. Esse processo espontâneo é
responsável pela transformação sucessiva de um elemento noutro, e ainda noutro e
noutro, formando-se cadeias de elementos. A essas cadeias dá-se o nome de famílias
radioactivas.
No quadro seguinte podemos ver uma parte da família do Rádio, começando no
Urânio-238 e que se desintegra sucessivamente, por radioactividade a ou b, para
originar uma série de elementos até ao chumbo. Os dois tipos de radioactividade
correspondem à emissão de dois tipos de partículas, respectivamente, núcleos de hélio e
electrões.
Para além desta família radioactiva existem ainda outras duas e também alguns
elementos radioactivos naturais de períodos muito grandes e que não formam famílias,
I coloquio
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tal como o potássio-40, que existem na natureza desde a época da formação do sistema
solar.
TRANSMUTAÇÕES PROVOCADAS
É ainda Rutherford o autor de mais um episódio importante do ponto de vista da
transmutação dos elementos. Em 1919, bombardeando certos elementos com partículas
alfa, Rutherford descobre que eles se transformam noutros elementos, ou seja, que se
podem provocar transmutações que de outra maneira não ocorreriam na natureza. São as
chamadas transmutações artificiais. Estava aberta a via para transformar,
artificialmente, uns elementos noutros, em particular em ouro. Embora, no século XX,
isso tenha deixado de ser importante, não deixa de ser curioso que se tenha cumprido o
velho sonho alquímico, embora por transformação física, e não química, dos elementos.
O primeiro exemplo de transmutação provocada artificialmente pode ser
representado da seguinte maneira:
(IMAGEM)
Esta representação significa que o núcleo de um átomo de azoto (N), quando é
bombardeado por uma partícula a, se transforma num núcleo de oxigénio (O) e num
protão (p). Um protão é um constituinte dos núcleos atómicos de todos os elementos e,
por exemplo, o hidrogénio tem no seu núcleo apenas um protão. O protão resultante
desta reacção é pois, um núcleo de hidrogénio.
As reacções nucleares, de que esta é um exemplo, traduzem a transformação de um
elemento noutro, ou melhor, a transformação de núcleos. Para transformar um elemento
noutro é preciso alterar a estrutura do núcleo atómico. A modificação do núcleo de um
elemento não pode acontecer numa reacção química, onde é alterada apenas
constituição superficial do átomo. Daí que os alquimistas nunca poderiam conseguir os
seus intentos de transformar um elemento noutro durante uma reacção química.
Para transformar um elemento noutro qualquer basta mudar o seu núcleo, tirando ou
acrescentando protões, tirando ou acrescentando neutrões (o outro constituinte do
núcleo). Embora, do ponto de vista teórico, estas transformações sejam sempre
possíveis, algumas delas são muito difíceis de fazer na prática, pois exigem gandes
quantidades de energia.
Actualmente sabe-se transformar um núcleo de carbono em azoto, um de cobre em
níquel, um de argon em potássio e mesmo UM DE CHUMBO EM OURO. No entanto
o ouro assim fabricado é muito mais caro que o ouro natural!
I coloquio
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ACELERADORES DE PARTÍCULAS
Podemos designar por última fase da realização do sonho da transmutação dos
elementos, aquela em que foram descobertas as técnicas e construídas as máquinas que
permitem provocar qualquer transformação. A história da construção de tais máquinas,
chamadas aceleradores de partículas, começa também com Rutherford, e com a sua
equipa, no laboratório Cavendish da universidade de Cambridge, durante os anos 20.
As experiências de transmutação artificial dos elementos tinham posto em evidência
que as reacções nucleares têm maior rendimento se se utilizarem, no bombardeamento,
partículas com grandes velocidades. São vários os laboratórios que se empenham em
construir experiências de aceleração de partículas e são variados os métodos usados. Na
Alemanha A. Brasch e F. Lange tentam acelerar protões usando...a electricidade das
nuvens e um físico morre em consequência disso. (3)
As primeiras experiências de desintegração artificial obtidas com partículas
aceleradas são realizadas por J. D. Cockcroft (1897-1967) e E. Walton do laboratório
Cavendish. Em 1932 eles obtêm a desintegração do lítio em duas partículas a.
O mais eficaz de todos os aceleradores de partículas - o ciclotrão - foi inventado e
construído por Ernest Lawrence (1901-1958), um físico norte-americano de grande
dinamismo. Essa característica foi-lhe indispensável para encontrar quem financiasse os
vários ciclotrões que construíu durante os anos 30 e que serviram para importantes
investigações em física e em química. A invenção do ciclotrão deu a Lawrence o prémio
Nobel da física em 1939.
Os aceleradores de partículas serviram, em particular, para fabricar elementos
radioactivos artificiais, que não existiam na natureza. Foram Irène e Frédéric Joilot-
Curie quem pela primeira vez identificou esses elementos e a descoberta da
radioactividade artificial - uma das grandes descobertas dos anos 30 em radioactividade
- valeu aos seus autores o prémio Nobel.
CONCLUSÃO: A ERA DA ALQUIMIA
É possível produzir um grande número de elementos radioactivos artificiais nos
aceleradores de partículas, usando transmutações provocadas por partículas aceleradas.
Muitos desses elementos têm aplicações em biologia, agricultura, medicina e história.
Actualmente, a produção de elementos radioactivos faz parte da rotina de alguns
laboratórios que se dedicam a fornecer a indústria e outros sectores da actividade.
Tendo em conta que a transmutação dos elementos é, nos nossos dias, um acto
rotineiro, podemos dizer que vivemos na “era da Alquimia”. A transmutação, para além
de rotineira, tem também inúmeras aplicações, por exemplo na produção de isótopos
radioactivos. Isótopo de um elemento é o que tem o mesmo número de protões e de
electrões, mas diferente número de neutrões. Todos os elementos que existem na
natureza têm isótopos radioactivos e uma das características importantes dos isótopos é
o possuírem as mesmas propriedades químicas. Numa reacção química, ou num
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organismo vivo, os isótopos radioactivos seguem os mesmos passos que o elemento
principal e, por serem radioactivos, podem ser detectados e seguidos nos seus
trajectos.
Conta-se que Ernest Lawrence, para ilustrar as suas lições, bebia, no início da aula,
um copo de água com cloreto de sódio no qual havia dissolvido uma pequena
percentagem do indicador radioactivo . Colocando a mão sobre um contador Geiger-
Muller (que detecta a radioactividade), ele mostrava como o sal circulava no seu corpo.
Para ilustrar outro aspecto da radioactividade, Lawrence fazia uma segunda medida no
fim da aula, para mostrar o decrescimento do isótopo no tempo. Os isótopos
radioactivos de período curto são inofensivos para o organismo quando usados em
pequenas quantidades.
O Iodo radioactivo foi utilizado desde 1937 para o estudo do metabolismo do iodo na
glândula tiróide e para o tratamento das doenças deste órgão. Em biologia, a técnica de
marcação de moléculas com isótopos radioactivos é frequentemente utilizada, no estudo
dos enzimas e dos metabolismos e permitiram estudar o código genético, e a biosíntese
das proteínas.
É possível dar exemplos de inúmeras utilizações de marcadores radioactivos e pode
mesmo dizer-se que na investigação em biologia, bioquímica ou medicina é actualmente
impossível passar sem eles. A transmutação dos elementos, embora tenha subvertido o
sonho alquimista inicial, pois não é de ouro que se trata mas sim de outros elementos,
permitiu ultrapassar largamente as expectativas da alquimia.
APÊNDICE
ELEMENTOS, RADIOACTIVIDADE E TRANSMUTAÇÃO
– Existem cerca de 100 elementos químicos, constituintes de todos os compostos
presentes na natureza. Cada elemento é representado por uma ou duas letras.
Exemplos: 1) Oxigénio (O), Cloro (Cl), Azoto (N), Hidrogénio (H). Todos estes são
bastante comuns na natureza, seja isoladamente, seja combinados de maneira a formar
compostos.
2) Urânio (U), Rádio (Ra), Tório (Th), Polónio (Po), elementos naturalmente
radioactivos, ou seja que emitem radiação. Essa emissão é acompanhada por uma perda
de massa. Um elemento radioactivo é caracterizado pelo período, tempo que uma dada
massa leva a reduzir-se a metade. O período é muito variável de elemento para
elemento. O do U 238 é de anos, o do Ra é de 1600 anos e o do Pb 214 é de 27 min..
– Os elementos não radioactivos têm, no entanto, isótopos radioactivos, ou seja
elementos quimicamente idênticos, mas que contêm um número diferente de neutrões
no seu núcleo. No seu estado natural cada elemento é uma mistura de um elemento
principal, não radioactivo e de um ou mais isótopos radioactivos em pequeníssimas
I coloquio
40
quantidades. No nosso próprio corpo, esses elementos estão presentes, o que significa
que somos todos um pouco radioactivos.
Exemplos: Carbono -12 (não radioctivo) e Carbono-14 (radioactivo). Existe uma
percentagem de C-14 em todos os seres vivos, que muda a partir do momento da morte.
É nessa diferença que se baseia a datação radioactiva das espécies fósseis.
– As reacções de transmutação naturais (radioactividade), que foram detectadas por
Becquerel e outros, correspondem à transformação do núcleo de um elemento noutro, e
traduzem-se por emissão de radiação.
Exemplo: . Esta simbologia significa que um núcleo de Urânio se tranformou num
de Tório com emissão de uma partícula a. Os números que aparecem por detrás das
letras indicam a constituição do núcleo do elemento. O Urânio tem 92 protões no seu
núcleo e 238 é a soma dos protões e dos neutrões. Claro que o número de neutrões
obtém-se por diferença. O número de electrões de cada elemento é sempre igual ao de
protões, sendo portanto de 92, para o Urânio.
–As reacções de transmutação provocada (ou artificial) obtêm-se bombardeando um
alvo de uma dada substância com uma partícula. Podem usar-se partículas a (as
primeiras a serem usadas), electrões, protões ou neutrões.
exemplo: Li+p®a+a (um núcleo de lítio+ um protão dá duas partículasa)
– Os aceleradores de partículas são máquinas que permitem imprimir grandes
velocidades às partículas electricamente carregadas. Essas partículas tornam-se assim
mais capazes de provocar transmutações. As reacções de transmutação, por acção de
neutrões, dão-se nos reactores nucleares ou durante as explosões das bombas nucleares.
–As reacções nucleares provocadas podem dar origem a substâncias radioactivas
(radioactividade artificial). Esta descoberta veio permitir que se fabricasse um grande
número de substâncias radioactivas com diversas utilidades, em bioquímica, biologia,
medicina, agricultura e história.
–A existência de reactores e de aceleradores permitiu também que se fabricassem
elementos que não existiam na natureza, os transuranianos. Essas máquinas
possibilitaram ainda o conhecimento da natureza e da estrutura da matéria. Esse
trabalho está ainda em curso nos potentes aceleradores de partículas que existem
actualmente.
–Apesar de toda a radioactividade e física nuclear terem contribuído positivamente
para a resolução de alguns problemas humanos, o desenvolvimento destas áreas de
conhecimento tem tido também o seu lado “negro”. Basta pensar nas explosões das
bombas nucleares no fim da II Guerra e também em todos os problemas de poluição e
de contaminação radioactiva.
BIBLIOGRAFIA
I coloquio
41
- (1) Bernadette Bensaude Vincent e Isabelle Stengers, Histoire de la chimie, La
Decouverte, Paris, 1993
- Pierre Radvnanyi, Monique Bordry, La radioactivité artificielle, Ed. du Seuil, Paris,
1984
- Emilio Segré, From X-Rays to Quarks, Ed. E.Segré, USA, 1980
Alquimia e Contemporaneidade
José A. Bragança de Miranda
I coloquio
42
O mistério do mundo está no visível, não no invisível
Oscar Wilde
1. A história está cheia de máquinas paradas, de estruturas que desapareceram, de
palavras que, depois de terem sido fundamentais, se aquietaram arrumando-se
sossegadamente no dicionário. Para muitos, poderia e, se calhar, deveria ter sido este o
caso da «alquimia»1 , mas na verdade esta palavra tem-se revelado demasiado instável.
Isso não pode deixar de provocar uma certa estranheza, pois é evidente, pelo menos para
mim, que já não é possível ser «alquimista», o que não impediu nunca que, para alguns
dos autores mais interessantes da modernidade, o recurso à alquimia fosse obrigatório. É
o caso, por exemplo, de Fernando Pessoa ou de Marcel Duchamp, mas também de
Rimbaud, Jarry, Breton e de muitos outros. Esta sobrevivência inesperada, esta
continuada capacidade de atracção de algo que já deveria ter perdido sentido,
historicamente falando, não é casual.
As razões deste facto parecem residir no abalo da estrutura metafísica que
assegurava as passagens do visível para o invisível, que organizava a ordem do mundo
medieval. Estamos a referir-nos à «teologia», enquanto ciência das passagens. Inúmeros
sinais dão-nos conta da sua entrada em crise com o advento da modernidade,
nomeadamente no século XIX. A «morte de Deus» tão dramatizada por Nietzsche,
equivale à disseminação do nihilismo por toda a experiência. Valha, como indício disso,
o soneto de Baudelaire intitulado «Alchimie de la Douleur»: «No sudário das
nuvens //Descubro um cadáver querido», que é Deus e, em consequência, todo o mundo
se vê pejado de «grandes sarcófagos». A «crise» moderna explicita-se através de uma
nova relação à Natureza, que emerge catastroficamente no seio da cultura. A «dor» de
viver que a alquimia abolia, na sua procura da vida eterna»2 , reemerge quando a
«alquimia da dor» é abalada pelo nihilismo. O que equivale à reaparição da «natureza»,
ou da matéria, naquilo que tem de inumano a inevitabilidade da morte. A «natureza»
emerge numa indiferença, mesmo indecisão, que é catastrófica. Só assim ela pode ser,
simultaneamente, motivo de «ardeur» ou de «deuil» -, morte ou esplendor. É essa
indecisão que é grave, fazendo surgir um outro Hermes, «desconhecido», nome em que
ecoa o antigo alquimista, Hermes Trimegisto. A crise da salvação alquímica da «dor» é
inseparável de um processo de destruição do mundo, que tem algumas semelhanças com
a antiga alquimia, com a diferença de não compartilhar as suas ilusões. De facto, para
Baudelaire, a antiga alquimia iludia-se por nem colocar a questão da ilusão, e a imagem
disso era a de Midas, que transformava tudo em «ouro», sendo por isso «O mais triste
dos alquimistas». A alquimia dos modernos, basicamente estética, opera pela inversão
do motivo de Midas: «Por ti mundo o ouro em ferro //E o paraíso em inferno». Trata-se,
evidentemente, de uma alquimia tão ilusória como a de Midas, mas que se reconhece
enquanto ilusão, sendo o efeito inevitável da vida sem Deus, i.e., sem justificação para a
dor. A própria multiplicação das alquimias tende a destruir a possibilidade alquímica,
abolindo toda a ilusão, em que assentava em última instância. Ora, se a ilusão era
necessária para transcender a natureza, era mais necessária ainda o desconhecimento de
que era ilusão. Boa parte do século XIX está fascinado pela possibilidade de poder
revitalizar a «alquimia» apesar de ser ilusória3 .
I coloquio
43
Esta crise metafísica suscita a invenção de técnicas de registo e de reprodução,
revelando, ao mesmo tempo, que a «técnica» é uma resposta imanentista - a única, de
facto -, ao fenómeno do nihilismo. A artista americana, Zoe Beloff, restitui todo este
entrelaçado de relações na obra digital «Beyond», que «explora os paradoxos da
tecnologia, do desejo e do para-normal instalados desde o nascimento da reprodução
mecânica. Constitui uma investigação da "vida de sonho" da tecnologia, de 1850 a
1940». De acordo com Beloff «existe um elemento quase mágico na maneira como
estes desenvolvimentos são vistos… sendo importante trazê-los à luz no momento em
que entramos nesse novo e estranho domínio que é o digital». Como veremos mais à
frente, a «poesia» e, em geral, as artes servem de garantia de abertura da «positividade»
da existência, em que a dor é um escândalo sem sentido. Funciona, assim, como uma
ficção da transcendência, puramente imanente4 . A sobrevivência da alquimia tem
muito a ver com a maneira como alguns artistas procuraram pelas suas obras fundar a
«vida de sonho» das máquinas que começaram a invadir a experiência no século XIX.
