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Alister McGrath
Digitalizado por: jolosa
© 2009 bv Alister McGrath
Published by arrangement with
Harper One, a division of Harper
Collins Publishers.
Portuguese edition © 2014 by
Editora Hagnos Ltda
Ali rights reserved.
Tradução
José Carlos Siqueira
Revisão
Simone Granconalo
Josemar de Souza Pinto
Capa
Maquinaria Studio
Diagramação
Fabrkio Galego
1" edição - Junho de 2014
Editor
Juan Carlos M artinez
Coordenador de produção
Mauro W. Terrcnnii
Impressão e acabamento
Imprensa a'a Fé
Todo? os direitos desta edição reservados para:
Editora Hagnos
Av. jacinto Túlio, 27
04815-160’- São Paulo - SP -Tcl. (11) 5668-5668
hagnos@hagnos.com.br - www.hagnos.com.br
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
M cGrath, Alister
Heresia em defesa da fé / Alister M cGrath ; [tradução José Carlos Siqueira]. — São Paulo :
Hagnos, 2014.
Titulo original: Hcresv : a historv of defending the truth.
Bibliografia.
ISBN 978-85-7742-118-3
1. Apologctica 2. Heresias cristãs I. Título.
13-01944 CDD-273
índices para catálogo sistemático:
1. Heresias: História da Igreja: Cristianismo 273
2. Heresiologia ; Cristianismo 273
Sumário
Prefacia.....................................................................5
Introdução
Nosso caso de amor com a heresia................ 7
Parte I
0 que é heresia?..................................................... 23
1 - A fé, os credos e o evangelho cristão...........25
2 - As origens da ideia de h e re s ia .................45
Parte II
As raízes da heresia.............................................. 55
3 - Diversidade: o pano de fundo da
heresia prim itiva ...............................................57
4 - A formação inicial da h eresia................. 79
5 - Existe um a “essência” da heresia?............ 105
Parte III
As heresias clássicas do cristianismo............. 127
6 - As primeiras heresias clássicas:
ebionismo, docetismo, valentianismo 129
7 - As heresias clássicas tardias:
arianismo, donatismo, pelagianismo 171
Parte IV
O impacto duradouro da heresia .................... 215
8 - M otivações culturais e
intelectuais da heresia .............................. 217
9 - Ortodoxia, heresia e poder......................... 243
10 - A heresia e a visão
islâmica do cristianism o...............................275
Conclusão
O futuro da heresia................................................283
índice rcmissivo básico.........................................289
Prefácio
 o século X V III, o filósofo, autor e es-
í tadista irlandês Edm und Burke disse
m uito bem: “Aqueles que ignoram a história estão
destinados a repeti-la”. E por isso que este livro
é tão imprescindível. Escrita por outro grande fi­
lósofo, autor e teólogo irlandês — o meu amigo
Alister M cG rath — , esta obra m ostra de forma
brilhante por que não podemos ignorar as lições
da história da igreja.
Cento e cinqüenta anos mais tarde, George
Santayana retomou as palavras de Burke em seu
livro A vida da razão: “Aqueles que não podem
recordar o passado estão condenados a repeti-lo”.
Em nenhum outro lugar esse princípio tica mais
óbvio do que nas heresias históricas da fé cristã.
O fato de a maioria dos crentes ter pouco ou nenhum
conhecimento da história da igreja impede-os de
reconhecer os erros do passado, que reaparecem em
cena após já terem sido refutados e rejeitados pelas
antigas gerações de cristãos ortodoxos.
Sabemos que a verdade é imutável e eterna. M esm o isso sendo
verdadeiro, não é algo novo. M as muitas m entiras tam bém não são no­
vas. Em Eclesiastes 1.9 Salomão adverte: 0 quefo i é o que há de ser; e o
que se fez, isso se tornará afazer; nada há, pois, novo debaixo do sol (ARA).
O que se passa num a geração, no final das contas, volta a apare­
cer em outra geração. O nom e ou rótulo da heresia pode mudar, mas
provavelm ente o erro é o mesmo com etido m uitas e m uitas vezes nos
últim os dois m il anos.
Por exemplo, não há nada de absolutam ente novo sobre a filosofia
da N ew Age [Nova Era], A N ew Age nada mais é do que velhas mentiras
em nova roupagem. A crença de que se é Deus (ou poderia ser) é tão
velha quanto o Éden. Essa foi a prim eira tentação.
Este é um livro de extrema importância em nossos dias, especial­
m ente porque a mídia não considera a ortodoxia digna de cobertura.
Precisamos dar às pessoas os instrumentos do conhecimento histórico que
elas precisam para saber que os modismos teológicos e os atuais desafios à
nossa fé são meramente heresias regurgitadas do passado.
Agradeço a Deus por Alister M cG rath. Você tam bém o fará
quandcTacabar de ler este livro. Suas ideias e a sua escrita são claras,
convincentes e abrangentes.
Não leia sim plesm ente este livro. Fortaleça sua igreja, divulgan­
do-o a outros.
Dr. R ick Warren
Igreja Saddleback
Lake Forest, Califórnia, E U A
Nosso caso de amor cc™. a heresia
N
unca houve tanto interesse voltado para
o que relaciona a heresia. Antigas he­
resias, que, pelas primeiras gerações, eram vistas
como obscuras e perigosas, são hoje sàlpiçadas
com pó de estrela. A atração pelo que é proibido na
religião parece mais forte do que nunca. Geoffrey
Chaucer sagazmente observou lá no século XIV:
“Proíbam -nos um a coisa, e nós choramos por ela”.'
Para muitos indivíduos religiosamente alienados,
as heresias são vistas hoje como declarações cora­
josas e ousadas de liberdade espiritual a serem va­
lorizadas, em vez de evitadas.2As heresias seriam
as destemidas perdedoras nas antigas batalhas pela
ortodoxia, derrotadas pelo poder bruto do siste­
ma religioso. E, um a vez que a história é escrita
1 C h a u c e h , Geoffrey. Prólogo do conto da mulher d e Bath,
Os contos de Cantuána (The Canlerbury Talen. Tradução
Paulo Vizioli. TA Queiroz Editores, s.d.
2 H e n r y , Patrick. W hy Is Contem porarv Scholarship So
Enam ored of Ancient Heresies? In: L!~n'GSTOk, E. A.
(Org.). Proceedings o f the 8th Internatim al Conference on
Patristic Studies. Oxford: Pergamon Press, 1980, p. 123-126.
[ Heresia
pelos vencedores, as heresias têm estado injustam ente em desvantagem,
e suas virtudes espirituais e intelectuais, abafadas por seus inimigos.
A reabilitação das ideias heréticas é vista hoje como um a justa correção
das injustiças do passado, perm itindo o renascimento das versões supri­
midas do cristianismo, mais sintonizadas com a cultura contem porânea
do que a ortodoxia tradicional. A heresia agora é moda!
E stá claro que houve um a m udança no am biente cultural, le­
vando a um a nova m aneira de ver e avaliar a heresia. O historiador da
cultura, Peter Gay, da U niversidade de Yale, escreveu sobre a “atração
da heresia” — um a intrigante frase de eieito que indica um desejo
devastador e sedutor de subverter, ou no m ínim o desafiar, as expec­
tativas culturais convencionais.’ A arte m oderna — ele argum enta
— é desse m odo caracterizada por um desejo de ofender a tradição.
As insígnias de honra do m ovim ento foram , assim, a perseguição, a
acusação e o pavor que ele evocava. Todas as revoluções exigem um
inim igo. Nesse caso, o inim igo é um a ortodoxia que seria ao m esm o
tem po estúpida,e estupidificante, suprim indo as cham as vitais da
originalidade e criatividade hum anas.
A titudes como essas têm se tornado profundam ente enraizadas
na cultura ocidental contem porânea. A heresia é radical e inovadora,
enquanto a ortodoxia é prosaica e reacionária. Com o observou com
muita perspicácia o escritor judeu W ill H erberg (1901-1977), no auge
da revolta norte-am ericana contra Deus, nos anos 1960, m om ento em
que a ortodoxia religiosa parecia estar esgotada e desvitalizada, enquan­
to a heresia parecia transpirar energia intelectual e criatividade cultural:
“H oje, as pessoas se vangloriam avidamente de serem hereges, esperan­
do com isso se mostrarem interessantes; pois o que significa ser um he-
rege, senão ter m ente original, ser um hom em que pensa por si mesmo
e rejeita credos e dogmas?”4
3 Gay, Peter. Modernism: The Lurc o f Heresy from Baudelmrc to Beckett and Beyond.
New York: W . W . Norton, 2008.
4 H e r b e r t , W ill. Faith Enacíed as History: Essays in Bih/ical Theology. Philadclphia:
W estm inster Press, 1976, p. 170-171.
[ Introdução ]
N ão se pode m enosprezar a torça das palavras de H erberg.
Q uando a ortodoxia religiosa é vista como m oribunda ou opressora, a
atração das religiões alternativas — inclusive a rejeição por atacado da
religião — cresce em intensidade. Na cultura ocidental, especialmente
durante o século XIX, a onda do interesse pelo ateísmo c mais uma m edi­
da da desilusão com a cultura e do desencanto com a ortodoxia religiosa.
O surgim ento recente do "novo ateísmo' indica que essa interpretação
das coisas continua im portante no Ocidente neste início de século X X I.’
N o entanto, a atração da heresia na cultura ocidental contem ­
porânea ultrapassa qualquer sentim ento popular, ainda que volúvel,
das irreparáveis inadequações ou insuficiências m orais das ortodoxias
religiosas. A arraigada suspeita pós-m oderna da influência corrosiva
do poder m uitas vezes perm eia, de form a sublim inar, as discussões
contem porâneas sobre a heresia. Todos sabem que a história é escrita
pelos vencedores. A “ortodoxia” nada mais seria do que um a heresia
que por acaso venceu — e prontam ente tentou suprim ir seus rivais e
silenciar suas vozes. Essa era a tese desenvolvida pelo erudito alemão
W alter Bauer (1877-1960), para quem a mais prim itiva e autêntica
form a da fé cristã era provavelm ente a herética, não a ortodoxa. A
ortodoxia teria sido um desenvolvim ento posterior — sugere ele —
que tentou anular os tipos de cristianism o que no princípio eram
aceitos com o autênticos.1'A obra de Bauer foi publicada originaria-
m ente em alemão, em 1934, e despertou pouca atenção. E m 1971,
ela foi finalm ente traduzida para o inglês, num a época em que a
atm osfera cultural havia passado decisivam ente do m odernism o dos
' A expressão “novo ateísmo” é usada com retercncia a um grupo de escritos surgidos em
2004-2007, csp. em The E nd ofFaith: Re/igiou, Terror, and the Future ofReason, de Sam
HaRRIS, New York: W . W. N orton & Co., 2004; Breaking the SpelL Religion as a Natural
Phenomerwn, de Daniel C. D en n et, New York: Viking, 2006; The God Deliision, dc
Richard D a w k j n s , Boston: Houghton M ifílin Co., 2006; G odlsNot Great:How Religion
Poisons Everything, de Christopher H itch en , New York: Twelve, 2007.
" Para a edição alemã original, v., de W alter Bauer, Rechtglãubigkeit and Ketzerei i/n
ãltesten Christentum (Tttbingen: M ohr, 1934). Para uma tradução em língua inglesa
mais influente c muito posterior, v. Orthodoxy and Heresy in Earhest Christianity, de
W alter B a u e r , Philadelphia: Fortress Press, 1971.
[ He='C?:ó ]
anos 1930 para o pós-m odernism o do final da década de 1960. As
ideias de Bauer passam então a ecoar as desconfianças e os valores de
um a cultura cada vez mais antiautoritária. O livro logo se tornou um
talism ã para os críticos pós-m odernos da ortodoxia.
A tese de Bauer sugere que a heresia é, em essência, um a ortodoxia
que foi suprim ida por quem tinha poder e influência no m undo cristão
— sobretudo, a igreja dom inante de Roma. Devemos então reconhecer
a existência de um grupo de “cristianidades perdidas ou suprim idas”,
que foi reprimido e silenciado pelos que desejavam fazer valer as pró­
prias ideias, como a ortodoxia.7Nessa visão, a distinção entre heresia e
ortodoxia seria arbitrária, um a questão de acaso histórico. A ortodoxia
designa as ideias que venceram, e a heresia, as que perderam. A autorida­
de cultural desse ponto de vista é tal que precisa de um exame detalhado,
especialmente em relação às conexões entre ortodoxia, heresia e poder.
Exploraremos esses temas ao longo deste livro.
Outros pensadores, no entanto, foram ainda mais longe.
Para eles, a ortodoxia não era apenas um conjunto de ideias que pre­
dominou por meios duvidosos. Era a invenção deliberada de tais
ideias, com o objetivo de assegurar a base do poder religioso da igreja
cristã no Império Romano. Esse é um dos temas dominantes do gran­
de sucesso de Dan Brown, O código Da Vinci, publicado em 2003,
e que esteve no topo da lista dos best-sellers em todo o Ocidente duran­
te um ano.8Seu fio narrativo foi influenciado por um a teoria altamente
especulatiya levantada em 1982 por M ichael Baigent, Richard Leigh e
H erny Lincoln.9Com base no que só pode ser descrito como a mais frágil
evidência histórica, na obra Sangue Sagrado, Santo Gral, esses escritores
sugerem que Jesus de Nazaré casou-se com M aria M adalena e que eles
■C f. E hrm an , D . Bart. Lost Chnstianittes: The Battlesfor Scripture andFaitbs WeNe-ver
Knew. New York: Oxford University Press, 2003, p. 163-180.
8 B r o w n , D an. The D a Vinci Code: A Novel. [O código D a V inci: um rom ance],
N ew York: D oubleday, 2003. O significativo subtítulo foi adicionado em
edições posteriores.
' Ba ig en t, Michael; L fjgii, Richard; L incoln Henry. Holy Grail. New York:
Delacorte Press, 1982.
[ Introdução ]
tiveram um filho. O livro mostra as supostas tentativas feitas pela igreja
católica para ocultar, desde então, essa linhagem. O livro de Brown ficcio-
naliza essa teoria, chegando inclusive a incluir um personagem chamado
“sir Leigh Teabing”, em alusão tanto a Leigh quanto a Baigent (“Teabing”
é um anagrama de “Baigent”).'--
A im portância do romance de Brown para o entendim ento das
pessoas sobre as origens e o significado da heresia pode ser vista na
afirmação confiante de seu personagem Teabing: “quase tudo o que
nossos pais nos ensinaram a respeito de Cristo é talso”. Jesus de Nazaré
nunca foi considerado divino pelos cristãos — Teabing declara — até
o Concilio de Niceia, em 325, quando o assunto toi levado à votação.
E só foi aprovado com dificuldade. O personagem de Brown, a crip-
tologista Sophie Neveu, fica chocada com estas palavras: “Não estou a
perceber. A divindade de Jesus?”
— M in h a querida — disse Teabing —, até aquele momento da
história, Jesus tinha sido visto pelos seus seguidores como um projeta
m ortal [...] um grande homem, e.poderoso, mas apesar de tudo um
homem. Um mortal. — N ão como o Filho de D eus?
— E xatam ente. 0 estabelecimento de Jesus como "Filho de D eus”
fo i oficialmente proposto e ■votado no Concilio de Niceia.
— Espere um momento. E stá a. dizer-m e que a divindade de Jesus
resultou de um a votação ?
— E bastante renhida, p o r sin a l — respondeu Teabing. [tra­
dução livre]11
lLIEm 2006, Leigh e Baigent (mas não Lincoln) processaram Brown. sem sucesso, na
Suprema Corte de Londres, Argumentando que, neste c em outras momentos, ele
tinha violado os direitos autorais deles. A publicação relacionava-se com os que tinham
inventado tais ideias e, portanto, assegurava os seus direitos de propriedade intelectual.
11B rown, Dan. O código Da Vinci, p. 233 [tradução livre].
i -ic-i e.-ia I
A risível imprecisão desse diálogo (foi uma votação por maioria, por
exemplo) não é o mais grave.12Um a suposição translorma-se na realidade,
na plausibilidade dada pela sua ressonância no ambiente cultural.
0 código Da Vinci declara que a divindade de Cristo foi um a fabrica­
ção, um estratagema deliberado por parte de uma igreja corrupta determ i­
nada a assegurar o seu status social por quaisquer meios e a qualquer preço.
Teabing segue argumentando que tudo não passou de um movimento
cínico e astuto por parte do imperador Constantino (274-337), cuja data
de conversão ao cristianismo é incerta. C onstantino decretou que o
cristianism o se tornasse a crença oficial do seu império. O que poderia
ser mais natural, sugere Teabing, do que C onstantino elevar Jesus de
um simples m ortal ao eterno Filho de Deus?
Constantino sabia que, para reescrever os livros de história, preci­
sava de um golpe de ousadia. Foi daqui que nasceu o momento mais
profundo da história, do cristianismo. [...] C onstantino encomendou
e financiou um a nova Bíblia, que om itia os evangelhos que fa la ­
vam das características hum anas de Cristo e dava destaque aos que
fa zia m dele um deus. Os evangelhos mais antigos foram ban idos,
arrebanhados e queimados. [...]
F elizm ente [...] alguns dos evangelhos que Constantino tentou er­
radicar conseguiram sobreviver, [eforam encontrados] em 1945, em
N a g H am m adi E gito].’3
12 V., p. ex., E h r m a n, Bart D. Truth and Fiction m the Da Vinci Cocle: A Historian
Reveah What !!', Rea/ly Knozv About Jesus, M ary Magdalene, and Conslantine
(O xíord: O xford Univ. Press, 2004, p. 23-4): “A visão que Teabing postula está
equivocada cm todos os pontos principais: os cristãos antes de N iceia já haviam
aceitado Jesus como divino. O s Evangelhos do N T 0 retratam com o hum ano tanto
quanto divino; os evangelhos que não foram incluídos no N T o retratam como
divino, tanto quanto, ou até mais, do que com o hum ano”. Os com entários de
E hrm an são ainda mais significativos, dada a sua hostilidade diante das narrativas
cristãs tradicionais da ortodoxia e da heresia.
u B rown D an. O código Da Vinci, p. 234.
Teabing declara que, felizmente para os historiadores, Constantino
não conseguiu erradicar todos os evangelhos concorrentes. Sabemos ago­
ra, ele diz, que a Bíblia moderna foi “compilada por indivíduos que tinham
um objectivo político: promover a divindade do hom em Jesus Cristo e
usar a influência dele para reforçar a própria base de poder”.
A narrativa de Brown é um exemplo ilum inador da maneira com
que a ficção m olda a percepção da realidade. Sua equação de “poder” e
“ortodoxia” tornou-se de tal m odo influente que passou a ser a opção de
falha para muitos hoje. Veremos que ela se abre a sérios desafios, par­
ticularmente porque a ideia da ortodoxia começou a surgir dentro das
comunidades cristãs quando ainda eram grupos marginais nas franjas da
cultura imperial romana. A realidade é m uito mais complexa do que a
narrativa estereotipada da história cristã feita por Brown — além de ser
mais interessante e intelectualm ente satisfatória.
A brilhante obra de ficção de Brown adula a desconfiança pós-mo-
derna do poder e, em especial, o seu privilégio de certas ideias favoráveis.
D a mesma forma que a série de televisão Arquivo X , encerrada em 2002,
O código Da Vinci, com a sua engenhosa construção histórica, coincidiu
com uma era de desconfiança generalizada nos governantes, interesse em
teorias da conspiração e na espiritualidade (em vez de religião). M as de
muitas formas ele também dá o contexto para discussões sobre a heresia.
Para muitos, a heresia é vista hoje como uma vítima teológica, um
conjunto de ideias nobres brutalmente esmagado e indevidamente supri­
mido pelas ortodoxias dominantes, e então apresentadas como se fossem
desviantes, desonestas ou diabólicas. Nessa narrativa romantizada das
coisas, a heresia é retratada como uma ilha de livre pensamento no meio
de um letárgico oceano de ortodoxia irrefletida, impingida mais pelo
poder eclesiástico despido, e não por fundações intelectuais robustas.
Essa é certamente a narrativa da heresia que está firmemente embutida em
O código Da Vinci de Brown. O enredo de Brown gira em torno das perenes
tentativas da igreja pós-constantiniana de cuidar, às vezes violentamente,
da sua proclamação do evangelho, escondendo a verdade que a subverteria.
A descoberta dessa verdade suprimida ofereceria, desse modo, um
[ Heresia
equivalente pós-moderno da indagação clássica sobre o Santo Graal.
O possuidor dessa verdade poderia destruir o perpetrador de uma das gran­
des decepções da igreja católica de todos os tempos. Naturalmente, tudo
não passa de uma fantasia — contudo, é uma fantasia que angaria muito
apoio e atenção popular, e é em si mesma um importante indicador das
preocupações e agendas culturais modernas.
A heresia hoje tem uma nova atração, pelo surgimento de sua as­
sociação com a sedução do conhecimento oculto, as transgressões dos li­
mites do sagrado e o comer do fruto proibido/' A Bíblia cristã inicia-se
com duas narrativas de transgressão — o comer do fruto proibido (G n 3)
e a construção da torre de Babel (Gn 11). De modo significativo, ambas
representam desafio aos limites fixados por Deus para a humanidade.
Os limites, dizem hoje, são construídos por aqueles que têm o interesse
de preservar os direitos adquiridos; ao transgredi-los, estabelecemos a
nossa identidade e autoridade, e confrontamos e desafiamos uma ins­
tituição conservadora. Como Prometeu roubando o fogo dos deuses,
a transgressão tem a ver com desafiar o poder e conquistar a liberdade.
O proibido agora se tornou enobrecido e feito um objeto legítimo de desejo.
A heresia é um Prometeu libertador da humanidade da escravidão teocrá-
tica. O resultado dessa mudança significativa na atmosfera cultural é óbvio.
A heresia não pode ser vista agora simplesmente como um problema histó­
rico ou teológico acadêmico. Ela se tornou uma questão cultural.
Por quê? U m fator im portante aqui é a ênfase crescente na esco­
lha. de um a característica definidora da existência hum ana autêntica.
Veremos aqui que o term o grego hairesis, que deu origem ao nosso term o
“heresia”, tem fortes associações com “escolher” ou “escolha”. Escolher
é expressar a noss£> liberdade, afirmar a nossa capacidade de criar e con­
trolar o nosso mundo.
Esse evento está diretam ente associado à disponibilidade de al­
ternativas religiosas. Não é acidental ter a atração da heresia aum entado
de m odo significativo na sociedade que se desenvolvia rapidam ente na
14Cl. Segai., A. Robert (Ed.). The AHure o f Gnosticism: The Gnostic Expenence in
Jungian Psycholo^y and Contemporary Cultvre. Chicago: Open Court, 1995.
r 14 ]
Europa do século XII. As pessoas ficavam cada vez mais conscientes
da escolha disponível em bens materiais e educação, e esses horizontes
mais amplos foram refletidos em suas atitudes diante da religião. O m o­
nopólio do catolicismo medieval foi corroído quando a laicidade passou
a explorar opções religiosas alternativas como aquelas oferecidas pelos
cátaros e valdenses.15Aqui, tanto quanto em qualquer outro lugar, a res­
posta da igreja institucional a essa ameaça tom ou a forma da obrigação
à uniformidade; desse modo, negando aos indivíduos o elemento crucial
da escolha. Já o período m oderno viu tanto a elevação da diversidade
religiosa na maior parte do Ocidente quanto a erosão da capacidade
legal da Igreja em forçar a uniformidade.
O sociólogo Peter Berger extraiu as implicações desse evento em
seu marcante Heretical Imperative [Imperativo herético] (1979). Nele,
Berger afirma que, nas culturas primitivas tradicionais, os indivíduos são
expostos a apenas um único conjunto de crenças fundamentais. Cada cul­
tura é baseada em, e até certo ponto definida por, um “m ito”— isto é, uma
narrativa fundadora e legitimadora ou um conjunto de crenças. Desafiar
essa mitologia fundadora beira a heresia, e tradicionalmente levaria à
m orte ou banimento. A inda agora somos confrontados com um excesso
de religiões, filosofias e paradigmas. Não existe um a metanarrativa única,
fundam ental e dominante. Somos livres para escolher, pegar e misturar —
o que, para Berger, é a essência da heresia.
E m questão de religião, como de fa to em outras áreas da vida e
pensamento humanos, isso significa que o indivíduo moderno tem
diante de si não somente a oportunidade, mas a necessidade defazer
escolhas sobre as suas crenças. Esse fato constitui o im perativo heré­
tico na situação contemporânea. Portanto a heresia, como ocupação
de tipos m arginais, e excêntricos, tornou-se um a condição m uito
mais geral; na verdade, a heresia tornou-se universalizada.lp
'-v. The D evils World: Heresy and Society 1100-1300, de Andrew R oa ch, London:
Longm an, 2005.
Peter L. The Heretical Imperative: Contemporary Possihilities o f Religious
Affirmation. Garden City: Anchor Press, 1979, p. 30-31.
