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Boletim do CPSP No. 34
(junho e julho de 2009)
Sumário
Editorial: Auto-observação
Nossa Força Esquecida: A Vontade artigo de Piero Ferrucci
Editorial: Auto-observação
por Andrée Samuel (*)
Temos plena consciência de estarmos atravessando um momento histórico conturbado: crise
econômico-financeira, mudanças drásticas no clima planetário, violência, guerras, fome e
miséria presentes em tantos lugares do mundo.
A leitura que fazemos desse momento histórico da humanidade é que estamos sendo convidados
pelo Universo a rever nossos valores, nossas prioridades, nosso estilo de vida, nossas relações
pessoais e interpessoais; nossa relação com o meio ambiente.
Estamos sendo convidados a tomar plena consciência de nossa participação pessoal nesse
todo que é a humanidade e o planeta Terra do qual fazemos parte intrínseca quer queiramos
admitir quer não.
Parece-nos haver muitas transformações a serem empreendidas.
Uma delas talvez seja despertar para a realidade do nosso comportamento, das nossas
atitudes, do cuidado e/ou do pouco caso como tratamos alguns assuntos como se eles
absolutamente não nos dissessem respeito. Às vezes agimos como se não habitássemos o planeta
Terra! Não é de nós que se trata aqui! É deles... do Governo... dos dirigentes... eles deveriam
fazer isto, fazer aquilo; nós sabemos muito bem criticar e, no discurso, temos todas as soluções
para todos os males que observamos e sentimos.
Nossa tendência humana é nos colocar como vitimas sofredoras e injustiçadas dos
acontecimentos. É como se nos sentíssemos como não tendo poder nenhum em relação ao que
acontece no mundo e no nosso mundo pessoal.
É como se nossa existência, nossas ações, nossas relações em nada interferissem com o mundo à
nossa volta. Como se não estivessem ligados uns aos outros, simplesmente, através de nossa
respiração. Todos respiramos o mesmo ar! Será que nos damos conta desse fato? Ousamos
levantar a hipótese que, em algum nível, esse fato nos une uns aos outros.
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Começar a tomar consciência daquilo que é nossa contribuição para que a situação esteja do
modo como está, de fato, é muito desconfortável. Assim como podemos ser “carrascos” de nós
mesmos em algumas situações, em outras apresentamos uma complacência imensa.
Encontramos justificativas para tudo que observamos em nós e que nos incomoda, muito
provavelmente em função da auto-imagem idealizada que temos de nós mesmos e que tememos
manchar ou destruir.
Afinal somos tão boas pessoas, tão atentos aos outros, tão amáveis e prestativos... evitamos ao
máximo incomodar, dar trabalho, atrapalhar, invejar, etc.
É uma verdade. Buscamos ser isto tudo dito acima e muito mais! Porém é uma verdade parcial,
não absoluta.
Somos boas pessoas com excelentes intenções.
Acreditamos que a natureza original do Ser seja essencialmente boa.
Talvez, exatamente por isto, seja de primordial importância olhar para a outra parte da verdade.
Para que isto possa se dar, precisamos desenvolver olhos de ver, isto é, observar com
imparcialidade como nossas boas intenções se manifestam na prática, na nossa vida cotidiana.
Teremos então assim a oportunidade de verificar que em muitas situações agimos de um modo
coerente com nossos valores, nossos pensamentos e até “somos como dizemos” que queremos
ser.
Uma auto-observação “honesta”, centrada, também nos permitirá reconhecer que em outros
momentos agimos de um modo bastante contraditório – para não dizer antagônico – com
nosso discurso, com aquilo que acreditamos ser. Será que isto é errado? Não! "Errado" não é.
Isto reflete natural e simplesmente a nossa condição humana.
Somos permeáveis e influenciáveis pelas "condições climáticas" das pessoas com as quais nos
relacionamos assim como nosso organismo reage às condições climáticas do tempo frio,
chuvoso, quente, do vento, etc.
Essa permeabilidade tem a ver com a teia energética que nos une a tudo aquilo que nos rodeia.