Só ficticiamente é possível uma relação séria com a alquimia. Isso foi bem
expresso por Marcel Duchamp, o inventor desse quase-nada que é o ready-made.
Quando lhe procuraram mostrar que os procedimentos de conversão e de transformação
que ele usava para os «criar» estavam próximos da alquimia, afirmou: «Se pratiquei a
alquimia terá sido na única forma é que hoje é possível fazê-lo, ou seja, sem o saber»
(Lebel, 1959: 73)5 . Através de tal «inconsciência», bem paradoxal, pois o saber dela
acaba por negá-la, tratava-se ainda de salvar o «invisível» quando o visível impera
absolutamente.
De facto, o que a tecnologia e as suas replicações teóricas, como são as teorias
críticas e racionais, propulsionam era a anulação do «invisível». Trata-se de um
processo sentido como imensamente dramático, fazendo com que, ainda nos nossos
dias, Marie-José Mondzain denuncie «…a infidelidade do visível à invisibilidade do
sentido» (1998: 93). De facto, estava em causa algo de radical, o destino de uma divisão
originária relativamente à Physis, no momento em que a tecnologia de registo fazia
desaparecer a diferença entre «original» e «cópia», fazendo proliferar uma infinidade de
imagens, descontroladas e em choque. O visível impera, como forma de fixação da
experiência em todos os seus elementos constitutivos, e com ele uma nova fisicalidade
irá impor-se, a que não se eximirão as próprias «formas». Mas poderá ser ele
considerado como um «obstáculo», como pretende Mondzain, quando sustenta que «o
invisível é um termo sobrecarregado de história religiosa ou de ideologia, mas como
falar do "não-visto", ou seja, daquilo que não está escondido, oculto e impenetrável,
mas de que estamos incumbidos de aprender a ver… O não-visto está diante de nós,
manifesto; que quem tenha olhos se torne apto para olhar» (1998: 92)? A deslocação do
invisível para o não-visto dramatiza ainda um «espaço» mais primordial, que se mantém
numa certa reserva. É este, precisamente, o gesto da «alquimia». Quanto mais esse
espaço estiver «ameaçado» mais a operação alquímica se afigura necessária.
Novalis é um autor de charneira para a compreensão deste processo. Ele dá-se
conta do fim do «mágico» ou do alquímico, mantendo-se ao mesmo tempo no interior
do quadro metafísico em que esta se baseava. Diz ele na sua Enciclopédia: «Em todos
os verdadeiros exaltados e místicos actuarem, sem dúvida, forças superiores - tendo isso
dado lugar a combinações e formas estranhas. Quanto menos a matéria era elaborada e
confusa, tanto mais era o homem carente de gosto, menos formado e contingente, tanto
mais estranhas as suas criações eram. Parece que ainda não chegou a hora para realizar a
I coloquio
44
tentativa de sanear, purificar e iluminar este caos surpreendente e grotesco, o que
pressuporia um esforço em boa medida». Novalis aprecia a «força mágica» (sic), mas
sabe que as formas que assumiu são irremediavelmente passadas (Novalis: 1667 - (II),
p.199). Para os iluministas a alquimia é uma forma de magia, ou seja a falsidade
produzida por meios «aparentemente» técnicos. Mas a questão não é apenas técnica,
embora a hybris da técnica incube nos processos «mágicos». É acima de tudo
metafísica. Uma passagem esplêndida de Novalis permite-nos depreender isso: «a
magia é a arte que permite usar arbitrariamente o mundo sensorial.» (ib.). Ou seja, o
visível era infinitamente trabalhável, porque metafisicamente estava subordinado ao
«invisível». O que é a velha tese alquímica. Como se pode ler no Pimandro de Hermes
Trimegisto: «Não existe nada de bom sobre Terra; nem nada de mal no céu» (Parágrafo
44 do Livro I). No parágrafo 57 lê-se: «as cosias da Terra não comunicam com as do
Céu». Somente através do homem, pela sua natureza dupla é possível haver
comunicação entre os dois mundos: «e devido a isso de todas as coisas que vivem sobre
a Terra só o Homem é duplo: Mortal, devido ao seu corpo, e Imortal, devido ao Homem
substancial. Apesar de ser imortal e ter poder sobre todas as coisas, sofre da mortalidade
das coisas, e enquanto tal está sujeito à fatalidade e ao Destino» (Parágrafo 26 do Livro
II, chamado Poemandro). É esse o objectivo da operação alquímica
A ambivalência de Novalis está em que reconhece a historicidade das formas da
«força» mágica e o processo de «saneamento» porque estão a passar, ao mesmo tempo
que mantém a forma histórica, basicamente teológica, da divisão originária que a
metafísica grega codificou6 , e que se consubstancia basicamente na oposição entre
«corpo» e «alma»7 . Esse simples facto faz de Novalis um «sintoma» daquilo que
constitui a originalidade da Paideia ocidental. Repetindo um gesto imemorial, para ele
está em causa as relações entre ambos mundos, e é sobre essas relações que a hybris se
incrusta. Diz Novalis: « este último sistema [do invisível ou da alma] mantém um nexo
de união com o primeiro - e é afectado por ele. Podem descobrir-se, contudo, numerosos
indícios que denotam uma relação inversa e de imediato nos precatamos de que ambos
sistemas na realidade deveriam manter uma perfeita relação recíproca, em que afectados
mutuamente, formam-se uma consonância e não um único tom. Em poucas palavras,
ambos mundos. Bem como ambos sistemas, têm de constituir uma harmonia livre, e não
uma desarmonia nem uma monódia » (Novalis, 1668, 400). A análise de Novalis é
preciosa. Pondo de lado, por agora, a ideia de uma «harmonia final», o que a sua
pequena história nos conta é que passámos de uma história dominada pela desarmonia
parcial para a harmonia parcial, ou seja do domínio da «exaltação» mística para o das
ciências e das artes. Isso ocorreu por que «no período da magia o corpo serve a alma ou
o mundo dos espíritos. (Loucura - exaltação). A loucura colectiva deixa de ser loucura e
converte-se em magia, loucura submetida a regras e plenamente consciente» (ib.). Ou
seja a própria «magia», pelas suas regras, torna-se ela própria uma maneira de regular as
passagens entre visível e invisível. A desarmonia tem a ver, para Novalis, com o facto
de que a «matéria» ou «natureza» seja dominada pela «faculdade, destreza de provocar
sensações arbitrariamente. (a fé é um poder de provocar sensações) (unida à absoluta
realidade do sentido)» (ib.).
Dando um passo fundamental, Novalis propõe-nos uma experimentação
imaginária, que não pode deixar de nos interessar. Trata-se de mostrar que tal como o
«espiritualismo» absoluto pôde criar no «real» as suas alucinações ou êxtases,
afectando-o pontualmente, agora o próprio «real» pode ser produzido através do
«espiritual» ou do «invisível». A partir de «dentro» pode-se recriar todo o «exterior» ou
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I coloquio

  • 1. I Colóquio (1999) - volume I José Manuel Anes - O segredo debaixo de uma pedra Ana Hatherly - Os prodígios da língua A.M. Galopim de Carvalho - As raízes alquímicas da Mineralogia Isabel Serra - Transmutação dos elementos A. Bragança de Miranda - Alquimia e contemporaneidade José Augusto Mourão - O discurso alquímico: um imanentismo transcendente? José Augusto Mourão - Alquimia e religião: no cruzamento do visível e do invisível Salomé Machado - O percurso alquímico em The Alchemist de Ben Jonson Manuel Gandra - Alquimia em Portugal Luís Filipe B. Teixeira - Nos jardins do ofício (Pessoa e a alquimia do verbo) Maria Elisa Maia - Persistência de conceitos alquímicos nos dias de hoje Raquel Gonçalves - Elementos alquímicos DO DODÓ À FÉNIX: I. François Leguat - O Dodó ou Solitário da Ilha Rodrigues II. Nuno Marques Peiriço - Transmutação na iconografia científica III. Maria Estela Guedes - Transmutação no discurso científico COMISSÃO ORGANIZADORA JOSÉ AUGUSTO MOURÃO (ISTA) MARIA ESTELA GUEDES (CICTSUL) NUNO MARQUES PEIRIÇO (CICTSUL) I coloquio 1
  • 2. O SEGREDO DEBAIXO DE UMA PEDRA José Manuel Anes Umberto Eco, na sua obra Os Limites da interpretação1 refere a AMBIGUIDADE CONSTITUTIVA da Alquimia, centrada em dois polos, a ALQUIMIA PRÁTICO-OPERATIVA e a ALQUIMIA SIMBÓLICA, assentando a primeira na busca da transmutação metálica – procura realmente produzir ouro, e representou um modo, embora ingénuo e pré- científico, de interrogar a natureza, de vê-la como coisa viva e lugar de possíveis transformações, escreve Eco2 – enquanto que a segunda, segundo ele, se move a nível puramente metafórico, representando uma das manifestações da gnose hermética3 . Este filão simbólico seria místico, esotérico e hermético e não teria nenhum valor científico4 e encerraria apenas fantasias de regeneração e transfor-mação espiritual 5 . Embora Eco produza, neste trabalho algumas considerações judiciosas sobre a alquimia, não o poderemos seguir no que diz respeito à distinção radical entre as duas alquimias, pois a sua nomenclatura leva a pensar que a alquimia operativa está isenta de símbolos e a simbólica isenta de operatividade – o que desmentido por muito tratados alquímicos e, em particular pelo ENNOEA. Também não poderemos acompanhar este autor no que concerne à simbólica alquímica, a qual, como veremos, não é totalmente polissémica, nem completamente aleatória como Eco parece sugerir. A pesar de este autor salientar – muito acertadamente, ele que, no entanto, não é um especialista da Alquimia – que o MOMENTO OPERATIVO E O MOMENTO SIMBÓLICO ANDARAM SEMPRE A PAR E PASSO, ele quer, no entanto, dizer apenas com isso que eles coexistiram historicamente, não admitindo Eco que esses dois “momentos” estivessem presentes, ao longo da história da Arte de Hermes, num mesmo alquimista, a não ser, como ele refere, excepcionalmente, no caso de muitos alquimistas simbólicos contemporâneos, como o misterioso e celebrado Fulcanelli, os quais prosseguiram práticas operativas6 . De facto – contrariamente ao que muitos alquimistas contemporâneos afirmam, tentando extrapolar rectroactivamente a sua visão iniciática da alquimia -, concedemos que é difícil sustentar que todos os autores alquímicos de antanho tenham visado uma prática mística, esotérica certa alquimia do século XVII e XVIII, quando ela, segundo Betty Dobbs, até aí assente em especulações místicas (…) muito fortemente orientadas para a expeculação interior, passa a receber uma influência calmante do racionalismo e da nova filosofia mecanista7 . No entanto, estes I coloquio 2
  • 3. dois momentos propostos por B. Dobbs, não são mutuamente exclusivos: a alquimia racionalizada dos séculos XVII e XVIII apresenta ainda algumas características místicas, como é o caso de muitos tratados alquímicos e como é o caso do ENNOEA do nosso Castelo Branco, onde estão presentes, como veremos, quer um discurso racional quer um simbolismo onírico. É por vezes referida, como uma indicação do carácter iniciático – de transformação pessoal - de um determinado livro alquímico, a advertência que é feita pelo adepto relativa às condições espirituais prévias à Obra. O que acontece é que essas indicações podem constituir , por parte do alquimista, apenas sinais de temência a Deus, do qual depende o êxito da Obra e, por outro lado, conselhos de preserverança e de paciência, essenciais a um trabalho tão longo, não constituindo por si sós, provas do carácter vincadamente místico da obra – o que não quer dizer que esse carácter esteja necessariamente ausente. O caso do ENNOEA parece não constituir excepção, mesmo quando o autor refere a necessidade da solidão – que também é escola, pois os divertimentos solitários são estudos- eventualmente encontrada nos bosques (próximos da sua Soure natal), onde se acha Deus8 . De facto, na Parte Segunda desta obra, diz o autor que só aos Adeptos, que são, e forem, perfeitos, e justos concederá Deus esta grande ciência; porque a sabedoria não entra no entendimento dos homens maus, nem preservera no corpo dos pecadores9 . Por isso mesmo, Deus remunera esses homens – sejam eles cristãos, ou não, como o gentio Hermes, o mouro Geber e o hereje Paracelso10 – com as utilidades da Crisopeia, e outros bens temporais, para satisfazer os seus merecimentos, pois se eles não tiveram estas virtudes, não os remuneraria Deus com estes prémios11 . Anselmo Caetano continua a enumerar, pela voz de Enodato – que dialoga “hermeticamente” com Enódio – as outras qualidades do Filósofo Hermético, o qual, segundo ele, Há-de ser homem de claro entendimento, profundo juízo, subtil discurso, grande compreensão, e bom engenho; e porque isto só não basta, deve ser também perito na língua latina, consuma-do na Filosofia, inteligente na Matemática, e versado na lição dos livros Químicos, para que o estudo aperfeiçoe o entendimento, e o entendimento ilustrado alcance grandes segredos com a subtileza do juízo, e os reduza à prática com o bom engenho. Além de todas estas qualidades há de ter indústria, constância riqueza, prudência, sossego, paciência e segredo porque (…) em nenhuma coisa devem os Adeptos ser mais acautelados, do que em ocultarem os segredos com que obram12 . E mesmo na justificação do segredo alquimico, nunca Anselmo Caetano evoca razões iniciáticas ou místicas – tais como as que são explicitadas hoje pelos cultores da moderna alquimia operativa, mesmo que operativamente tradicional13 – antes enumera razões que têm a ver com a dificuldade das operações - a razão deste misterioso segredo é, porque as operações da Arte Magna são muito dificultosas, e não podem os homens explicar-se com palavras, quando as coisas são muito difíceis14 - e outras que têm a ver com questões de preservação do segredo por motivo de segurança de todos – para que ficando estas operações duvidosas, não sejam inquiridas, nem averiguadas por homens ignorantes, e malignos, que executem com elas grandes maldades (…) para que os Herméticos inventores, e descobridores deste segredo não ficassem obrigados a satisfazer os danos, que causariam ao Mundo todos aqueles Tiranos, e Poderosos, que abusassem de tão ambiciosa potência, e tirania15 . Daí, ainda, a necessidade (devido à natureza dificultosa do assunto e devido à conveniência de I coloquio 3