Não nos exigem que aceitemos um a visão de m undo pré-em bala-
da, mas somos capazes de criar uma visão daquilo que esteja de acordo
com as nossas ideias sobre a forma que as coisas deveriam ter. A heresia
diz respeito a sermos mestres do nosso universo, escolhendo o modo de
ser das coisas — ou pelo menos a m aneira com que gostaríamos que elas
se desenrolassem.
Contudo, talvez a ultima atração da heresia em nosso tempo recaia em
seu desafio à autoridade.17A ortodoxia religiosa é comparada a reivindicações
de autoridade absoluta, à qual se deve resistir e subverter em nome da liber­
dade.A heresia é vista, assim, como a subversão ao autoritarismo, oferecendo
a libertação a seus seguidores. De uma perspectiva histórica, é praticamente
impossível levar essa história a sério, especialmente como algumas heresias
foram, no mínimo, tão autoritárias quanto as suas rivais ortodoxas. A crença
de que a heresia é intelectual e moralmente libertadora diz muito mais sobre
o clima cultural de hoje no Ocidente do que sobre as realidades dos primeiros
séculos da existência cristã. Mas, como permite qualquer ato de recepção cul­
tural de ideias,,a relevância para o presente de qualquer ideia antiga tem tanto
a ver com o que os seres humanos contemporâneos estão buscando quanto
com o que as ideias antigas têm a oferecer^ O significado da heresia não está,
portanto, dentro da própria heresia, mas é antes construído dentro da relação
entre a heresia original e seus intérpretes contemporâneos.18
Essa desconfiança da autoridade pode ser facilmente transferida
da ortodoxia em si para as suas fundam entações bíblicas. Para alguns
escritores, o cánon do N T deve ser visto como o endosso autoritário
desses primeiros escritos cristãos que eram aceitáveis para a institui­
ção. Os documentos do N T são referidos como se fossem boletins de
imprensa, pouco convincentes, de alguma fonte oficial projetada para
esconder a verdade sobre as origens do cristianismo. Q ualquer coisa que
’ A esse respeito, v. a análise de After God: The Future o f Religion, de D on CüPlTT,
London: W eidenfeld & N icolson, 1997.
lsPara um a introdução ao campo da teoria da recepção, v. The Act o fReading: A Theory
ofAestbetic Response, de W olfgang Iser, Baltimore: Johns Hopkins Univ. Press, 1978;
Crossing Borders: Reception Theory, Poststructuralism, Deeonstruction, de Robert C.
H o lu b , M adison: Univ. ofW isconsin Press, 1992.
[ Introdução ]
se assemelhe a uma versão oficial torna-se autom aticam ente suspeita.
Nessa visão, textos potencialm ente subversivos — sobretudo aque­
les associados ao gnosticismo — foram reprimidos e marginalizados.
O teólogo e observador cultural G arrett Green destacou a importância
dessa questão: “Sob o olho suspeito da crítica (pós-m oderna), toda a fé
na autoridade bíblica afi^ura-se com a forma de falsa consciência, todo
texto sagrado como uma retórica sub-reptícia de poder”.1'1Para subver­
ter o autoritarism o eclesiástico é necessário m inar a autenticidade dos
textos nos quais ele é baseado.
A recente excitação da mídia sobre o Evangelho deJudas, em 2006,
ilustra essa tendência. Isso, nos foi dito, era uma alternativa aos evan­
gelhos cristãos tradicionais, suprim ido pela igreja primitiva devido à
ameaça que apresentava à sua autoridade.211Esse docum ento parecia ser
um ajuste perfeito ao padrão pós-m oderno de heresia — um a narrativa
proibida das origens do cristianismo, deliberadamente escondida pelos
angustiados líderes da igreja, e que foi descoberto por corajosos jorna­
listas determ inados a revelar a verdade. U m im portante jornal britânico
declarou que essa era a “maior descoberta arqueológica de todos os tem ­
pos”, que representava um a “ameaça a 2.000 anos de ensino cristão”.21
A realidade parece ter sido bem mais banal. O Evangelho de
Judas é um docum ento relativam ente tardio, originário quase certa­
m ente do interior de um a seita m arginalizada dentro do cristianism o,
19G rekn, Garrett. Theo/ogy, Hermeneuti.es and lmagmation: The Case o fInterpretation at
the E nd ofModernity. Cambridge: Cambridge Univ. Press, 2000, p. 20.
jnPara obras representativas sobre esse debate, v. The ThirteenthApostle: What the Cospe/
o fJudas Realfa Says, dc April D. Dk C onick, London: Continuum , 2007; The Lost
Gospel of Judas Iscariot: A N ew Look at Betrayer and Betrayed, de Bart D. E hrm an,
Oxford: Oxtord Univ. Press, 2006); ReadingJudas: The Gospel o fJudas and the Shaping
o f Christianity, de Elaine H . P ag els; Karcn I... Kinc, New York: Viking, 2007); Judas
and the Gospel ofJesus: Have We Missed the TruthAbout Christianity?, de N .T. WlUCHT,
Grand Rapids: Baker Books, 2006.
n M ail on Sunday. London, 12 de março, 2006. Para uma discussão completa sobre a
mídia falaciosa e o exagero da importância desse documento, v. The Gospel o fJudas:
Rewriting Early Christianity, de Simon J G a tije rc o lk , Oxford: Oxford Univ. Press,
2007, p. 132-149. ' ’
a qual estava convencida de que todo o resto tinha interpretado Jesus
de N azaré de m odo seriam ente equivocado. Naquele tem po, na litera­
tura aceita como autorizada pelos cristãos, não havia nenhum a prova
docum ental que amparasse o ponto que desejavam provar (inclusive
algumas obras que nunca fizeram isso no cânon do N T ). A situa­
ção foi rem ediada quando eles mesmos escreveram o seu evangelho.
Som ente Judas realmente entendeu Jesus, assim dizem; os outros dis­
cípulos interpretaram -no erroneam ente e levaram adiante narrativas
desesperadam ente confusas do seu significado.
O Evangelho deJudas apresenta Jesus passando para Judas um co­
nhecimento secreto por meio de conversas pessoais, das quais os outros
discípulos eram excluídos. Essa retórica da exclusão leva a formular o se­
guinte debate: somente Judas foi incluído no círculo mágico dos iniciados,
aos quais os verdadeiros segredos do reino foram confiados. O Evangelho
deJudas retratajesus de Nazaré na forma de um guru espiritual semelhante
aos mestres gnósticos dos séculos II e III, embora tendo pouca relação com
a descrição de Jesus encontrada nos Evangelhos Sinóticos. O cristianismo
torna-se um tipo de culto de mistério baseado numa imensa burocracia
que governa o cosmo; e Jesus é retratado explicando-o ajudas de um jeito
prodigioso e inquietante. É difícil não chegar à conclusão de que Jesus de
Nazaré foi reinventado como um mestre gnóstico com ideias gnósticas.
O Evangelho deJudas tem, na verdade, a capacidade de iluminar a nossa
compreensão do gnosticismo a partir da metade do século, especialmente
a sua muitas vezes observada relação parasitária com as visões existentes a
respeito do m undo.22Essa relação, porém, não parece ter nada historica­
mente crível a nos dizer sobre as origens do cristianismo ou a identidade
de Jesus de Nazaré.23E ele certamente não representa nenhum a “ameaça”
significante ao cristianismo tradicional.
22Sobre esse aspecto do gnosticismo, v. Gnosticism, Judaism, and Egyptian Christianity,
dc Birgcr A. P earsox, Minneapolis: Fortress Press, 1990.
ziO Evangelho deJudas é representativo da forma específica de gnosticismo conhecida
como setianismo. V. tb. TURNF.R, Sethian Gnosticism and the Platonic Tradition, dc John
D. T urner, Louvain: Pceters, 2001.
[ Introdução ]
O Evangelho de J u d a s nem mesmo é um docum ento radical.
O britânico N . T. W right, estudioso do NT, recusa a ideia difundida
de que o gnosticismo era inovador, fazendo surgir um a onda de ener­
gia intelectual criativa que ameaçava varrer as ideias tradicionais.24
Se muito, W right argum enta, os gnósticos é que são mais vistos como
conservadores culturais, ecoando muitos dos temas das religiões de mis­
tério da época. E m contraste, os cristãos ortodoxos “estavam desbravan­
do novos terrenos”, e ao fazê-lo, encontravam oposição.
O nde alguns sugerem que os evangelhos gnósticos representam
alternativas radicais aos evangelhos canônicos “conservadores”, W right
afirma que a verdade é totalm ente o oposto. E a mensagem do N T a
verdadeiramente radical. N o entanto, os séculos de familiaridade cultural
com o cristianismo, junto com a novidade relativa de um gnosticismo
redescoberto, criaram uma percepção cultural um pouco diferente.
A ortodoxia religiosa tornou-se vítima de um excesso de familiaridade
que cria um anseio por novidade.25
Este livro é um trabalho de síntese que procura reunir im­
portantes estudos recentes na área e explorar a relevância deles na
contem poraneidade para a nossa compreensão da ideia de heresia.
N ão se pretende encontrar novos caminhos em nosso entendim ento do
conceito de heresia de um a forma geral, ou de qualquer heresia específi­
ca em particular. N em se trata de um a narrativa detalhada, abrangente,
das muitas heresias que têm surgido dentro do cristianismo. Algumas
heresias são selecionadas para um a discussão detalhada, em parte por
terem por si sós um a im portância particular, e em parte por ilustrarem
alguns dos princípios mais gerais que parecem estar na origem e desen­
volvimento dos m ovimentos heréticos.
O aum ento da literatura acadêmica, que lança luz sobre a forma
com que as heresias prim eiram ente surgiram e se desenvolveram ao
longo dos séculos, contesta muitos estereótipos da heresia. Io quadro
24W r ig h t, passim .
2^Para uma reflexão sobre esse ponto, v. Orthodoxy, de G. K. Ch (New York:Jofin Lane,
1908, p. 131-2). ~
que está emergindo dessa intensa pesquisa acadêmica do cristianismo
primitivo não endossa nem a visão de alguns escritores cristãos de que a
heresia é um ataque fundam entalm ente maligno à ortodoxia, nem, para
aqueles que a veem como um a alternativa à ortodoxia, que a heresia
era reprimida pela igreja institucional./Tentarei oferecer um a explica­
ção da heresia que leve muito em conta a m elhor erudição moderna.
Ao mesmo tem po, tentarei compreender por que tantos entre os prim ei­
ros escritores cristãos mais im portantes consideraram a heresia perigosa.
E pretendo fazê-lo sem dem onizar aqueles que exploraram as vias de
pensam ento que, no final, se m ostraram heréticas.2"
[ M as o que é heresia? A heresia pode ser vista, de um modo mais
direto, sob a forma de crença cristã que, mais por acaso do que por desíg­
nio, acaba por subverter, desestabilizar ou até mesmo destruir o núcleo
da fé cristã) Tanto o processo de desestabilização quanto a identificação
de sua ameaça podem se estender por um longo período de tempo. U m
modo de racionalizar um aspecto da fé cristã, como a identidade de Jesus
de Nazaré — um aspecto que pode, de início, ser bem -vindo e aceito de
um m odo geral — talvez precise, posteriorm ente, ser encerrado devido
ao dano potencial que ele pode ser capaz de causar no futuro.
Um a analogia pode ajudar a tornar mais clara essa ideia comple­
xa. O Partenon é largam ente considerado um a das maravilhas arqui­
tetônicas do m undo antigo. Por volta de 1885, essa chamada gloriosa
construção grega clássica estava num estado avançado de decadência
e precisava de restauração. Braçadeiras e vigas de ferro foram usadas
para sustentar as grandes lajes do edifício de márm ore branco, origi-
nariam ente extraído do vizinho m onte Pentélico. Os restauradores,
entretanto, não conseguiram perceber que, com a m udança de tem ­
peratura, aquele ferro se expandia e se contraía, pressionando a cons­
trução de pedra. M ais im portante, eles tam bém falharam quando não
tornaram inoxidável o ferro que ornam entava o Partenon. Q uando o
2ÈSobre uma tentativa válida de envolvimento com essa questão, v. Heresies and How
to slvoidThem: Why I t Matters What Chnstians Believe, Q uash, BeX; W a RD, M ichael
(Ed.), London: SPCK, 2007.
[ Introdução ]
ferro começou a sofrer corrosão, ele se expandiu, rachando as pedras
que se pretendia preservar. N a verdade, apontada para salvar o edifício,
a m edida acabou por acelerar a sua ruína, exigindo das gerações futu­
ras restauração ainda mais radical do que as inicialmente necessárias.
A correção de erros críticos é muitas vezes cara e demorada; de qualquer
modo, precisa ser feita. A heresia representa alguns modos de formular
os temas nucleares da fé cristã — modos que, cedo ou tarde, a igreja
reconhece serem perigosam ente inadequados ou mesmo destrutivos. O
que uma geração pode bem considerar uma ortodoxia, outra geração
pode descobrir tratar-se, afinal, de um a heresia.
Em bora todas as tentativas dc exprimir as verdades de Deus em
palavras hum anas falhem em cum prir o seu intento, algumas são muito
mais seguras e confiáveis do que outras. A “ortodoxia” c a “heresia” (ou
“heterodoxia” — os termos são considerados frequentepente intercam -
biáveis) são mais bem observadas como a marca dos extremos de um
espectro teológico. Entre essas extremidades repousam visões pouco
nítidas,:; que variam do adequado, sem serem definitivas, ao questio­
nável, sem serem destrutivas. A heresia encontra-se no reino sombrio
da fé; um a tentativa filhada de ortodoxia, cujas intenções terão sido
provavelmente nobres, mas que, no fim, os resultados se m ostraram tão
corrosivos quanto as braçadeiras de ferro de Nikolaos Baianos.2*
Em bora o foco aqui seja o cristianismo, é im portante observar que
o conceito de heresia tem um amplo uso fora dessa corrente religiosa.
Alguns conceitos funcionalm ente equivalentes podem ser encontrados
na esfera religiosa, até m esmo nas religiões orientais. " Além disso, a ideia
2'T u rn e r, I I. E. W . The Pattern o f Christian Truth: A Sindy in the Relations Between
Orthodoxy and Heresy m the Early Church. London: Mowbray, 1954. Turner observa
que existe uma “franja ou penum bra entre ortodoxia e heresia" (p. 79); para uma
análise mais detalhada dessa imagem em relação ao desenvolvimento das doutrinas do
século II, v. p. 81-94.
2g[NR] Nikolaos Baianos foi o arquiteto e arqueólogo grego que orientou a malsucedida
restauração do Partenon, aqui mencionada. (N. do R.)
2'HEXDERSON, John B. The Construchon o f Orthodoxy and Heresy: Neo-Confician, lslamic,
Jewish, and Earíy Christian Patterns. AJbanv: State Univ. of New York Press, 1998.
tem tido cada vez mais aceitação em contextos seculares em referência a
ideias potencialm ente perigosas ou desestabilizadoras, e abordagens que
representem um a ameaça a ortodoxias dom inantes.
Ademais, a heresia se estende além do reino das ideias.
Por motivos que exploraremos neste volume, o debate entre heresia
e ortodoxia é muito com um ente transposto para os campos social e
político. Consequentem ente, qualquer discussão sobre heresia precisa
envolver o lado mais sombrio desse debate — a imposição de ideias pela
força, a supressão da liberdade e a violação de direitos. Esse tema foi
de im portância crucial na Europa ocidental durante a Idade M édia, e
adquire cada vez mais im portância no m undo islâmico de hoje.
M esm o esta breve explicação da natureza da expansão da here­
sia suscita amplas questões. É possível observar dois exemplos claros.
Q uem decide o que é definitivo e o que é perigoso? D e que m aneira
essas decisões são tomadas? Essas são questões encontradas no núcleo
deste livro, e começaremos a examiná-las im ediatam ente. U m bom
ponto de partida nessa viagem de exploração é a natureza da fé cristã
em si — para a qual nos voltamos agora.
f ■■'CKSIS ]
Parte I
0 que é heresia?
A fé, os credos e o
evangelho cristão
causada pela pessoa de Jesus de Nazaré. Aqui está
aquele que a igreja considera intelectualmente lu­
minoso, espiritualm ente persuasivo e infinitam en­
te complacente, tanto de forma coletiva quanto de
forma individual. Em bora os cristãos expressem
esse júbilo e maravilhamento em seus credos, eles
o fazem de form a ainda mais especial em sua de­
voção e adoração. A devoção proclama que a fé
cristã tem o poder de captar a imaginação, não
somente persuadir a m ente, abrindo as profunde­
zas da alma hum ana para as verdades do evange­
lho. Ela m antém uma chama de entusiasmo por
Jesus Cristo, a qual alimenta o ofício teológico e
ao mesmo tem po questiona a sua capacidade de
corresponder ao brilho de seu objeto supremo.
Contudo, embora o apelo à imaginação da visão
cristã de Jesus de Nazaré nunca deva ser negligencia­
do ou minimizado, continua existindo um núcleo
e há um a pulsação da fé crista, ela está
na pura alegria e exaltação intelectual
[ HcrcSki 1
intelectual para a fé cristã. Em seu ensaio The Will to Believe [O desejo de crer]
(1897), o célebre psicólogo William James (1842-1910) afirma que os seres
humanos estão numa posição em que precisam escolher entre opções inte­
lectuais que são, nas palavras de James, “forçadas, vividas e decisivas”.30Todos
nós precisamos de hipóteses de funcionamento (o termo é de James) para dar
sentido à nossa experiência do mundo. Essas hipóteses de funcionamento
estão muitas vezes além da prova total; conuido, elas são aceitas e influenciam
porque são capazes de oferecer pontos de vista seguros e satisfatórios, a par­
tir dos quais podemos lidar com o mundo real. Seja o movimento religioso
ou político, filosófico ou artístico, considera-se que um grupo de ideias, de
crenças, é, em primeiro lugar, verdadeiro e, em segundo lugar, importante.31
As pessoas que usam sua m ente precisam construir e habitar mundos
mentais, a partir dos quais elas diferenciam a ordem e os padrões den­
tro da experiência e dão sentido a alguns de seus mistérios e enigmas.32
Conforme o filósofo M ichael Polanyi (1891-1976) propõe, uma estrutura
defensável de crenças nos permite ouvir um a melodia onde de outro modo
ouviríamos apenas um ruído.3j
Isso, porém , não significa dizer que o cristianism o seja sim ­
plesm ente, ou m esm o fundam entalm ente, um conjunto de ideias.
Para m uitos cristãos, um a experiência de D eus repousa no centro
da dinâm ica religiosa.34 Por conseguinte, essa experiência pode le­
var a formulações teológicas — “O que deveria ser uma verdade, se isso
fosse um a experiência genuína de Deus?” — , mas tais formulações são,
•'''JAMES, W illiam. The W ill to Believe, The Will to Believe and Other Essays in Popular
Philosophy. New York: Longmans, Green, and Co., 1897, p. 1-31.
51 V., esp., Meanings ofLife de Roy Baumeister New York: Guilfor Press, 1991.
>! M cG rath, Alister E . The Open Secret; A N ew Vision for Natural Theology.
Oxford: Blackwell, 2008, p. 113-216.
" P olanyi, Michael. Science and Reality. British Journalfo r the Philosophy o f Science,
v. 18, p. 177-196, esp. p. 190-191,1967.' ’ '
;4 Existe vasta literatura sobre o tema, como as obras: The Spiritual Nature ofM an: A
Study o f Contemporary Rehgious Experience, de Alister C. H ardy, Oxford: Clarendon
Press, 1980); Easter in Ordinary: Refections on Human Experience and the Kno-wledge
ofG od dc Nicholas L a sh , Charlottesville: Univ. Press of Virginia, 1988; Le sens du
surnaturel, de Jean B o r e u .a, (Genève: Edttions Ad Solem, 1996).
[ A fé. 05 credos e o evangelho cnslão
no final das contas, secundárias à experiência que as precipitou e moldou.
D e fato, muitos argum entariam que um a experiência de Deus é irredu­
tível às formas verbais ou conceituais.
O teólogo americano Stanley Hauerwas (n. 1940) é um entre mui­
tos novos escritores a enfatizar que ver no cristianismo simplesmente uma
coleção de doutrinas ou declarações de credo leva a uma séria distorção do
seu caráter. Antes, no cristianismo deve ser encontrado um modo distinto
de vida, que se torna possível pela ação graciosa do Espírito Santo, que
orienta os seus seguidores até o Pai, por meio de Jesus Cristo. Hauerwas
afirma que precisamos de uma estrutura ou lentes pelas quais possamos
“ver” o m undo do com portam ento humano. Isso, ele insiste, é possibilita­
do pela reflexão contínua, detalhada e vasta sobre a narrativa cristã:
A tarefafu n d a m en ta l da ética cristã envolve uma tentativa de nos
ajudar a ver. Porque sópodemos agir dentro do m undo quepodemos
ver, e só podemos ver o m undo corretamente sendo treinados para
vê-lo. N ão vamos chegar a -ver apenas olhando, mas por meio de
habilidades disciplinadas desenvolvidas po r iniciação num relato.^
Desse m odo, H auerw as enfatiza a im portância da té cristã para
que as coisas sejam vistas por aquilo que realm ente são, e para que essa
verdadeira visão da realidade seja declarada e anunciada: “A igreja ser­
ve ao m undo dando ao m undo os meios para que ele verdadeiram ente
veja a si m esm o”.36
j A fé cristã nos fornece, assim, um modo de “ver” o mundo, o que nos
ajuda a dar-lhe sentido e agir dentro deleAO cristianismo faz sentido em
^ H auerwas, Stanley. T he Dem ands o f a Truthíul Story: Ethics and the Pastoral
Task, Chicago Studies, v. 21, p. 59-71,1982; citação nas p. 65-66. Observações similares
foram feitas anteriormente em Vision and Choice in Morality, de íris MuRDOCH. In:
RAMSEY, Ian T. (Org.). Christian Ethics and Contemporary Philosophy. London: SCM
Press, 1966, p. 195-218. " ’
“ H auerwas, Stanley. The Peaceable Kingdom: A Primer in Christian Ethics.
Notre Dame: Univ. of Notre Dam e Press, 1983, p. 101-102.
[ Heresia I
si mesmo, e ao mesmo tempo dá sentido ao mundo.^Ele nos oferece um
modo de ver as coisas que ao mesmo tempo reflete e cria a coesão. C. S.
Lewis deixa isso bem claro na conclusão de seu ensaio Is Theology Poetry?
[A teologia é poesia?], quando comenta: “Eu acredito no cristianismo como
acredito que o sol nasceu, não somente porque o vejo, mas porque graças
a ele vejo todas as outras coisas”. mais importante nesse ponto é que
a fé cristã torna possível uma transformação da mente, permitindo ver as
coisas de um modo novo, mais instigante e, acima de tudo, mais coerente. O
cristianismo faz sentido em si mesmo; e também dá sentido a todo o resto./
Nosso modo de “ver” as coisas configura nosso comportamento
perante elas. A teologia cristã tem o objetivo de dizer a verdade sobre o
que ela vê — e ela vê o mundo de um modo específico: como a criação
de Deus. Assim, Paulo aconselha seus leitores: Não se amoldem aopadrão
deste mundo, mas transformem-se pela renovação da sua mente... (Rm 12.2,
NVI). A mente hum ana não é substituída ou suplantada pela fé; ao con­
trário, ela é iluminada e revigorada pela fé. VV. fé considerada um caráter
transformado do sábio, levando a um novo modo de pensar, permitindo
o discernimento das camadas mais profundas da realidade, o que não é
possível pela razão ou visão humanas por si sós.’8 O mundo, portanto,
adquire um novo significado. E tem sido irans-significado, passando então
a revelar alguma coisa além de si mesmo.39
Essa ideia da transmutação do m undo, na realidade ou no sen­
tim ento, há muito tem po tem sido associada à imagem poderosa da
pedra “filosofal”. Esta possuía a capacidade para transm udar pequenas
coisas em algo precioso, e foi buscada ardentem ente ao longo da Idade
M édia. O utras fontes falaram de um “elixir” — um líquido derivado
dessa misteriosa pedra — que tinha o poder de trazer a regeneração
L f .w i s , C. S. Is Theology Poetry? In: Wal.MSUüY, Lesíev (Org.). C. S. Le-rcis Essay
Collection: Faith, Christianity and the Church. London: Collins, 2000, p. 1-21.
53 V. neste ponto “Faith, Reason and the M in d of Christ", de Alark M cI x to sh . In:
Reason and the Reasons o fFaith. GRIFF1THS Paul J . ; HüTTER, Reason and the Reasans o f
Faith. New York: T. 8cT. Clark, 2005, p. 119-142).
w M c G rath. Open Secret, p. 171-216.
A fé. os cedos e o evangelho cristão ]
física e espiritual. Em bora medieval na origem, a imagem capturou
a imaginação dos escritores renascentistas.40 Seu potencial para a ex­
ploração teológica foi desenvolvido pelo poeta inglês George H erbert
(1593-1633) em seu poema “O elixir”. Cristo é a pedra “filosofal” que
transform a o m etal básico da existência hum ana no ouro da redenção.