Sentimos a irradiação energética das pessoas, dos lugares, dos objetos, das plantas, dos minerais,
dos animais.
Quanto menos consciência tivermos do que sentimos, do quanto e do como o que sentimos pode
nos afetar, mais inconscientemente influenciáveis somos por essas irradiações.
O que fazer então para não nos deixarmos levar pela vida como se fossemos uma folha
arrancada pelo vento, do galho da árvore onde se encontrava, e que acaba caindo no chão por
não ter o poder de direcionar o seu vôo?
A Psicossintese, como método de transformação, visa fomentar ativamente a harmonização e
integração, num todo funcional, de todas as qualidades e funções da pessoa. Essa é a sua
finalidade central. A técnica básica, que auxilia e até torna possível todo o processo pessoal e
transpessoal, envolve a estimulação e o desenvolvimento da vontade. Lembramos a afirmação
de Roberto Assagioli: "A vontade só é ineficaz quando tenta atuar em oposição à imaginação e
às outras funções psicológicas (sensação, emoção/sentimento, impulso/desejo, imaginação,
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pensamento e intuição), enquanto que seu uso inteligente, por conseguinte, bem sucedido,
consiste em regular e dirigir todas as outras funções para um objetivo final deliberadamente
escolhido e afirmado". (em "Psicossintese – Manual de Princípios e Técnicas", Editora Cultrix,
1982, pág.22).
A tarefa de tomar consciência de si mesmo, de reconhecer as diferentes partes que nos habitam,
de desenvolver a habilidade de trabalhar em prol de seu equilíbrio, integração e harmonização,
nos permite descobrir e fortalecer nosso centro interior unificador. Vamos assim gentilmente,
com persistência e determinação, experimentar o sabor único que se apresenta ao ser o ator, o
autor e o diretor de sua própria vida.
Gostaríamos de mencionar brevemente que, embora a psicossintese esteja sendo desenvolvida e
usada em terapia, seus princípios e métodos também podem ser aplicados em outros campos:
no de higiene psicológica ou saúde mental, para a prevenção de distúrbios psicológicos; no
campo da educação onde as principais técnicas usadas pela psicossintese têm ampla e fecunda
aplicação; pode ter uma utilidade especial na educação de crianças dotadas e superdotadas; no
campo das artes; na música assim como no vasto campo das relações inter pessoais e de grupo,
isto é, em todos os campos de atividades humanas.
Finalizo com uma citação de Dr. Roberto Assagioli:
"Estamos em continuo contato uns com os outros, não só em termos sociais e no plano físico,
mas também através das correntes interpenetrantes dos nossos pensamentos e emoções...
A noção de responsabilidade, entendimento, compaixão, amor e inocência são elos de uma
corrente de relações perfeitas que devem ser forjados dentro do nosso próprio coração."
Andrée
(*) Andrée Samuel é psicóloga clínica, psicoterapeuta com especialização em Psicossíntese;
presidente-fundadora do Centro de Psicossíntese de São Paulo; coordenadora e ministrante do
Curso de Formação em Psicossíntese; supervisora clínica; facilitadora de grupos de
desenvolvimento pessoal e auto-conhecimento. É membro do Instituto de Psicosintesi, Florença,
Itália; do Institute of Noetic Sciences, Califórnia, USA; da Association for the Advancement of
Psychosynthesis, Amherst, USA.
Nossa Força Esquecida: A Vontade
artigo de Piero Ferrucci (*)
Estamos reproduzindo neste Boletim um artigo cativante de Piero
Ferrucci, baseado numa Conferência proferida em Florença, em
1985. Neste artigo, Piero Ferrucci explica o valor do ato de vontade
e a importância do saber querer. O artigo, publicado no site do
Institut Français de Psychosynthèse, foi traduzido por Andrée
Samuel [nota do Redator].
[Obs.: Este artigo pode ser impresso, para permitir uma leitura mais confortável. Para imprimir a página,
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Começaremos com duas histórias. A primeira é de Edgar Allan Poe. O autor imagina estar numa
rua de Londres no momento onde as pessoas terminam seu trabalho e há muita gente. Ele
começa a observar com atenção as pessoas, olha para seus rostos, suas roupas, seus movimentos.