  • 4. protecção da Obra) de uma linguagem críptica, de natureza simbólica: se os Adeptos não a descrevessem com enigmas, e metáforas, e sonhos, e fábulas, poderia ser conhecida a matéria da Crisopeia, e preparada a Pedra Filosofal pelos rústicos, e ignorantes16 . Note-se que aqui, Anselmo Caetano invoca uma razão utilitária (e não iniciática) para a utilização so simbolismo: o afastamento dos (perigosos) ignorantes. No entanto, ele refere ainda uma razão última para a manutenção do segredo – mesmo para os que têm condições para encetar a Obra – e que consiste na exigência do esforço individual nesta via operativa. Mas para aqueles que, hoje, verão facilmente aqui uma indicação de tipo iniciático, o autor de ENNOEA menciona com singeleza a necesidade de que o Adepto tenha em grande apreço a sua Obra: Bem sabeis, que vos não posso revelar a matéria da Pedra Filosofal, senão em segredo; e para o segurar mais, quero que vos custe algum trabalho, porque os homens não estimam senão aquilo, que pelo seu trabalho adquiram17 . Interessante é, sem dúvida, a referência ao tradicional preceito de Imitação da Natureza. Diz Anselmo Caetano: (…) a Arte Magna para fazer a Crisopeia deve imitar nas suas operações a Natureza18 . Uns verão, nesta asserção uma indicação de cariz iniciático, uma via de comunhão com a Natureza, certamente inscrita na tradição alquímica, que tem um forte registo de transformação dessa mesma Natureza – longe portanto de uma atitude passiva e submissa. Mas não será legítimo ver nela apenas uma estratégia operativa eficaz para levar a bom terno a Obra Grande? Cremos que sim. Para terminar esta breve introdução ao carácter iniciático (ou ao carácter não iniciático) do ENNOEA, referiremos uma passagem que, para um psicanalista como Bachelard terá uma conotação evidentemente sexual, mas que para alguns jungianos constituirá prova bastante da individuação alquímica, em busca do andrógino filosofal (assim como para um cultor da chamada alquimia interna será uma clara revelação do arcano): na geração dos Metais, o Enxofre é como a matéria seminal paterna, e o Mercúrio é como a matéria com que concorre o sexo feminino para a geração do feto, as quais ambas juntas formam no útero um só, e perfeito corpo. E daqui se segue que esta matéria é uma só coisa19 . Mas não constituirá apenas esta descrição uma alegoria biológica da união alquímica dos dois princípios, enxofre e mercúrio? Interessa agora ver que tipo de discurso realiza Anselmo Caetano, ao tratar Da matéria com que os Herméticos fazem a Pedra Filosofal (ou a matéria com que os Herméticos formam o Lapis, para … fazer a Crisopeia). Será (na hipótese simplicissima20 de H. Eco) um discurso do tipo operativo, ou será um discurso do tipo simbólico – por enigmas, e metáforas, sonhos, e fábulas, como diz Enodato, questionado por Enódio? No que diz respeito à discussão da verdadeira matéria de que o Lapis se forma – a primeira coisa que deveis conhecer, e averiguar, diz Enodato –, o autor de ENNOEA utiliza uma argumentação de uma racionalidade transparente, naturalmente no quadro das concepções alquímicas da época. Na discusão DA MATÉRIA COM QUE OS HERMÉTICOS FAZEM A PEDRA FILOSOFAL, Anselmo Caetano – revelando um notável conhecimento das vias e dos materiais alquímicos, citando autores como Geber/Al-Djabir, Filaleto, Raimundo Lúlio, Alberto Magno, Bernardo o Trevisano, Basílio Valentim e Becher – começa por rejeitar os vegetais – como o spiritus vinii lulliani, o vinho vermelho, ou branco de (pseudo) Raimundo Lúlio - e os animais – como o espírito de urina –, pois como diz Enodato, I coloquio 4
  • 5. ainda que estes menstruos têm o seu uso na Química, na Alquimia eles não têm nenhum préstimo, pois são incapazes de dissolver radicalmente o Ouro, isto é, de reduzi-lo à primeira matéria de que foi formado, separando os princípios do metal mais fixo e mais perfeito21 . Refira-se que esta distinção entre Química e Alquimia, apenas subalterniza a primeira face à segunda, mas não exclui o trabalho químico da Obra alquímica, já que Anselmo Caetano aconselha mesmo, ao alquimista, o estudo prévio dos livros de Química22 , embora afirme que mais se aprendia nos bosques do que nos livros, sobretudo naqueles livros onde se acha muita ignorância do homem23 – uma vez que será preciso estudo, experiência e paciência (…) para ler tantos autores, a fim de conseguir realizar com êxito esta Filosofia (…) sumamente dificultosa24 . Do mesmo modo e pelas mesmas razões, são rejeitados o Salitre e o Vitríolo, ambos, segundo ele, totalmente imprórios e inúteis. Postos de lado os minerais, falta considerar os metais. Primeiramente, são discutidos o Arsénico – no sentido literal, que é rejeitado, já que no sentido enigmático, os Adeptos chamam Arsénico Filosófico à Matéria da sua Pedra Filosofal25 –, o Antimónio – embora as Crisopeias de alguns Herméticos são fabricadas com o Antimónio, ou Stibio26 , Enodato afirma que de nenhum modo podereis tirar dele a matéria da nossa Obra27 – os quais são também rejeitados, pois TODAS ESSAS MATÉRIAS, OU MINERAIS, SÃO IMPRÓPRIOS POR SEREM SUJEITOS À CORRUPÇÃO, INTRODUZIDA NELAS PELA ACTIVIDADE DO FOGO28 . Mas, por outro lado, também o Ouro, e a Prata, que no seu centro é Ouro29 , não são próprios para a Obra, pois o Ouro tem uma natural e fortíssima composição, e não sofre nenhuma calcinação, por não ter Enxofre combustível, como têm os outros metais30 . Ou seja, enquanto que uns são rejeitados por serem demasiado vulneráveis ao fogo, o Ouro é rejeitado, pelo contrário, pela sua invulnerabi-lidade ao fogo. A racionalidade, no quadro da alquimia, é perfeita. Então, Anselmo Caetano continua uma discussão racional tendente a demonstrar não só o que afirmou anteriormente, mas também para justificar outras posteriroes escolhas para a matéria do Lapis. Diz ele pela boca de Enódio – que primeiro tinha perguntado SE ESTA MATÉRIA SE TIRA DE UM SÓ, OU DE TODOS OS METAIS31 –: A MATÉRIA, QUE BUSCAMOS, É O CÁLIDO INATO, E O HÚMIDO RADICAL DOS METAIS32 , ou pela boca de Enodato: A MATÉRIA DO LAPIS NÃO SE TIRA DE TODA A SUBSTÂNCIA METÁLICA, SENÃO DA PRIMEIRA MATÉRIA RADICAL, QUE EM TODOS OS METAIS É IGUALMENTE A MESMA33 . Porquê? Porque, quer o CÁLIDO INATO, quer o HÚMIDO RADICAL dos metais, são INCORRUPTÍVEIS E RESISTEM À MAIOR ACTIVIDADE DO FOGO34 . Trata-se de procurar obter a MATÉRIA RADICAL dos metais – tema central na teoria da Alquimia –, de os REDUZIR À SUA PRIMEIRA MATÉRIA35 – núcleo imponderável aos olhos da moderna físico-química – para conseguir que todos os metais imperfeitos se possam converter em outros36 . Conseguir-se-à isto, a partir de qualquer metal? Enódio refere que Todos os Adeptos confessam que eSTA MATÉRIA se acha, ou se tira de COISAS VIS, OU DE POUCA ESTIMAÇÃO, e Enodato confirma que temos MUITOS SUJEITOS DE QUE TIRAR A PEDRA FILOSOFAL37 . Então, para além dos já rejeitados, a MATÉRIA VIL – comparando-a com o valor, que depois adquire por benefício da Arte Magna38 – também não se pode tirar do Chumbo e do Estanho, por serem Metais impurissimos, e imundos na sua raiz, ou no princípio da sua criação; porque é tão impura a sua ESSENCIAL SUBSTÂNCIA, sendo ambos destituídos de SUBSTÂNCIA FIXA, que I coloquio 5
  • 6. permaneça constantemente no fogo, sendo apenas dotados de substância volátil 39 . Ora, é esta SUBSTÂNIA FIXA, a verdadeira MATÉRIA DA OBRA. Apesar de conterem imundices, Enodato/Castelo Branco aceita o Cobre, o Ferro e o Mercúrio, pois deles se pode tirar mais facilmente a MATÉRIA DA PEDRA FILOSOFAL, sobretudo no Mercúrio – como diz Geber sobre este assunto, o autor que Anselmo Caetano mais cita, aqui e em outras partes do ENNOEA. A razão reside no facto de, embora diversos na sua forma acidental, ou aparente, eles serem, na SUBSTÂNCIA RADICAL (…) essencialmente o MESMO SUJEITO METÁLICO40 . Por esse motivo, aconselhado por Enodato, Enódio afirma estar resolvido a trabalhar no Azougue, pedindo-lhe, agora, que ele lhe ensine a PREPARAR A CRISOPEIA41 . Enodato avisa logo que Nenhum Filósofo explica claramente ess preparação, porque não é lícito falar nesta matéria com muita clareza42 . Contudo ele menciona, logo no começo da sua discussão, que é necessário efectuar sobre o Mercúrio, uma SEPARAÇÃO NO CORPO DO MERCÚRIO PARA DELE TIRAR A MATÉRIA DA PEDRA FILOSOFAL, uma vez que o Azougue, ficou tão infeccionado pelo PECADO ORIGINAL MINERAL, que se ocultam nele duas IMUNDICES, uma de natureza terrestre e outra de natureza líquida. No entanto, como essa lepra,que mancha o corpo do Mercúrio, não procede da sua RAÍZ, nem se identifica com a sua SUBSTÂNCIA, (…) só acidentalmente se une com ele, e facilmente se pode SEPARAR PELA ARTE43 . Assim, separa-se a terra, por BANHO HÚMIDO, e pela ENSABOADURA DA NATUREZA, enquanto que a água se separa por meio de um BANHO SECO e CALOR BENIGNO, de tal modo que, COM TRÊS LAVAÇÕES E PURGAS se renova o DRAGÃO, despindo as ESCAMAS, e antigas CONCHAS44 . Parece estar aqui uma referência às LAVEURES DE NICOLAS FLAMEL45 , o que, eventualmente, apontaria para uma via com Mercúrio e Antimónio46 (que seria animado pelo Mercúrio, através das POMBAS DE DIANA, ou ÁGUIAS DE FILALETO), “via de amálgamas” que é mencionada por Betty Dobbs47 , a propósito dos trabalhos alquímicos de Newton, e que um praticante português revelou “caritativamente”48 . Outra hipótese seria a Obra do Mercúrio e do Sol, em que se utiliza Mercúrio e Ouro (ou Prata); há quem refira, também, uma “obra só com Mercúrio”49. No Diálogo Terceiro da Parte Segunda do ENNOEA, são referidos, ainda mais enigmativamente, os arcanos relativos ao MERCÚRIO FILOSÓFICO e à sua PREPARAÇÃO. Aqui o “discurso” é, progressivamente, mais enigmático, mais hermético, e o emprego das alegorias e dos símbolos passa a ser dominante, se não mesmo exclusivo. Estamos pois na senda do discurso simbólico de que nos fala H. Eco, mas que aqui coexiste, num mesmo autor e numa mesma obra, contrariamente ao que ele afirma (aceitando apenas excepções em alquimistas do século XX). Começemos pelos seguintes três enigmas alquímicos: – … a matéria da nossa é o ninho onde nasce, e se cria a nossa ÁGUIA … é a chave mestra, que abre as portas do PALÁCIO ENCENTADO da Natureza50 – Ainda que esta matéria não entra na Obra, serve de meio para alcançar, e conhecer a matéria que nela entra. Esta é composta dos QUATRO ELEMENTOS51 – Esta matéria tem corpo, alma, e espírito, porque é filha do ESPÍRITO UNIVERSAL52 I coloquio 6
  • 7. Não é agora, a ocasião de proceder a uma análise exaustiva da via operativa do ENNOEA (nem sabemos sinceramente se, nesta fase, tal será possível, na totalidade), pelo que apenas veremos, por alto, a estrutura da sua Obra Grande. Mas é importante referir, antes disso a sua concepção de Espírito Universal – em consonância total com a tradição alquímica –, o qual será uma substância puríssima, penetrantíssima, (…) impalpável, invisível e imperceptível (…) que desce do Céu empíreo para os mixtos,e que sobe do centro de terra, comunicando-lhe as suas virtudes, e embebendo-os, se faz corporal, constituindo assim o SAL, que é a PRIMEIRA MATÉRIA DE TODO O COMPOSTO. Na verdade, esse Espírito Universal – na verdade o PAI DA PEDRA FILOSOFAL - é idêntico (mas multiforme) em todos os mixtos, sendo a QUINTA ESSÊNCIA DA NATUREZA, contendo os TRÊS PRINCÍPIOS, que são a MESMA SUBSTÂNCIA RADICAL: o ENXOFRE, ou FOGO NATURAl, o MERCÚRIO, ou HÚMIDO NATURAL e o SAL, ou SECO RADICAL , que liga os outros dois. 53 Voltando ao MERCÚRIO FILOSÓFICO, Anselmo Caetano diz-nos que ele é a MATÉRIA DO LAPIS, DEPOIS DO SEU NASCIMENTO (isto é, quando o cálido e o húmido, estão unidos perlo seco). Os sucessivos nomes que (ela, matéria, ou ele, mercúrio) vai tomar – o Mercúrio, o Enxofre, etc. – são estados da matéria, que resultam dos GRAUS DE CALOR que o Mercúrio teve na DIGESTÃO – os quais serão “explicados” no parágrafo IV deste Diálogo Terceiro do ENNOEA. Assim sendo, O MERCÚRIO E O ENXOFRE serão QUALIDADES DIFERENTES, resultantes de diversos graus DIGESTÃO DE UMA SÓ MATÉRIA54 . Então, Quando pela força do fogo se destila a humidade radical, juntamente com ela se destila o seu natural calor que tem cor de Ouro (…) o OURO FILOSÓFICO – denominado ENXOFRE, ALMA, ou OURO, porque A SUA COR PARECE OURO. É agora a altura de mencionarmos um relato sumanente simbólico que, longe de se referir a experiências místico-esotéricas, parece referir-se a experiências bem tangíveis de natureza operativo-laboratorial. Trata-se do CASAMENTO HERMÉTICO DO LEÃO COM A ÁGUIA, o qual introduz aquilo que vai ser discutido no parágrafo seguinte. Vejamos as suas partes mais importantes (que satisfarão, eventualmente, a imaginação de algum psicanalista, ou jungiano): TOMAI A Virgem com asas, LAVADA, LIMPA, e prenha da Seminal, e espiritual matéria do primeiro contacto masculino, FICANDO ILESA A GLÓRIA DA SUA VIRGINDADE, COM AS FACES TINTAS DE roxo; AJUNTAI-A COM O segundo sujeito masculino SEM SUSPEITA, NEM PERIGO DE ADULTÉRIO; E POR FIM PARIRÁ UM venerável fruto de ambos os sexos, do qual sairá uma imortal prosápia de poderosíssimos Reis (…) Nestes ajuntamentos de QUE FAÇO MENÇÃO, TUDO É PURO, SEM MANCHA DE VÍCIO: NÃO SE PERDE A VIRGINDADE, NEM SE COMETE ADULTÉRIO. JUNTAI POIS A Águia COM O Leão, E ESCONDEI-OS NO SEU claustro diáfano, COM A PORTA MUITO BEM TAPADA, PARA QUE NÃO SAIA POR ELA A SUA RESPIRAÇÃO, OU LHE ENTRE O AR ESTRANHO. A Águia ACOMETENDO O Leão, O DESPEDEÇARÁ E O COMERÁ. E LOGO ADORMECERÁ COM UM PROFUNDO, E DILATADO SONO, INCHANDO-LHE TANTO O ESTÔMAGO, QUE FEITA HIDRÓPICA, SE CONVERTERÁ COM ADMIRÁVEL METAMORFOSE NUM Corvo MUITO NEGRO; ESTE PERDENDO PAULATINAMENTE AS PENAS, PRINCIPIARÁ A VOAR, E COM O SEU VÔO SE REMONTARÁ TANTO, QUE SACUDIRÁ SOBRE SI MESMO ÁGUA DAS NÚVENS, ATÉ QUE FICANDO MOLHADO DISPA DE BOA VONTADE AS ASAS, E DESCENDO POR FALTA DELAS, SE CONVERTA EM UM BRANQUÍSSIMO Cisne 55 . I coloquio 7
  • 8. Sem pretender fazer a exegese completa deste texto – parecido, aliás, a outros textos de autores clássicos que referem as BODAS ALQUÍMICAS DO ENXOFRE E DO MERCÚRIO –, a qual necessitaria de ser vista também à luz daquilo que Anselmo Caetano escreve adiante, quando refere os graus de digestão, parece-nos não ser de excluir a hipótese de que a Virgem com asas, seja o Mercúrio, ou Azougue o qual ao sublimar-se, voa – o que segundo Filaleto é uma Águia –, podendo transportar com ele um Ouro, intrínseco (a sua semente radical) ou extrínseco (o Ouro “vulgar”). Este é o fundamento da “via das amálgamas” Através da discussão dos meios e extremos da Crisopeia e das quatro digestões Herméticas, expõe Anselmo Caetano a Obra alquímica que propõe e segue. Desde logo, os meios operativos, ou Chaves da Obra Grande, - que vai do Mercúrio Filosófico e dos Metais Perfeitos até ao Elixir Perfeito – os quais poremos em correspondência com os meios materiais ou diversos graus, e com os meios(ou sinais demonstrativos, na realidade as cores sucessivas da Obra): 1º) – Dissolução ou Liquefacção: a) redução dos corpos à sua primeira e antiga matéria, na verdade uma “reincrudação” dos corpos cozidos; b) congresso do macho e da fêmea, que conduz ao corvo negro; c) separação dos quatro elementos contidos na Pedra (quando retrocedem as luminárias). Corresponde também ao 2º. meio material (depois do Mercúrio Filosófico e dos Metais Perfeitos): os quatro elementos que circulam até se fixarem. O NIGREDO – a CONFUSÃO DOS ELEMENTOS que surge no fim da liquefacção – é também o 1º meio demonstrativo, a Cabeça de Corvo, que marca o PRINCÍPIO DA PRIMEIRA NEGRIDÃO, A CORRUPÇÃO OU PUTREFACÇÃO (QUE DISPÕE PARA A GERAÇÃO). Corresponde, ainda à primeira digestão (que é feita com CALOR BRANDO) – O CONGRESSO DO MACHO E DA FÊMEA, A MISTURA DAS MATÉRIAS SEMINAIS, A DISSOLUÇÃO do corpo E A RESOLUÇÃO dos elementos em ÁGUA HOMOGÉNEA (O CAOS TENEBROSO, O TENEBROSO ABISMO). 2º.) – Lavação: faz do Corvo Negro, um Cisne Branco, de Saturno, faz nascer Júpiter, o rei dos Deuses (símbolo da conversão do corpo em espírito). 2º. Meio ou sinal demonstrativo - cor Branca (o Cisne): - onde se dá a perfeição do primeiro grau e do ENXOFRE BRANCO, também denominado TERRA BENDITA, TERRA FOLIATA, onde os filósofos SEMEIAM O SEU OURO. Corresponde ainda à 2ª. Digestão, onde o ESPÍRITO DO SENHOR ANDA SOBRE AS ÁGUAS (COMEÇA A FAZER-SE LUZ, SEPARANDO AS ÁGUAS DAS ÁGUAS); RENOVA-SE O SOL E A LUA, FAZ-SE UMA NOVA TERRA E UM NOVO CÉU. Dá-se a espiritualização de todos os corpos, os Corvos negros dão origem às Pombas brancas. O espírito ígneo que desce em forma de água, procede a REGENERAÇÃO DO MUNDO. A ÁGUIA E O LEÃO ABRAÇAM-SE NUM ETERNO E ÍNTIMO ABRAÇO. I coloquio 8