E sta é a pedrafam osa
Que transforma tudo em ouro:
Por ela que Deus toca epossui
N ão pode por menos ser dito.41
H erbert assinala o poder da visão cristã sobre Deus transform an­
do nosso modo de ver as coisas. O m undo é transm udado de um metal
básico em algo que Deus “toca e possui” que não pode ser “dito” — um
modo mais antigo de expressar a ideia de “calcular” ou “avaliar” — de
qualquer coisa menor.
; Desse modo, a fé nos oferece um ponto de vista, um par de lentes,
a partir do qual e pelo qual podemos ver as coisas de um modo cristão..
O grande filósofo da ciência, N. R. Hanson (1924-1967), de Yale, aponta
que o processo de observação é sempre “carregado de teoria”:vemos as coisas
por lentes teóricas que nos ajudam a colocá-las em foco.4-rNum sentido,
Tema explorado em Darke Hierogliphicks: Alchemy tn English Litcrature from
Chaucer to the Restoration, de Staton J. LlNDEN, Lexington: Univ. Press of Kentuckv,
1996, P. 156-192. ’
41 MlLLER, Clarence H . Christ as the Philosophers Stone in George H erbert's “The
Elixir”, Notes and Quertes, v. 45, p. 39-41, 1998.
H anson , N. R. Patterns o f Discovery: An Inquiry into the Conceptual Fowndations of
Science. Cambridge: Cambridge Univ. Press, 1961. Hanson, desse modo, argumenta que
Tyeho Brahe (que acreditava num sistema solar geocêntrico) eJohannes Kepler (partidário
do modelo heliocêntrieo do sistema solar) “veem” coisas muito diferente? ao observar um
imanhecer: Tycho vê o sol em movimento cruzando um horizonte estacionário, enquanto
Kepler vc um horizonte cm movimento descendente expondo um sol estacionário.
Para uma análise detalhada, v., de M atthias Adam, Theoriebeladenheu und Objektivitàt:
Z .v Rolle von Beobachtungen in den Naturwissenschafte (Frankfurt: Ontos Verlag, 2002).
o cristão e o secular ‘Veem” o mesmo m undo; num outro sentido, porém,
eles veem algo totalm ente diferente, pois interpretam e avaliam as coisas
de formas m uito diversas, Eles usam distintos pares de lentes. A fé cristã
pode, dessa maneira, ser considerada, nos termos de W illiam James,
uma hipótese de funcionam ento honesta e confiável, ou, nos termos de
H anson, um par de lentes que nos perm ite “ver” o m undo de uma forma
segura e confiável. ,■
A natureza da fé
Crer em D eus é confiar em Deus. E sta não é um a definição
adequada de fé, mas é um excelente ponto de partida para outras ex­
plorações. D eus é aquele em quem se pode confiar em meio à tur­
bulência, confusão e am bigüidades da vida. C onfiar em alguém leva
ao com prom etim ento. Esse é um padrão encontrado ao longo das
narrativas de cham ado e resposta que encontram os na tradição cristã.
U m dos grandes exemplos de fé é o patriarca Abraão. Abraão confiou
em Deus, deixou a casa de sua família e seguiu para um a terra distante
(G n 15,17). Crer em D eus é acreditar que D eus é digno de confiança,
o que nos leva a confiar nele. C rer em D eus vai m uito além da mera
aceitação efetiva da existência de Deus; é declarar que nesse D eus se
pode confiar. Esse é um tem a fam iliar e foi explorado pelos mais im ­
portantes escritores cristãos ao longo das eras,45
De modo semelhante, crer em Cristo vai além de aceitar a sua exis­
tência histórica. Em seu sentido extremo, a fé em Cristo tem a ver com re­
conhecê-lo como aquele em quem se pode confiar. Quando Jesus de Nazaré
perguntou a um homem que ele tinha acabado de curar se ele “cria” no Filho
do homem (Jo 9.35), o homem curado sabia claramente que não lhe estava
sendo perguntado se ele acreditava na existência de Jesus. Ele sabia que a
pergunta era se ele estava pronto para confiar em Jesus e se entregar a ele.
4:5 Excelente exemplo é Tokens o f Trust: A n Introduction to Christian Behef, de Rowan
W illiams, LouisviUe: Westminster John Knox Press, 2007.
[ A fé. os credos e o evangelho cristão
Não é, pois, por acaso que os evangelhos do N T levantam essa
questão para nos ajudar a entender por que Jesus de Nazaré é digno de
nossa confiança, e que forma tal confiança assume. Neste contexto, o
chamado dos primeiros discípulos é de im portância especial. N o relato
de M arcos desse evento dram ático (M c 1.16-20), Jesus profere estas
singelas palavras: “Vinde a m im ”. N enhum a explicação ou elaboração é
oferecida. M esm o assim, os pescadores deixaram tudo e imediatam ente
seguiram Jesus. N enhum a razão é dada para a decisão de seguirem aquele
estranho que entrou na vida deles de forma tão dramática. M arcos nos
oferece a visão de um a figura totalm ente convincente, que influencia a
tom ada de decisão apenas com a sua presença. Eles deixaram para trás
as suas redes — a base de sua escassa existência como pescadores —
e seguiram a estranha figura rum o ao desconhecido. Ele nem mesmo
lhes diz o seu nome. N o entanto, eles decidiram confiar nele.
E nesse ponto que com eça a fé que esses hom ens passaram a
depositar em Jesus C risto. N ão é onde ela term ina. Pois os evange­
lhos nos perm item ver os discípulos crescendo em sua fé à m edida
que, gradualm ente, passam a entender mais sobre a identidade e o
significado de C risto/ Em prim eiro lugar, eles confiaram nele; com
o passar do tem po, eles passam tam bém a entender quem ele era e
passam a reconhecer a sua im portânciaj M esm o no NT, isso leva a
um a confiança pessoal em D eus e em C risto sendo com pletada com
crenças que dizem respeito à identidade deles — em outras palavras,
com declarações doutrinais. Por exemplo, o Evangelho de João narra
as coisas que Jesus disse e fez, m ostrando aos seus leitores razões por
que podem se entregar a ele pessoal e intelectualm ente. A narrativa
das palavras e ações de Jesus foi escrita de form a que que possais crer
queJesus é o Cristo, o Filho de Deus, epara que, crendo, tenhais vida em
seu nome (Jo 20.31).
Essa breve incursão na term inologia cristã nos perm ite fazer uma
im portante distinção entre f é — geralmente compreendida de modo
■-dacional — e crença — geralmente compreendida de modo cognitivo
ju conceituai. A fé prim eiram ente descreve um a relação com Deus,
[ Hcrosu ]
caracterizada pela confiança, pelo compromisso e pelo amor. Ter té em
D eus é depositar a confiança nele, crendo que dela ele é merecedor. As
crenças representam um a tentativa de colocar em palavras a substância
dessa fé, reconhecendo que as palavras nem sempre são capazes de
representar o que elas descrevem, mas tam bém reconhecendo a ne­
cessidade de tentar confiar às palavras o que elas, no final das contas,
não poderiam conter. Afinal, as palavras são de im portância efetiva na
comunicação, argum entação e reflexão. E sim plesm ente inconcebível
para os cristãos não tentarem expressar em palavras aquilo em que creem.
Contudo, essas formulações de credo são, de certo m odo, secundárias
ao ato prim ário de confiança e compromisso.
As prim eiras declarações de fé cristã eram m uitas vezes breves,
até m esm o concisas.44'A confissão de que Jesus é o Senhor (Rm 10.9;
lC o 12.3) representa a mais compacta forma de credo.45As declarações
de fé mais extensas incluem afirmações que claramente trazem em si os
temas nucleares dos credos posteriores. Um ótim o exemplo é encontra­
do na correspondência coríntia:
Porque prim eiro vos entreguei o que também recebi: Cristo morreu
pelos nossos pecados, segundo as Escrituras; efoi sepultado; e ressus­
citou ao terceiro dia, segundo as Escrituras; e apareceu a Cefas, e
depois aos D oze (lC-o 15.3-5).
A té certo ponto, Paulo entrelaça aqui a narrativa histórica e
a interpretação teológica que se tornou um a característica dos p ri­
m eiros credos cristãos. A narrativa histórica de Jesus de N azaré é
reafirm ada, mas é interpretada de um m odo particular. Por exemplo,
Jesus não apenas “m orreu”, o que é um a declaração puram ente his­
tórica; ele “m orreu pelos nossos pecados”, o que é um a interpretação
44 Sobre o desenvolvimento histórico dos credos, v. K elly, Early Christian Creeds, de J.
N. D. K e lly , 3. ed. New York: Longman, 1981.
45 Bajley, James L.; B roek, L yle D. Vander. Literary Forms in the N ew Testament: A
Handbook. Louisville: W estm inster John Knox Press, 1992, p. 83-84.
[ A fé. os credos e o evangelho cristão
do significado do evento histórico da m orte de Jesus de Nazaré.-"
A história, portanto, não é negada ou deslocada; ao contrário, cia é
interpretada e vista de um m odo particular.
Essa observação nos ajuda a entender que os cristãos fazem mais
do que simplesmente confiar em Deus ou em Cristo. Eles também creem
em certas coisas muito bem definidas sobre eles. Isso, porém, não significa
que a fé cristã pode simplesmente ser considerada uma checagem de cren­
ças. D e certo modo, o cristianismo é uma ré profundamente relacionai que
repousa na aceitação confiante que o crente tem dc um Deus que, em pri­
meiro lugar, provou ser merecedor dessa confiança. Assim Samuel Taylor
Coleridge observou certa vez: “A fé não e uma precisão de lógica, mas
uma retidão do coração”/ 7Contudo, apesar dessa ênfase relacionai dentro
do cristianismo, resta uma dimensão cognitiva para a fé. Os cristãos não
somente creem em Jesus de Nazaré; eles também creem em certas coisas
sobre ele.j O aparecimento das noções tanto de heresia quanto de orto­
doxia durante o século II deve ser considerado contra o pano de fundo
do reconhecimento da importância de desenvolver e sustentar um núcleo
doutrinai seguro para a manutenção da identidade e coerência cristãs.
A consolidacão da féj>
Um dos desafios com o qual a igreja primitiva deparou foi a con­
solidação de suas crenças. A evidência histórica sugere que, inicialmente,
isso não era considerado uma prioridade. M esm o por volta da metade
do século II, a maioria dos cristãos parecia contente em viver com certo
grau de confusão teológica. A imprecisão teológica não era vista como
ameaça à consistência ou existência da igreja cristã. Esse julgamento
4í’Existe uma ampla literatura sobre esse tema. V., por ex., The Actuahix c; Aícnement:
A Sludy o f Metaphor, Rationalily, and the Chrulian Tradition, de Conr. E. GfNTON,
Grand Rapids: Eerdmans, 1989.
'C o lerid g e, Samuel Taylor. Complete Works, 7 v. New York: H arper & Brothers,
1884, v. 5, p. 172.
f H0rrtSÍ<-i
deve ser visto como refletindo o contexto histórico daquela época: a luta
pela sobrevivência num ambiente cultural e político hostil muitas vezes
fazia com que outros assuntos fossem considerados menos importantes.
No entanto, o aparecimento da controvérsia levou à crescente neces­
sidade de definição e formulação. E com essa crescente preocupação com a
exatidão lógica surgiu um inevitável estreitamento dos limites daquilo que
era considerado cristianismo “autêntico”. A periferia da comunidade de fé,
uma vez relativamente solta e porosa, chegou a ser definida e vigiada com
um rigor cada vez maior. Visões que antes eram consideradas aceitáveis co­
meçaram a cair por terra quando um exame mais rigoroso das controvérsias
da época começou a expor as suas vulnerabilidades e deficiências. Os modos
de expressar certas doutrinas que as gerações anteriores consideravam sóli­
dos começaram a parecer inadequados sob um exame rigoroso. Não é que
necessariamente estivessem errados; não eram bons o bastante.
U m bom exemplo desse desenvolvimento pode ser visto nas pri­
meiras reflexões cristãs sobre a doutrina da criação. Desde o início, os
escritores cristãos afirmaram que Deus tinha criado o mundo. Havia,
porém, vários modos de entender o que implicava a noção de criação.
M uitos dos primeiros escritores cristãos assumiram as noções judaicas
existentes sobre criação, as quais tendiam a ver o ato da criação divina
principalm ente como a imposição da ordem sobre a m atéria preexisten­
te ou a derrota de forças caóticas. Tais visões perm aneceram dom inantes
dentro do judaísmo até o século X V I.48
O utros teólogos cristãos, no entanto, argum entavam que o N T
apresentava claramente a ideia de criação como o chamado para o ser de
todas as coisas a partir do nada — um a ideia mais tarde conhecida como
criação nihilo. Q uando essa ideia adquiriu predom inância, a visão
mais antiga da criação como a ordenação da matéria existente chegou
a ser vista prim eiro como deficiente e depois como errada.49U m a ideia
^Tirosh-Sajuuiíi.son, H ava.Theology ofN aturc in Sixteenth-Century Italian Jewish
Philosophy, Science in Context, v. 10, p. 529-570, 1997.
4'’M ay, Gerhard. Creatio Ex Nihilo: The Doctrine of Crcation O ut of Nothing" in
Early Christian Thought. Edinburgh:T. 6cT. Clark, 1995.
A fé, os credos e o evangelho cristão
outrora considerada predom inante passa a ser, portanto, gradualmente
deixada de lado, e por fim com pletam ente rejeitada. Processos seme­
lhantes podem ser vistos ocorrendo em outras áreas do pensam ento
cristão, especialmente em relação ao entendim ento da igreja sobre a
identidade e o significado de Jesus Cristo.
As vezes acontece o que parecem ser mudanças bastante radicais
no pensam ento. U m bom exemplo disso diz respeito à questão de ser
possível dizer que D eus conhecia o sotrim ento. A visão predom inante
da igreja prim itiva (mas não exclusiva) era que se poderia dizer que
Deus conhecia o sofrim ento, mas não o experimentava pessoalmente.
N o século XX, um núm ero cada vez m aior de cristãos chegou à
conclusão de que, na verdade, D eus sofria pessoalm ente, sobretudo
como conseqüência da encarnação. “Nosso Deus é um Deus sofredor”
(D ietrich Bonhoeffer). E m parte, o crescente interesse m oderno na
noção de um D eus sofredor reflete um aum ento na sensibilidade pela
dor e pelo sofrim ento no m undo, e um a nova preocupação em rela­
cionar o sofrim ento de C risto à angústia do m undo, por um lado, e à
natureza de D eus, por outro.-’0
U m dos exemplos mais im portantes do desenvolvim ento
doutrinai é encontrado na doutrina cristã da encarnação, que teve
expressão form al no século IV. Essa afirm ação pode ser vista como
o clímax de um longo, cuidadoso e exaustivo processo de reflexão
e exploração teológicas.51 A igreja sempre reconheceu que Jesus de
N azaré era D eus encarnado, tom ando a sua face visível e os seus
propósitos e caráter acessíveis à hum anidade. C ontudo, a exploração
intelectual do que isso implicava levou mais de três séculos, envol­
vendo o exame crítico de um a gama extensiva de trabalho intelectual
Existe uma literatura bastante extensa sobre esse assunto. V., esp. The Creative
zurêring ofGod, dc Paul Fiddks, Oxford: Clarendon Press, 1988; The Suffering o fGod:
Old Testament Perspective, dc Tcrcnce E. F r e t u k im , Philadclphia: Fortress Press,
l-S -; The Suffering o f the Impossible God: The Dialecttcs o f Patristic Thought, de Paul
SivrÜvuk, Oxford: Oxford Univ. Press, 2004.
V.. esp. Nicaea andlts Legacy: An Approach to Fourth-Century Trinitanan Theology, de
Le',v;? Ayrf.s, Oxford: O x fo rd Univ. Press, 2004.
r
[ l-ncrei-'v: ]
para dar sentido ao que a igreja já havia descoberto ser verdadeiro.
E m certo sentido, a igreja já sabia o que era tão im portante sobre
Jesus de N azaré. O problem a era construir um em basam ento in te­
lectual que fizesse justiça ao que já era conhecido sobre ele. E desse
m odo, inevitavelm ente, cam inhos errados foram tom ados.
O último consenso sobre o melhor modo de formular o significado
de Jesus de Nazaré — o Concilio de Niceia — c talvez mais bem pensado
como um a fórmula segura, em vez de uma teoria cabal, fazendo uso de
algumas noções metafísicas gregas que eram amplamente difundidas no
m undo erudito daquela época. Alguns sugeriram que esse processo de
desenvolvimento representava uma distorção da simplicidade original da
fé cristã. Por que a igreja usou noções metafísicas gregas para dar testemu­
nho de Cristo quando tais noções não fazem absolutamente parte do N T?
O teólogo anglicano Charles Gore (1853-1932) estabelece com alguma
profundidade uma teoria clássica da relação entre o testemunho bíblico
de Cristo e as interpretações mais desenvolvidas da sua identidade e o seu
significado, conforme aparecem nos credos cristãos.5-
Respondendo aos que afirmavam que o testem unho de Cristo, em
sua simplicidade, fora com prom etido e distorcido pelo desenvolvimento
da história da Igreja, em especial nos primeiros séculos da fé, Gore insistiu
em afirmar que essas formulações teóricas posteriores serão vistas como
“o desdobram ento gradual” de ideias e temas que já estavam presentes,
se não explicitamente formulados, dentro do pensam ento e adoração
cristãos/" G ore indicava que a motivação para expressar o testem unho
da igreja a Cristo em condições cada vez mais teóricas encontra-se em
parte no desejo hum ano de entender c, em parte, no desejo de proteger
ou salvaguardar um mistério. Para Gore, “o cristianismo tornou-se m e­
tafísico, apenas e simplesmente porque o hom em é racional”.5! O desen­
volvimento de ideias complexas, que ultrapassam a simples linguagem
'-C oki:, Charles. The Incarnation of the Son of God London: John Murr-.iv, 1922.
p. 80-112. * ' ’
:Ibidem , p. 96, 101.
' 4lbidem , p. 21.
e imagem do NT, será visto em parte como o resultado inevitável da
curiosidade intelecuial hum ana.
No entanto, para o desenvolvimento de tais ideias, existe clara­
m ente algo mais do que o desejo hum ano de sondar ou desafiar limites.
U m dos tem as a em ergir da exploração da igreja prim itiva sobre a
encarnação é a necessidade de desafiar as interpretações existentes
de fé para assegurar que elas sejam capazes de acom odar de m aneira
adequada e representar o m istério de fé.jisso significa explorar opções
intelectuais, não sim plesm ente por curiosidade, mas por um a convic­
ção proiunda de que a sobrevivência e a saúde da igreja dependem de
assegurar a m elhor explicação possível de íe jA busca patrística pela
ortodoxia não se ateve à suposição de que essa explicação já havia sido
descoberta, embora assumisse que algumas aproximações razoáveis ti­
nham sido desenvolvidas. D e certo modo, escritores como A tanásio de
A lexandria acreditaram que a ortodoxia ainda precisava ser descoberta.55
A reivindicação fundam ental da ortodoxia cristã para que seja dita a
verdade sobre as coisas não poderia ser m antida sem que se soubesse
se a verdade estaria ou não sendo com pleta e corretam ente articulada
através de formulações doutrinais existentes.
Nós já usamos a linguagem dc mistério em referência às verdades
que estão no cerne da fé cristã. E claro que tal ideia precisa ser consi­
deravelmente ampliada se quisermos entender a sua relevância para o
conceito de heresia.
[ A fc, cs credos e o evangelho c-islão ]
"reservando os mistérios da fé
O prim eiro desenvolvimento doutrinai cristão pode ser com pa-
rico a uma jornada intelectual de exploração, na qual uma gama de
T.j$síveis modos de formular ideias nucleares foi examinada, algumas
..ca pontos levantados em “Defining Hcrcsv”, de Rowan W jlliams In: Kricidp.r (Org.).
. Or:ç:m ct Chnstendom m the West. Edinburgh: T. &.T. Clark, 2001, p. 313-335.
[ leresia J
para serem afirmadas e outras para serem rejeitadas. Esse processo real­
m ente não deveria ser pensado em termos de vencedores e perdedores;
ele é mais bem compreendido como um a busca de autenticidade — um
“conflito produtivo sobre objetivos e prioridades entre os cristãos”56 —
no qual todas as opções foram examinadas e avaliadas.’7
D e qualquer modo, esse processo de exploração era natural e ne­
cessário. Ao entrar no século II e -além dele, o cristianismo não podia
permanecer congelado em suas formas do século I. Ele enfrentava novos
desafios intelectuais que exigiam dele a prova de que era capaz de lidar
com alternativas religiosas e intelectuais em relação a ele, especialmente
o platonismo e o gnosticismo. Esse processo de expansão conceituai dos
conteúdos da fé cristã foi executado de forma lenta e cautelosa. A crista­
lização final desse processo de exploração pode ser vista na formação dos
credos — declarações de fé autorizadas, que representavam o consensm
fidehum , “o consenso dos crentes”, em vez da expressão de fé privada,
individual.58
Essa viagem de exploração intelectual implicava a investigação
de cam inhos que no final se m ostraram estéreis ou perigosos. Algum as
vezes atalhos errados foram tom ados num prim eiro m om ento, mas
depois corrigidos. É fácil entender por que m uitos podem acreditar
que os prim eiros m odelos de fé são os mais autênticos. N o entanto,
algumas conhecidas formas de visões que a igreja declararia mais tarde
como heréticas — por exemplo, o ebionism o e o docetism o — podem
ser identificadas dentro das com unidades cristãs tanto no começo
quanto no final do século I. Em bora m uitos dos prim eiros escrito­
res cristãos, como Tertuliano, defendessem que a antiguidade de uma
^ W illiams, Rowan. Does It JVIake Sense to Speak of Pre-Nicenc Orthodoxy? In:
____ (Org.). The M aking o f Orthodoxy. Cambridge: Cambridge Univ. Press, 1989, p.
1-23; citado na p. 2.
5'G kaxt, Robert M . Heresy and Criticism: The Searehfor Authenticity in Early Chrhtian
Literature LouisvUle Westminster John Knox Press, 1993, p. 1-13, 89-113.
'^Jo h n so n , Luke Timothv. The Creed: What Christtans Believe and Why It Ivlatten.
New York: Doubleday, 2003.
[ A fé, 05 credos e o evangelho cristão ]
visão teológica era um guia confiável para a sua ortodoxia, isso sim ­
plesm ente não procede. Erros foram com etidos, desde o princípio, os
quais tiveram de ser corrigidos pelas gerações posteriores.
Então isso significa que a igreja primitiva entendeu mal ou apresentou
Jesus de Nazaré de forma inapropriada? sobre um ponto muito importante:
desde o princípio, os cristãos souberam o que realmente importava sobre
Deus e Jesus de Nazaré. A dificuldade estava em encontrar uma base teó­
rica para dar sentido a isso. Era preciso desenvolver um suporte intelectual
para preservar o mistério, salvaguardar o que a igreja tinha descoberto como
verdadeiro — um processo que exige discernimento e elaboração. O ponto
crítico a considerar é que esse suporte intelectual não é em si totalmente
descoberto por revelação divina. A doutrina é alguma coisa construída, pelo
menos em parte, em resposta à revelação para salvaguardar o que foi revelado.
A controvérsia ariana do século IV pode ser vista como um debate confuso,
embora algumas vezes produtivo, sobre qual de uma série dessas estruturas
doutrinais construídas seria mais apropriada para assegurar e demonstrar o
mistério de Cristo. Que estrutura oferecia a melhor integração do complexo
testemunho bíblico com a identidade e o significado de Cristo?
A igreja sabia que a natureza e os propósitos de Deus eram reve­
lados em Jesus de Nazare, embora o debate esquentasse sobre como dar
mais sentido a isso. Os escritores cristãos estavam perfeitam ente cientes
de que a m orte e a ressurreição de Jesus de Nazaré haviam transfor­
mado a situação humana; a tarefa deles era explorar, de forma paciente
e completa, todo o modo concebível de dar sentido a isso. Q uando o
Concilio de Niceia declarou que Jesus era '‘verdadeiramente Deus e ver­
dadeiram ente hom em ” e que ele era “consubstanciai” com o Pai, foi sim ­
plesmente assegurado aquilo que os cristãos já sabiam ser verdadeiro. A
doutrina, então, de uma vez por todas preserva os principais mistérios
no cerne da fé e vida cristã, enquanto perm ite que sejam examinados e
explorados em profundidade.59
" M c G r a th , Alister.TA? Geneiii o f Doctrine (Oxford: Blackwell, 1990, p. 1-13).
O aso do term o técnico “m istério” m erece um com entário.
Seu sentido fundam ental é de “alguma coisa tão grandiosa que não pode
ser captada pela m ente hum ana”. A m ente hum ana é subjugada pela
imensidade daquilo que experimenta de Deus — um a questão expressa,
por exemplo, na famosa concepção de Rudolf O tto de um “trem endo
mistério”/’1' N um a discussão clássica desse assunto, A gostinho per­
guntou por que as pessoas se surpreendiam por não poderem entender
Deus completam ente. “Se ele fosse com preendido”, ele observa, “não
seria D eus”.61 A gostinho não está sugerindo que a crença em Deus seja
irracional; antes, ele está dem onstrando que a mente hum ana luta e, no
final, perde em sua contenda com a grandeza de Deus.