Há homens de negócios, operários, artesãos, brincalhões, mendigos, mulheres, jovens, velhos...
Num determinado momento, uma pessoa muito esquisita passa. Há no seu olhar mil emoções
contraditórias. A alegria e ao mesmo tempo o medo, um sentimento de triunfo mas também de
terror, receio mas também confiança. O protagonista nunca tinha visto reunidas na mesma
pessoa tantas emoções opostas. Ele decide seguir essa pessoa. É um homem bastante idoso que,
no início, anda de modo rápido e muito leve para alguém dessa idade. Anda muito rápido com
se tivesse um objetivo preciso a alcançar. Aí, num certo momento, muda de jeito e começa a ir
mais lentamente, quase como se vacilasse. Ele hesita, como se não soubesse o que fazer nem
para onde ir. Enquanto o protagonista continua observando intrigado, de repente o homem
retoma a caminhada rápida como se, novamente, tivesse uma meta; chegado a uma praça, ele dá
duas ou três voltas novamente com o passo incerto, desorientado. Cai a noite, a atmosfera se
torna cada vez mais escura e ele continua assim, sempre mudando de estilo e de jeito, até a
aurora. O observador, mesmo cansado, continua seguindo esse jovem/velho nesse novo dia. O
homem parece não vê-lo e segue seu caminho. O protagonista então se dá conta que esse
homem cheio de contradições, rostos, estilos diferentes, é o homem da multidão: o homem que
encerra em si mesmo a multitude de todos os seres. Ele não sabe quem é nem para onde vai. É
um “homem que não se deixa ler”. Esse homem da multidão é o símbolo daquele que perdeu sua
própria identidade, logo sua vontade.
A segunda história é de Becket, autor de uma famosa peça de teatro “Esperando Godot” na qual
dois indivíduos, Vladimir e Estragon, não param de falar esperando a chegada de um
personagem, não definido, cujo nome é Godot. Em inglês God significa Deus; a analogia se
impõe.
Eles falam, fazem projetos, mas não se movem, não acontece nada. No final, um deles diz:
“Bem, então, vamos?”. O outro responde: “Sim, vamos!”. Fecha-se a cortina e os dois ficam
imóveis. O ponto culminante de toda a obra se encontra na sua imobilidade. Eles estão
desorientados, eles não sabem para onde ir. Eles representam o ser humano que se perdeu de si
mesmo, incapaz de fazer escolhas: o homem sem vontade.
Assagioli dizia que quando não há vontade, isto é, quando uma pessoa não é capaz ou que ela
tem medo de escolher, há sofrimento, depressão, ansiedade. Rollo May diz que somos o que
escolhemos ser e que se abdicarmos de nossa vontade abrimos a porta para a neurose.
Talvez a capacidade de escolher seja o que de melhor pode definir um ser humano: daí a
importância fundamental e prática de redescobrir e de cultivar nossa vontade, função
psicológica que dá origem à escolha.
A vontade não tem “boa reputação” em psicologia. Freud dizia que somos determinados pelo
inconsciente demonstrando assim a superficialidade da “vontade vitoriana”: essa vontade que
busca de forma inadequada se tornar uma lei, reprimindo as pulsões instintivas, condenando e
reprimindo os aspectos mais naturais de nosso ser, multiplicando as tensões e os esforços
inúteis. Segundo Freud, não existe vontade livre: para a psicanálise, somos vividos pelo
inconsciente, somos determinados por fatores que não podemos controlar.
O ponto de vista da psicossíntese, e de modo geral da psicologia humanista, é muito diferente.
Não só a descoberta da vontade é essencial para a saúde psíquica, mas se ignorarmos a vontade
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temos a tendência de reprimir nosso próprio poder, nossas funções mais importantes.
Uma pesquisa foi desenvolvida com vários pacientes que tinham experiência de psicoterapia em
diversas abordagens: Jung, Freud, Adler, Rogers, etc. Foi-lhes perguntado quais tinham sido os
fatores que mais os ajudaram.