  • 9. – Segundo escreve o autor de ENNOEA, nas duas últimas obras anteriores: O DRAGÃO EXERCITA A SUA GRANDE CRUELDADE CONSIGO MESMO, POIS TRAGANDO A SUA CAUDA, TODO SE ENGOLE E SE CONVERTE EM PEDRA – Diz ele, também, que é necessário OBRAR COM GRANDE ADVERTÊNCIA, para que se faça a separação das águas COM O PESO, E MEDIDA, de sorte que as águas que ficam debaixo do Céu, não afoguem a terra, e as que sobem ao Firmamento, a não desamparem de modo, que fique seca. 3º.) – REDUÇÃO: restitui a ALMA à Pedra desanimada, sustentando-a com LEITE ORVALHADO E ESPIRITUAL, até que tenha perfeito vigor Corresponde, também, à 3ª. Digestão, a qual dá de beber à terra, que acaba de nascer, LEITE ORVALHADO, e todas as virtudes espirituais da quintaessência (…). ENTÃO ESCONDE A TERRA EM SI UM GRANDE TESOURO, primeiramente semelhante à LUZ RESPLANDESCENTE – A TERRA DA LUA - e depois, ao SOL RUBICUNDO – A TERRA DO SOL . Corresponde aos 3º e 4º. meios demonstrativos que são, respectivamente: a cor Amarela (a AURORA) – marca a transição entre O BRANCO E O VERMELHO e anuncia os CABELOS DOURADOS DO SOL - e a cor Vermelha escura (o ENXOFRE SO SOL, ESPERMA MASCULINO, FOGO DA PEDRA, COROA RÉGIA, FILHO DO SOL) – que se tira da Branca, pelo fogo. 4º.) – FIXAÇÃO: fixa UM E OUTRO ENXOFRE – 3º) meio material, que marca o fim da primeira Obra –, sobre o seu corpo fixo, mediante o ESPÍRITO; isto é feito, COZENDO os FERMENTOS POR SEUS GRAUS (amadurecendo as coisas crtuas e dulcificando as amargas) Corresponde, também, ao 4º.) meio material: FERMENTOS produzidos sucessivamente pela ponderada mistura das sobreditas coisas, e, também, à 4º. Digestão – que aperfeiçoa todos os Mistérios do Mundo, e converte a terra em eXCELENTÍSSIMO FERMENTO que fermenta todos os corpos imperfeitos. Este último meio operativo – que MARCA O FIM DA PRIMEIRO TRABALHO DA OBRA HERMÉTICA –, continua a cozer os fermentos por seus diversos graus, DERRETENDO, PENETRANDO E TINGINDO, de tal modo que GERA O ELIXIR, e depois EXALTA-O56 . Na verdade, a Pedra exalta-se por GRAUS – até chegar à sua ÚLTIMA PERFEIÇÃO –, com SUCESSIVAS DIGESTÕES (QUATRO) que, na realidade, são os “regimes de fogo” de Filaleto. O autor de ENNOEA, comenta a Obra que acaba de expôr, em linhas gerais, com as seguintes afirmações, que constituem os segredos operativos (debaixo da pedra): Toda a fabrica da Obra Filosófica não é outra coisa mais que DISSOLVER E COAGULAR: DISSOLVER O CORPO E COAGULAR O ESPÍRITO (…) PELA REDUÇÃO SE FIXA O CORPO VOLÁTIL EM PERMANENTE CORPO, E A NATUREZA VOLÁTIL ULTIMAMENTE PASSA A SER FIXA, DO MESMO MODO QUE A FIXA TINHA PASSADO A SER VOLÁTIL.57 –A PRODUÇÃO DA PEDRA DOS FILÓSOFOS É COMO A CRIAÇÃO DO MUNDO, porque é necessário que tenha o seu CAOS, e a sua MATÉRIA PRIMA, em que nadem confusos os I coloquio 9
  • 10. elementos, até que separados pelo ESPÍRITO ÍGNEO, e que seja elevada a parte leve desta separação para cima, e a grave seja precipitada para baixo. NASCENDO A LUZ, DESAPARECEM AS TREVAS: AJUNTANDO-SE AS ÁGUAS EM UM LUGAR, APARECE A TERRA SECA OU ÁRIDA. FINALMENTE SAEM SUCESSIVAMENTE OS DOIS LUMINARES GRANDES, e produzem as virtudes Minerais, Vegetais, e Animais na Terra Filosófica58 . – A CRIAÇÃO DA PEDRA FILOSOFAL É POR TODAS AS CIRSCUNSTÂNCIAS SEMELHANTE À DE ADÃO, porque do corpo terrestre e grave dissoluto pela água se faz o limo, que mereceu chamar-se TERRA ADÂMICA, na qual residem as qualidades e virtudes de todos os elementos. Também se lhe infunde A ALMA CELESTE pelo eSPÍRITO DA QUINTA ESSÊNCIA, e o influxo solar, e pela benção, e ORVALHO DO CÉU se lhe dá a virtude infinitamente multiplicativa, mediante a CÓPULA DE AMBOS OS SEXOS59 . ESTA OBRA SÓ SE PODE FAZER HAVENDO UM RADICAL DISOLVENTE DO OURO, E DA SUA MESMA NATUREZA (…), QUE É O MERCÚRIO FILOSÓFICO; PORÉM QUEM NÃO O TIVER, NÃO PODERÁ COLHER O FRUTO DESTA ÁRVORE DA VIDA, AINDA QUE SAIBA CONHECÊ-LA60 . – O maior segredo desta obra consiste NO MODO DE OBRAR, O QUAL TODO DEPENDE DA CIRCULAÇÃO DOS ELEMENTOS, PORQUE A MATÉRIA DO LAPIS VAI PASSANDO DE UMA PARA OUTRA NATUREZA61 . – Quase que não há maior segredo em toda a praxe da obra, que o CERTO E AJUSTADO MOVIMENTO DESTE CÍRCULO – o segundo círculo, da restauração, o que PESA A ÁGUA, e QUE EXAMINA AS MEDIDAS – porque dá forma ao INFANTE FILOSÓFICO62 . Depois de uma discussão de temas como A Circulação da água (onde se inclui esse arcano do círculo, acima citado), o Fogo da Natureza e a Circulação dos Eelementos, o Fogo Filosófico, Enódio pede a Enodato que lhe faça uma breve relação da aplicação destas coisas, ao que ele anui, noutra descrição – uma verdadeira súmula da Obra Grande - cheia de simbolismo operativo: TOMAI O Dragão Ruivo, ANIMOSO E BELICOSO, EM CUJO NASCIMENTO NÃO FALTOU NENHUMA FORÇA. DEPOIS ESCOLHEI sete OU NOVE Águias GENEROSAS, CUJA VISTA SE NÃO OFENDA COM OS RAIOS DO SOL. LANÇAI AS Aves COM A Fera EM UM caárcere claro, E FORTEMENTE fechado, DEBAIXO DO QUAL POREIS UM vapor tépido, PARA QUE SE ACENDA A peleja. EM BREVE TEMPO SE COMETERÃO COM DILATADA E OBSTINADA BATALHA, ETÁ QUE FINALMENTE, DEPOIS DE QUARENTE E CINCO OU CINQUENTE DIAS, PRINCIPIARÃO as Águias a picar e a despedaçar a Fera. MORRENDO ESTA, INFECTARÁ TODO O CÁRCERE DE PODRIDÃO…… (ver texto a pp. 65-67). Uma síntese, que poderemos dizer equivalente a esta, acha-se no TESTAMENTO HERMÉTICO (em castelhano), ao mesmo tempo simbólico e operativo: SI EN MERCÚRIO NO ALTERADO,/ DISSUELVES ORO NATIVO, EL REBIS HAS CONSEGUIDO,/ Y EL FERMENTO DESEADO: PONLE EN VASO SIGILADO,/EN FOGO LENTO A COSER, I coloquio 10
  • 11. ADVERTIENDO, QUE HA DE SER/ TAN SUAVE EL MOVIMIENTO, QUE SOLO ELENTENDIMIENTO,/PUEDA LLEGARLO A ENTENDER. (…) EN DOS ALAS SOLAMENTE,/ CONSISTE TODA LA OBRA, Y LO DE MÁS TODO SOBRA,/ PORQUE ÉS ENGAÑO PATENTE: TOMA UN CUERPO PERMANENTE,/ Y AUN TE CUSTE DISUELO, ABATE EL ÁGUIA AL SUELO,/ Y NO LA DEXES BOLAR; PORQUE EL INTENTO ES HALLAR,/ MODO DE UNIR TIERRA Y CIELO. (…) texto completo nas pp. 81-83 Existem algumas passagens de tratados clássicos de Alquimia que referem, o papel central que a IMAGINAÇÃO CRIADORA teria nesse processo místico de transformação espiritual que muitos reclamam – vide o caso de M. Eliade . Um exemplo interessante é o do Rosário dos Filósofos (obra de alquimia operativa que surgiu na Idade Média e no Renascimento, como sendo atribuida ao alquimista catalão do século XIII, Arnaldo do Vilanova), podemos ler: A Natureza efectua a sua operação pouco a pouco. E quero que tu actues assim, e SOBRETUDO QUE A TUA IMAGINAÇÃO SE CONDUZA SEGUNDO A NATUREZA. E DEVES VER SEGUNDO A NATUREZA, graças à qual os corpos são regenerados nas entranhas da terra. IMAGINA-O POR MEIO DA IMAGINAÇÃO VERDADEIRA E NÃO FANTÁSTICA63 . Paracelso distingue a FANTASIA da IMAGINAÇÃO – A FANTASIA NÃO É IMAGINAÇÃO MAS UM JOGO DO PENSAMENTO64 – não tendo a primeira, como refere Alexandre Koyré, fundamento na natureza e sendo apenas puramente intelectual, onde as imagens flutuam no nosso espírito sem ligação profunda entre elas e entre elas e nós próprios65 . Pelo contrário, a IMAGINAÇÃO é CRIADORA, no sentido em que ela é a produção MÁGICA de uma IMAGEM66 .Ora esta ACTIVIDADE IMAGINATIVA é muitas vezes – como refere Yvette Centeno no seu prefácio ao ENNOEA67 – expressa sob a forma relatos de sonhos, de visões, pelos próprios autores alquímicos. É o caso de Anselmo Caetano de Castelo Branco, com o seu Sonho Enigmático, descrição simbólica, onírica, visionária e altamente imaginativa que vem, no fim de ENNOEA – portanto numa mesma obra de um mesmo autor-, suceder a discursivas e racionais aplicações do entendimento, embora de uma racionalidade simbólica, sobre a teoria e a prática da alquimia operativa. Vejamos o seu texto: Tendo examinado todas as opiniões dos Filósofos Herméticos, e ponderado todos os enigmas com que os Adeptos explicaram a maior obra, que a Natureza produz com os instrumentos da Arte, cançado já de tão grande trabalho, ADORMECI E COMECEI A SONHAR, que estava embarcado, e dava logo à vela, navegando com bonança, pelas I coloquio 11
  • 12. inquietas ondas do Oceano. Como não descobria mais que Mar, e Céu, desejava avistar, ou descobrir terra…. Tendo chegado à Cidade Morgana, ele vislumbra depois um vale, que ficava entre dois montes muito altos e um admirável e delicioso bosque, onde as cores dos frutos são ascores da Obra. Encontra aí uma Poderosísima Imperatriz, e um Filósofo, cuja ocupação era ensinar ignorantes Peregrinos (como ele) e, que de um modo enigmático e alegórico lhe ensina os Mistérios da Arte que conduzem ao talo precioso – ver texto completo a pp. 67-70. CONCLUSÃO O Tratado ENNOEA constitui a demonstração do erro da hipótese de Eco, pois estamos em presença (como noutros tratados, p.e. Filaleto, Cosmopolita, etc.) de um discurso simbólico que não se refere a experiências místico-esotéricas, mas sim a experiências operativo-laboratoriais. Se alguma eficácia mística existe na alquimia operativa, ele deverá residir: – Na ìntima união do operador com a matéria (Canseliet) – Na utilização da simbolização das operações materiais Portanto, embora os materiais, descritos mais ou menos simbólicamente, não sejam estados de alma (como quer Jung), eles podem conduzir a uma transformação psico- espiritual, resultado de: a) um estado de espírito sagrado ou religioso. b) um longo e paciente percurso de comunhão com a Natureza e com as Operações da Arte. c) uma capacidade poética de simbolizar os materiais e as operações e de manter a vivência permenente dessas simbolizações. NOTAS 1 Unberto Eco, Os limites da interpretação, Lisboa, Difel, 1992 (trad. do original I limiti dell'interpretacioni, 1990), p. 79 e seguintes – O Discurso alquímico e o segredo diferido. 2 Op. cit., p. 80. I coloquio 12
  • 13. 3 Ibidem 4 Ibidem 5 Ibidem. No entanto, é por este discurso alquímico – discurso elaborado pelos cultores da alquimia simbólica, um discurso ao quadrado, pois é um discurso da alquimia sobre os discursos dos alquimistas - que Umberto Eco se interessa, para dissertar sobre a semiose hermética desse discurso polissémico de sinonimia total, do remoinho metalinguistico sobre o qual assenta o discurso alquímico. 6 op. cit., p. 81 7 Betty Dobbs, Les Fondements de l'alchimie de Newton, Paris, Trédaniel, 1981, p. 87 8 Anselmo Caetano Munhoz de Abreu Gusmão e Castelo Branco, ENNOEA ou Aplicação do Entendimento sobre a Pedra Filosofal,seguida de outras obras, Nota preambular de Manuel J. Gandra, Mafra, 1987, Segunda parte, Diálogo segundo, cap. Únic. # 2, p. 29 9 opp. Cit., p. 9 10 ibid.; a actualização da ortografia é nossa (mantivemos a pontuação). 11 ibid. (idem) 12 op. cit., p. 10 13 cf. José Manuel M. Anes, Hermes redivivo I: Ressurgimentos actuais da Alquimia Tradicional europeia, Tese de Doutoramento em Antropologia, a defender em breve na FCSH/UNL. 14 Anselmo Caetano…, op. cit., p. 12 15 op. cit., p. 13 16 op. cit., p. 16 I coloquio 13
  • 14. 17 op. cit., p. 17 18 op. cit., p. 15 19 op. cit-, p. 22 20 H. Eco, op. cit., p. 80 21 op. cit., p. 18 e 19; Castelo Branco/Enodato rejaita assim a via de Weindelfeld, do spiritus vinii lulliani, expressa em De Secreti Adeptorum (1685), que Enódio refere nos seguintes termos: Conforme o que ensina Raimundo Lúlio em vários lugares das suas doutíssimas obras, escolheria o Vinho vermelho, ou branco, para separar dele o espírito, que é uma quintaeesência, a qual animada com o Sal volátil de tártaro, é um menstruo radicalmente dissolvente do Ouro (ibid.). 22 vide supra 23 op. cit., p. 29 24 op. ,cit., p. 32 25 op. cit., p. 21 26 op. cit., p. 7 27 op. cit., p. 21 28 ibid. 29 op. cit., p. 23 30 op. cit., p. 23 31 op. cit., p. 22 32 op. cit., p. 22 I coloquio 14
  • 15. 33 op. cit., p. 23 34 op. cit., p.21 35 op. cit., p. 23 36 op. cit., p. 24 37 ibid.; o que dá aso a Anselmo Caetano, pela boca de Enodato, a fazer uma bem humorada dissertação sobre as (más) qualidades dos Esvrivães, dos Requerentes, das Sogras, dos lisonjeiros,dos Fidalgos e de outros muitos… 38 op. cit., p. 25 39 ibid. 40 op. cit., p. 26 41 op. cit., p. 27 42 ibid. 43 ibid. 44 op. cit., p. 28 45 cf. Le Livre des Laveures, in Les Oeuvres de Nicolas Flamel, Paris, Pierre Belfond, 1973 46 Note-se que os antigos denominavam o nosso Antimónio metálico, de Régulo de Antimónio, sendo a nossa Estibina (Sulfureto de Antimónio) denominada de Antimónio, ou Estíbio – que não era útil para a Obra Grande (como afirma Anselmo Caetano), mas sim o Régulo…. 47 Op. cit., Cap. V I coloquio 15
  • 16. 48 Rubellus Petrinus, A Grande Obra Alquímica, Lisboa, Hugin, 1997, em particular a primeira parte. 49 Manuel Algora Corbi, La Tabla Redonda de los Alquimistas, Luís Caárcamo, Madrid, 1980, pp. 183-195 50 op. cit., p. 33; registe-se o que nos parece uma evidente alusão ao tratado de Filaleto, A Entrada Aberta no Palácio Fechado do Rei – cf. L'Entrée Ouverte au Palais du Roi, Paris, Retz, 1976. 51 ibid. 52 ibid.; Manuel Algora Corbi (op. cit.), refere as Vias do Espírito Universal, assentes (quase) apenas no Antimónio, o que parece não ser o caso da via de Anselmo Caetano, centrada no Mercúrio, ou Azougue. 53 Op. cit., pp.34-36 54 op. cit., pp. 37-38 55 op. cit., pp. 39-40 56 op. cit., pp. 42-47 57 op. cit., p. 48 58 op. cit., pp. 48-49 59 op. cit., p. 50 60 Op. cit., p. 48 61 op. cit., p. 50 62 op. cit., p. 55 I coloquio 16
  • 17. 63 El Rosario de los Filósofos, Barcelona, Munoz, Moya e Montraveta eds., 1986, p. 31 (a tradução é nossa). 64 citado por Alexandre Koyré, in Mystiques, Spirituels, Alchimistes du XVIe. Siècle allemand, Paris, Gallimard, 1971, p. 97 (a tradução é nossa). 65 op. cit., p. 96 (idem) 66 op. cit., p. 97 67 Anselmo Caetano Munhoz de Abreu Gusmão e Castelo Branco, ENNOEA ou Aplicação do Entendimento sobre a Pedra Filosofal, Nota de Apresentação de Y.C. Centeno, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1987.– gnóstico-hermética –, de transformação espiritual. Isso é sobretudo claro numa I coloquio 17