Sendo esse o caso, a teologia sem pre se revelará inadequada
para fazer justiça às verdades que repousam no cerne da fé cristã.
Podem os buscar a precisão teológica, contudo, nossas tentativas de
lidar com a realidade de D eus e o evangelho cristão serão sem pre
contrariadas pelas lim itações da m ente hum ana. C om o m ostra o
estudioso da patrística A ndrew L outh, o evangelho não pode ser
reduzido a palavras ou ideias hum anas:
E m sen cerne está a compreensão de Cristo como o mistério divino:
uma ideia central às epístolas do apóstolo Paulo. Esse segredo é um
segredo que foi contado; mas apesar disso continua sendo um segre­
do, pois o quefo i declarado não pode ser simplesmente captado, uma
vez que se trata do segredo de Deus, e D eus está além de qualquer
compreensão hum ana.,ã
'■"Wark, Owen. Rudolf O ttos Ideal of the Holy: A Reappraisal, Hevtkrop Journal,
v. 48, p. 48-60, 2007. Um trabalho recente sobre a psicologia do medo enfatizou a
importância dessa imensidade conceituai ao criar essa resposta. V. Approaching Awe, a
Moral, SpirUualand Aeslhetu Emotion, de D acher K f.ltn k r Cognition and Emotion,
v. 17, p. 297-314,2003. ’
1,1HlPONA, Agostinho de. Sermão 117.3.5: Si emm cornpreheiidis, non estDeus.
“ LOUTH, Andrew. Origim o f the Christian Mystical Tnuhtion: From Piato to Denys.
Oxford: Oxford Univ. Press, 2007, p. 205.
[ 40 '
A fé, os credos e o evange'ho cristão ]
Observação sem elhante é feita por G ore, que tam bém enfatiza
a incapacidade das palavras hum anas na busca de fazer justiça às
verdades divinas:
A linguagem hum ana jam ais pode expressar adequadamente as
verdades divinas. IJma tendência constante a se desculpar pela
fa la hum ana, um grande elemento de agnostum no, um a terrível
percepção de um a profundidade loiossal, muito além do pouco que é
revelado, está sempre presente n~. mente dos teólogos que sabem com
o que estão lidando, ao concecer ou expressar Deus. "Nós vemos",
d iz São Paulo, 'num espelho. em termos de um enigm a'; "nós conhe­
cemos em parte". N ó s somos compelidos", reclama Santo Hilário,
"a tentar o que. é inacessível :>• o'ide não podemos chega> falar o
que não podemos proferir; em vez da mera adoração da fé, somos
compelidos a confiar as coisas fi-omr.das da religião aos riscos da
expressão hum ana”.63
Gore, no entanto, argum enta que as formulações doutrinais esta­
belecem as declarações do m istério de Cristo no N T ,‘num a nova forma
de proteger os propósitos, da mesma maneira que um a representação
legal protege um princípio m oral”.
A doutrina, então, preserva os principais m istérios no cerne
da fé e da vida cristã. E m bora não partam necessariam ente de um a
revelação divina, as doutrinas em questão são validadas emparte
pelo seu fundam ento em tal revelação e, em parte, pela sua capa­
cidade de defender e com preender a revelação. O m istério está ali
e ali perm anece, antes de qualquer tentativa de dar sentido a ele e
expressá-lo em palavras e fórm ulas. N o entanto, o cue acontece se
determ inada doutrina volta-se para proteger esse m istério, quando
na realidade acaba por solapá-lo? E se a base teórica confiada para
proteger e abrigar um a visão central da fé revela-se corroendo-a ou
Goiíf.. Jncarnation.-p. 105-106.
I 41
distorcendo-a? Essas questões levam à essência da heresia., Uma he­
resia é uma doutrina que no fin a l acaba destruindo, desestabilizando ou
distorcendo um mistério, em vez de preservá-lo. As vezes, uma doutrina
que se pensava estar defendendo um m istério m ostra-se, na verda­
de, subvertendo-o. U m a heresia é um a tentativa fracassada rum o à
ortodoxia, cuja falha repousa não em sua disposição para explorar as
possibilidades ou im por limites conceituais, mas em sua relutância em
aceitar que, na realidade, talhou.
C onform e já observam os, as estruturas doutrinais surgem, dan­
do sentido ao encontro cristão definitivo com a experiência de D eus,
especialm ente em e por Jesus de N azaré.64 A teologia cristã tenta
lançar um a rede envolvente e protetora sobre a experiência cristã
fundam ental da revelação e ação de D eus na vida, m orte e ressurrei­
ção de Jesus de N azaré. As declarações doutrinais foram desenvol­
vidas para preservar e defender o núcleo da visão cristã da realidade.
Esse processo, já em curso no N T, foi consolidado e estendido du­
rante a era patrística. M as, e quando sobre um a declaração doutrinai,
cujo prim eiro objetivo era defender e preservar — e, no princípio,
acreditava-se funcionar assim — , descobre-se que, na verdade, ela
enfraquece e corrom pe?
A am eaça que a heresia representava à com unidade cristã m ui­
tas vezes foi expressa usando-se im agens extraídas da vida do antigo
Israel, especialm ente a preocupação em m anter a pureza e evitar a
corrupção ou “im pureza”. A heresia era vista como contam inante,
algum a coisa que poluía e maculava a pureza da igreja. Isso é expres­
so de form a particularm ente clara por Jerônim o (c. 347-420), que
enfatizava a im portância de m anter a pureza da igreja:
Mv. The M aking o f Christian Doctrine, de M aurice F. WlLES, Cambridge: Cambridge
Univ. Press, 1967; The Genem o f Doctrine, de Alister M c G r a th , Oxford: Blackwell,
1990, p. 1-13.
[ A fé. os credos e o evangelho cristão ]
Corte a carne estragada, expulse a ovelha im unda do rebanho; do
contrário, toda a casa, todo opasto, todo o corpo, todo o rebanho quei­
marão, perecerão, apodrecerão ou morrerão. A rio não passava de uma
brasa em Alexandria, mas, como aquela brasa nãofo i imediatamente
extinta, todo o mundo civilizado foi devastado por sua chama!*
H á nessa passagem claros ecos do código levítico, que exigia a
exclusão dos indivíduos contam inados ou “im puros” da comunidade, em
razão do seu impacto potencialm ente destrutivo.66
A construção humana de muros, cercas e fossos pode ser vista como
uma expressão da importância de estabelecer barreiras para proteger a iden­
tidade da comunidade.67Sabe-se muno bem que a identidade de um grupo
é mantida pela exclusão daqueles que são considerados uma ameaça às suas
ideias ou valores. Ainda que o processo pelo qual as comunidades excluem
os indivíduos ou grupos considerados intelectualmente corruptores ou
moralmente impuros possa ser descrito usando as categorias da psicologia
social, é importante avaliar que tal exclusão resulta do julgamento de que
certas ideias são perigosas para a estabilidade da própria comunidade.
Essa breve análise da natureza da crença serve como pano de fun­
do para um a análise mais detalhada do renômeno da heresia, para o qual
nos voltaremos agora.
^JerôNIMO. Commentarius in epistulam ad Gaiatas 5. Tradução _:vre.
“ V. uma análise clássica e um comentário em Purity ara Dar.ger: A n Analysis o f
Concepts o fPollution and Taboo, de M ary Douglas (London: Routledge, 2003).
67A b r a h a m s , Dominic; H ogg, Michael A.; M arques, José AL A Social Psychological
Framework for Understanding Social Inclusion and Exclusion. I n :_____ (Orgs.). The
SocialPsychology o fInclusion and Exclusion. New 'orK: Psychology Press, 2005, p. 1-23.
[ 43 ]
2
As origens da
ideia de heresia
O
s conceitos morrem quando deixam de
corresponder às necessidades sentidas
ou a um a realidade vivida. Outros continuam a
existir porque expressam ideias que permanecem
como significativas, ressoando a experiência de in­
divíduos e comunidades. A heresia pertence a essa
segunda categoria de conceitos. Em bora alguns a
considerem corrom pida e desacreditada devido às
suas antigas associações com a imposição da orto­
doxia religiosa, a maioria reconhece que a heresia
expressa um a ideia im portante e essencial a todos
os que refletem sobre as questões mais profundas
da vida. Todo movimento baseado em ideias ou
valores nucleares precisa determinar, por um lado,
o seu centro e, por outro lado, os seus limites.
Q ual seria o foco do movimento? E quais seriam
os limites da diversidade dentro do movimento?
, A característica essencial de uma heresia é que
ela não significa incredulidade (rejeição das crenças
centrais de uma visão de mundo como o cristianismo)
H ei OSici 1
no sentido estrito do termo, mas uma forma de íé que, no final das contas,
é considerada subversiva ou destrutiva, e, assim, leva indiretamente ao es­
tado de incredulidade. A incredulidade é o resultado, mas não a forma, da
heresia. Conforme observa o historiador Fergus Miller, heresia “não é um
simples relato de realidades observáveis”;1'* antes, é um julgamento de que
certo conjunto de ideias apresenta uma ameaça à comunidade de fc. Heresia
não é uma noção empírica, mas conceituai. D e certo modo, trata-se de uma
noção construída; nesse sentido, é o resultado do julgamento ou avaliação de
um conjunto de ideias por uma comunidade — nesse caso, a igreja cristã.
Considerando o que acabamos cie dizer, fica claro que não é possí­
vel entender o fenômeno da heresia em geral, ou as heresias individuais
específicas, simplesmente no nível das ideias heréticas. É preciso explorar
como e por que tais ideias foram julgadas pela própria comunidade cristã,
frequentemente por um longo período de tempo, como uma ameaça à íé.
Para entender a natureza da heresia, precisamos então considerar tanto
as ideias tidas como heréticas quanto os processos sociais pelos quais elas
foram assim definidas e condenadas. Ademais, a heresia é um a noção
socialmente incorporada, designando comunidades de discurso tanto
quanto de ideias, e levantando a questão da ameaça social ou política re­
presentada por comunidades heréticas às suas contrapartes ortodoxas.
Um dos temas mais persistentes nas primeiras narrativas cristãs da
heresia é que ela penetra clandestinam ente nas narrativas da realidade
concorrentes dentro da família de fé. E um cavalo de Troia, um meio
de estabelecer (seja por acaso, seja por desígnio) um sistema de crenças
alternativo dentro do seu hospedeiro.69 A heresia parece ser cristã, mas
é na verdade uma inimiga da fé, que espalha a semente da destruição.™
bSCi observado em Repentent Heretics in Fifth Century Lydia: Identity and Literacy, de
Fergus M iller, Scripta Classica Israelica, v. 23, p. 113-130, 2004.
"vVON HlLDEBRAKD, Dictrich. Trojan Horse in the City of God: The Catholic Crisis
Explained. M anchester: Sophia Institute Press, 1993. H ildebrand afirma que o
secularismo conquistou espaço na igreja católica, na época do Concilio Vaticano II
(1962-1965), levando a uma erosão dc seus valores e crenças.
70V. Summa Theologíae, de Tomás de A qu ino, 2a2ae q. 11 a. 1: “A heresia é uma espécie
de descrença que pertence àqueles que professam a fé cristã, mas corrompem os seus
dogmas”.
[ 46
[ As origens Ca ide<a de heresia ]
Ela poderia ser comparada a um vírus, que se fixa dentro de um hos­
pedeiro e, por fim, usa o sistema de replicação de seu hospedeiro para
conseguir a dominação. Entretanto, independentem ente do que esteja
na origem da heresia, a ameaça vem de dentro da comunidade de fé.
Por exemplo, considere o recente debate na Indonésia sobre se a
seita islâmica A l-Q iyadah Al-Islam ivah deveria ser reconhecida como
islâmica ou tratada como outra religião/ M uitas organizações islâmicas
indonésias são hostis à A l-Q iyadah Al-Islam ivah porque suas visões
divergem do islamismo popular, de m aneira mais notável quando afirma
que o b a jj— jejum — e as cinco orações diárias não são compulsórias,
e em razão de sua expectativa do surgimento de um novo profeta depois
de M aom é. A questão central é se as visões da seita serão consideradas
como representando zM/z/a/Xdiferenças de opinião legítimas dentro do
islamismo) ou se tais visões estão fundam entalm ente em conflito com
as crenças e práticas islâmicas.72 A l-Q iyadah Al-Islam iyah refere-se a
si mesma como islâmica, de forma inquestionável; e seus membros re­
agiriam com horror a qualquer sugestão de que eles são kujfar (infiéis).
No entanto, os seus críticos dentro do islamismo indonésio argum en­
tam que as ideias que defendem, no final, subvertem e ferem as crenças
centrais do islamismo.
A heresia, portanto, representa um a ameaça à fé, possivelmente
mais séria do que muitos desafios que têm origem fora da igreja cristã.
Os hereges eram os “de dentro” que ameaçavam subverter e dividir.
Lester Kurtz fala da “forte união da proximidade e da distância” na he­
resia, em que o movimento é sim ultaneam ente um “de dentro” e um
estranho ao seu hospedeiro.73 Ao propor um a análise sociológica do sig­
nificado da heresia, o teórico social Pierre Bourdieu (1930-2002) indica
^yoiiardi Bachyul Jb, Two Former Al-Qiyadah Activists G cr Three Years for
Blasphemy, Jakarta Pcst, 3 de maio, 2008.
2Um debate similar sobre o ponto de vista de Nasr Hamid Abu Zayd surgiu recentemente
no Egito. Cf. Heresy or Hermeneuttcs: The Case of Nasr Hamid Abu Zayd, de Charles
H iksciikind, Stanford Humanities Review, v. 5, p. 35-50,1966.
'Uma análise contundente dessa questão pode ser vista em The Politics Heresy, de
Lester KüRTZ, American Journal ofSociclogy, v. 88, p. 1085-1115, 1983.
I 47
o seu potencial de arruinar ou desestabilizar as concepções nucleares
de um a visão de m undo, ou de identificar alguma instabilidade dentro
dessa visão de m undo que leve á sua m odificação radical. E m cada
caso, afirma Bourdieu, o resultado é o mesmo: involuntariam ente aju­
da os oponentes externos do m ovim ento.74
Toda visão de m undo, seja religiosa, seja secular, possui as suas
ortodoxias e heresias.75Em bora os conceitos de heresia e ortodoxia te­
nham suas origens dentro do cristianism o prim itivo, eles se m ostraram
úteis a outras tradições religiosas, de um lado, e a ideologias políticas e
científicas, de outro. O desenvolvimento do darw inism o, por exemplo,
testem unhou a ascensão e queda dos m odos de pensar e escolas de
pensam ento, com os term os “heresia” c “ortodoxia” sendo am plam en­
te usados dentro do cam po para identificar os amigos e inim igos.70
Por exemplo, o conceito da evolução neutra, de M otoo Kim ura (pela
qual as substituições aleatórias de am inoácidos nas proteínas podem
explicar a m aior parte das diferenças de seqüência entre espécies) foi
considerado herético por m uitos biólogos quando foi apresentado pela
prim eira vez no final dos anos 1960.77 H oje ele faz parte da ortodoxia
darwinista. A apropriação da linguagem religiosa para descrever tais
controvérsias é um a indicação tanto da seriedade com que todos os
lados assumem suas posições quanto do sentim ento de que certas po­
sições dentro do espectro do darw inism o são absolutam ente perigosas.
Se a evolução pode ser referida como um a religião, então ela possui as
suas ortodoxias e heresias.78
■'Bourdif.ü, Pierre. Genesis and Structure oi the Religious Field. Comparative Social
Research, v. 13, p. 1-43, 1991.
/SV. os pontos levantados em The Constmction o f Orthodoxy and Heresy: Neo-Confucian,
Islamic, Jewish, and Early Christian Patterns, de John B. H e n d e r so N, A lbanv: State
Univ. of New York Press, 1998.
"Ll/STIG, Abigail; R icíiards, Robert J.; Rlisr;, M ichael (Orgs.). Darwinian Heresies.
Cambridge: Cambridge Univ. Press, 2004, p. 1-13.
I.i.üJH, Egbert G. Neutral Theory: A Historical Perspective Evolutionary Biology, v. 20,
p. 2075-2091,2007. ' ‘
'KSobre o fundamento dessa sugestão, v. Evolution as a Religion: Strange Hopes and
Stranger Fears, de M ary MlUGLEY, 2.ed.( London: Roudedge, 2002.
[ 4 8 |
[ As origens dd ideia de heresia ]
O mesmo padrão de desenvolvimento pode ser visto na ciên­
cia médica moderna. Considerada de um ponto de vista sociológico,
a medicina moderna surgiu através de uma interação complexa de teo­
rias concorrentes sobre as origens das doenças e como elas precisam ser
tratadas. As ideologias dom inantes surgem regularmente, sustentadas
em parte por suas credenciais científicas e, em parte, por fatores sociais
significativos.79 O atual debate sobre a relação do H IV com a aids, por
exemplo, é regularm ente trazido à baila em termos de escolas de pensa­
m ento “ortodoxas” e “heréticas”/ 11As ideias morrem quando deixam de
ser úteis. A heresia continua a existir — quer como uma noção teológi­
ca, quer como um a noção secular.
Com o o term o “heresia” passou a referir-se a formas de fé de-
sestabilizadoras ou destrutivas? Com o passar dos anos, as palavras
fluem, m udam seu significado e associações. Nossa língua oferece
muitos exemplos de palavras cujo significado parece ter m udado tão
radicalm ente em alguns séculos que hoje significam mais ou menos o
oposto do seu sentido original. A palavra “urbanizar” originariam ente
significava “tom ar(-se) urbano; civilizar(-se)” — em outras palavras,
“tornar(-se) cortês, polido”.SLl H oje, ela se refere à conversão dos poucos
espaços abertos num am ontoado de cidades. A palavra, originalm ente
positiva, foi degradada e passou a significar o que é visto hoje como o
lado negativo do desenvolvimento.
O m esm o processo pode ser visto no desenvolvim ento
da língua grega. A palavra hypocrites originariam ente signifi­
cava “um ator”, e era usada com frequência no século V a.C , em
■'Cf. “The Dynamics of Heresy in a Profession”, de Paul Root W o l pe, Social Sr.ence
and Medicine, v.39, p. 1133-1148, 1994; Schism and Heresy in the Developnient oí
O rthodox M edicine: T he Threat to Medicai Hegemony", de R. Kenneth ÍONES. Social
Science and Medicine, v. 58, p. 703-712, 2004.
" M a r t in , Brian. Dissent and Heresy in Medicine: M odels, M ethods, and Straregics.
Social Science and Medicine, v. 58, p. 713-725, 2004.
1' [N T] Todas as acepções foram extraídas do Dicionário Houaus da Ungiiaportuguesa.
referência a determinado ator que tinha papel de destaque num drama."
C om o passar do tem po, porém , a palavra desenvolveu gradualm ente
um significado mais som brio: alguém que pretendia ser o que não
era — em outras palavras, um m entiroso, ou o que hoje cham am os
de “hipócrita”. U m a palavra originariam ente neutra adquiriu, assim,
um sentido fortem ente negativo.
U m a m udança mais com plexa de significado é verifica­
da na palavra grega hairesis, da qual deriva o term o “heresia”.
O riginalm ente, essa palavra significa “um ato de escolha”; m as,
com o passar do tem po, desenvolveu gradualm ente os sentidos es­
tendidos de “escolha”, “um curso preferido de ação”, “um a escola de
p en sam e n to ” e “um a seita filosófica ou religiosa”.s-! Por exem plo,
o estoicism o é m uitas vezes referido com o um a hairesis (ou seja,
um a “escola de pensam ento”) pelos escritores gregos do final do
período clássico, com o foram as várias escolas m édicas da época.
Josefo, o historiador ju d eu do século I, refere-se aos saduceus, fari­
seus e essênios com o exem plos de haireses, pelo qual ele quer dizer
“p artid o s”, “escolas” ou “agrupam entos”.34D e m odo nenhum , Josefo
insinua que algum desses grupos é não ortodoxo; ele sim plesm ente
observa que eles constituem grupos separados, identificáveis d en ­
tro do judaísm o. O term o grego hairesis é claram ente entendido
com o um term o neutro, não pejorativo, não im plicando louvor nem
crítica; ele se refere a um grupo de pessoas que têm visões com uns.
O term o é descritivo, não avaliativo.
E nesse sentido que o termo grego hairesis é usado no NT. Se a
palavra tem quaisquer associações negativas nesse período, isso parece
estar relacionado ao divisionismo social e à rivalidade intelectual que
tais escolas de pensam ento às vezes criavam. A formação de facções era
S2Zerba, Michelle. M edea Hypokrites. Arethusa v. 35, p. 315-337,2002.
8-’Runia, David T. Philo of Alexandria and the Greek Hairesis-M odel. Vigiliae
Chris/ianae, v. 53, p. 117-147, 1999. O plural de hairesis é haireses.
S4J o sefo . Antiguidadesjudaicas, 13.171.
As origens da ideia de heresia ]
vista claramente como uma ameaça à unidade das comunidades cristãs.'05
Contudo, nesse período, não há nenhum a sugestão de que uma “facção”ou
“grupo” seja em si perigoso ou tenha a capacidade subversiva ou destrutiva
que os escritores cristãos costumavam associar a “heresia”. A preocupação
é que a divisão em facções destrói a unidade cristã e encoraja a rivalidade
e a ambição pessoal. O que está em causa não é o aparecimento de “gru­
pos” ou “partidos”, mas as conseqüências negativas dessa ocorrência para a
unidade das igrejas, cujos líderes administram mal essa ocorrência.
Esse ponto ficou obscurecido por traduções influentes do N T
que criaram a im pressão de que a heresia era um problem a rotineiro
para as com unidades cristãs do século I. A mais sigm ficante das
prim eiras traduções inglesas do N T foi publicada em 1526, por
W illiam T yndale (c. 1494-1536). Tvndale dem onstrou um a com ­
petência lingüística e um a perspicácia sociológica que estavam à
frente de seu tem po. Ele traduziu o term o grego hairesis por “seita”,
com isso expressando precisam ente suas tendências à facção e fis­
são.86 C ontudo, a im ensam ente influente Versão do Rei Tiago, de
1611, m uitas vezes conhecida com o Versão A utorizada, e louvada
por sua precisão na tradução, habitualm ente traduziu o m esm o ter­
mo grego por “heresia”, criando, assim , a percepção historicam ente
incorreta de que o fenôm eno posterior que passou a ser conhecido
por esse nom e já estava presente no próprio NT. Para ilustrar a
im portância dessa questão, vam os com parar a tradução de Tyndale
com a da Versão do R ei Tiago (Versão K ing Jam es) de 2Pedro 2.1,
com a ortografia inglesa original encontrada nessas fontes:
"C f. Secular and Christian Leadershíp in Corinth: A Soao-Historical and Exegetical
ifudy o f 1 Corinthians 1—6, de A ndrew D. C.LARKE, Leiden: Brill, 1993. Em bora
íü sim patize com os pontos levantados por Craig Blomberg, eles se resum em a
j.ma dem onstração das preocupações do N T sobre o im pacto negativo do falso
ensinam ento, em vez de apresentar um a ideia mais específica (e posterior) de
-eresia. V. “T he N ew Testam cnt D efinition of H eresy (or W h en D o Jesus and
” e Apostles Really G et M ad?)”, de Craig L. BLOMBF.RG,Journa! o fthí Evangélica!
- híchgical Society, v. 45, p. 59-72, 2002.
:T. . a tradução de Tyndale de lC oríntios 11.19; Gálatas 5.20: 2Pedro 2.1. Em
à :.: s 24.14, Tyndale traduziu o termo grego haeresis por ‘‘heresia".
[
[ ]
Tyndale (1526): "Ther shal be falce teachers amonge you: -zuich
prevely shal! brynge in d am nabk sectes even denyinge the Lorde”.
( “H averá falsos mestres entre vós: que privadam ente trarão seitas
condenáveis, até mesmo negando o Senhor' trad. livre )
R ei Tiago (1611): “There shaü be false teachers am ong you, who
p r i v i l f 1shal! bring in damnable heresies, even denying the Lord".
( “H averá falsos mestres entre vós, que secretamente trarão heresias
condenáveis, até mesmo negando o Senhor”trad. hvre~.)
A heresia pode não ter surgido como um assunto significante no
cristianismo apostólico, embora haja sinais claros do aparecimento de
visões que mais tarde seriam consideradas heréticas. Tais ideias podem
ter se originado durante a era apostólica; a natureza herética delas surgiu
apenas durante o século II. Ao longo desse período formativo, os escri­
tores cristãos desenvolveram um sentido m uito específico do term o hae-
resis (a ortografia latina do hairesis de trabalho grego). Ele já não tinha
o sentido neutro de um a opção intelectual ou de um a escola de pensa­
mento. O term o começou a desenvolver acepções fortem ente negativas,
designando aqueles cujas visões os forçaram a se retirar da igreja ou dela
serem expulsos.ss Com o enfatizamos, algumas dessas visões eram co­
nhecidas, frequentem ente em formas primitivas, pelos escritores do NT.