O primeiro fator era sua relação com o psicoterapeuta. Esse dado é conhecido e o encontramos
sempre em muitas pesquisas, independentemente da abordagem teórica. Ao contrário,
freqüentemente, as pessoas ignoravam totalmente ou quase a escola adotada pelo seu terapeuta.
É claro que a relação humana com o psicoterapeuta é o fator número um da cura. O que nos
interessa aqui é o fator número dois.
O segundo fator para os pacientes era de se dar conta em que medida eles eram responsáveis
pela sua própria vida. “Se eu me sentia mal, de um modo ou de outro, era em função da minha
escolha. Era eu mesmo que criava minha vida, meu ser.”
O que curava e ajudava essas pessoas a crescer era a tomada de consciência que eles próprios
haviam estabelecido sua situação de vida. Quantas vezes ouvimos as pessoas se colocarem como
vítimas das situações... Quando nos colocamos como vítimas, estamos completamente
impotentes: o mal nos ataca. Não há nada a fazer senão submeter-se a ele. Mas no momento em
que percebemos que a situação na qual nos sentimos vítima foi gerada por nós, esse momento é
um momento de liberdade pois temos à nossa disposição a capacidade de escolher, de mudar
nossas atitudes: temos a nossa vontade.
Como isto acontece? Acontece quando nos damos conta que as injustiças se produzem porque
não fazemos nada para evitá-las, ficamos doentes porque não cuidamos da nossa saúde, estamos
sozinhos porque temos medo do contato com os outros, as infelicidades nos perseguem porque
só enxergamos o que é negativo, as violências nos oprimem porque as esperamos, etc. E então
aprendemos: os eventos desfavoráveis são, em grande parte, causados e fomentados pelas nossas
atitudes; as forças contrárias que nos oprimem são essas mesmas forças que agora podemos
recuperar. Somos responsáveis pela nossa vida.
Rollo May afirma: “eu” significa “eu posso”. “Eu sou aquilo que posso” no sentido que é
propriamente no ato da vontade que uma pessoa pode descobrir o que ela é.
Descubro eu mesmo no momento em que quero algo. (Eu quero, não no sentido de desejar, mas
no sentido de decidir).
Outras pesquisas, desta vez com bichos, permitiram estabelecer que os ratos, os pombos, etc. se
pudessem escolher, para obter comida, entre fazer um determinado trabalho (por exemplo
encontrar o caminho certo no labirinto, apertar um botão, etc.) ou receber alimento sem fazer
nada, preferiam inevitavelmente a comida condicionada à tarefa. Por que isto? A hipótese é que
para os animais em geral, e provavelmente para os humanos, isto se refere a um senso de maior
vitalidade, a uma “competência”, isto é, à capacidade de controlar o ambiente no qual se
encontram. Quer se trate de um animal de laboratório ou de uma pessoa, ter um ato de vontade,
decidir algo, se dar conta que podemos modificar o meio externo, é considerado como uma
necessidade, da mesma forma que outras necessidades fundamentais, como a comida, o sono, o
sexo, etc.
Esses mesmos pesquisadores trabalharam também com pessoas deprimidas, hospitalizadas. Uma
pessoa deprimida é uma pessoa mal adaptada a um trabalho sobre a vontade. Estimulá-la a
empreender coisas novas pode levar a uma recusa e a uma depressão maior ainda. Apesar disso,
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nessa pesquisa, começaram a dar a essas pessoas deprimidas algum ato de vontade ou tarefas
muito simples de realizar: por exemplo, levantar e ler, em voz alta um trecho de um livro. No
dia seguinte, ler o mesmo trecho colocando maior ênfase, maior entonação. No outro dia,
escolher entre dois textos diferentes e após escolher um, lê-lo, também dessa vez com uma certa
entonação. Em seguida, ler novamente o trecho e fazer algum comentário a respeito. Havia uma
hierarquia de tarefas que começava com atos muito fáceis para chegar a outros mais complexos.