  • 18. OS PRODÍGIOS DA LÍNGUA Ana Hatherly Agradeço aos organizadores deste Encontro terem-me sugerido o título da minha comunicação, o qual, parafraseando o meu livro A Experiência do Prodígio, me encaminhou directamente para ele sem que eu tivesse de fazer qualquer esforço. Considerando o tema geral deste Colóquio, tudo me encaminharia no sentido de fazer uma aproximação entre os processos da prática da alquimia - originalmente relacionada com o secreto processo de transmutação de metais vis em puro ouro - e os da prática da escrita, originalmente ligada a uma determinada concepção do segredo, que, operando com um material tão dúctil como é o vulgar material da língua, procurava obter construções que fossem, tanto quanto possível, incorruptíveis na sua consistência intrínseca, aspirando a um eterno (a memória ou a fama) que se opunha a um efémero (a vida) , o que equivalia a um ideal de perfeição. Porém, como não sou especialista em matéria de alquimia, não me sinto preparada para fazer uma abordagem comparativa. Por outro lado, embora seja para mim evidente que existe uma íntima relação entre o segredo e o sagrado, também não I coloquio 18
  • 19. irei aqui ocupar-me do aspecto transcendente da palavra como verbo, que me levaria para regiões onde não desejo agora entrar. Modestamente, irei apenas abordar o aspecto construtivo que, dentro do sistema duma língua e ao serviço de uma intencionalidade concreta, a palavra pode desempenhar, tomando como exemplo a construção do objecto cultural denominado poema. Na minha opinião, nesse processo construtivo a palavra pode sofrer uma verdadeira transmutação e, de comum objecto material, transformar-se em puro signo. Nesse caso, através da escrita poética, a palavra reencontra a sua original consistência de materia prima e, se para os velhos alquimistas, a pedra filosofal é uma pedra que não é pedra, para os velhos poetas, a palavra não é só palavra: tanto no seu todo como nos seus elementos constitutivos, a palavra, sobretudo escrita, surge como uma representação do mundo como enigma, enigma que ela simultaneamente revela e mimeticamente recria. Essa concepção da palavra escrita, que se insere numa espécie de cosmologia poética que pode ser verificada ao longo de toda a história da cultura, é particularmente nítida na Europa durante o período barroco, quando se produz uma enorme confluência de saberes antigos em que predomina um pensamento hermético aliado a um culto do prodigioso, do fantástico e do misterioso, que incendeia as sensibilidades da época e que a modernidade de então incorpora nos objectos-actos que produz. E é precisamente esse o aspecto que me remete para os meus livros A Experiência do Prodígio (1) e A Casa das Musas (2) em que é abordada e ilustrada essa questão, retomada de outro ângulo em O Ladrão Cristalino (3) e em Poesia Incurável, ainda no prelo. Em A Experiência do Prodígio, obra que, como sabem os que a conhecem, é uma antologia de textos visuais dos séculos XVII e XVIII, verifica-se que o fundamento teórico desses textos repousa numa concepção esotérica da escrita que se apoia numa tradição que, nalguns casos, é mantida e noutros transformada, pois o pacto lúdico que então passa a dominar sobrepõe-se por vezes aos ecos de um passado que assim se des- sacraliza, Por fim, o que se verifica é que essa concepção esotérica.ora se sacraliza ora se des-sacraliza, num vai-vem alternativo que ilustra as variedades criadas pela circunstância da sua produção. Um dos exemplos mais flagrantes de persistência de um pensamento hermético (de origem sobretudo pitagórico-cabalística) podemos encontrá-la nos Anagramas I coloquio 19
  • 20. Poéticos, construções que se baseiam em fundamentos teóricos que, em parte chegaram até nós, em que a língua, ou se quisermos, a palavra, e até a letra (não se usava ainda a designação de fonema) como mais tarde viria a acontecer no Concretismo, surgem como puros signos, sinais autónomos, substantivos, que, no entanto, se integram no sistema geral duma representação múltipla: por um lado, como representação codificada do sistema verbo-voco-visual a que pertencem; por outro, como representação dum universo de significação reservado, parcialmente secreto, o qual, por sua vez, é um simile (embora imperfeito) do universo geral que é o mundo da criação, pois se o mundo é um labirinto de Deus, como dizia o Padre Nieremberg na esteira de Plotino, esse mundo é um livro, onde a criação está escrita. Justifica-se assim a importância da letra - sinal para ser lido. Luís Nunes Tinoco, um notável poeta-pintor-caígrafo português do século XVII, é autor de uma representativa colecção de anagramas poéticos em honra da Rainha D. Maria Sofia Isabel, segunda esposa de D. Pedro II, colectânea intitulada A Feniz de Portugal Prodígiosa, que se encontra num manuscrito de 1678, reproduzido em A Experiência do Prodígio. No texto introdutório, Luís Nunes Tinoco tece as seguintes admiráveis considerações: He o mundo todo hum grande livro de que emana a Sciencia da Orthographia: cujos Tratados são as Idades, os Capítulos, os Séulos, as folhas os annos, os paragrafos os mezes, as Regras os Dias e as Letras as Horas. Logo que este admirárel Iivro sahio a luz acabado das mãos do seu Divino Autor, teve encadernação dourada na primeira Idade de Ouro. Perdeu este Lustre por cometer erratas em o Prologo o primeiro Leytor dele. E mais adiante escreve: Foy Adam a primeira Letra do Alfabeto Racional que Deus tirou e criou do Nada, que hé Anagramma de Adam na língua espanhola (...) Com Estrellas de brilhante ouro escreveu Deus as Letras redondas sobre o azul dos Celestes Orbes: com flores de varias cores formou Alfabetos de diferentes matizes na Terra: com aves de diversas formas delineou vistozas penadas no Ar. Nesta cristalina lamina desse humido Elemento abriu o subtil buril da Divina Providencia Letras de prata que posto sejam só Mutas, e Líquidas não deixam de se soletrar nellas innumeraveis maravilhas da Natureza, que se lêm como Agua. (...) Finalmente nesta Machína do I coloquio 20
  • 21. Orbe todas as criaturas são A B C de Deos, como diz Santo Ambrosio, por onde cada natureza he huma letra cada vínculo huma sylaba e cada geração muytas dicções: não havendo criatura alguma por pequena que seja que não sirva de folhano volume do Mundo. (pp. 210-211). Como já noutro local observei, para o pensamento da época, a representação toma-se, mais do que nunca, um espaço de reflexão, não só do visível mas do invisível e "se essa preocupação com a decifração dos sinais do oculto no visível atinge todas as formas de expressão, as artes da palavra e as artes visuais são veículos privilegiados para transmitir pela representação (e pela interpretação que suscitam) simultaneamente o oculto e o patente, o sagrado e o profano, o visível e o invisível, uma vez que, para o pensamento cristão, o Criador pode ser conhecido através da criação". (4) Os esforços para atingir a compreensão desse saber, esteticizados no pacto lúdico que é a escrita poética, são o que nos transmitem as prodigiosas construções que são os poemas-visuais da época barroca (e seus antepassados históricos, gregos alexandrinos e medievais), construções em que o processo de codificação (que é o da sua escrita, da sua construção) é tão complexo quanto o da sua des-codificação (que é a sua leitura), representando, uma, o poder de criar, e a outra, o poder de interpretar, igualmente criador, que em si mesmo encontra a recompensa. Mas é preciso merecê-la, e assim nem todos podem aceder a ela, ou seja, nem todos atingem esse ouro, essa forma de perfeição reservada, de certo modo demiúrgica. Considerando o Anagrama como um dos textos-visuais tipicos do periodo barroco escolhido para ilustrar esses princípios, direi que o fundamento teórico do anagrama como composição poética está claramente descrito em A Experiência do Prodígio nos textos de Alonso de Alcalá y Herrera e de Luís Nunes Tinoco, incluídos nessa Antologia, onde se pode verificar a complexa origem e a complexa prática desses enigmáticos textos-visuais que a sua construção e a sua descodificação exigem e que aqui não poderemos abordar em profundidade. Remetendo os interessados para a leitura dessa teorização, limitar-me-ei aqui a citar Alonso de Alcalá y Herrera, que na sua extraordinária obra intitulada Jardim Anagramatico de Divinas Flores, impresso em Lisboa, na Officina Craesbeckiana em 1654, onde apresenta 683 Anagramas em prosa e em verso, do ponto de vista teórico define assim o anagrama: I coloquio 21
  • 22. He pois ANAGRAMA nome Grego, cõposto de duas dicções - ANA - preposiçaõ, & GRAMMA - nome que significa letra - que delle tambem se deriva Grãmatica -, E assi ANAGRAMA val o mesmo que trãsposisçaõ de letras, porque se deriva de Anagrammatizin, que he o mesmo que trãsposiçaõ dellas, assi no escrever, como no falar: de sorte, que com as mesmas letras de hum nome, ou nomes, & periodos, trocadas as syllabas, ou as letras, se pronuncie, ou escreva outro nome ou nomes, & periodos differentes, sem que se tire nem acrescente letra algua, porque em se lhe tirando ou acrecentando, já naõ fica verdadeiro Anagrama. (pp.195-196). Simples exemplos da aplicação do princípio do anagrama podemos ver nas seguintes transposições: Maria=Arima; Isabel=Belisa; Paraiso=Rosa Pia, etc. .Mas há aqui a notar a diferença entre anagrama e palindroma, uma vez que, se no anagrama a transposição das letras pode fazer-se por qualquer ordem, no palindroma a transposição das letras é feita apenas na leitura, sem inversão da sua ordem escrita: por exemplo: Ana que se lê sempre do mesmo modo, quer a leitura seja feita a direito ou ao revés e o mesmo se pode fazer com frases inteiras. Voltando ao anagrama, a questão da transposição das letras complica-se quando o seu processo se aplica á construção de todo um texto. Sendo o anagrama um texto essencialmente programático, é necessário comprovar a sua exactidão, quer dizer, a sua fidelidade ao princípio estruturante, daí que os Anagramas Poéticos Aritméticos venham acompanhados do seu respectivo quadro de verificação. Considerem-se os seguintes exemplos, atribuídos a Luís Nunes Tinoco. Em primeiro lugar, o Anagrama Poético, que faz parte da extensa obra manuscrita com data de 1678, atribuída a Luís Nunes Tinoco e intitulada A Pheniz de Portugal Prodigiosa em seus nomes Maria Sofia Isabel Raynha Sereníssima & Sra. Nossa, que já referimos e que é um prodigioso Panegirico, I coloquio 22
  • 23. Estamos aqui perante um soneto que é um complexo anagrama poético acróstico sobre as letras que constituem o nome da Rainha - Maria Sofia lsabel - que,em anagrama, dá là LI Sabia Fermosa. Sendo o nome da Rainha constituído por 16 letras, na Tábua de Comprovação verifica-se que, somado o número de vezes que no nome da rainha, como no seu anagrama, e ao longo do poema, aparecem as letras que o constituem, obtém-se o número 16, com o que se comprova a sua exactidão, independentemente do seu valor simbólico. Vejamos agora um outro exemplo, retirado do mesmo Panegírico, em que o valor simbólico de letras e de números é considerado: Quanto à sua leitura descodificadora escreve o seu autor (aqui citado em ortografia actualizada para melhor compreensão): I coloquio 23
  • 24. Todos os números estão cheios de Mistérios e contêm grandes virtudes, como dizem muitos Autores. Os nomes de Maria Sofia Isabel têm 16 letras e são constituídos por três unidades. O número 3 sign!fica a apreensão da Divina Vontade. O número 6 denota perfeição e bondade. O número 10 é a ideia de Perfeição. Têm mais os 3 nomes que em cada um dos primeiros há o número 5 e no terceiro 6. O número 5 significa Bondade e o 6 perfeição da Bondade. Ambos se provam pelo 5° e 6° Dia da Criação, que no 5° se diz (Gen. 25 e 31) Vidu Deus quod esset Bonum e no 6° Et erant valdi Bona. Dá-se na Aritmética estas 3 casas ou termos: Unidade, Dezena, Centena (e assim se vão seguindo outras, como Unidade de Milhar, dezena de Milhar, Centena de Milhar, etc.) que fazem triângulo e se expressam pelo nosso Anagrama. Ensinam-se também 4 espécies que fazem um quadrado (e se estendem pelos 4 lados do quadrado, os quais se nomeiam; somar, diminuir, multiplicar, repartir, começando em 4 letras). Raro prodígio! E que outra cousa vem a ser estas 4 letras senão umas breves cifras da Rainha N. Sra. que dizem Dona Maria Sofia Rainha. E dizendo muito, estas 4 letras não dizem mais nada, deixando o discurso suspenso na última dicção e não sofrendo a curiosidade que fique em silêncio o Reino de que é Rainha, o explique a Ortografia. Há outros tipos de Anagramas Poéticos, como sejam os Cronológicos, em cuja base de construção está a atribuição de um valor numérico, um valor de ordem, sistema de numerologia, que duplica o valor simbólico do signo. Assim se estabelece uma complicada trama processual em que a materia prima do alfabeto, como elemento de representação da fala, ou seja, da lingua, do qual resulta o texto poemático, sofre uma fantástica transmutação, passando de simples matéria-prima a espelho da complexa significação cifrada do mundo. Vejam-se os seguintes dois exemplos de uma Hymnodia Chronologica da Autoria de Alonso de Alcalá y Herrera, incluída no já referido volume Jardim Anagramático de Divinas Flores: I coloquio 24
  • 25. No primeiro podemos ver a explicação do processo utilizado nos seis Hinos que compõem esse capítulo da obra. No segundo a aplicação do processo. Tudo para celebrar o ano de 1651. Estas elaboradas composições são acompanhadas de uma extensa exposição em que são interpretadas especulativamente e a uma luz mística o valor das letras e o das cifras, em que claramente se revela a sua origem esotérica, cabalística, aliás declarada como tal pelo seu autor. Esta breve incursão no universo enigmático da escrita poética baseada numa tradição tão esotérica e proibida como foi a da alquimia, permitir-nos-ia talvez estabelecer entre ambas curiosas pontes, se para tal dispuséssemos aqui de tempo. Como isso não sucede, fico por aqui, desejando que os presentes ouvintes se tornem futuros leitores. Obrigada pela vossa atenção. NOTAS (1) Lisboa. INCM. 1983 (2) Lisboa; Editorial Estampa. 1995 (3) Lisboa. Edições Cosmos. 1997 (4) O Ladrão Cristalino. ob. Cit.. p. 98 I coloquio 25
  • 26. AS RAÍZES ALQUÍMICAS DA MINERALOGÍA A. M. Galopim de Carvalho I coloquio 26