O julgamento de que tais visões eram heréticas — em vez de m era­
m ente inadequadas ou inaceitáveis — reflete a situação eclesiástica do
século II, não do século I, especialmente na igreja romana. Haeresis
designava agora uma “escolha”, no sentido de preferir ideias teológicas
especulativas particulares (como aquelas cujo surgim ento foi observado
s'E m inglês antigo a palavra “privilv” (Tyndale: “prevely”) significa “privadamente" ou
“secretamente”. Sobre os debates acerca dessas clássicas traduções inglesas da Bíblia e
o impacto delas sobre a formação da língua inglesa, v. William Tyndale: A Biography, de
David D ajMKLL, New Haven: Yale Univ. Press, 1994, p. 83-150; In the Beginning: The
Story o fthe KingJames Bible, dc Alister M cG rath, New York: Doubleday, 2001.
8SNüRRIS, Richard. Heresy and Orthodoxy in the Late Second Century. Union
Heminary Quarferly Revieiued, v. 52, p. 43059, 1998.
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Alister mcgrath heresia

  • 1. ■T m » i W~£T-77-'m • * 11 1 ‘d m " Wv * / • •« - I . , V--.J I .- . ‘ - . / UMA H ISTO RIA EM DEFESA DA VERDADE Alíster McGrath PREFÁCIO DE R l C K W A R R E N hagnos
  • 2. UMA HISTORIA EM DEFESA DA VERDADE heresia Alister McGrath Digitalizado por: jolosa
  • 3. © 2009 bv Alister McGrath Published by arrangement with Harper One, a division of Harper Collins Publishers. Portuguese edition © 2014 by Editora Hagnos Ltda Ali rights reserved. Tradução José Carlos Siqueira Revisão Simone Granconalo Josemar de Souza Pinto Capa Maquinaria Studio Diagramação Fabrkio Galego 1" edição - Junho de 2014 Editor Juan Carlos M artinez Coordenador de produção Mauro W. Terrcnnii Impressão e acabamento Imprensa a'a Fé Todo? os direitos desta edição reservados para: Editora Hagnos Av. jacinto Túlio, 27 04815-160’- São Paulo - SP -Tcl. (11) 5668-5668 hagnos@hagnos.com.br - www.hagnos.com.br Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) M cGrath, Alister Heresia em defesa da fé / Alister M cGrath ; [tradução José Carlos Siqueira]. — São Paulo : Hagnos, 2014. Titulo original: Hcresv : a historv of defending the truth. Bibliografia. ISBN 978-85-7742-118-3 1. Apologctica 2. Heresias cristãs I. Título. 13-01944 CDD-273 índices para catálogo sistemático: 1. Heresias: História da Igreja: Cristianismo 273 2. Heresiologia ; Cristianismo 273
  • 4. Sumário Prefacia.....................................................................5 Introdução Nosso caso de amor com a heresia................ 7 Parte I 0 que é heresia?..................................................... 23 1 - A fé, os credos e o evangelho cristão...........25 2 - As origens da ideia de h e re s ia .................45 Parte II As raízes da heresia.............................................. 55 3 - Diversidade: o pano de fundo da heresia prim itiva ...............................................57 4 - A formação inicial da h eresia................. 79 5 - Existe um a “essência” da heresia?............ 105 Parte III As heresias clássicas do cristianismo............. 127 6 - As primeiras heresias clássicas: ebionismo, docetismo, valentianismo 129
  • 5. 7 - As heresias clássicas tardias: arianismo, donatismo, pelagianismo 171 Parte IV O impacto duradouro da heresia .................... 215 8 - M otivações culturais e intelectuais da heresia .............................. 217 9 - Ortodoxia, heresia e poder......................... 243 10 - A heresia e a visão islâmica do cristianism o...............................275 Conclusão O futuro da heresia................................................283 índice rcmissivo básico.........................................289
  • 6. Prefácio o século X V III, o filósofo, autor e es- í tadista irlandês Edm und Burke disse m uito bem: “Aqueles que ignoram a história estão destinados a repeti-la”. E por isso que este livro é tão imprescindível. Escrita por outro grande fi­ lósofo, autor e teólogo irlandês — o meu amigo Alister M cG rath — , esta obra m ostra de forma brilhante por que não podemos ignorar as lições da história da igreja. Cento e cinqüenta anos mais tarde, George Santayana retomou as palavras de Burke em seu livro A vida da razão: “Aqueles que não podem recordar o passado estão condenados a repeti-lo”. Em nenhum outro lugar esse princípio tica mais óbvio do que nas heresias históricas da fé cristã. O fato de a maioria dos crentes ter pouco ou nenhum conhecimento da história da igreja impede-os de reconhecer os erros do passado, que reaparecem em cena após já terem sido refutados e rejeitados pelas antigas gerações de cristãos ortodoxos.
  • 7. Sabemos que a verdade é imutável e eterna. M esm o isso sendo verdadeiro, não é algo novo. M as muitas m entiras tam bém não são no­ vas. Em Eclesiastes 1.9 Salomão adverte: 0 quefo i é o que há de ser; e o que se fez, isso se tornará afazer; nada há, pois, novo debaixo do sol (ARA). O que se passa num a geração, no final das contas, volta a apare­ cer em outra geração. O nom e ou rótulo da heresia pode mudar, mas provavelm ente o erro é o mesmo com etido m uitas e m uitas vezes nos últim os dois m il anos. Por exemplo, não há nada de absolutam ente novo sobre a filosofia da N ew Age [Nova Era], A N ew Age nada mais é do que velhas mentiras em nova roupagem. A crença de que se é Deus (ou poderia ser) é tão velha quanto o Éden. Essa foi a prim eira tentação. Este é um livro de extrema importância em nossos dias, especial­ m ente porque a mídia não considera a ortodoxia digna de cobertura. Precisamos dar às pessoas os instrumentos do conhecimento histórico que elas precisam para saber que os modismos teológicos e os atuais desafios à nossa fé são meramente heresias regurgitadas do passado. Agradeço a Deus por Alister M cG rath. Você tam bém o fará quandcTacabar de ler este livro. Suas ideias e a sua escrita são claras, convincentes e abrangentes. Não leia sim plesm ente este livro. Fortaleça sua igreja, divulgan­ do-o a outros. Dr. R ick Warren Igreja Saddleback Lake Forest, Califórnia, E U A
  • 8. Nosso caso de amor cc™. a heresia N unca houve tanto interesse voltado para o que relaciona a heresia. Antigas he­ resias, que, pelas primeiras gerações, eram vistas como obscuras e perigosas, são hoje sàlpiçadas com pó de estrela. A atração pelo que é proibido na religião parece mais forte do que nunca. Geoffrey Chaucer sagazmente observou lá no século XIV: “Proíbam -nos um a coisa, e nós choramos por ela”.' Para muitos indivíduos religiosamente alienados, as heresias são vistas hoje como declarações cora­ josas e ousadas de liberdade espiritual a serem va­ lorizadas, em vez de evitadas.2As heresias seriam as destemidas perdedoras nas antigas batalhas pela ortodoxia, derrotadas pelo poder bruto do siste­ ma religioso. E, um a vez que a história é escrita 1 C h a u c e h , Geoffrey. Prólogo do conto da mulher d e Bath, Os contos de Cantuána (The Canlerbury Talen. Tradução Paulo Vizioli. TA Queiroz Editores, s.d. 2 H e n r y , Patrick. W hy Is Contem porarv Scholarship So Enam ored of Ancient Heresies? In: L!~n'GSTOk, E. A. (Org.). Proceedings o f the 8th Internatim al Conference on Patristic Studies. Oxford: Pergamon Press, 1980, p. 123-126.
  • 9. [ Heresia pelos vencedores, as heresias têm estado injustam ente em desvantagem, e suas virtudes espirituais e intelectuais, abafadas por seus inimigos. A reabilitação das ideias heréticas é vista hoje como um a justa correção das injustiças do passado, perm itindo o renascimento das versões supri­ midas do cristianismo, mais sintonizadas com a cultura contem porânea do que a ortodoxia tradicional. A heresia agora é moda! E stá claro que houve um a m udança no am biente cultural, le­ vando a um a nova m aneira de ver e avaliar a heresia. O historiador da cultura, Peter Gay, da U niversidade de Yale, escreveu sobre a “atração da heresia” — um a intrigante frase de eieito que indica um desejo devastador e sedutor de subverter, ou no m ínim o desafiar, as expec­ tativas culturais convencionais.’ A arte m oderna — ele argum enta — é desse m odo caracterizada por um desejo de ofender a tradição. As insígnias de honra do m ovim ento foram , assim, a perseguição, a acusação e o pavor que ele evocava. Todas as revoluções exigem um inim igo. Nesse caso, o inim igo é um a ortodoxia que seria ao m esm o tem po estúpida,e estupidificante, suprim indo as cham as vitais da originalidade e criatividade hum anas. A titudes como essas têm se tornado profundam ente enraizadas na cultura ocidental contem porânea. A heresia é radical e inovadora, enquanto a ortodoxia é prosaica e reacionária. Com o observou com muita perspicácia o escritor judeu W ill H erberg (1901-1977), no auge da revolta norte-am ericana contra Deus, nos anos 1960, m om ento em que a ortodoxia religiosa parecia estar esgotada e desvitalizada, enquan­ to a heresia parecia transpirar energia intelectual e criatividade cultural: “H oje, as pessoas se vangloriam avidamente de serem hereges, esperan­ do com isso se mostrarem interessantes; pois o que significa ser um he- rege, senão ter m ente original, ser um hom em que pensa por si mesmo e rejeita credos e dogmas?”4 3 Gay, Peter. Modernism: The Lurc o f Heresy from Baudelmrc to Beckett and Beyond. New York: W . W . Norton, 2008. 4 H e r b e r t , W ill. Faith Enacíed as History: Essays in Bih/ical Theology. Philadclphia: W estm inster Press, 1976, p. 170-171.
  • 10. [ Introdução ] N ão se pode m enosprezar a torça das palavras de H erberg. Q uando a ortodoxia religiosa é vista como m oribunda ou opressora, a atração das religiões alternativas — inclusive a rejeição por atacado da religião — cresce em intensidade. Na cultura ocidental, especialmente durante o século XIX, a onda do interesse pelo ateísmo c mais uma m edi­ da da desilusão com a cultura e do desencanto com a ortodoxia religiosa. O surgim ento recente do "novo ateísmo' indica que essa interpretação das coisas continua im portante no Ocidente neste início de século X X I.’ N o entanto, a atração da heresia na cultura ocidental contem ­ porânea ultrapassa qualquer sentim ento popular, ainda que volúvel, das irreparáveis inadequações ou insuficiências m orais das ortodoxias religiosas. A arraigada suspeita pós-m oderna da influência corrosiva do poder m uitas vezes perm eia, de form a sublim inar, as discussões contem porâneas sobre a heresia. Todos sabem que a história é escrita pelos vencedores. A “ortodoxia” nada mais seria do que um a heresia que por acaso venceu — e prontam ente tentou suprim ir seus rivais e silenciar suas vozes. Essa era a tese desenvolvida pelo erudito alemão W alter Bauer (1877-1960), para quem a mais prim itiva e autêntica form a da fé cristã era provavelm ente a herética, não a ortodoxa. A ortodoxia teria sido um desenvolvim ento posterior — sugere ele — que tentou anular os tipos de cristianism o que no princípio eram aceitos com o autênticos.1'A obra de Bauer foi publicada originaria- m ente em alemão, em 1934, e despertou pouca atenção. E m 1971, ela foi finalm ente traduzida para o inglês, num a época em que a atm osfera cultural havia passado decisivam ente do m odernism o dos ' A expressão “novo ateísmo” é usada com retercncia a um grupo de escritos surgidos em 2004-2007, csp. em The E nd ofFaith: Re/igiou, Terror, and the Future ofReason, de Sam HaRRIS, New York: W . W. N orton & Co., 2004; Breaking the SpelL Religion as a Natural Phenomerwn, de Daniel C. D en n et, New York: Viking, 2006; The God Deliision, dc Richard D a w k j n s , Boston: Houghton M ifílin Co., 2006; G odlsNot Great:How Religion Poisons Everything, de Christopher H itch en , New York: Twelve, 2007. " Para a edição alemã original, v., de W alter Bauer, Rechtglãubigkeit and Ketzerei i/n ãltesten Christentum (Tttbingen: M ohr, 1934). Para uma tradução em língua inglesa mais influente c muito posterior, v. Orthodoxy and Heresy in Earhest Christianity, de W alter B a u e r , Philadelphia: Fortress Press, 1971.
  • 11. [ He='C?:ó ] anos 1930 para o pós-m odernism o do final da década de 1960. As ideias de Bauer passam então a ecoar as desconfianças e os valores de um a cultura cada vez mais antiautoritária. O livro logo se tornou um talism ã para os críticos pós-m odernos da ortodoxia. A tese de Bauer sugere que a heresia é, em essência, um a ortodoxia que foi suprim ida por quem tinha poder e influência no m undo cristão — sobretudo, a igreja dom inante de Roma. Devemos então reconhecer a existência de um grupo de “cristianidades perdidas ou suprim idas”, que foi reprimido e silenciado pelos que desejavam fazer valer as pró­ prias ideias, como a ortodoxia.7Nessa visão, a distinção entre heresia e ortodoxia seria arbitrária, um a questão de acaso histórico. A ortodoxia designa as ideias que venceram, e a heresia, as que perderam. A autorida­ de cultural desse ponto de vista é tal que precisa de um exame detalhado, especialmente em relação às conexões entre ortodoxia, heresia e poder. Exploraremos esses temas ao longo deste livro. Outros pensadores, no entanto, foram ainda mais longe. Para eles, a ortodoxia não era apenas um conjunto de ideias que pre­ dominou por meios duvidosos. Era a invenção deliberada de tais ideias, com o objetivo de assegurar a base do poder religioso da igreja cristã no Império Romano. Esse é um dos temas dominantes do gran­ de sucesso de Dan Brown, O código Da Vinci, publicado em 2003, e que esteve no topo da lista dos best-sellers em todo o Ocidente duran­ te um ano.8Seu fio narrativo foi influenciado por um a teoria altamente especulatiya levantada em 1982 por M ichael Baigent, Richard Leigh e H erny Lincoln.9Com base no que só pode ser descrito como a mais frágil evidência histórica, na obra Sangue Sagrado, Santo Gral, esses escritores sugerem que Jesus de Nazaré casou-se com M aria M adalena e que eles ■C f. E hrm an , D . Bart. Lost Chnstianittes: The Battlesfor Scripture andFaitbs WeNe-ver Knew. New York: Oxford University Press, 2003, p. 163-180. 8 B r o w n , D an. The D a Vinci Code: A Novel. [O código D a V inci: um rom ance], N ew York: D oubleday, 2003. O significativo subtítulo foi adicionado em edições posteriores. ' Ba ig en t, Michael; L fjgii, Richard; L incoln Henry. Holy Grail. New York: Delacorte Press, 1982.
  • 12. [ Introdução ] tiveram um filho. O livro mostra as supostas tentativas feitas pela igreja católica para ocultar, desde então, essa linhagem. O livro de Brown ficcio- naliza essa teoria, chegando inclusive a incluir um personagem chamado “sir Leigh Teabing”, em alusão tanto a Leigh quanto a Baigent (“Teabing” é um anagrama de “Baigent”).'-- A im portância do romance de Brown para o entendim ento das pessoas sobre as origens e o significado da heresia pode ser vista na afirmação confiante de seu personagem Teabing: “quase tudo o que nossos pais nos ensinaram a respeito de Cristo é talso”. Jesus de Nazaré nunca foi considerado divino pelos cristãos — Teabing declara — até o Concilio de Niceia, em 325, quando o assunto toi levado à votação. E só foi aprovado com dificuldade. O personagem de Brown, a crip- tologista Sophie Neveu, fica chocada com estas palavras: “Não estou a perceber. A divindade de Jesus?” — M in h a querida — disse Teabing —, até aquele momento da história, Jesus tinha sido visto pelos seus seguidores como um projeta m ortal [...] um grande homem, e.poderoso, mas apesar de tudo um homem. Um mortal. — N ão como o Filho de D eus? — E xatam ente. 0 estabelecimento de Jesus como "Filho de D eus” fo i oficialmente proposto e ■votado no Concilio de Niceia. — Espere um momento. E stá a. dizer-m e que a divindade de Jesus resultou de um a votação ? — E bastante renhida, p o r sin a l — respondeu Teabing. [tra­ dução livre]11 lLIEm 2006, Leigh e Baigent (mas não Lincoln) processaram Brown. sem sucesso, na Suprema Corte de Londres, Argumentando que, neste c em outras momentos, ele tinha violado os direitos autorais deles. A publicação relacionava-se com os que tinham inventado tais ideias e, portanto, assegurava os seus direitos de propriedade intelectual. 11B rown, Dan. O código Da Vinci, p. 233 [tradução livre].
  • 13. i -ic-i e.-ia I A risível imprecisão desse diálogo (foi uma votação por maioria, por exemplo) não é o mais grave.12Um a suposição translorma-se na realidade, na plausibilidade dada pela sua ressonância no ambiente cultural. 0 código Da Vinci declara que a divindade de Cristo foi um a fabrica­ ção, um estratagema deliberado por parte de uma igreja corrupta determ i­ nada a assegurar o seu status social por quaisquer meios e a qualquer preço. Teabing segue argumentando que tudo não passou de um movimento cínico e astuto por parte do imperador Constantino (274-337), cuja data de conversão ao cristianismo é incerta. C onstantino decretou que o cristianism o se tornasse a crença oficial do seu império. O que poderia ser mais natural, sugere Teabing, do que C onstantino elevar Jesus de um simples m ortal ao eterno Filho de Deus? Constantino sabia que, para reescrever os livros de história, preci­ sava de um golpe de ousadia. Foi daqui que nasceu o momento mais profundo da história, do cristianismo. [...] C onstantino encomendou e financiou um a nova Bíblia, que om itia os evangelhos que fa la ­ vam das características hum anas de Cristo e dava destaque aos que fa zia m dele um deus. Os evangelhos mais antigos foram ban idos, arrebanhados e queimados. [...] F elizm ente [...] alguns dos evangelhos que Constantino tentou er­ radicar conseguiram sobreviver, [eforam encontrados] em 1945, em N a g H am m adi E gito].’3 12 V., p. ex., E h r m a n, Bart D. Truth and Fiction m the Da Vinci Cocle: A Historian Reveah What !!', Rea/ly Knozv About Jesus, M ary Magdalene, and Conslantine (O xíord: O xford Univ. Press, 2004, p. 23-4): “A visão que Teabing postula está equivocada cm todos os pontos principais: os cristãos antes de N iceia já haviam aceitado Jesus como divino. O s Evangelhos do N T 0 retratam com o hum ano tanto quanto divino; os evangelhos que não foram incluídos no N T o retratam como divino, tanto quanto, ou até mais, do que com o hum ano”. Os com entários de E hrm an são ainda mais significativos, dada a sua hostilidade diante das narrativas cristãs tradicionais da ortodoxia e da heresia. u B rown D an. O código Da Vinci, p. 234.
  • 14. Teabing declara que, felizmente para os historiadores, Constantino não conseguiu erradicar todos os evangelhos concorrentes. Sabemos ago­ ra, ele diz, que a Bíblia moderna foi “compilada por indivíduos que tinham um objectivo político: promover a divindade do hom em Jesus Cristo e usar a influência dele para reforçar a própria base de poder”. A narrativa de Brown é um exemplo ilum inador da maneira com que a ficção m olda a percepção da realidade. Sua equação de “poder” e “ortodoxia” tornou-se de tal m odo influente que passou a ser a opção de falha para muitos hoje. Veremos que ela se abre a sérios desafios, par­ ticularmente porque a ideia da ortodoxia começou a surgir dentro das comunidades cristãs quando ainda eram grupos marginais nas franjas da cultura imperial romana. A realidade é m uito mais complexa do que a narrativa estereotipada da história cristã feita por Brown — além de ser mais interessante e intelectualm ente satisfatória. A brilhante obra de ficção de Brown adula a desconfiança pós-mo- derna do poder e, em especial, o seu privilégio de certas ideias favoráveis. D a mesma forma que a série de televisão Arquivo X , encerrada em 2002, O código Da Vinci, com a sua engenhosa construção histórica, coincidiu com uma era de desconfiança generalizada nos governantes, interesse em teorias da conspiração e na espiritualidade (em vez de religião). M as de muitas formas ele também dá o contexto para discussões sobre a heresia. Para muitos, a heresia é vista hoje como uma vítima teológica, um conjunto de ideias nobres brutalmente esmagado e indevidamente supri­ mido pelas ortodoxias dominantes, e então apresentadas como se fossem desviantes, desonestas ou diabólicas. Nessa narrativa romantizada das coisas, a heresia é retratada como uma ilha de livre pensamento no meio de um letárgico oceano de ortodoxia irrefletida, impingida mais pelo poder eclesiástico despido, e não por fundações intelectuais robustas. Essa é certamente a narrativa da heresia que está firmemente embutida em O código Da Vinci de Brown. O enredo de Brown gira em torno das perenes tentativas da igreja pós-constantiniana de cuidar, às vezes violentamente, da sua proclamação do evangelho, escondendo a verdade que a subverteria. A descoberta dessa verdade suprimida ofereceria, desse modo, um
  • 15. [ Heresia equivalente pós-moderno da indagação clássica sobre o Santo Graal. O possuidor dessa verdade poderia destruir o perpetrador de uma das gran­ des decepções da igreja católica de todos os tempos. Naturalmente, tudo não passa de uma fantasia — contudo, é uma fantasia que angaria muito apoio e atenção popular, e é em si mesma um importante indicador das preocupações e agendas culturais modernas. A heresia hoje tem uma nova atração, pelo surgimento de sua as­ sociação com a sedução do conhecimento oculto, as transgressões dos li­ mites do sagrado e o comer do fruto proibido/' A Bíblia cristã inicia-se com duas narrativas de transgressão — o comer do fruto proibido (G n 3) e a construção da torre de Babel (Gn 11). De modo significativo, ambas representam desafio aos limites fixados por Deus para a humanidade. Os limites, dizem hoje, são construídos por aqueles que têm o interesse de preservar os direitos adquiridos; ao transgredi-los, estabelecemos a nossa identidade e autoridade, e confrontamos e desafiamos uma ins­ tituição conservadora. Como Prometeu roubando o fogo dos deuses, a transgressão tem a ver com desafiar o poder e conquistar a liberdade. O proibido agora se tornou enobrecido e feito um objeto legítimo de desejo. A heresia é um Prometeu libertador da humanidade da escravidão teocrá- tica. O resultado dessa mudança significativa na atmosfera cultural é óbvio. A heresia não pode ser vista agora simplesmente como um problema histó­ rico ou teológico acadêmico. Ela se tornou uma questão cultural. Por quê? U m fator im portante aqui é a ênfase crescente na esco­ lha. de um a característica definidora da existência hum ana autêntica. Veremos aqui que o term o grego hairesis, que deu origem ao nosso term o “heresia”, tem fortes associações com “escolher” ou “escolha”. Escolher é expressar a noss£> liberdade, afirmar a nossa capacidade de criar e con­ trolar o nosso mundo. Esse evento está diretam ente associado à disponibilidade de al­ ternativas religiosas. Não é acidental ter a atração da heresia aum entado de m odo significativo na sociedade que se desenvolvia rapidam ente na 14Cl. Segai., A. Robert (Ed.). The AHure o f Gnosticism: The Gnostic Expenence in Jungian Psycholo^y and Contemporary Cultvre. Chicago: Open Court, 1995. r 14 ]
  • 16. Europa do século XII. As pessoas ficavam cada vez mais conscientes da escolha disponível em bens materiais e educação, e esses horizontes mais amplos foram refletidos em suas atitudes diante da religião. O m o­ nopólio do catolicismo medieval foi corroído quando a laicidade passou a explorar opções religiosas alternativas como aquelas oferecidas pelos cátaros e valdenses.15Aqui, tanto quanto em qualquer outro lugar, a res­ posta da igreja institucional a essa ameaça tom ou a forma da obrigação à uniformidade; desse modo, negando aos indivíduos o elemento crucial da escolha. Já o período m oderno viu tanto a elevação da diversidade religiosa na maior parte do Ocidente quanto a erosão da capacidade legal da Igreja em forçar a uniformidade. O sociólogo Peter Berger extraiu as implicações desse evento em seu marcante Heretical Imperative [Imperativo herético] (1979). Nele, Berger afirma que, nas culturas primitivas tradicionais, os indivíduos são expostos a apenas um único conjunto de crenças fundamentais. Cada cul­ tura é baseada em, e até certo ponto definida por, um “m ito”— isto é, uma narrativa fundadora e legitimadora ou um conjunto de crenças. Desafiar essa mitologia fundadora beira a heresia, e tradicionalmente levaria à m orte ou banimento. A inda agora somos confrontados com um excesso de religiões, filosofias e paradigmas. Não existe um a metanarrativa única, fundam ental e dominante. Somos livres para escolher, pegar e misturar — o que, para Berger, é a essência da heresia. E m questão de religião, como de fa to em outras áreas da vida e pensamento humanos, isso significa que o indivíduo moderno tem diante de si não somente a oportunidade, mas a necessidade defazer escolhas sobre as suas crenças. Esse fato constitui o im perativo heré­ tico na situação contemporânea. Portanto a heresia, como ocupação de tipos m arginais, e excêntricos, tornou-se um a condição m uito mais geral; na verdade, a heresia tornou-se universalizada.lp '-v. The D evils World: Heresy and Society 1100-1300, de Andrew R oa ch, London: Longm an, 2005. Peter L. The Heretical Imperative: Contemporary Possihilities o f Religious Affirmation. Garden City: Anchor Press, 1979, p. 30-31.