  • 27. Vinda da antiguidade, com raízes na China, na Índia na Babilónia e no Egipto, através da tradição e dos textos eruditos dos clássicos gregos e latinos, a Mineralogia percorreu toda a Idade Média, de mãos dadas com a Alquimia, tendo aí crescido bastante, deixando para trás muitas das concepções fantasistas e místicas dos escolásticos, até se tornar ciência, a par da química, a partir do século XVIII, fazendo-a progredir e tirando dela o essencial do seu próprio aprofundamento como disciplina de acentuada organização sistemática. A alquimia, nome que radica no grego chymeia, e que significa mistura, chegou à Europa trazida pelos árabes, seus cultores, que a transformaram em al kimia, ou pedra filosofal, expressão de um conceito carregado de sabedoria. Através do Egipto, a alquimia chegou à Grécia antiga onde ficaram célebres Hermes Trismegisto e Zózimo de Tebas. Em Roma teve protecção de Calígula e enfrentou a perseguição de Diocleciano devido aos abusos a que se entregou. Na escola árabe antiga florescia a “polifarmácia”, actividade alquímica em que se queimava, sublimava, dissolvia, precipitava, na crença de que a maioria dos metais era composta de mercúrio e enxofre. À escola árabe se deve, por exemplo, o termo bórax, nome ainda em uso para referir um borato natural de sódio. Como acontece em qualquer domínio da actividade humana, cultural, técnica ou científica, os alquimistas não partiram do zero; tinham atrás deles um saber antigo que herdaram não só por via tradicional, veiculado por sucessivas gerações de prática mineira e metalúrgica, mas também por via erudita, através dos textos dos clássicos recuperados nas traduções que judeus e eles próprios fizeram. Uns mais outros menos, os alquimistas “colocaram várias pedras” no vasto e complexo edifício do conhecimento mineralógico que temos ao nosso dispor. O legado que nos deixaram é algo que lhes devemos, e muito. E a maneira de saldarmos essa dívida é reconhecer-lhe a obra e procurar divulgá-la como património cultural, da mesma maneira que I coloquio 27
  • 28. divulgamos as artes, as letras ou os feitos heróicos da História da humanidade. Desde os tempos mais recuados que o mundo mineral despertou o interesse e a curiosidade humanas. A utilização intensiva de sílex, quartzo, calcedónia ou jade como matérias primas no fabrico de utensílios ou de objectos de adorno e votivos, demonstra que o homem pré-histórico os procurou sistematicamente e que, portanto, lhes dedicou tratamento racional, primitivo talvez, mas eficaz. Por outro lado, a sua condição humana permitiu-lhe acumular conhecimentos que foi legando aos descendentes ao longo de sucessivas gerações. Os pigmentos naturais à base de óxidos de ferro (os ocres vermelho e amarelo respectivamente, hematite e limonite) e de manganês (preto, pirolusite) e outros, usados nas pinturas rupestres do Paleolítico superior ou sobre os próprios corpos, mostra que os nossos antepassados pesquisaram e exploraram os respectivos minerais. O fabrico de objectos em ouro, bronze ou ferro revela, por outro lado, que as primeiras civilizações não só prospectaram e extraíram, como também transformaram os minerais correspondentes, numa actividade tão importante que levou os historiadores a falar em idades da Pedra, do Cobre, do Bronze e do Ferro. Os Celtas e também os Babilónicos, de entre os quais surgiram os primeiros alquimistas, já praticavam a prospecção mineira e a metalurgia do ferro. Na Antiguidade, Aristóteles (384-322 a. C.) dissertava sobre os “seus” quatro princípios ou elementos primordiais da natureza, ar, água, terra e fogo,1 ao mesmo tempo que produziu os primeiros escritos sobre objectos naturais inorgânicos, tendo designado por metalóides os minerais com aspecto metálico. Teofrasto (372-287 a. C.), seu discípulo, escreveu um tratado sobre “As Pedras” e um outro sobre metais, minas e metalurgia, que se perdeu. A ele se deve a primeira classificação de minerais, que tinha por base a utilidade desses produtos naturais como minérios, pedras preciosas, pigmentos, etc., tendo descrito vários tipos de minerais, sobretudo gemas, e algumas rochas, utilizando para tal I coloquio 28
  • 29. propriedades físicas, entre as quais, a densidade, o brilho, a fusibilidade e a dureza. Por essa altura já os gregos aplicavam o teste de avaliação da dureza relativa dos minerais, e esboçavam os primeiros cálculos de densidade, na sequência dos trabalhos de Arquimedes (287-212 a. C.). Por outro lado, a utilização de metais, como ouro, cobre, prata e ferro, permitia-lhe o conhecimento, ainda que empírico, daquelas propriedades físicas. Mais tarde e no que toca à civilização romana, Plínio, o Velho, de seu nome Caius Plinius Secundus (23-79 d. C.), morto na histórica erupção do Vesúvio, ocupa lugar de destaque através da sua monumental História Natural em 37 volumes. Aí se encontram mais algumas descrições de minerais, em especial dos pigmentos, dos minérios e das gemas. Na Idade Média o alquimista árabe Gabir Ibn Haiyan (721-803), mais conhecido por Geber, propôs uma classificação baseada em propriedades físicas observáveis ou determináveis. Segundo ele, as substâncias minerais repartiam-se por três grupos: “minerais quebradiços e pulverizáveis”, fusíveis ou não; “minerais metálicos”, fusíveis e maleáveis; e “minerais vaporizáveis” pelo fogo, a que chamou “espíritos”. Neste longo período da História, os árabes, que haviam assimilado as culturas helénica e indiana, progrediram, ao contrário dos povos da Europa cristã acorrentados aos dogmas da Sagrada Escritura, sob a vigilância constante e repressiva do poder da Igreja. Avicena (Ibn-Sinã) que viveu entre 980 e 1037, outro árabe que fez história no panorama alquímico, propôs no seu Tratado das Pedras a primeira classificação a partir das características externas observáveis directamente, como a cor, a forma e o brilho, e das propriedades físicas determináveis, entre as quais, a fusibilidade. “Pedras e terras”, “minerais fusíveis e sulfurosos”, “metais” e “sais” foram algumas das divisões que estabeleceu. Albertus Magnus, monge dominicano de nome Albert von Bollstadt (1206-1280), interessou-se pelas rochas e pelos minerais, e, no livro que I coloquio 29
  • 30. nos legou, De Rebus Metallicis et Mineralibus, este teólogo e grande alquimista do seu tempo, tido por muitos como mago e a que foi dado o nome de Doutor Universal, tratou como minerais todo o tipo de pedras e os metais. Estudou as propriedades do enxofre e de muitos sais metálicos, além de que contribuiu para redescobrir Aristóteles através das traduções dos rabinos e árabes eruditos. Com efeito, após a queda do Império Romano do Ocidente, grande parte do conhecimento produzido e ensinado na Antiguidade, só sobreviveu, como já referimos, graças a essas traduções e a outras relativas a textos de saber alquímico, de babilónios e egípcios. Foi assim que a alquimia oriunda destes povos, bem como a Filosofia grega, reapareceram na Europa medieval. Foi a época dos Lapidários, assim se chamavam os livros, primeiro manuscritos e depois (a partir do século XV) impressos, no geral, pequenos, com algumas descrições ainda imprecisas das propriedades dos minerais e de outras pedras, plenos de alusões às suas qualidades medicinais e mágicas, de que o mais conhecido é o célebre De Gemminis, da autoria do bispo de Rennes, Marbode (1035-1123). Foi igualmente a época dos enciclopedistas árabes e cristãos, muito subordinados aos textos de Aristóteles, Teofrasto e Plínio, valiosas fontes de saber antigo ao dispor dos alquimistas. No século XIII, o franciscano inglês Roger Bacon (1214-1292), que ficou conhecido por Doctor Mirabilis, interessou-se profundamente pelo conhecimento experimental, campo em que alcançou a celebridade. Apesar de condenar a magia, Bacon era tido por praticante dessa actividade oculta e, como tal, temido. A sua crença na alquimia foi compartilhada pelos sábios do seu tempo e as suas divergências face aos escolásticos focalizam-nas na separação entre a ciência e a teologia, atitude coincidente com a dos comentadores árabes de Aristótoles, entre os quais se distinguiu o filósofo do século XII, Averróis, nascido em Córdova. Ao tempo, entre os alquimistas, os minerais eram classificados em quatro grupos, “gemas”, “minerais”, “combustíveis” ou “flogistos” e “sais”, e a procura das suas qualidades com interesse em medicina fez crescer a alquimia, que evoluiu, acumulando conhecimentos e I coloquio 30
  • 31. experiência até ao século XVIII, época em que começou a confundir-se com a Química Mineral, um estágio inicial da actual Química Inorgânica como ciência. Na Idade Média acreditava-se na transmutação dos metais, o que deu lugar a experiências sem conta, numa busca desorganizada mas de que resultou um significativo avolumar de conhecimentos que, associados à prática dos metalurgistas, numa tradição cultural vinda da pré-história, permitiram avanços do conhecimento químico e mineralógico nem sempre suficientemente reconhecidos quando, simplisticamente, se fala em Idade das Trevas e do obscurantismo a ela associado. Não obstante a preponderância da escolástica e as restrições impostas à experimentação pelos dogmas da Igreja, os alquimistas ensaiaram e compreenderam muitas reacções químicas, conheceram novos sais e alguns elementos químicos como antimónio e o bismuto, cujas descobertas, em 1413, se devem ao alquimista Basile Valentini. Na Renascença, os grandes pensadores defendiam os métodos experimentais na química e, consequentemente, na mineralogia, dado o paralelismo que caracterizou as respectivas marchas. Leonardo da Vinci (1452-1519) foi um dos primeiros a pôr em causa os quatro princípios ou elementos ditos de Aristóteles, bem arreigados no espírito da época após cerca de dois mil anos de vigência inquestionável. Como em todos os antigos ramos do saber, é na Renascença que a alquimia começa a dar passos no caminho da mineralogia e, assim, a tomar corpo de ciência. Citem-se, desta idade, os livros De la Pirotechnia, do italiano Vanoccio Biringuccio (1540), e De Natura Fossilium (1546) e De Re Metallica (1556) de Agrícola, médico alemão, de nome, Georg Bauer (1495-1555). Deve dizer-se que o termo fóssil, em latim, fossilium, significa tudo o que está enterrado no solo e que, portanto, compreende os minerais e as rochas. Só muito mais tarde, no século XVIII, o termo fóssil passou a ser usado no sentido que hoje lhe atribuímos, isto é, o de referir os restos de seres vivos petrificados. Nestas duas obras de Agricola, dois marcos na história da mineralogia, dá-se conta do estado dos conhecimentos de I coloquio 31
  • 32. então, sendo considerados os primeiros compêndios de mineralogia, mineração e metalurgia, numa época em que já havia alguma prática mineira, estando em exploração os importantes jazigos da Saxónica, da Boémia, da Itália, entre outros da velha Europa. Agricola acabou por se tornar num dos mineralogistas mais célebres de sempre, ao expurgar da alquimia tudo o que ela tinha de magia e de imposição escolástica. Este homem de grande sabedoria propunha então a existência de seis tipos de minerais: “minerais fusíveis”, “terras”, “sais”, “pedras preciosas”, “metais” e “ligas metálicas”, dando relevo ao uso de propriedades físicas na identificação dos minerais, tais como cor, brilho, transparência, densidade, dureza, fusibilidade, solubilidade, cheiro e sabor. Este “Plínio da Saxónia”, assim era apelidado, não dispunha porém de dados químicos, ainda por descobrir. Os seus conhecimentos sobre a génese e modos de ocorrência dos minerais influenciaram várias gerações de estudiosos europeus, entre os quais, o português Garcia de Orta (1501-1568) nas suas referências às gemas do Oriente no “Colóquio dos Simples e Drogas e Cousas Medicinais da Índia”, publicado em Goa, em 1563. Pela mesma época, o suíço Paracelso (1493-1541) trabalhava quimicamente os minerais com vista a conhecer-lhes o interesse em medicina. De nome Philipp Theophrast von Hoherheim, este médico vale um dos mais célebres alquimistas do seu tempo insistia na importância da observação dos objectos naturais e entre eles também os minerais, tendo sido o primeiro a reconhecer que os processos vitais são de natureza química e a concluir que a cura das doenças deveria ser encontrada no estudo da respectiva disciplina. Mostrou várias utilizações do enxofre, do chumbo, do cobre e do antimónio, já então conhecidos e isolados. Paracelso deixou uma obra que culminou toda a alquimia dos séculos que o precederam e admitia a existência de um dissolvente universal a que deu o nome de alcaeste. I coloquio 32
  • 33. Após a época de Paracelso e de um seu contemporâneo, o alemão Conrad Geoner (1516-1565) autor do célebre De Rerum Fossilium, Lapidum et Gemmarum (Zurique, 1566), os alquimistas começaram a dividir-se em dois grupos: os que trabalhavam no sentido da química científica e os cultores de uma outra atitude, fantasista e extravagante, responsável pela imagem negativa que, injustamente, tem sido a mais divulgada em torno da alquimia e dos alquimistas. No século XVI e na tradição de uma crença antiga, ressuscitada pelos árabes e divulgada, sobretudo, por Albertus Magnus, três séculos antes, estes últimos aceitavam que determinadas pedras, ou calculi, incluindo alguns minerais, cresciam no corpo de certos animais , a par de outras, geradas no reino vegetal, nos mares e lagos, no interior de cavernas, etc. No seu livro Speculum Lapidum (1505), Camilus Leonardus, muito embora não sendo considerado alquimista, descreve uma quinzena de pedras nascidas no corpo de animais como a cabra, o burro, o frango capão, o dragão, o gato, a hiena, o veado, o lince, a ostra (na pérola), o galo, o abutre, etc.. Assim, pedras como asinius, gerada no burro, extraída da urina do lince, e muitas outras constavam dos receituários médicos e dos textos de magia. De todos, ficaram-nos algumas recordações como draconites nascida na cabeça do dragão e a célebre pedra de bezoar ou lapis bezoaris, retirada da cabra, panaceia para muitos males e poderoso antídoto contra os venenos. Até finais da Idade Média, a alquimia e a busca da Pedra Filosofal fascinaram a imaginação de muitos eruditos, tendo como resultado retardar o avanço da química, pois, embora o conhecimento e a experiência tivessem progredido, outro tanto não sucedeu com a sistematização do saber acumulado e, assim, esta disciplina só começou a ganhar foros de ciência com o alvor do século XVIII. À alquimia sucedeu uma química mineral onde radica a que é conhecida por mineralogia empírica, esboçada muito antes por Agricola. Só então teve lugar o corte definitivo com o passado alquimista. I coloquio 33
  • 34. No século XVII, a Inquisição mostrava já alguma tolerância pelas teorias de pendor matemático que não questionassem o saber dogmático, mas já assim não sucedia com outros domínios do conhecimento que, na visão da Igreja, questionassem os princípios tidos por intocáveis. O químico inglês Robert Boyle (1627-1691) inovou sobre o conceito de elemento químico, mas as suas ideias, que punham em causa princípios tidos por intocáveis, tiveram de esperar um século para serem definitivamente aceites. Boyle foi mais um, á semelhança de Leonardo da Vinci, a pôr em causa (no seu livro Skeptical Chymist, 1677) a visão aristotélica dos quatro elementos, só definitivamente rejeitada após mais de vinte séculos de ensino escolástico que percorreu e dominou todo o período efervescente dos alquimistas. O fim da prática alquímica no mundo das pedras terminou com a primeira proposta de classificação dos minerais com base em critérios químicos (através do uso da chama e do maçarico de sopro), surgida em 1758, da autoria do alemão Alex Fredrik Cronstedt (1702-1765). Por seu turno, em França, Antoine Laurent Lavoisier (1743-1794), tragicamente apanhado na voragem da Revolução Francesa, criava os fundamentos da química moderna, contribuindo decisivamente para que a mineralogia se elevasse acima do saber empírico que sempre fora até aí e se tornasse uma entre as demais ciências. NOTAS 1 - Vulgarmente atribuídos ao ilustre filósofo estes quatro elementos são o culminar de uma concepção muito anterior ao grande mestre e fundador do Liceu de Atenas, que se desenvolveu gradualmente até ser objecto de uma formulação, mais completa e abrangente, por Empédocles (circa 450 a.C.) como Teoria das Substâncias ou Teoria dos Quatro elementos. Nesta visão do mundo coube a Aristóteles o mérito de a divulgar e lhe dar crédito tal que a fez singrar, incóetume, por quase dois mil anos, inclusive, com a aceitação da Igreja romana, que a adoptou e impôs, no essencial do seu conteúdo, opondo-a constante e tenazmente à I coloquio 34
  • 35. “teoria atómica, também ela fruto do pensamento grego antigo”. BIBLIOGRAFIA ELLENBERGER, François — Historia de la Geología. Vol I. De la Antigüedad al siglo XVII. Ed. Labor, Madrid. 1989. ADAMS, Frank Dawson — The birth and development of the Geological Sciences. Dover Publications, Inc., Nova Yorque, 1938. FRANÇOIS, Elenbeger (1988) — Histoire de La Géologie. Tome I, Des Anciens à la première moitié du XVII e Sciècle. TRANSMUTAÇÃO DOS ELEMENTOS Isabel Serra FÍSICA E ALQUIMIA I coloquio 35
  • 36. Os físicos têm, em geral, poucos conhecimentos sobre Alquimia, mas sabem que ela está associada às palavras ouro e transmutação. Em especial esta última contém ressonâncias importantes para um físico do século XX. É durante os primeiros anos deste século que a transmutação passa a ser um fenómeno físico. Processo mediante o qual um elemento se transforma noutro, a transmutação contém algo de mágico, também para os físicos. Para o compreender é necessário conhecer um pouco da história da radioactividade, um ramo da física que nasceu no fim do século XIX e que viria a revolucionar a física no século XX. A descoberta da radioactividade deu origem a uma área completamente nova na física - a microfísica- e que, por diversas razões, ganhou uma enorme dimensão. Mas para além disso, a radioactividade veio finalmente permitir a realização de um dos sonhos alquímicos - a transmutação dos metais em ouro. Essa história do “encontro” entre a física e a Alquimia pode ser caracterizada por quatro momentos principais: 1. DESCOBERTA DA RADIOACTIVIDADE (1896) 2. INTERPRETAÇÃO DA RADIOACTIVIDADE COMO RESULTANTE DA TRANSMUTAÇÃO DE UM ELEMENTO NOUTRO (1902) 3. TRANSMUTAÇÕES PROVOCADAS (1919) 4. TRANSMUTAÇÃO E ACELERADORES DE PARTÍCULAS (1928-1932) Estas quatro fases correspondem a verdadeiros progressos da investigação em física e traduzem-se pela possibilidade de compreender, e depois realizar, as transmutações que se queiram, inclusive as de um metal em ouro. A história da radioactividade não pode ser reduzida, é claro, ao problema das transmutações, mas se estivermos interessados unicamente nesse aspecto, são aqueles quatro os passos fundamentais que conduzem a uma verdadeira “apoteose” com a invenção dos aceleradores de partículas. Os aceleradores permitem, em princípio, transformar um dado elemento noutro qualquer, ou seja, realizar qualquer transmutação. Depois da invenção do acelerador não foram realizados progressos decisivos para a realização de transmutações provocadas, mas apenas melhoradas as condições e os rendimentos de tais reacções. A DESCOBERTA DA RADIOACTIVIDADE Há quem ponha em causa a utilização da palavra descoberta em muitas situações da ciência, mas creio que a radioactividade é um daqueles fenómenos sobre o qual todos estarão de acordo em usar tal palavra. Impossível de detectar por simples observação visual, táctil ou sonora, a radioactividade é a capacidade de certos elementos emitirem I coloquio 36
  • 37. radiação espontaneamente. Presentes na natureza desde a formação da terra, embora com fraca intensidade, só no limiar do século XX os fenómenos radioactivos são descobertos e estudados. Foi Becquerel, em 1896, quem descobriu que o Urânio emite espontaneamente uma radiação de natureza desconhecida. Essa radiação, as suas propriedades, as propriedades dos elementos que a emitem é estudada, nos anos seguintes, por um grande número de físicos, e entre os mais conhecidos estão Pierre e Marie Curie. Eles conseguem, em particular, obter, por purificação, amostras de várias substâncias radioactivas, algumas delas inteiramente desconhecidas até então. É indispensável dizer que, mesmo depois de bem estudado o fenómeno da radioactividade e as suas propriedades e efeitos, a origem da emissão de radiação permaneceu um mistério, durante muitos anos. Foi necessária uma teoria física sobre a constituição microscópica da matéria, para compreender as razões pelas quais certos elementos emitem espontaneamente radiação. A primeira explicação sobre a origem do fenómeno resulta da colaboração entre um físico neo-zelandês, Ernest Rutherford (1871-1937) e de um químico inglês, Frédérick Soddy (1877-1956), trabalhando em conjunto na universidade de MacGill, em Montréal. A TRANSMUTAÇÃO RADIOACTIVA Rutherford desempenha um papel central no estudo da radioactividade, ao qual se dedica quase logo após a sua descoberta. Em 1902, trabalhando em conjunto com Soddy, Rutherford interpreta a emissão de radioactividade usando a hipótese de que ela está associada à transmutação de um elemento químico noutro elemento. Quando dessa descoberta Rutherford hesita.... “se falamos de transmutação vão chamar-nos alquimistas”, enquanto que Soddy “exalta por ser, de entre os químicos de todos os tempos, aquele que torna realidade o velho sonho alquímico - o da transmutação” (1) Mas, embora identificado, durante muitos anos não se soube controlar, nem mesmo compreender esse processo de transmutação espontânea dos elementos. Durante os primeiros vinte anos do século XX, físicos de vários países dedicaram-se a estudar os processos de transmutação dos elementos radioactivos. Esse processo espontâneo é responsável pela transformação sucessiva de um elemento noutro, e ainda noutro e noutro, formando-se cadeias de elementos. A essas cadeias dá-se o nome de famílias radioactivas. No quadro seguinte podemos ver uma parte da família do Rádio, começando no Urânio-238 e que se desintegra sucessivamente, por radioactividade a ou b, para originar uma série de elementos até ao chumbo. Os dois tipos de radioactividade correspondem à emissão de dois tipos de partículas, respectivamente, núcleos de hélio e electrões. Para além desta família radioactiva existem ainda outras duas e também alguns elementos radioactivos naturais de períodos muito grandes e que não formam famílias, I coloquio 37
  • 38. tal como o potássio-40, que existem na natureza desde a época da formação do sistema solar. TRANSMUTAÇÕES PROVOCADAS É ainda Rutherford o autor de mais um episódio importante do ponto de vista da transmutação dos elementos. Em 1919, bombardeando certos elementos com partículas alfa, Rutherford descobre que eles se transformam noutros elementos, ou seja, que se podem provocar transmutações que de outra maneira não ocorreriam na natureza. São as chamadas transmutações artificiais. Estava aberta a via para transformar, artificialmente, uns elementos noutros, em particular em ouro. Embora, no século XX, isso tenha deixado de ser importante, não deixa de ser curioso que se tenha cumprido o velho sonho alquímico, embora por transformação física, e não química, dos elementos. O primeiro exemplo de transmutação provocada artificialmente pode ser representado da seguinte maneira: (IMAGEM) Esta representação significa que o núcleo de um átomo de azoto (N), quando é bombardeado por uma partícula a, se transforma num núcleo de oxigénio (O) e num protão (p). Um protão é um constituinte dos núcleos atómicos de todos os elementos e, por exemplo, o hidrogénio tem no seu núcleo apenas um protão. O protão resultante desta reacção é pois, um núcleo de hidrogénio. As reacções nucleares, de que esta é um exemplo, traduzem a transformação de um elemento noutro, ou melhor, a transformação de núcleos. Para transformar um elemento noutro é preciso alterar a estrutura do núcleo atómico. A modificação do núcleo de um elemento não pode acontecer numa reacção química, onde é alterada apenas constituição superficial do átomo. Daí que os alquimistas nunca poderiam conseguir os seus intentos de transformar um elemento noutro durante uma reacção química. Para transformar um elemento noutro qualquer basta mudar o seu núcleo, tirando ou acrescentando protões, tirando ou acrescentando neutrões (o outro constituinte do núcleo). Embora, do ponto de vista teórico, estas transformações sejam sempre possíveis, algumas delas são muito difíceis de fazer na prática, pois exigem gandes quantidades de energia. Actualmente sabe-se transformar um núcleo de carbono em azoto, um de cobre em níquel, um de argon em potássio e mesmo UM DE CHUMBO EM OURO. No entanto o ouro assim fabricado é muito mais caro que o ouro natural! I coloquio 38
  • 39. ACELERADORES DE PARTÍCULAS Podemos designar por última fase da realização do sonho da transmutação dos elementos, aquela em que foram descobertas as técnicas e construídas as máquinas que permitem provocar qualquer transformação. A história da construção de tais máquinas, chamadas aceleradores de partículas, começa também com Rutherford, e com a sua equipa, no laboratório Cavendish da universidade de Cambridge, durante os anos 20. As experiências de transmutação artificial dos elementos tinham posto em evidência que as reacções nucleares têm maior rendimento se se utilizarem, no bombardeamento, partículas com grandes velocidades. São vários os laboratórios que se empenham em construir experiências de aceleração de partículas e são variados os métodos usados. Na Alemanha A. Brasch e F. Lange tentam acelerar protões usando...a electricidade das nuvens e um físico morre em consequência disso. (3) As primeiras experiências de desintegração artificial obtidas com partículas aceleradas são realizadas por J. D. Cockcroft (1897-1967) e E. Walton do laboratório Cavendish. Em 1932 eles obtêm a desintegração do lítio em duas partículas a. O mais eficaz de todos os aceleradores de partículas - o ciclotrão - foi inventado e construído por Ernest Lawrence (1901-1958), um físico norte-americano de grande dinamismo. Essa característica foi-lhe indispensável para encontrar quem financiasse os vários ciclotrões que construíu durante os anos 30 e que serviram para importantes investigações em física e em química. A invenção do ciclotrão deu a Lawrence o prémio Nobel da física em 1939. Os aceleradores de partículas serviram, em particular, para fabricar elementos radioactivos artificiais, que não existiam na natureza. Foram Irène e Frédéric Joilot- Curie quem pela primeira vez identificou esses elementos e a descoberta da radioactividade artificial - uma das grandes descobertas dos anos 30 em radioactividade - valeu aos seus autores o prémio Nobel. CONCLUSÃO: A ERA DA ALQUIMIA É possível produzir um grande número de elementos radioactivos artificiais nos aceleradores de partículas, usando transmutações provocadas por partículas aceleradas. Muitos desses elementos têm aplicações em biologia, agricultura, medicina e história. Actualmente, a produção de elementos radioactivos faz parte da rotina de alguns laboratórios que se dedicam a fornecer a indústria e outros sectores da actividade. Tendo em conta que a transmutação dos elementos é, nos nossos dias, um acto rotineiro, podemos dizer que vivemos na “era da Alquimia”. A transmutação, para além de rotineira, tem também inúmeras aplicações, por exemplo na produção de isótopos radioactivos. Isótopo de um elemento é o que tem o mesmo número de protões e de electrões, mas diferente número de neutrões. Todos os elementos que existem na natureza têm isótopos radioactivos e uma das características importantes dos isótopos é o possuírem as mesmas propriedades químicas. Numa reacção química, ou num I coloquio 39
  • 40. organismo vivo, os isótopos radioactivos seguem os mesmos passos que o elemento principal e, por serem radioactivos, podem ser detectados e seguidos nos seus trajectos. Conta-se que Ernest Lawrence, para ilustrar as suas lições, bebia, no início da aula, um copo de água com cloreto de sódio no qual havia dissolvido uma pequena percentagem do indicador radioactivo . Colocando a mão sobre um contador Geiger- Muller (que detecta a radioactividade), ele mostrava como o sal circulava no seu corpo. Para ilustrar outro aspecto da radioactividade, Lawrence fazia uma segunda medida no fim da aula, para mostrar o decrescimento do isótopo no tempo. Os isótopos radioactivos de período curto são inofensivos para o organismo quando usados em pequenas quantidades. O Iodo radioactivo foi utilizado desde 1937 para o estudo do metabolismo do iodo na glândula tiróide e para o tratamento das doenças deste órgão. Em biologia, a técnica de marcação de moléculas com isótopos radioactivos é frequentemente utilizada, no estudo dos enzimas e dos metabolismos e permitiram estudar o código genético, e a biosíntese das proteínas. É possível dar exemplos de inúmeras utilizações de marcadores radioactivos e pode mesmo dizer-se que na investigação em biologia, bioquímica ou medicina é actualmente impossível passar sem eles. A transmutação dos elementos, embora tenha subvertido o sonho alquimista inicial, pois não é de ouro que se trata mas sim de outros elementos, permitiu ultrapassar largamente as expectativas da alquimia. APÊNDICE ELEMENTOS, RADIOACTIVIDADE E TRANSMUTAÇÃO – Existem cerca de 100 elementos químicos, constituintes de todos os compostos presentes na natureza. Cada elemento é representado por uma ou duas letras. Exemplos: 1) Oxigénio (O), Cloro (Cl), Azoto (N), Hidrogénio (H). Todos estes são bastante comuns na natureza, seja isoladamente, seja combinados de maneira a formar compostos. 2) Urânio (U), Rádio (Ra), Tório (Th), Polónio (Po), elementos naturalmente radioactivos, ou seja que emitem radiação. Essa emissão é acompanhada por uma perda de massa. Um elemento radioactivo é caracterizado pelo período, tempo que uma dada massa leva a reduzir-se a metade. O período é muito variável de elemento para elemento. O do U 238 é de anos, o do Ra é de 1600 anos e o do Pb 214 é de 27 min.. – Os elementos não radioactivos têm, no entanto, isótopos radioactivos, ou seja elementos quimicamente idênticos, mas que contêm um número diferente de neutrões no seu núcleo. No seu estado natural cada elemento é uma mistura de um elemento principal, não radioactivo e de um ou mais isótopos radioactivos em pequeníssimas I coloquio 40