  • 17. Não nos exigem que aceitemos um a visão de m undo pré-em bala- da, mas somos capazes de criar uma visão daquilo que esteja de acordo com as nossas ideias sobre a forma que as coisas deveriam ter. A heresia diz respeito a sermos mestres do nosso universo, escolhendo o modo de ser das coisas — ou pelo menos a m aneira com que gostaríamos que elas se desenrolassem. Contudo, talvez a ultima atração da heresia em nosso tempo recaia em seu desafio à autoridade.17A ortodoxia religiosa é comparada a reivindicações de autoridade absoluta, à qual se deve resistir e subverter em nome da liber­ dade.A heresia é vista, assim, como a subversão ao autoritarismo, oferecendo a libertação a seus seguidores. De uma perspectiva histórica, é praticamente impossível levar essa história a sério, especialmente como algumas heresias foram, no mínimo, tão autoritárias quanto as suas rivais ortodoxas. A crença de que a heresia é intelectual e moralmente libertadora diz muito mais sobre o clima cultural de hoje no Ocidente do que sobre as realidades dos primeiros séculos da existência cristã. Mas, como permite qualquer ato de recepção cul­ tural de ideias,,a relevância para o presente de qualquer ideia antiga tem tanto a ver com o que os seres humanos contemporâneos estão buscando quanto com o que as ideias antigas têm a oferecer^ O significado da heresia não está, portanto, dentro da própria heresia, mas é antes construído dentro da relação entre a heresia original e seus intérpretes contemporâneos.18 Essa desconfiança da autoridade pode ser facilmente transferida da ortodoxia em si para as suas fundam entações bíblicas. Para alguns escritores, o cánon do N T deve ser visto como o endosso autoritário desses primeiros escritos cristãos que eram aceitáveis para a institui­ ção. Os documentos do N T são referidos como se fossem boletins de imprensa, pouco convincentes, de alguma fonte oficial projetada para esconder a verdade sobre as origens do cristianismo. Q ualquer coisa que ’ A esse respeito, v. a análise de After God: The Future o f Religion, de D on CüPlTT, London: W eidenfeld & N icolson, 1997. lsPara um a introdução ao campo da teoria da recepção, v. The Act o fReading: A Theory ofAestbetic Response, de W olfgang Iser, Baltimore: Johns Hopkins Univ. Press, 1978; Crossing Borders: Reception Theory, Poststructuralism, Deeonstruction, de Robert C. H o lu b , M adison: Univ. ofW isconsin Press, 1992.
  • 18. [ Introdução ] se assemelhe a uma versão oficial torna-se autom aticam ente suspeita. Nessa visão, textos potencialm ente subversivos — sobretudo aque­ les associados ao gnosticismo — foram reprimidos e marginalizados. O teólogo e observador cultural G arrett Green destacou a importância dessa questão: “Sob o olho suspeito da crítica (pós-m oderna), toda a fé na autoridade bíblica afi^ura-se com a forma de falsa consciência, todo texto sagrado como uma retórica sub-reptícia de poder”.1'1Para subver­ ter o autoritarism o eclesiástico é necessário m inar a autenticidade dos textos nos quais ele é baseado. A recente excitação da mídia sobre o Evangelho deJudas, em 2006, ilustra essa tendência. Isso, nos foi dito, era uma alternativa aos evan­ gelhos cristãos tradicionais, suprim ido pela igreja primitiva devido à ameaça que apresentava à sua autoridade.211Esse docum ento parecia ser um ajuste perfeito ao padrão pós-m oderno de heresia — um a narrativa proibida das origens do cristianismo, deliberadamente escondida pelos angustiados líderes da igreja, e que foi descoberto por corajosos jorna­ listas determ inados a revelar a verdade. U m im portante jornal britânico declarou que essa era a “maior descoberta arqueológica de todos os tem ­ pos”, que representava um a “ameaça a 2.000 anos de ensino cristão”.21 A realidade parece ter sido bem mais banal. O Evangelho de Judas é um docum ento relativam ente tardio, originário quase certa­ m ente do interior de um a seita m arginalizada dentro do cristianism o, 19G rekn, Garrett. Theo/ogy, Hermeneuti.es and lmagmation: The Case o fInterpretation at the E nd ofModernity. Cambridge: Cambridge Univ. Press, 2000, p. 20. jnPara obras representativas sobre esse debate, v. The ThirteenthApostle: What the Cospe/ o fJudas Realfa Says, dc April D. Dk C onick, London: Continuum , 2007; The Lost Gospel of Judas Iscariot: A N ew Look at Betrayer and Betrayed, de Bart D. E hrm an, Oxford: Oxtord Univ. Press, 2006); ReadingJudas: The Gospel o fJudas and the Shaping o f Christianity, de Elaine H . P ag els; Karcn I... Kinc, New York: Viking, 2007); Judas and the Gospel ofJesus: Have We Missed the TruthAbout Christianity?, de N .T. WlUCHT, Grand Rapids: Baker Books, 2006. n M ail on Sunday. London, 12 de março, 2006. Para uma discussão completa sobre a mídia falaciosa e o exagero da importância desse documento, v. The Gospel o fJudas: Rewriting Early Christianity, de Simon J G a tije rc o lk , Oxford: Oxford Univ. Press, 2007, p. 132-149. ' ’
  • 19. a qual estava convencida de que todo o resto tinha interpretado Jesus de N azaré de m odo seriam ente equivocado. Naquele tem po, na litera­ tura aceita como autorizada pelos cristãos, não havia nenhum a prova docum ental que amparasse o ponto que desejavam provar (inclusive algumas obras que nunca fizeram isso no cânon do N T ). A situa­ ção foi rem ediada quando eles mesmos escreveram o seu evangelho. Som ente Judas realmente entendeu Jesus, assim dizem; os outros dis­ cípulos interpretaram -no erroneam ente e levaram adiante narrativas desesperadam ente confusas do seu significado. O Evangelho deJudas apresenta Jesus passando para Judas um co­ nhecimento secreto por meio de conversas pessoais, das quais os outros discípulos eram excluídos. Essa retórica da exclusão leva a formular o se­ guinte debate: somente Judas foi incluído no círculo mágico dos iniciados, aos quais os verdadeiros segredos do reino foram confiados. O Evangelho deJudas retratajesus de Nazaré na forma de um guru espiritual semelhante aos mestres gnósticos dos séculos II e III, embora tendo pouca relação com a descrição de Jesus encontrada nos Evangelhos Sinóticos. O cristianismo torna-se um tipo de culto de mistério baseado numa imensa burocracia que governa o cosmo; e Jesus é retratado explicando-o ajudas de um jeito prodigioso e inquietante. É difícil não chegar à conclusão de que Jesus de Nazaré foi reinventado como um mestre gnóstico com ideias gnósticas. O Evangelho deJudas tem, na verdade, a capacidade de iluminar a nossa compreensão do gnosticismo a partir da metade do século, especialmente a sua muitas vezes observada relação parasitária com as visões existentes a respeito do m undo.22Essa relação, porém, não parece ter nada historica­ mente crível a nos dizer sobre as origens do cristianismo ou a identidade de Jesus de Nazaré.23E ele certamente não representa nenhum a “ameaça” significante ao cristianismo tradicional. 22Sobre esse aspecto do gnosticismo, v. Gnosticism, Judaism, and Egyptian Christianity, dc Birgcr A. P earsox, Minneapolis: Fortress Press, 1990. ziO Evangelho deJudas é representativo da forma específica de gnosticismo conhecida como setianismo. V. tb. TURNF.R, Sethian Gnosticism and the Platonic Tradition, dc John D. T urner, Louvain: Pceters, 2001.
  • 20. [ Introdução ] O Evangelho de J u d a s nem mesmo é um docum ento radical. O britânico N . T. W right, estudioso do NT, recusa a ideia difundida de que o gnosticismo era inovador, fazendo surgir um a onda de ener­ gia intelectual criativa que ameaçava varrer as ideias tradicionais.24 Se muito, W right argum enta, os gnósticos é que são mais vistos como conservadores culturais, ecoando muitos dos temas das religiões de mis­ tério da época. E m contraste, os cristãos ortodoxos “estavam desbravan­ do novos terrenos”, e ao fazê-lo, encontravam oposição. O nde alguns sugerem que os evangelhos gnósticos representam alternativas radicais aos evangelhos canônicos “conservadores”, W right afirma que a verdade é totalm ente o oposto. E a mensagem do N T a verdadeiramente radical. N o entanto, os séculos de familiaridade cultural com o cristianismo, junto com a novidade relativa de um gnosticismo redescoberto, criaram uma percepção cultural um pouco diferente. A ortodoxia religiosa tornou-se vítima de um excesso de familiaridade que cria um anseio por novidade.25 Este livro é um trabalho de síntese que procura reunir im­ portantes estudos recentes na área e explorar a relevância deles na contem poraneidade para a nossa compreensão da ideia de heresia. N ão se pretende encontrar novos caminhos em nosso entendim ento do conceito de heresia de um a forma geral, ou de qualquer heresia específi­ ca em particular. N em se trata de um a narrativa detalhada, abrangente, das muitas heresias que têm surgido dentro do cristianismo. Algumas heresias são selecionadas para um a discussão detalhada, em parte por terem por si sós um a im portância particular, e em parte por ilustrarem alguns dos princípios mais gerais que parecem estar na origem e desen­ volvimento dos m ovimentos heréticos. O aum ento da literatura acadêmica, que lança luz sobre a forma com que as heresias prim eiram ente surgiram e se desenvolveram ao longo dos séculos, contesta muitos estereótipos da heresia. Io quadro 24W r ig h t, passim . 2^Para uma reflexão sobre esse ponto, v. Orthodoxy, de G. K. Ch (New York:Jofin Lane, 1908, p. 131-2). ~
  • 21. que está emergindo dessa intensa pesquisa acadêmica do cristianismo primitivo não endossa nem a visão de alguns escritores cristãos de que a heresia é um ataque fundam entalm ente maligno à ortodoxia, nem, para aqueles que a veem como um a alternativa à ortodoxia, que a heresia era reprimida pela igreja institucional./Tentarei oferecer um a explica­ ção da heresia que leve muito em conta a m elhor erudição moderna. Ao mesmo tem po, tentarei compreender por que tantos entre os prim ei­ ros escritores cristãos mais im portantes consideraram a heresia perigosa. E pretendo fazê-lo sem dem onizar aqueles que exploraram as vias de pensam ento que, no final, se m ostraram heréticas.2" [ M as o que é heresia? A heresia pode ser vista, de um modo mais direto, sob a forma de crença cristã que, mais por acaso do que por desíg­ nio, acaba por subverter, desestabilizar ou até mesmo destruir o núcleo da fé cristã) Tanto o processo de desestabilização quanto a identificação de sua ameaça podem se estender por um longo período de tempo. U m modo de racionalizar um aspecto da fé cristã, como a identidade de Jesus de Nazaré — um aspecto que pode, de início, ser bem -vindo e aceito de um m odo geral — talvez precise, posteriorm ente, ser encerrado devido ao dano potencial que ele pode ser capaz de causar no futuro. Um a analogia pode ajudar a tornar mais clara essa ideia comple­ xa. O Partenon é largam ente considerado um a das maravilhas arqui­ tetônicas do m undo antigo. Por volta de 1885, essa chamada gloriosa construção grega clássica estava num estado avançado de decadência e precisava de restauração. Braçadeiras e vigas de ferro foram usadas para sustentar as grandes lajes do edifício de márm ore branco, origi- nariam ente extraído do vizinho m onte Pentélico. Os restauradores, entretanto, não conseguiram perceber que, com a m udança de tem ­ peratura, aquele ferro se expandia e se contraía, pressionando a cons­ trução de pedra. M ais im portante, eles tam bém falharam quando não tornaram inoxidável o ferro que ornam entava o Partenon. Q uando o 2ÈSobre uma tentativa válida de envolvimento com essa questão, v. Heresies and How to slvoidThem: Why I t Matters What Chnstians Believe, Q uash, BeX; W a RD, M ichael (Ed.), London: SPCK, 2007.
  • 22. [ Introdução ] ferro começou a sofrer corrosão, ele se expandiu, rachando as pedras que se pretendia preservar. N a verdade, apontada para salvar o edifício, a m edida acabou por acelerar a sua ruína, exigindo das gerações futu­ ras restauração ainda mais radical do que as inicialmente necessárias. A correção de erros críticos é muitas vezes cara e demorada; de qualquer modo, precisa ser feita. A heresia representa alguns modos de formular os temas nucleares da fé cristã — modos que, cedo ou tarde, a igreja reconhece serem perigosam ente inadequados ou mesmo destrutivos. O que uma geração pode bem considerar uma ortodoxia, outra geração pode descobrir tratar-se, afinal, de um a heresia. Em bora todas as tentativas dc exprimir as verdades de Deus em palavras hum anas falhem em cum prir o seu intento, algumas são muito mais seguras e confiáveis do que outras. A “ortodoxia” c a “heresia” (ou “heterodoxia” — os termos são considerados frequentepente intercam - biáveis) são mais bem observadas como a marca dos extremos de um espectro teológico. Entre essas extremidades repousam visões pouco nítidas,:; que variam do adequado, sem serem definitivas, ao questio­ nável, sem serem destrutivas. A heresia encontra-se no reino sombrio da fé; um a tentativa filhada de ortodoxia, cujas intenções terão sido provavelmente nobres, mas que, no fim, os resultados se m ostraram tão corrosivos quanto as braçadeiras de ferro de Nikolaos Baianos.2* Em bora o foco aqui seja o cristianismo, é im portante observar que o conceito de heresia tem um amplo uso fora dessa corrente religiosa. Alguns conceitos funcionalm ente equivalentes podem ser encontrados na esfera religiosa, até m esmo nas religiões orientais. " Além disso, a ideia 2'T u rn e r, I I. E. W . The Pattern o f Christian Truth: A Sindy in the Relations Between Orthodoxy and Heresy m the Early Church. London: Mowbray, 1954. Turner observa que existe uma “franja ou penum bra entre ortodoxia e heresia" (p. 79); para uma análise mais detalhada dessa imagem em relação ao desenvolvimento das doutrinas do século II, v. p. 81-94. 2g[NR] Nikolaos Baianos foi o arquiteto e arqueólogo grego que orientou a malsucedida restauração do Partenon, aqui mencionada. (N. do R.) 2'HEXDERSON, John B. The Construchon o f Orthodoxy and Heresy: Neo-Confician, lslamic, Jewish, and Earíy Christian Patterns. AJbanv: State Univ. of New York Press, 1998.
  • 23. tem tido cada vez mais aceitação em contextos seculares em referência a ideias potencialm ente perigosas ou desestabilizadoras, e abordagens que representem um a ameaça a ortodoxias dom inantes. Ademais, a heresia se estende além do reino das ideias. Por motivos que exploraremos neste volume, o debate entre heresia e ortodoxia é muito com um ente transposto para os campos social e político. Consequentem ente, qualquer discussão sobre heresia precisa envolver o lado mais sombrio desse debate — a imposição de ideias pela força, a supressão da liberdade e a violação de direitos. Esse tema foi de im portância crucial na Europa ocidental durante a Idade M édia, e adquire cada vez mais im portância no m undo islâmico de hoje. M esm o esta breve explicação da natureza da expansão da here­ sia suscita amplas questões. É possível observar dois exemplos claros. Q uem decide o que é definitivo e o que é perigoso? D e que m aneira essas decisões são tomadas? Essas são questões encontradas no núcleo deste livro, e começaremos a examiná-las im ediatam ente. U m bom ponto de partida nessa viagem de exploração é a natureza da fé cristã em si — para a qual nos voltamos agora. f ■■'CKSIS ]
  • 24. Parte I 0 que é heresia?
  • 25. A fé, os credos e o evangelho cristão causada pela pessoa de Jesus de Nazaré. Aqui está aquele que a igreja considera intelectualmente lu­ minoso, espiritualm ente persuasivo e infinitam en­ te complacente, tanto de forma coletiva quanto de forma individual. Em bora os cristãos expressem esse júbilo e maravilhamento em seus credos, eles o fazem de form a ainda mais especial em sua de­ voção e adoração. A devoção proclama que a fé cristã tem o poder de captar a imaginação, não somente persuadir a m ente, abrindo as profunde­ zas da alma hum ana para as verdades do evange­ lho. Ela m antém uma chama de entusiasmo por Jesus Cristo, a qual alimenta o ofício teológico e ao mesmo tem po questiona a sua capacidade de corresponder ao brilho de seu objeto supremo. Contudo, embora o apelo à imaginação da visão cristã de Jesus de Nazaré nunca deva ser negligencia­ do ou minimizado, continua existindo um núcleo e há um a pulsação da fé crista, ela está na pura alegria e exaltação intelectual
  • 26. [ HcrcSki 1 intelectual para a fé cristã. Em seu ensaio The Will to Believe [O desejo de crer] (1897), o célebre psicólogo William James (1842-1910) afirma que os seres humanos estão numa posição em que precisam escolher entre opções inte­ lectuais que são, nas palavras de James, “forçadas, vividas e decisivas”.30Todos nós precisamos de hipóteses de funcionamento (o termo é de James) para dar sentido à nossa experiência do mundo. Essas hipóteses de funcionamento estão muitas vezes além da prova total; conuido, elas são aceitas e influenciam porque são capazes de oferecer pontos de vista seguros e satisfatórios, a par­ tir dos quais podemos lidar com o mundo real. Seja o movimento religioso ou político, filosófico ou artístico, considera-se que um grupo de ideias, de crenças, é, em primeiro lugar, verdadeiro e, em segundo lugar, importante.31 As pessoas que usam sua m ente precisam construir e habitar mundos mentais, a partir dos quais elas diferenciam a ordem e os padrões den­ tro da experiência e dão sentido a alguns de seus mistérios e enigmas.32 Conforme o filósofo M ichael Polanyi (1891-1976) propõe, uma estrutura defensável de crenças nos permite ouvir um a melodia onde de outro modo ouviríamos apenas um ruído.3j Isso, porém , não significa dizer que o cristianism o seja sim ­ plesm ente, ou m esm o fundam entalm ente, um conjunto de ideias. Para m uitos cristãos, um a experiência de D eus repousa no centro da dinâm ica religiosa.34 Por conseguinte, essa experiência pode le­ var a formulações teológicas — “O que deveria ser uma verdade, se isso fosse um a experiência genuína de Deus?” — , mas tais formulações são, •'''JAMES, W illiam. The W ill to Believe, The Will to Believe and Other Essays in Popular Philosophy. New York: Longmans, Green, and Co., 1897, p. 1-31. 51 V., esp., Meanings ofLife de Roy Baumeister New York: Guilfor Press, 1991. >! M cG rath, Alister E . The Open Secret; A N ew Vision for Natural Theology. Oxford: Blackwell, 2008, p. 113-216. " P olanyi, Michael. Science and Reality. British Journalfo r the Philosophy o f Science, v. 18, p. 177-196, esp. p. 190-191,1967.' ’ ' ;4 Existe vasta literatura sobre o tema, como as obras: The Spiritual Nature ofM an: A Study o f Contemporary Rehgious Experience, de Alister C. H ardy, Oxford: Clarendon Press, 1980); Easter in Ordinary: Refections on Human Experience and the Kno-wledge ofG od dc Nicholas L a sh , Charlottesville: Univ. Press of Virginia, 1988; Le sens du surnaturel, de Jean B o r e u .a, (Genève: Edttions Ad Solem, 1996).
  • 27. [ A fé. 05 credos e o evangelho cnslão no final das contas, secundárias à experiência que as precipitou e moldou. D e fato, muitos argum entariam que um a experiência de Deus é irredu­ tível às formas verbais ou conceituais. O teólogo americano Stanley Hauerwas (n. 1940) é um entre mui­ tos novos escritores a enfatizar que ver no cristianismo simplesmente uma coleção de doutrinas ou declarações de credo leva a uma séria distorção do seu caráter. Antes, no cristianismo deve ser encontrado um modo distinto de vida, que se torna possível pela ação graciosa do Espírito Santo, que orienta os seus seguidores até o Pai, por meio de Jesus Cristo. Hauerwas afirma que precisamos de uma estrutura ou lentes pelas quais possamos “ver” o m undo do com portam ento humano. Isso, ele insiste, é possibilita­ do pela reflexão contínua, detalhada e vasta sobre a narrativa cristã: A tarefafu n d a m en ta l da ética cristã envolve uma tentativa de nos ajudar a ver. Porque sópodemos agir dentro do m undo quepodemos ver, e só podemos ver o m undo corretamente sendo treinados para vê-lo. N ão vamos chegar a -ver apenas olhando, mas por meio de habilidades disciplinadas desenvolvidas po r iniciação num relato.^ Desse m odo, H auerw as enfatiza a im portância da té cristã para que as coisas sejam vistas por aquilo que realm ente são, e para que essa verdadeira visão da realidade seja declarada e anunciada: “A igreja ser­ ve ao m undo dando ao m undo os meios para que ele verdadeiram ente veja a si m esm o”.36 j A fé cristã nos fornece, assim, um modo de “ver” o mundo, o que nos ajuda a dar-lhe sentido e agir dentro deleAO cristianismo faz sentido em ^ H auerwas, Stanley. T he Dem ands o f a Truthíul Story: Ethics and the Pastoral Task, Chicago Studies, v. 21, p. 59-71,1982; citação nas p. 65-66. Observações similares foram feitas anteriormente em Vision and Choice in Morality, de íris MuRDOCH. In: RAMSEY, Ian T. (Org.). Christian Ethics and Contemporary Philosophy. London: SCM Press, 1966, p. 195-218. " ’ “ H auerwas, Stanley. The Peaceable Kingdom: A Primer in Christian Ethics. Notre Dame: Univ. of Notre Dam e Press, 1983, p. 101-102.
  • 28. [ Heresia I si mesmo, e ao mesmo tempo dá sentido ao mundo.^Ele nos oferece um modo de ver as coisas que ao mesmo tempo reflete e cria a coesão. C. S. Lewis deixa isso bem claro na conclusão de seu ensaio Is Theology Poetry? [A teologia é poesia?], quando comenta: “Eu acredito no cristianismo como acredito que o sol nasceu, não somente porque o vejo, mas porque graças a ele vejo todas as outras coisas”. mais importante nesse ponto é que a fé cristã torna possível uma transformação da mente, permitindo ver as coisas de um modo novo, mais instigante e, acima de tudo, mais coerente. O cristianismo faz sentido em si mesmo; e também dá sentido a todo o resto./ Nosso modo de “ver” as coisas configura nosso comportamento perante elas. A teologia cristã tem o objetivo de dizer a verdade sobre o que ela vê — e ela vê o mundo de um modo específico: como a criação de Deus. Assim, Paulo aconselha seus leitores: Não se amoldem aopadrão deste mundo, mas transformem-se pela renovação da sua mente... (Rm 12.2, NVI). A mente hum ana não é substituída ou suplantada pela fé; ao con­ trário, ela é iluminada e revigorada pela fé. VV. fé considerada um caráter transformado do sábio, levando a um novo modo de pensar, permitindo o discernimento das camadas mais profundas da realidade, o que não é possível pela razão ou visão humanas por si sós.’8 O mundo, portanto, adquire um novo significado. E tem sido irans-significado, passando então a revelar alguma coisa além de si mesmo.39 Essa ideia da transmutação do m undo, na realidade ou no sen­ tim ento, há muito tem po tem sido associada à imagem poderosa da pedra “filosofal”. Esta possuía a capacidade para transm udar pequenas coisas em algo precioso, e foi buscada ardentem ente ao longo da Idade M édia. O utras fontes falaram de um “elixir” — um líquido derivado dessa misteriosa pedra — que tinha o poder de trazer a regeneração L f .w i s , C. S. Is Theology Poetry? In: Wal.MSUüY, Lesíev (Org.). C. S. Le-rcis Essay Collection: Faith, Christianity and the Church. London: Collins, 2000, p. 1-21. 53 V. neste ponto “Faith, Reason and the M in d of Christ", de Alark M cI x to sh . In: Reason and the Reasons o fFaith. GRIFF1THS Paul J . ; HüTTER, Reason and the Reasans o f Faith. New York: T. 8cT. Clark, 2005, p. 119-142). w M c G rath. Open Secret, p. 171-216.