  • 41. quantidades. No nosso próprio corpo, esses elementos estão presentes, o que significa que somos todos um pouco radioactivos. Exemplos: Carbono -12 (não radioctivo) e Carbono-14 (radioactivo). Existe uma percentagem de C-14 em todos os seres vivos, que muda a partir do momento da morte. É nessa diferença que se baseia a datação radioactiva das espécies fósseis. – As reacções de transmutação naturais (radioactividade), que foram detectadas por Becquerel e outros, correspondem à transformação do núcleo de um elemento noutro, e traduzem-se por emissão de radiação. Exemplo: . Esta simbologia significa que um núcleo de Urânio se tranformou num de Tório com emissão de uma partícula a. Os números que aparecem por detrás das letras indicam a constituição do núcleo do elemento. O Urânio tem 92 protões no seu núcleo e 238 é a soma dos protões e dos neutrões. Claro que o número de neutrões obtém-se por diferença. O número de electrões de cada elemento é sempre igual ao de protões, sendo portanto de 92, para o Urânio. –As reacções de transmutação provocada (ou artificial) obtêm-se bombardeando um alvo de uma dada substância com uma partícula. Podem usar-se partículas a (as primeiras a serem usadas), electrões, protões ou neutrões. exemplo: Li+p®a+a (um núcleo de lítio+ um protão dá duas partículasa) – Os aceleradores de partículas são máquinas que permitem imprimir grandes velocidades às partículas electricamente carregadas. Essas partículas tornam-se assim mais capazes de provocar transmutações. As reacções de transmutação, por acção de neutrões, dão-se nos reactores nucleares ou durante as explosões das bombas nucleares. –As reacções nucleares provocadas podem dar origem a substâncias radioactivas (radioactividade artificial). Esta descoberta veio permitir que se fabricasse um grande número de substâncias radioactivas com diversas utilidades, em bioquímica, biologia, medicina, agricultura e história. –A existência de reactores e de aceleradores permitiu também que se fabricassem elementos que não existiam na natureza, os transuranianos. Essas máquinas possibilitaram ainda o conhecimento da natureza e da estrutura da matéria. Esse trabalho está ainda em curso nos potentes aceleradores de partículas que existem actualmente. –Apesar de toda a radioactividade e física nuclear terem contribuído positivamente para a resolução de alguns problemas humanos, o desenvolvimento destas áreas de conhecimento tem tido também o seu lado “negro”. Basta pensar nas explosões das bombas nucleares no fim da II Guerra e também em todos os problemas de poluição e de contaminação radioactiva. BIBLIOGRAFIA I coloquio 41
  • 42. - (1) Bernadette Bensaude Vincent e Isabelle Stengers, Histoire de la chimie, La Decouverte, Paris, 1993 - Pierre Radvnanyi, Monique Bordry, La radioactivité artificielle, Ed. du Seuil, Paris, 1984 - Emilio Segré, From X-Rays to Quarks, Ed. E.Segré, USA, 1980 Alquimia e Contemporaneidade José A. Bragança de Miranda I coloquio 42
  • 43. O mistério do mundo está no visível, não no invisível Oscar Wilde 1. A história está cheia de máquinas paradas, de estruturas que desapareceram, de palavras que, depois de terem sido fundamentais, se aquietaram arrumando-se sossegadamente no dicionário. Para muitos, poderia e, se calhar, deveria ter sido este o caso da «alquimia»1 , mas na verdade esta palavra tem-se revelado demasiado instável. Isso não pode deixar de provocar uma certa estranheza, pois é evidente, pelo menos para mim, que já não é possível ser «alquimista», o que não impediu nunca que, para alguns dos autores mais interessantes da modernidade, o recurso à alquimia fosse obrigatório. É o caso, por exemplo, de Fernando Pessoa ou de Marcel Duchamp, mas também de Rimbaud, Jarry, Breton e de muitos outros. Esta sobrevivência inesperada, esta continuada capacidade de atracção de algo que já deveria ter perdido sentido, historicamente falando, não é casual. As razões deste facto parecem residir no abalo da estrutura metafísica que assegurava as passagens do visível para o invisível, que organizava a ordem do mundo medieval. Estamos a referir-nos à «teologia», enquanto ciência das passagens. Inúmeros sinais dão-nos conta da sua entrada em crise com o advento da modernidade, nomeadamente no século XIX. A «morte de Deus» tão dramatizada por Nietzsche, equivale à disseminação do nihilismo por toda a experiência. Valha, como indício disso, o soneto de Baudelaire intitulado «Alchimie de la Douleur»: «No sudário das nuvens //Descubro um cadáver querido», que é Deus e, em consequência, todo o mundo se vê pejado de «grandes sarcófagos». A «crise» moderna explicita-se através de uma nova relação à Natureza, que emerge catastroficamente no seio da cultura. A «dor» de viver que a alquimia abolia, na sua procura da vida eterna»2 , reemerge quando a «alquimia da dor» é abalada pelo nihilismo. O que equivale à reaparição da «natureza», ou da matéria, naquilo que tem de inumano a inevitabilidade da morte. A «natureza» emerge numa indiferença, mesmo indecisão, que é catastrófica. Só assim ela pode ser, simultaneamente, motivo de «ardeur» ou de «deuil» -, morte ou esplendor. É essa indecisão que é grave, fazendo surgir um outro Hermes, «desconhecido», nome em que ecoa o antigo alquimista, Hermes Trimegisto. A crise da salvação alquímica da «dor» é inseparável de um processo de destruição do mundo, que tem algumas semelhanças com a antiga alquimia, com a diferença de não compartilhar as suas ilusões. De facto, para Baudelaire, a antiga alquimia iludia-se por nem colocar a questão da ilusão, e a imagem disso era a de Midas, que transformava tudo em «ouro», sendo por isso «O mais triste dos alquimistas». A alquimia dos modernos, basicamente estética, opera pela inversão do motivo de Midas: «Por ti mundo o ouro em ferro //E o paraíso em inferno». Trata-se, evidentemente, de uma alquimia tão ilusória como a de Midas, mas que se reconhece enquanto ilusão, sendo o efeito inevitável da vida sem Deus, i.e., sem justificação para a dor. A própria multiplicação das alquimias tende a destruir a possibilidade alquímica, abolindo toda a ilusão, em que assentava em última instância. Ora, se a ilusão era necessária para transcender a natureza, era mais necessária ainda o desconhecimento de que era ilusão. Boa parte do século XIX está fascinado pela possibilidade de poder revitalizar a «alquimia» apesar de ser ilusória3 . I coloquio 43
  • 44. Esta crise metafísica suscita a invenção de técnicas de registo e de reprodução, revelando, ao mesmo tempo, que a «técnica» é uma resposta imanentista - a única, de facto -, ao fenómeno do nihilismo. A artista americana, Zoe Beloff, restitui todo este entrelaçado de relações na obra digital «Beyond», que «explora os paradoxos da tecnologia, do desejo e do para-normal instalados desde o nascimento da reprodução mecânica. Constitui uma investigação da "vida de sonho" da tecnologia, de 1850 a 1940». De acordo com Beloff «existe um elemento quase mágico na maneira como estes desenvolvimentos são vistos… sendo importante trazê-los à luz no momento em que entramos nesse novo e estranho domínio que é o digital». Como veremos mais à frente, a «poesia» e, em geral, as artes servem de garantia de abertura da «positividade» da existência, em que a dor é um escândalo sem sentido. Funciona, assim, como uma ficção da transcendência, puramente imanente4 . A sobrevivência da alquimia tem muito a ver com a maneira como alguns artistas procuraram pelas suas obras fundar a «vida de sonho» das máquinas que começaram a invadir a experiência no século XIX. Só ficticiamente é possível uma relação séria com a alquimia. Isso foi bem expresso por Marcel Duchamp, o inventor desse quase-nada que é o ready-made. Quando lhe procuraram mostrar que os procedimentos de conversão e de transformação que ele usava para os «criar» estavam próximos da alquimia, afirmou: «Se pratiquei a alquimia terá sido na única forma é que hoje é possível fazê-lo, ou seja, sem o saber» (Lebel, 1959: 73)5 . Através de tal «inconsciência», bem paradoxal, pois o saber dela acaba por negá-la, tratava-se ainda de salvar o «invisível» quando o visível impera absolutamente. De facto, o que a tecnologia e as suas replicações teóricas, como são as teorias críticas e racionais, propulsionam era a anulação do «invisível». Trata-se de um processo sentido como imensamente dramático, fazendo com que, ainda nos nossos dias, Marie-José Mondzain denuncie «…a infidelidade do visível à invisibilidade do sentido» (1998: 93). De facto, estava em causa algo de radical, o destino de uma divisão originária relativamente à Physis, no momento em que a tecnologia de registo fazia desaparecer a diferença entre «original» e «cópia», fazendo proliferar uma infinidade de imagens, descontroladas e em choque. O visível impera, como forma de fixação da experiência em todos os seus elementos constitutivos, e com ele uma nova fisicalidade irá impor-se, a que não se eximirão as próprias «formas». Mas poderá ser ele considerado como um «obstáculo», como pretende Mondzain, quando sustenta que «o invisível é um termo sobrecarregado de história religiosa ou de ideologia, mas como falar do "não-visto", ou seja, daquilo que não está escondido, oculto e impenetrável, mas de que estamos incumbidos de aprender a ver… O não-visto está diante de nós, manifesto; que quem tenha olhos se torne apto para olhar» (1998: 92)? A deslocação do invisível para o não-visto dramatiza ainda um «espaço» mais primordial, que se mantém numa certa reserva. É este, precisamente, o gesto da «alquimia». Quanto mais esse espaço estiver «ameaçado» mais a operação alquímica se afigura necessária. Novalis é um autor de charneira para a compreensão deste processo. Ele dá-se conta do fim do «mágico» ou do alquímico, mantendo-se ao mesmo tempo no interior do quadro metafísico em que esta se baseava. Diz ele na sua Enciclopédia: «Em todos os verdadeiros exaltados e místicos actuarem, sem dúvida, forças superiores - tendo isso dado lugar a combinações e formas estranhas. Quanto menos a matéria era elaborada e confusa, tanto mais era o homem carente de gosto, menos formado e contingente, tanto mais estranhas as suas criações eram. Parece que ainda não chegou a hora para realizar a I coloquio 44
  • 45. tentativa de sanear, purificar e iluminar este caos surpreendente e grotesco, o que pressuporia um esforço em boa medida». Novalis aprecia a «força mágica» (sic), mas sabe que as formas que assumiu são irremediavelmente passadas (Novalis: 1667 - (II), p.199). Para os iluministas a alquimia é uma forma de magia, ou seja a falsidade produzida por meios «aparentemente» técnicos. Mas a questão não é apenas técnica, embora a hybris da técnica incube nos processos «mágicos». É acima de tudo metafísica. Uma passagem esplêndida de Novalis permite-nos depreender isso: «a magia é a arte que permite usar arbitrariamente o mundo sensorial.» (ib.). Ou seja, o visível era infinitamente trabalhável, porque metafisicamente estava subordinado ao «invisível». O que é a velha tese alquímica. Como se pode ler no Pimandro de Hermes Trimegisto: «Não existe nada de bom sobre Terra; nem nada de mal no céu» (Parágrafo 44 do Livro I). No parágrafo 57 lê-se: «as cosias da Terra não comunicam com as do Céu». Somente através do homem, pela sua natureza dupla é possível haver comunicação entre os dois mundos: «e devido a isso de todas as coisas que vivem sobre a Terra só o Homem é duplo: Mortal, devido ao seu corpo, e Imortal, devido ao Homem substancial. Apesar de ser imortal e ter poder sobre todas as coisas, sofre da mortalidade das coisas, e enquanto tal está sujeito à fatalidade e ao Destino» (Parágrafo 26 do Livro II, chamado Poemandro). É esse o objectivo da operação alquímica A ambivalência de Novalis está em que reconhece a historicidade das formas da «força» mágica e o processo de «saneamento» porque estão a passar, ao mesmo tempo que mantém a forma histórica, basicamente teológica, da divisão originária que a metafísica grega codificou6 , e que se consubstancia basicamente na oposição entre «corpo» e «alma»7 . Esse simples facto faz de Novalis um «sintoma» daquilo que constitui a originalidade da Paideia ocidental. Repetindo um gesto imemorial, para ele está em causa as relações entre ambos mundos, e é sobre essas relações que a hybris se incrusta. Diz Novalis: « este último sistema [do invisível ou da alma] mantém um nexo de união com o primeiro - e é afectado por ele. Podem descobrir-se, contudo, numerosos indícios que denotam uma relação inversa e de imediato nos precatamos de que ambos sistemas na realidade deveriam manter uma perfeita relação recíproca, em que afectados mutuamente, formam-se uma consonância e não um único tom. Em poucas palavras, ambos mundos. Bem como ambos sistemas, têm de constituir uma harmonia livre, e não uma desarmonia nem uma monódia » (Novalis, 1668, 400). A análise de Novalis é preciosa. Pondo de lado, por agora, a ideia de uma «harmonia final», o que a sua pequena história nos conta é que passámos de uma história dominada pela desarmonia parcial para a harmonia parcial, ou seja do domínio da «exaltação» mística para o das ciências e das artes. Isso ocorreu por que «no período da magia o corpo serve a alma ou o mundo dos espíritos. (Loucura - exaltação). A loucura colectiva deixa de ser loucura e converte-se em magia, loucura submetida a regras e plenamente consciente» (ib.). Ou seja a própria «magia», pelas suas regras, torna-se ela própria uma maneira de regular as passagens entre visível e invisível. A desarmonia tem a ver, para Novalis, com o facto de que a «matéria» ou «natureza» seja dominada pela «faculdade, destreza de provocar sensações arbitrariamente. (a fé é um poder de provocar sensações) (unida à absoluta realidade do sentido)» (ib.). Dando um passo fundamental, Novalis propõe-nos uma experimentação imaginária, que não pode deixar de nos interessar. Trata-se de mostrar que tal como o «espiritualismo» absoluto pôde criar no «real» as suas alucinações ou êxtases, afectando-o pontualmente, agora o próprio «real» pode ser produzido através do «espiritual» ou do «invisível». A partir de «dentro» pode-se recriar todo o «exterior» ou I coloquio 45