  • 29. A fé. os cedos e o evangelho cristão ] física e espiritual. Em bora medieval na origem, a imagem capturou a imaginação dos escritores renascentistas.40 Seu potencial para a ex­ ploração teológica foi desenvolvido pelo poeta inglês George H erbert (1593-1633) em seu poema “O elixir”. Cristo é a pedra “filosofal” que transform a o m etal básico da existência hum ana no ouro da redenção. E sta é a pedrafam osa Que transforma tudo em ouro: Por ela que Deus toca epossui N ão pode por menos ser dito.41 H erbert assinala o poder da visão cristã sobre Deus transform an­ do nosso modo de ver as coisas. O m undo é transm udado de um metal básico em algo que Deus “toca e possui” que não pode ser “dito” — um modo mais antigo de expressar a ideia de “calcular” ou “avaliar” — de qualquer coisa menor. ; Desse modo, a fé nos oferece um ponto de vista, um par de lentes, a partir do qual e pelo qual podemos ver as coisas de um modo cristão.. O grande filósofo da ciência, N. R. Hanson (1924-1967), de Yale, aponta que o processo de observação é sempre “carregado de teoria”:vemos as coisas por lentes teóricas que nos ajudam a colocá-las em foco.4-rNum sentido, Tema explorado em Darke Hierogliphicks: Alchemy tn English Litcrature from Chaucer to the Restoration, de Staton J. LlNDEN, Lexington: Univ. Press of Kentuckv, 1996, P. 156-192. ’ 41 MlLLER, Clarence H . Christ as the Philosophers Stone in George H erbert's “The Elixir”, Notes and Quertes, v. 45, p. 39-41, 1998. H anson , N. R. Patterns o f Discovery: An Inquiry into the Conceptual Fowndations of Science. Cambridge: Cambridge Univ. Press, 1961. Hanson, desse modo, argumenta que Tyeho Brahe (que acreditava num sistema solar geocêntrico) eJohannes Kepler (partidário do modelo heliocêntrieo do sistema solar) “veem” coisas muito diferente? ao observar um imanhecer: Tycho vê o sol em movimento cruzando um horizonte estacionário, enquanto Kepler vc um horizonte cm movimento descendente expondo um sol estacionário. Para uma análise detalhada, v., de M atthias Adam, Theoriebeladenheu und Objektivitàt: Z .v Rolle von Beobachtungen in den Naturwissenschafte (Frankfurt: Ontos Verlag, 2002).
  • 30. o cristão e o secular ‘Veem” o mesmo m undo; num outro sentido, porém, eles veem algo totalm ente diferente, pois interpretam e avaliam as coisas de formas m uito diversas, Eles usam distintos pares de lentes. A fé cristã pode, dessa maneira, ser considerada, nos termos de W illiam James, uma hipótese de funcionam ento honesta e confiável, ou, nos termos de H anson, um par de lentes que nos perm ite “ver” o m undo de uma forma segura e confiável. ,■ A natureza da fé Crer em D eus é confiar em Deus. E sta não é um a definição adequada de fé, mas é um excelente ponto de partida para outras ex­ plorações. D eus é aquele em quem se pode confiar em meio à tur­ bulência, confusão e am bigüidades da vida. C onfiar em alguém leva ao com prom etim ento. Esse é um padrão encontrado ao longo das narrativas de cham ado e resposta que encontram os na tradição cristã. U m dos grandes exemplos de fé é o patriarca Abraão. Abraão confiou em Deus, deixou a casa de sua família e seguiu para um a terra distante (G n 15,17). Crer em D eus é acreditar que D eus é digno de confiança, o que nos leva a confiar nele. C rer em D eus vai m uito além da mera aceitação efetiva da existência de Deus; é declarar que nesse D eus se pode confiar. Esse é um tem a fam iliar e foi explorado pelos mais im ­ portantes escritores cristãos ao longo das eras,45 De modo semelhante, crer em Cristo vai além de aceitar a sua exis­ tência histórica. Em seu sentido extremo, a fé em Cristo tem a ver com re­ conhecê-lo como aquele em quem se pode confiar. Quando Jesus de Nazaré perguntou a um homem que ele tinha acabado de curar se ele “cria” no Filho do homem (Jo 9.35), o homem curado sabia claramente que não lhe estava sendo perguntado se ele acreditava na existência de Jesus. Ele sabia que a pergunta era se ele estava pronto para confiar em Jesus e se entregar a ele. 4:5 Excelente exemplo é Tokens o f Trust: A n Introduction to Christian Behef, de Rowan W illiams, LouisviUe: Westminster John Knox Press, 2007.
  • 31. [ A fé. os credos e o evangelho cristão Não é, pois, por acaso que os evangelhos do N T levantam essa questão para nos ajudar a entender por que Jesus de Nazaré é digno de nossa confiança, e que forma tal confiança assume. Neste contexto, o chamado dos primeiros discípulos é de im portância especial. N o relato de M arcos desse evento dram ático (M c 1.16-20), Jesus profere estas singelas palavras: “Vinde a m im ”. N enhum a explicação ou elaboração é oferecida. M esm o assim, os pescadores deixaram tudo e imediatam ente seguiram Jesus. N enhum a razão é dada para a decisão de seguirem aquele estranho que entrou na vida deles de forma tão dramática. M arcos nos oferece a visão de um a figura totalm ente convincente, que influencia a tom ada de decisão apenas com a sua presença. Eles deixaram para trás as suas redes — a base de sua escassa existência como pescadores — e seguiram a estranha figura rum o ao desconhecido. Ele nem mesmo lhes diz o seu nome. N o entanto, eles decidiram confiar nele. E nesse ponto que com eça a fé que esses hom ens passaram a depositar em Jesus C risto. N ão é onde ela term ina. Pois os evange­ lhos nos perm item ver os discípulos crescendo em sua fé à m edida que, gradualm ente, passam a entender mais sobre a identidade e o significado de C risto/ Em prim eiro lugar, eles confiaram nele; com o passar do tem po, eles passam tam bém a entender quem ele era e passam a reconhecer a sua im portânciaj M esm o no NT, isso leva a um a confiança pessoal em D eus e em C risto sendo com pletada com crenças que dizem respeito à identidade deles — em outras palavras, com declarações doutrinais. Por exemplo, o Evangelho de João narra as coisas que Jesus disse e fez, m ostrando aos seus leitores razões por que podem se entregar a ele pessoal e intelectualm ente. A narrativa das palavras e ações de Jesus foi escrita de form a que que possais crer queJesus é o Cristo, o Filho de Deus, epara que, crendo, tenhais vida em seu nome (Jo 20.31). Essa breve incursão na term inologia cristã nos perm ite fazer uma im portante distinção entre f é — geralmente compreendida de modo ■-dacional — e crença — geralmente compreendida de modo cognitivo ju conceituai. A fé prim eiram ente descreve um a relação com Deus,
  • 32. [ Hcrosu ] caracterizada pela confiança, pelo compromisso e pelo amor. Ter té em D eus é depositar a confiança nele, crendo que dela ele é merecedor. As crenças representam um a tentativa de colocar em palavras a substância dessa fé, reconhecendo que as palavras nem sempre são capazes de representar o que elas descrevem, mas tam bém reconhecendo a ne­ cessidade de tentar confiar às palavras o que elas, no final das contas, não poderiam conter. Afinal, as palavras são de im portância efetiva na comunicação, argum entação e reflexão. E sim plesm ente inconcebível para os cristãos não tentarem expressar em palavras aquilo em que creem. Contudo, essas formulações de credo são, de certo m odo, secundárias ao ato prim ário de confiança e compromisso. As prim eiras declarações de fé cristã eram m uitas vezes breves, até m esm o concisas.44'A confissão de que Jesus é o Senhor (Rm 10.9; lC o 12.3) representa a mais compacta forma de credo.45As declarações de fé mais extensas incluem afirmações que claramente trazem em si os temas nucleares dos credos posteriores. Um ótim o exemplo é encontra­ do na correspondência coríntia: Porque prim eiro vos entreguei o que também recebi: Cristo morreu pelos nossos pecados, segundo as Escrituras; efoi sepultado; e ressus­ citou ao terceiro dia, segundo as Escrituras; e apareceu a Cefas, e depois aos D oze (lC-o 15.3-5). A té certo ponto, Paulo entrelaça aqui a narrativa histórica e a interpretação teológica que se tornou um a característica dos p ri­ m eiros credos cristãos. A narrativa histórica de Jesus de N azaré é reafirm ada, mas é interpretada de um m odo particular. Por exemplo, Jesus não apenas “m orreu”, o que é um a declaração puram ente his­ tórica; ele “m orreu pelos nossos pecados”, o que é um a interpretação 44 Sobre o desenvolvimento histórico dos credos, v. K elly, Early Christian Creeds, de J. N. D. K e lly , 3. ed. New York: Longman, 1981. 45 Bajley, James L.; B roek, L yle D. Vander. Literary Forms in the N ew Testament: A Handbook. Louisville: W estm inster John Knox Press, 1992, p. 83-84.
  • 33. [ A fé. os credos e o evangelho cristão do significado do evento histórico da m orte de Jesus de Nazaré.-" A história, portanto, não é negada ou deslocada; ao contrário, cia é interpretada e vista de um m odo particular. Essa observação nos ajuda a entender que os cristãos fazem mais do que simplesmente confiar em Deus ou em Cristo. Eles também creem em certas coisas muito bem definidas sobre eles. Isso, porém, não significa que a fé cristã pode simplesmente ser considerada uma checagem de cren­ ças. D e certo modo, o cristianismo é uma ré profundamente relacionai que repousa na aceitação confiante que o crente tem dc um Deus que, em pri­ meiro lugar, provou ser merecedor dessa confiança. Assim Samuel Taylor Coleridge observou certa vez: “A fé não e uma precisão de lógica, mas uma retidão do coração”/ 7Contudo, apesar dessa ênfase relacionai dentro do cristianismo, resta uma dimensão cognitiva para a fé. Os cristãos não somente creem em Jesus de Nazaré; eles também creem em certas coisas sobre ele.j O aparecimento das noções tanto de heresia quanto de orto­ doxia durante o século II deve ser considerado contra o pano de fundo do reconhecimento da importância de desenvolver e sustentar um núcleo doutrinai seguro para a manutenção da identidade e coerência cristãs. A consolidacão da féj> Um dos desafios com o qual a igreja primitiva deparou foi a con­ solidação de suas crenças. A evidência histórica sugere que, inicialmente, isso não era considerado uma prioridade. M esm o por volta da metade do século II, a maioria dos cristãos parecia contente em viver com certo grau de confusão teológica. A imprecisão teológica não era vista como ameaça à consistência ou existência da igreja cristã. Esse julgamento 4í’Existe uma ampla literatura sobre esse tema. V., por ex., The Actuahix c; Aícnement: A Sludy o f Metaphor, Rationalily, and the Chrulian Tradition, de Conr. E. GfNTON, Grand Rapids: Eerdmans, 1989. 'C o lerid g e, Samuel Taylor. Complete Works, 7 v. New York: H arper & Brothers, 1884, v. 5, p. 172.
  • 34. f H0rrtSÍ<-i deve ser visto como refletindo o contexto histórico daquela época: a luta pela sobrevivência num ambiente cultural e político hostil muitas vezes fazia com que outros assuntos fossem considerados menos importantes. No entanto, o aparecimento da controvérsia levou à crescente neces­ sidade de definição e formulação. E com essa crescente preocupação com a exatidão lógica surgiu um inevitável estreitamento dos limites daquilo que era considerado cristianismo “autêntico”. A periferia da comunidade de fé, uma vez relativamente solta e porosa, chegou a ser definida e vigiada com um rigor cada vez maior. Visões que antes eram consideradas aceitáveis co­ meçaram a cair por terra quando um exame mais rigoroso das controvérsias da época começou a expor as suas vulnerabilidades e deficiências. Os modos de expressar certas doutrinas que as gerações anteriores consideravam sóli­ dos começaram a parecer inadequados sob um exame rigoroso. Não é que necessariamente estivessem errados; não eram bons o bastante. U m bom exemplo desse desenvolvimento pode ser visto nas pri­ meiras reflexões cristãs sobre a doutrina da criação. Desde o início, os escritores cristãos afirmaram que Deus tinha criado o mundo. Havia, porém, vários modos de entender o que implicava a noção de criação. M uitos dos primeiros escritores cristãos assumiram as noções judaicas existentes sobre criação, as quais tendiam a ver o ato da criação divina principalm ente como a imposição da ordem sobre a m atéria preexisten­ te ou a derrota de forças caóticas. Tais visões perm aneceram dom inantes dentro do judaísmo até o século X V I.48 O utros teólogos cristãos, no entanto, argum entavam que o N T apresentava claramente a ideia de criação como o chamado para o ser de todas as coisas a partir do nada — um a ideia mais tarde conhecida como criação nihilo. Q uando essa ideia adquiriu predom inância, a visão mais antiga da criação como a ordenação da matéria existente chegou a ser vista prim eiro como deficiente e depois como errada.49U m a ideia ^Tirosh-Sajuuiíi.son, H ava.Theology ofN aturc in Sixteenth-Century Italian Jewish Philosophy, Science in Context, v. 10, p. 529-570, 1997. 4'’M ay, Gerhard. Creatio Ex Nihilo: The Doctrine of Crcation O ut of Nothing" in Early Christian Thought. Edinburgh:T. 6cT. Clark, 1995.
  • 35. A fé, os credos e o evangelho cristão outrora considerada predom inante passa a ser, portanto, gradualmente deixada de lado, e por fim com pletam ente rejeitada. Processos seme­ lhantes podem ser vistos ocorrendo em outras áreas do pensam ento cristão, especialmente em relação ao entendim ento da igreja sobre a identidade e o significado de Jesus Cristo. As vezes acontece o que parecem ser mudanças bastante radicais no pensam ento. U m bom exemplo disso diz respeito à questão de ser possível dizer que D eus conhecia o sotrim ento. A visão predom inante da igreja prim itiva (mas não exclusiva) era que se poderia dizer que Deus conhecia o sofrim ento, mas não o experimentava pessoalmente. N o século XX, um núm ero cada vez m aior de cristãos chegou à conclusão de que, na verdade, D eus sofria pessoalm ente, sobretudo como conseqüência da encarnação. “Nosso Deus é um Deus sofredor” (D ietrich Bonhoeffer). E m parte, o crescente interesse m oderno na noção de um D eus sofredor reflete um aum ento na sensibilidade pela dor e pelo sofrim ento no m undo, e um a nova preocupação em rela­ cionar o sofrim ento de C risto à angústia do m undo, por um lado, e à natureza de D eus, por outro.-’0 U m dos exemplos mais im portantes do desenvolvim ento doutrinai é encontrado na doutrina cristã da encarnação, que teve expressão form al no século IV. Essa afirm ação pode ser vista como o clímax de um longo, cuidadoso e exaustivo processo de reflexão e exploração teológicas.51 A igreja sempre reconheceu que Jesus de N azaré era D eus encarnado, tom ando a sua face visível e os seus propósitos e caráter acessíveis à hum anidade. C ontudo, a exploração intelectual do que isso implicava levou mais de três séculos, envol­ vendo o exame crítico de um a gama extensiva de trabalho intelectual Existe uma literatura bastante extensa sobre esse assunto. V., esp. The Creative zurêring ofGod, dc Paul Fiddks, Oxford: Clarendon Press, 1988; The Suffering o fGod: Old Testament Perspective, dc Tcrcnce E. F r e t u k im , Philadclphia: Fortress Press, l-S -; The Suffering o f the Impossible God: The Dialecttcs o f Patristic Thought, de Paul SivrÜvuk, Oxford: Oxford Univ. Press, 2004. V.. esp. Nicaea andlts Legacy: An Approach to Fourth-Century Trinitanan Theology, de Le',v;? Ayrf.s, Oxford: O x fo rd Univ. Press, 2004. r
  • 36. [ l-ncrei-'v: ] para dar sentido ao que a igreja já havia descoberto ser verdadeiro. E m certo sentido, a igreja já sabia o que era tão im portante sobre Jesus de N azaré. O problem a era construir um em basam ento in te­ lectual que fizesse justiça ao que já era conhecido sobre ele. E desse m odo, inevitavelm ente, cam inhos errados foram tom ados. O último consenso sobre o melhor modo de formular o significado de Jesus de Nazaré — o Concilio de Niceia — c talvez mais bem pensado como um a fórmula segura, em vez de uma teoria cabal, fazendo uso de algumas noções metafísicas gregas que eram amplamente difundidas no m undo erudito daquela época. Alguns sugeriram que esse processo de desenvolvimento representava uma distorção da simplicidade original da fé cristã. Por que a igreja usou noções metafísicas gregas para dar testemu­ nho de Cristo quando tais noções não fazem absolutamente parte do N T? O teólogo anglicano Charles Gore (1853-1932) estabelece com alguma profundidade uma teoria clássica da relação entre o testemunho bíblico de Cristo e as interpretações mais desenvolvidas da sua identidade e o seu significado, conforme aparecem nos credos cristãos.5- Respondendo aos que afirmavam que o testem unho de Cristo, em sua simplicidade, fora com prom etido e distorcido pelo desenvolvimento da história da Igreja, em especial nos primeiros séculos da fé, Gore insistiu em afirmar que essas formulações teóricas posteriores serão vistas como “o desdobram ento gradual” de ideias e temas que já estavam presentes, se não explicitamente formulados, dentro do pensam ento e adoração cristãos/" G ore indicava que a motivação para expressar o testem unho da igreja a Cristo em condições cada vez mais teóricas encontra-se em parte no desejo hum ano de entender c, em parte, no desejo de proteger ou salvaguardar um mistério. Para Gore, “o cristianismo tornou-se m e­ tafísico, apenas e simplesmente porque o hom em é racional”.5! O desen­ volvimento de ideias complexas, que ultrapassam a simples linguagem '-C oki:, Charles. The Incarnation of the Son of God London: John Murr-.iv, 1922. p. 80-112. * ' ’ :Ibidem , p. 96, 101. ' 4lbidem , p. 21.
  • 37. e imagem do NT, será visto em parte como o resultado inevitável da curiosidade intelecuial hum ana. No entanto, para o desenvolvimento de tais ideias, existe clara­ m ente algo mais do que o desejo hum ano de sondar ou desafiar limites. U m dos tem as a em ergir da exploração da igreja prim itiva sobre a encarnação é a necessidade de desafiar as interpretações existentes de fé para assegurar que elas sejam capazes de acom odar de m aneira adequada e representar o m istério de fé.jisso significa explorar opções intelectuais, não sim plesm ente por curiosidade, mas por um a convic­ ção proiunda de que a sobrevivência e a saúde da igreja dependem de assegurar a m elhor explicação possível de íe jA busca patrística pela ortodoxia não se ateve à suposição de que essa explicação já havia sido descoberta, embora assumisse que algumas aproximações razoáveis ti­ nham sido desenvolvidas. D e certo modo, escritores como A tanásio de A lexandria acreditaram que a ortodoxia ainda precisava ser descoberta.55 A reivindicação fundam ental da ortodoxia cristã para que seja dita a verdade sobre as coisas não poderia ser m antida sem que se soubesse se a verdade estaria ou não sendo com pleta e corretam ente articulada através de formulações doutrinais existentes. Nós já usamos a linguagem dc mistério em referência às verdades que estão no cerne da fé cristã. E claro que tal ideia precisa ser consi­ deravelmente ampliada se quisermos entender a sua relevância para o conceito de heresia. [ A fc, cs credos e o evangelho c-islão ] "reservando os mistérios da fé O prim eiro desenvolvimento doutrinai cristão pode ser com pa- rico a uma jornada intelectual de exploração, na qual uma gama de T.j$síveis modos de formular ideias nucleares foi examinada, algumas ..ca pontos levantados em “Defining Hcrcsv”, de Rowan W jlliams In: Kricidp.r (Org.). . Or:ç:m ct Chnstendom m the West. Edinburgh: T. &.T. Clark, 2001, p. 313-335.
  • 38. [ leresia J para serem afirmadas e outras para serem rejeitadas. Esse processo real­ m ente não deveria ser pensado em termos de vencedores e perdedores; ele é mais bem compreendido como um a busca de autenticidade — um “conflito produtivo sobre objetivos e prioridades entre os cristãos”56 — no qual todas as opções foram examinadas e avaliadas.’7 D e qualquer modo, esse processo de exploração era natural e ne­ cessário. Ao entrar no século II e -além dele, o cristianismo não podia permanecer congelado em suas formas do século I. Ele enfrentava novos desafios intelectuais que exigiam dele a prova de que era capaz de lidar com alternativas religiosas e intelectuais em relação a ele, especialmente o platonismo e o gnosticismo. Esse processo de expansão conceituai dos conteúdos da fé cristã foi executado de forma lenta e cautelosa. A crista­ lização final desse processo de exploração pode ser vista na formação dos credos — declarações de fé autorizadas, que representavam o consensm fidehum , “o consenso dos crentes”, em vez da expressão de fé privada, individual.58 Essa viagem de exploração intelectual implicava a investigação de cam inhos que no final se m ostraram estéreis ou perigosos. Algum as vezes atalhos errados foram tom ados num prim eiro m om ento, mas depois corrigidos. É fácil entender por que m uitos podem acreditar que os prim eiros m odelos de fé são os mais autênticos. N o entanto, algumas conhecidas formas de visões que a igreja declararia mais tarde como heréticas — por exemplo, o ebionism o e o docetism o — podem ser identificadas dentro das com unidades cristãs tanto no começo quanto no final do século I. Em bora m uitos dos prim eiros escrito­ res cristãos, como Tertuliano, defendessem que a antiguidade de uma ^ W illiams, Rowan. Does It JVIake Sense to Speak of Pre-Nicenc Orthodoxy? In: ____ (Org.). The M aking o f Orthodoxy. Cambridge: Cambridge Univ. Press, 1989, p. 1-23; citado na p. 2. 5'G kaxt, Robert M . Heresy and Criticism: The Searehfor Authenticity in Early Chrhtian Literature LouisvUle Westminster John Knox Press, 1993, p. 1-13, 89-113. '^Jo h n so n , Luke Timothv. The Creed: What Christtans Believe and Why It Ivlatten. New York: Doubleday, 2003.
  • 39. [ A fé, 05 credos e o evangelho cristão ] visão teológica era um guia confiável para a sua ortodoxia, isso sim ­ plesm ente não procede. Erros foram com etidos, desde o princípio, os quais tiveram de ser corrigidos pelas gerações posteriores. Então isso significa que a igreja primitiva entendeu mal ou apresentou Jesus de Nazaré de forma inapropriada? sobre um ponto muito importante: desde o princípio, os cristãos souberam o que realmente importava sobre Deus e Jesus de Nazaré. A dificuldade estava em encontrar uma base teó­ rica para dar sentido a isso. Era preciso desenvolver um suporte intelectual para preservar o mistério, salvaguardar o que a igreja tinha descoberto como verdadeiro — um processo que exige discernimento e elaboração. O ponto crítico a considerar é que esse suporte intelectual não é em si totalmente descoberto por revelação divina. A doutrina é alguma coisa construída, pelo menos em parte, em resposta à revelação para salvaguardar o que foi revelado. A controvérsia ariana do século IV pode ser vista como um debate confuso, embora algumas vezes produtivo, sobre qual de uma série dessas estruturas doutrinais construídas seria mais apropriada para assegurar e demonstrar o mistério de Cristo. Que estrutura oferecia a melhor integração do complexo testemunho bíblico com a identidade e o significado de Cristo? A igreja sabia que a natureza e os propósitos de Deus eram reve­ lados em Jesus de Nazare, embora o debate esquentasse sobre como dar mais sentido a isso. Os escritores cristãos estavam perfeitam ente cientes de que a m orte e a ressurreição de Jesus de Nazaré haviam transfor­ mado a situação humana; a tarefa deles era explorar, de forma paciente e completa, todo o modo concebível de dar sentido a isso. Q uando o Concilio de Niceia declarou que Jesus era '‘verdadeiramente Deus e ver­ dadeiram ente hom em ” e que ele era “consubstanciai” com o Pai, foi sim ­ plesmente assegurado aquilo que os cristãos já sabiam ser verdadeiro. A doutrina, então, de uma vez por todas preserva os principais mistérios no cerne da fé e vida cristã, enquanto perm ite que sejam examinados e explorados em profundidade.59 " M c G r a th , Alister.TA? Geneiii o f Doctrine (Oxford: Blackwell, 1990, p. 1-13).
  • 40. O aso do term o técnico “m istério” m erece um com entário. Seu sentido fundam ental é de “alguma coisa tão grandiosa que não pode ser captada pela m ente hum ana”. A m ente hum ana é subjugada pela imensidade daquilo que experimenta de Deus — um a questão expressa, por exemplo, na famosa concepção de Rudolf O tto de um “trem endo mistério”/’1' N um a discussão clássica desse assunto, A gostinho per­ guntou por que as pessoas se surpreendiam por não poderem entender Deus completam ente. “Se ele fosse com preendido”, ele observa, “não seria D eus”.61 A gostinho não está sugerindo que a crença em Deus seja irracional; antes, ele está dem onstrando que a mente hum ana luta e, no final, perde em sua contenda com a grandeza de Deus. Sendo esse o caso, a teologia sem pre se revelará inadequada para fazer justiça às verdades que repousam no cerne da fé cristã. Podem os buscar a precisão teológica, contudo, nossas tentativas de lidar com a realidade de D eus e o evangelho cristão serão sem pre contrariadas pelas lim itações da m ente hum ana. C om o m ostra o estudioso da patrística A ndrew L outh, o evangelho não pode ser reduzido a palavras ou ideias hum anas: E m sen cerne está a compreensão de Cristo como o mistério divino: uma ideia central às epístolas do apóstolo Paulo. Esse segredo é um segredo que foi contado; mas apesar disso continua sendo um segre­ do, pois o quefo i declarado não pode ser simplesmente captado, uma vez que se trata do segredo de Deus, e D eus está além de qualquer compreensão hum ana.,ã '■"Wark, Owen. Rudolf O ttos Ideal of the Holy: A Reappraisal, Hevtkrop Journal, v. 48, p. 48-60, 2007. Um trabalho recente sobre a psicologia do medo enfatizou a importância dessa imensidade conceituai ao criar essa resposta. V. Approaching Awe, a Moral, SpirUualand Aeslhetu Emotion, de D acher K f.ltn k r Cognition and Emotion, v. 17, p. 297-314,2003. ’ 1,1HlPONA, Agostinho de. Sermão 117.3.5: Si emm cornpreheiidis, non estDeus. “ LOUTH, Andrew. Origim o f the Christian Mystical Tnuhtion: From Piato to Denys. Oxford: Oxford Univ. Press, 2007, p. 205. [ 40 '
  • 41. A fé, os credos e o evange'ho cristão ] Observação sem elhante é feita por G ore, que tam bém enfatiza a incapacidade das palavras hum anas na busca de fazer justiça às verdades divinas: A linguagem hum ana jam ais pode expressar adequadamente as verdades divinas. IJma tendência constante a se desculpar pela fa la hum ana, um grande elemento de agnostum no, um a terrível percepção de um a profundidade loiossal, muito além do pouco que é revelado, está sempre presente n~. mente dos teólogos que sabem com o que estão lidando, ao concecer ou expressar Deus. "Nós vemos", d iz São Paulo, 'num espelho. em termos de um enigm a'; "nós conhe­ cemos em parte". N ó s somos compelidos", reclama Santo Hilário, "a tentar o que. é inacessível :>• o'ide não podemos chega> falar o que não podemos proferir; em vez da mera adoração da fé, somos compelidos a confiar as coisas fi-omr.das da religião aos riscos da expressão hum ana”.63 Gore, no entanto, argum enta que as formulações doutrinais esta­ belecem as declarações do m istério de Cristo no N T ,‘num a nova forma de proteger os propósitos, da mesma maneira que um a representação legal protege um princípio m oral”. A doutrina, então, preserva os principais m istérios no cerne da fé e da vida cristã. E m bora não partam necessariam ente de um a revelação divina, as doutrinas em questão são validadas emparte pelo seu fundam ento em tal revelação e, em parte, pela sua capa­ cidade de defender e com preender a revelação. O m istério está ali e ali perm anece, antes de qualquer tentativa de dar sentido a ele e expressá-lo em palavras e fórm ulas. N o entanto, o cue acontece se determ inada doutrina volta-se para proteger esse m istério, quando na realidade acaba por solapá-lo? E se a base teórica confiada para proteger e abrigar um a visão central da fé revela-se corroendo-a ou Goiíf.. Jncarnation.-p. 105-106. I 41
  • 42. distorcendo-a? Essas questões levam à essência da heresia., Uma he­ resia é uma doutrina que no fin a l acaba destruindo, desestabilizando ou distorcendo um mistério, em vez de preservá-lo. As vezes, uma doutrina que se pensava estar defendendo um m istério m ostra-se, na verda­ de, subvertendo-o. U m a heresia é um a tentativa fracassada rum o à ortodoxia, cuja falha repousa não em sua disposição para explorar as possibilidades ou im por limites conceituais, mas em sua relutância em aceitar que, na realidade, talhou. C onform e já observam os, as estruturas doutrinais surgem, dan­ do sentido ao encontro cristão definitivo com a experiência de D eus, especialm ente em e por Jesus de N azaré.64 A teologia cristã tenta lançar um a rede envolvente e protetora sobre a experiência cristã fundam ental da revelação e ação de D eus na vida, m orte e ressurrei­ ção de Jesus de N azaré. As declarações doutrinais foram desenvol­ vidas para preservar e defender o núcleo da visão cristã da realidade. Esse processo, já em curso no N T, foi consolidado e estendido du­ rante a era patrística. M as, e quando sobre um a declaração doutrinai, cujo prim eiro objetivo era defender e preservar — e, no princípio, acreditava-se funcionar assim — , descobre-se que, na verdade, ela enfraquece e corrom pe? A am eaça que a heresia representava à com unidade cristã m ui­ tas vezes foi expressa usando-se im agens extraídas da vida do antigo Israel, especialm ente a preocupação em m anter a pureza e evitar a corrupção ou “im pureza”. A heresia era vista como contam inante, algum a coisa que poluía e maculava a pureza da igreja. Isso é expres­ so de form a particularm ente clara por Jerônim o (c. 347-420), que enfatizava a im portância de m anter a pureza da igreja: Mv. The M aking o f Christian Doctrine, de M aurice F. WlLES, Cambridge: Cambridge Univ. Press, 1967; The Genem o f Doctrine, de Alister M c G r a th , Oxford: Blackwell, 1990, p. 1-13.
  • 43. [ A fé. os credos e o evangelho cristão ] Corte a carne estragada, expulse a ovelha im unda do rebanho; do contrário, toda a casa, todo opasto, todo o corpo, todo o rebanho quei­ marão, perecerão, apodrecerão ou morrerão. A rio não passava de uma brasa em Alexandria, mas, como aquela brasa nãofo i imediatamente extinta, todo o mundo civilizado foi devastado por sua chama!* H á nessa passagem claros ecos do código levítico, que exigia a exclusão dos indivíduos contam inados ou “im puros” da comunidade, em razão do seu impacto potencialm ente destrutivo.66 A construção humana de muros, cercas e fossos pode ser vista como uma expressão da importância de estabelecer barreiras para proteger a iden­ tidade da comunidade.67Sabe-se muno bem que a identidade de um grupo é mantida pela exclusão daqueles que são considerados uma ameaça às suas ideias ou valores. Ainda que o processo pelo qual as comunidades excluem os indivíduos ou grupos considerados intelectualmente corruptores ou moralmente impuros possa ser descrito usando as categorias da psicologia social, é importante avaliar que tal exclusão resulta do julgamento de que certas ideias são perigosas para a estabilidade da própria comunidade. Essa breve análise da natureza da crença serve como pano de fun­ do para um a análise mais detalhada do renômeno da heresia, para o qual nos voltaremos agora. ^JerôNIMO. Commentarius in epistulam ad Gaiatas 5. Tradução _:vre. “ V. uma análise clássica e um comentário em Purity ara Dar.ger: A n Analysis o f Concepts o fPollution and Taboo, de M ary Douglas (London: Routledge, 2003). 67A b r a h a m s , Dominic; H ogg, Michael A.; M arques, José AL A Social Psychological Framework for Understanding Social Inclusion and Exclusion. I n :_____ (Orgs.). The SocialPsychology o fInclusion and Exclusion. New 'orK: Psychology Press, 2005, p. 1-23. [ 43 ]
  • 44. 2 As origens da ideia de heresia O s conceitos morrem quando deixam de corresponder às necessidades sentidas ou a um a realidade vivida. Outros continuam a existir porque expressam ideias que permanecem como significativas, ressoando a experiência de in­ divíduos e comunidades. A heresia pertence a essa segunda categoria de conceitos. Em bora alguns a considerem corrom pida e desacreditada devido às suas antigas associações com a imposição da orto­ doxia religiosa, a maioria reconhece que a heresia expressa um a ideia im portante e essencial a todos os que refletem sobre as questões mais profundas da vida. Todo movimento baseado em ideias ou valores nucleares precisa determinar, por um lado, o seu centro e, por outro lado, os seus limites. Q ual seria o foco do movimento? E quais seriam os limites da diversidade dentro do movimento? , A característica essencial de uma heresia é que ela não significa incredulidade (rejeição das crenças centrais de uma visão de mundo como o cristianismo)
  • 45. H ei OSici 1 no sentido estrito do termo, mas uma forma de íé que, no final das contas, é considerada subversiva ou destrutiva, e, assim, leva indiretamente ao es­ tado de incredulidade. A incredulidade é o resultado, mas não a forma, da heresia. Conforme observa o historiador Fergus Miller, heresia “não é um simples relato de realidades observáveis”;1'* antes, é um julgamento de que certo conjunto de ideias apresenta uma ameaça à comunidade de fc. Heresia não é uma noção empírica, mas conceituai. D e certo modo, trata-se de uma noção construída; nesse sentido, é o resultado do julgamento ou avaliação de um conjunto de ideias por uma comunidade — nesse caso, a igreja cristã. Considerando o que acabamos cie dizer, fica claro que não é possí­ vel entender o fenômeno da heresia em geral, ou as heresias individuais específicas, simplesmente no nível das ideias heréticas. É preciso explorar como e por que tais ideias foram julgadas pela própria comunidade cristã, frequentemente por um longo período de tempo, como uma ameaça à íé. Para entender a natureza da heresia, precisamos então considerar tanto as ideias tidas como heréticas quanto os processos sociais pelos quais elas foram assim definidas e condenadas. Ademais, a heresia é um a noção socialmente incorporada, designando comunidades de discurso tanto quanto de ideias, e levantando a questão da ameaça social ou política re­ presentada por comunidades heréticas às suas contrapartes ortodoxas. Um dos temas mais persistentes nas primeiras narrativas cristãs da heresia é que ela penetra clandestinam ente nas narrativas da realidade concorrentes dentro da família de fé. E um cavalo de Troia, um meio de estabelecer (seja por acaso, seja por desígnio) um sistema de crenças alternativo dentro do seu hospedeiro.69 A heresia parece ser cristã, mas é na verdade uma inimiga da fé, que espalha a semente da destruição.™ bSCi observado em Repentent Heretics in Fifth Century Lydia: Identity and Literacy, de Fergus M iller, Scripta Classica Israelica, v. 23, p. 113-130, 2004. "vVON HlLDEBRAKD, Dictrich. Trojan Horse in the City of God: The Catholic Crisis Explained. M anchester: Sophia Institute Press, 1993. H ildebrand afirma que o secularismo conquistou espaço na igreja católica, na época do Concilio Vaticano II (1962-1965), levando a uma erosão dc seus valores e crenças. 70V. Summa Theologíae, de Tomás de A qu ino, 2a2ae q. 11 a. 1: “A heresia é uma espécie de descrença que pertence àqueles que professam a fé cristã, mas corrompem os seus dogmas”. [ 46
  • 46. [ As origens Ca ide<a de heresia ] Ela poderia ser comparada a um vírus, que se fixa dentro de um hos­ pedeiro e, por fim, usa o sistema de replicação de seu hospedeiro para conseguir a dominação. Entretanto, independentem ente do que esteja na origem da heresia, a ameaça vem de dentro da comunidade de fé. Por exemplo, considere o recente debate na Indonésia sobre se a seita islâmica A l-Q iyadah Al-Islam ivah deveria ser reconhecida como islâmica ou tratada como outra religião/ M uitas organizações islâmicas indonésias são hostis à A l-Q iyadah Al-Islam ivah porque suas visões divergem do islamismo popular, de m aneira mais notável quando afirma que o b a jj— jejum — e as cinco orações diárias não são compulsórias, e em razão de sua expectativa do surgimento de um novo profeta depois de M aom é. A questão central é se as visões da seita serão consideradas como representando zM/z/a/Xdiferenças de opinião legítimas dentro do islamismo) ou se tais visões estão fundam entalm ente em conflito com as crenças e práticas islâmicas.72 A l-Q iyadah Al-Islam iyah refere-se a si mesma como islâmica, de forma inquestionável; e seus membros re­ agiriam com horror a qualquer sugestão de que eles são kujfar (infiéis). No entanto, os seus críticos dentro do islamismo indonésio argum en­ tam que as ideias que defendem, no final, subvertem e ferem as crenças centrais do islamismo. A heresia, portanto, representa um a ameaça à fé, possivelmente mais séria do que muitos desafios que têm origem fora da igreja cristã. Os hereges eram os “de dentro” que ameaçavam subverter e dividir. Lester Kurtz fala da “forte união da proximidade e da distância” na he­ resia, em que o movimento é sim ultaneam ente um “de dentro” e um estranho ao seu hospedeiro.73 Ao propor um a análise sociológica do sig­ nificado da heresia, o teórico social Pierre Bourdieu (1930-2002) indica ^yoiiardi Bachyul Jb, Two Former Al-Qiyadah Activists G cr Three Years for Blasphemy, Jakarta Pcst, 3 de maio, 2008. 2Um debate similar sobre o ponto de vista de Nasr Hamid Abu Zayd surgiu recentemente no Egito. Cf. Heresy or Hermeneuttcs: The Case of Nasr Hamid Abu Zayd, de Charles H iksciikind, Stanford Humanities Review, v. 5, p. 35-50,1966. 'Uma análise contundente dessa questão pode ser vista em The Politics Heresy, de Lester KüRTZ, American Journal ofSociclogy, v. 88, p. 1085-1115, 1983. I 47
  • 47. o seu potencial de arruinar ou desestabilizar as concepções nucleares de um a visão de m undo, ou de identificar alguma instabilidade dentro dessa visão de m undo que leve á sua m odificação radical. E m cada caso, afirma Bourdieu, o resultado é o mesmo: involuntariam ente aju­ da os oponentes externos do m ovim ento.74 Toda visão de m undo, seja religiosa, seja secular, possui as suas ortodoxias e heresias.75Em bora os conceitos de heresia e ortodoxia te­ nham suas origens dentro do cristianism o prim itivo, eles se m ostraram úteis a outras tradições religiosas, de um lado, e a ideologias políticas e científicas, de outro. O desenvolvimento do darw inism o, por exemplo, testem unhou a ascensão e queda dos m odos de pensar e escolas de pensam ento, com os term os “heresia” c “ortodoxia” sendo am plam en­ te usados dentro do cam po para identificar os amigos e inim igos.70 Por exemplo, o conceito da evolução neutra, de M otoo Kim ura (pela qual as substituições aleatórias de am inoácidos nas proteínas podem explicar a m aior parte das diferenças de seqüência entre espécies) foi considerado herético por m uitos biólogos quando foi apresentado pela prim eira vez no final dos anos 1960.77 H oje ele faz parte da ortodoxia darwinista. A apropriação da linguagem religiosa para descrever tais controvérsias é um a indicação tanto da seriedade com que todos os lados assumem suas posições quanto do sentim ento de que certas po­ sições dentro do espectro do darw inism o são absolutam ente perigosas. Se a evolução pode ser referida como um a religião, então ela possui as suas ortodoxias e heresias.78 ■'Bourdif.ü, Pierre. Genesis and Structure oi the Religious Field. Comparative Social Research, v. 13, p. 1-43, 1991. /SV. os pontos levantados em The Constmction o f Orthodoxy and Heresy: Neo-Confucian, Islamic, Jewish, and Early Christian Patterns, de John B. H e n d e r so N, A lbanv: State Univ. of New York Press, 1998. "Ll/STIG, Abigail; R icíiards, Robert J.; Rlisr;, M ichael (Orgs.). Darwinian Heresies. Cambridge: Cambridge Univ. Press, 2004, p. 1-13. I.i.üJH, Egbert G. Neutral Theory: A Historical Perspective Evolutionary Biology, v. 20, p. 2075-2091,2007. ' ‘ 'KSobre o fundamento dessa sugestão, v. Evolution as a Religion: Strange Hopes and Stranger Fears, de M ary MlUGLEY, 2.ed.( London: Roudedge, 2002. [ 4 8 |
  • 48. [ As origens dd ideia de heresia ] O mesmo padrão de desenvolvimento pode ser visto na ciên­ cia médica moderna. Considerada de um ponto de vista sociológico, a medicina moderna surgiu através de uma interação complexa de teo­ rias concorrentes sobre as origens das doenças e como elas precisam ser tratadas. As ideologias dom inantes surgem regularmente, sustentadas em parte por suas credenciais científicas e, em parte, por fatores sociais significativos.79 O atual debate sobre a relação do H IV com a aids, por exemplo, é regularm ente trazido à baila em termos de escolas de pensa­ m ento “ortodoxas” e “heréticas”/ 11As ideias morrem quando deixam de ser úteis. A heresia continua a existir — quer como uma noção teológi­ ca, quer como um a noção secular. Com o o term o “heresia” passou a referir-se a formas de fé de- sestabilizadoras ou destrutivas? Com o passar dos anos, as palavras fluem, m udam seu significado e associações. Nossa língua oferece muitos exemplos de palavras cujo significado parece ter m udado tão radicalm ente em alguns séculos que hoje significam mais ou menos o oposto do seu sentido original. A palavra “urbanizar” originariam ente significava “tom ar(-se) urbano; civilizar(-se)” — em outras palavras, “tornar(-se) cortês, polido”.SLl H oje, ela se refere à conversão dos poucos espaços abertos num am ontoado de cidades. A palavra, originalm ente positiva, foi degradada e passou a significar o que é visto hoje como o lado negativo do desenvolvimento. O m esm o processo pode ser visto no desenvolvim ento da língua grega. A palavra hypocrites originariam ente signifi­ cava “um ator”, e era usada com frequência no século V a.C , em ■'Cf. “The Dynamics of Heresy in a Profession”, de Paul Root W o l pe, Social Sr.ence and Medicine, v.39, p. 1133-1148, 1994; Schism and Heresy in the Developnient oí O rthodox M edicine: T he Threat to Medicai Hegemony", de R. Kenneth ÍONES. Social Science and Medicine, v. 58, p. 703-712, 2004. " M a r t in , Brian. Dissent and Heresy in Medicine: M odels, M ethods, and Straregics. Social Science and Medicine, v. 58, p. 713-725, 2004. 1' [N T] Todas as acepções foram extraídas do Dicionário Houaus da Ungiiaportuguesa.
  • 49. referência a determinado ator que tinha papel de destaque num drama." C om o passar do tem po, porém , a palavra desenvolveu gradualm ente um significado mais som brio: alguém que pretendia ser o que não era — em outras palavras, um m entiroso, ou o que hoje cham am os de “hipócrita”. U m a palavra originariam ente neutra adquiriu, assim, um sentido fortem ente negativo. U m a m udança mais com plexa de significado é verifica­ da na palavra grega hairesis, da qual deriva o term o “heresia”. O riginalm ente, essa palavra significa “um ato de escolha”; m as, com o passar do tem po, desenvolveu gradualm ente os sentidos es­ tendidos de “escolha”, “um curso preferido de ação”, “um a escola de p en sam e n to ” e “um a seita filosófica ou religiosa”.s-! Por exem plo, o estoicism o é m uitas vezes referido com o um a hairesis (ou seja, um a “escola de pensam ento”) pelos escritores gregos do final do período clássico, com o foram as várias escolas m édicas da época. Josefo, o historiador ju d eu do século I, refere-se aos saduceus, fari­ seus e essênios com o exem plos de haireses, pelo qual ele quer dizer “p artid o s”, “escolas” ou “agrupam entos”.34D e m odo nenhum , Josefo insinua que algum desses grupos é não ortodoxo; ele sim plesm ente observa que eles constituem grupos separados, identificáveis d en ­ tro do judaísm o. O term o grego hairesis é claram ente entendido com o um term o neutro, não pejorativo, não im plicando louvor nem crítica; ele se refere a um grupo de pessoas que têm visões com uns. O term o é descritivo, não avaliativo. E nesse sentido que o termo grego hairesis é usado no NT. Se a palavra tem quaisquer associações negativas nesse período, isso parece estar relacionado ao divisionismo social e à rivalidade intelectual que tais escolas de pensam ento às vezes criavam. A formação de facções era S2Zerba, Michelle. M edea Hypokrites. Arethusa v. 35, p. 315-337,2002. 8-’Runia, David T. Philo of Alexandria and the Greek Hairesis-M odel. Vigiliae Chris/ianae, v. 53, p. 117-147, 1999. O plural de hairesis é haireses. S4J o sefo . Antiguidadesjudaicas, 13.171.
  • 50. As origens da ideia de heresia ] vista claramente como uma ameaça à unidade das comunidades cristãs.'05 Contudo, nesse período, não há nenhum a sugestão de que uma “facção”ou “grupo” seja em si perigoso ou tenha a capacidade subversiva ou destrutiva que os escritores cristãos costumavam associar a “heresia”. A preocupação é que a divisão em facções destrói a unidade cristã e encoraja a rivalidade e a ambição pessoal. O que está em causa não é o aparecimento de “gru­ pos” ou “partidos”, mas as conseqüências negativas dessa ocorrência para a unidade das igrejas, cujos líderes administram mal essa ocorrência. Esse ponto ficou obscurecido por traduções influentes do N T que criaram a im pressão de que a heresia era um problem a rotineiro para as com unidades cristãs do século I. A mais sigm ficante das prim eiras traduções inglesas do N T foi publicada em 1526, por W illiam T yndale (c. 1494-1536). Tvndale dem onstrou um a com ­ petência lingüística e um a perspicácia sociológica que estavam à frente de seu tem po. Ele traduziu o term o grego hairesis por “seita”, com isso expressando precisam ente suas tendências à facção e fis­ são.86 C ontudo, a im ensam ente influente Versão do Rei Tiago, de 1611, m uitas vezes conhecida com o Versão A utorizada, e louvada por sua precisão na tradução, habitualm ente traduziu o m esm o ter­ mo grego por “heresia”, criando, assim , a percepção historicam ente incorreta de que o fenôm eno posterior que passou a ser conhecido por esse nom e já estava presente no próprio NT. Para ilustrar a im portância dessa questão, vam os com parar a tradução de Tyndale com a da Versão do R ei Tiago (Versão K ing Jam es) de 2Pedro 2.1, com a ortografia inglesa original encontrada nessas fontes: "C f. Secular and Christian Leadershíp in Corinth: A Soao-Historical and Exegetical ifudy o f 1 Corinthians 1—6, de A ndrew D. C.LARKE, Leiden: Brill, 1993. Em bora íü sim patize com os pontos levantados por Craig Blomberg, eles se resum em a j.ma dem onstração das preocupações do N T sobre o im pacto negativo do falso ensinam ento, em vez de apresentar um a ideia mais específica (e posterior) de -eresia. V. “T he N ew Testam cnt D efinition of H eresy (or W h en D o Jesus and ” e Apostles Really G et M ad?)”, de Craig L. BLOMBF.RG,Journa! o fthí Evangélica! - híchgical Society, v. 45, p. 59-72, 2002. :T. . a tradução de Tyndale de lC oríntios 11.19; Gálatas 5.20: 2Pedro 2.1. Em à :.: s 24.14, Tyndale traduziu o termo grego haeresis por ‘‘heresia". [
  • 51. [ ] Tyndale (1526): "Ther shal be falce teachers amonge you: -zuich prevely shal! brynge in d am nabk sectes even denyinge the Lorde”. ( “H averá falsos mestres entre vós: que privadam ente trarão seitas condenáveis, até mesmo negando o Senhor' trad. livre ) R ei Tiago (1611): “There shaü be false teachers am ong you, who p r i v i l f 1shal! bring in damnable heresies, even denying the Lord". ( “H averá falsos mestres entre vós, que secretamente trarão heresias condenáveis, até mesmo negando o Senhor”trad. hvre~.) A heresia pode não ter surgido como um assunto significante no cristianismo apostólico, embora haja sinais claros do aparecimento de visões que mais tarde seriam consideradas heréticas. Tais ideias podem ter se originado durante a era apostólica; a natureza herética delas surgiu apenas durante o século II. Ao longo desse período formativo, os escri­ tores cristãos desenvolveram um sentido m uito específico do term o hae- resis (a ortografia latina do hairesis de trabalho grego). Ele já não tinha o sentido neutro de um a opção intelectual ou de um a escola de pensa­ mento. O term o começou a desenvolver acepções fortem ente negativas, designando aqueles cujas visões os forçaram a se retirar da igreja ou dela serem expulsos.ss Com o enfatizamos, algumas dessas visões eram co­ nhecidas, frequentem ente em formas primitivas, pelos escritores do NT. O julgamento de que tais visões eram heréticas — em vez de m era­ m ente inadequadas ou inaceitáveis — reflete a situação eclesiástica do século II, não do século I, especialmente na igreja romana. Haeresis designava agora uma “escolha”, no sentido de preferir ideias teológicas especulativas particulares (como aquelas cujo surgim ento foi observado s'E m inglês antigo a palavra “privilv” (Tyndale: “prevely”) significa “privadamente" ou “secretamente”. Sobre os debates acerca dessas clássicas traduções inglesas da Bíblia e o impacto delas sobre a formação da língua inglesa, v. William Tyndale: A Biography, de David D ajMKLL, New Haven: Yale Univ. Press, 1994, p. 83-150; In the Beginning: The Story o fthe KingJames Bible, dc Alister M cG rath, New York: Doubleday, 2001. 8SNüRRIS, Richard. Heresy and Orthodoxy in the Late Second Century. Union Heminary Quarferly Revieiued, v. 52, p. 43059, 1998.