O mais difícil com conseqüências positivas para os pacientes havia sido escolher, entre três
temas diferentes, aquele sobre o qual improvisar um discurso. Os que têm experiência com
pessoas deprimidas podem compreender como é excepcional pedir a uma pessoa nesse estado
improvisar um discurso e obter uma resposta positiva. Mais ainda para todo mundo, não só para
aquele que se encontra deprimido, tomar decisões, realizar atos de vontade, pode ser
“dinamizante”, pode dar alegria.
Em Psicossíntese, há muitas técnicas e exercícios que podem ser utilizados em grupo ou
individualmente para trabalhar a vontade, para desenvolver a vontade.
Quais os benefícios de trabalhar a vontade?
Antes de mais nada a pessoa sente que sua “voltagem” psíquica e espiritual aumenta. Ela
descobre ou começa a descobrir sua própria identidade que pode ser uma arma eficaz para
transcender ou ultrapassar muitas emoções negativas, como a ansiedade, o medo, a raiva, a
depressão, o sentimento de impotência, etc.
Precisamos contudo acrescentar que a vontade não pode agir diretamente sobre as emoções,
assim como não se pode agir diretamente sobre a intuição. Não se pode ter uma emoção ou uma
idéia brilhante de encomenda, quando o queremos.
No entanto, podemos usar a vontade indiretamente: por exemplo, quando se está deprimido,
com um ato de vontade, podemos desviar a atenção – podemos escolher ler um livro, fazer
ginástica, colocar a atenção em atividades físicas ou mentais em vez de colocá-la na depressão.
Assim, aos poucos, retira-se energia da depressão.
Essa é uma função fundamental da nossa psique: a capacidade de desviar a atenção conforme
quisermos em vez de deixá-la à mercê do acaso ou de nossas obsessões. Dar atenção significa
nutrir, cultivar; tirar a atenção quer dizer deixar morrer. Se seguirmos esse princípio simples,
descobrimos a capacidade de recriar nosso mundo interior.
A vontade é, sem dúvida, a função mais próxima do nosso “eu”. Se fizermos um ato de vontade,
nós enfatizamos nosso “eu”, nosso centro e diminuímos a intensidade das emoções negativas.
Porém vamos esclarecer: nossas infelicidades não podem desaparecer simplesmente porque as
ignoramos. Ao contrário, elas devem ser vistas e compreendidas. Essa etapa muitas vezes não
nos libera de nossos problemas, ela só os alivia. É nesse momento que podemos decidir
interromper o fluxo de atenção ansiosa que, inevitavelmente as nutre e as amplifica.
Há uma diferença essencial entre essa vontade e a vontade definida como “vitoriana”. A
vontade, sentimento ansioso do dever, como condenação, como repressão de uma parte de nós
mesmos, como recusa daquilo que somos, é sempre um tipo de vontade que vai contra algo e
que, portanto, reprime. Ao contrário, a vontade que nasce do centro do nosso ser não está contra
nada: ela não se impõe, ela coordena; ela não empurra, não força nada, não condena, não
reprime. Ela simplesmente dirige.
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Há várias maneiras de cultivar a vontade. Um primeiro exemplo é ousar, correr o risco de fazer
algo que tememos um pouco. Arriscar dando sua opinião, arriscar numa relação. Iniciar uma
relação nova, ou algumas vezes romper uma velha, quando for necessário fazê-lo. Arriscar estar
sozinho, nem que seja por um dia, ser si mesmo, manifestar-se, mostrar-se assim como somos.
Arriscar mudar de idéia, ou de se expressar, ou de fazer qualquer coisa que nunca fizemos. Pode
nos custar caro, mas arriscar pode realmente transformar uma situação. Arriscar, de fato,
significa sair dos esquemas e dos hábitos que nos limitam e mobilizar novos recursos.
Uma outra maneira de cultivar e reforçar nossa vontade é a concentração.
Há várias técnicas para se concentrar. Uma dentre as mais simples é a da observação.
Gostaria de experimentar? Sinta-se convidado para o seguinte exercício: pegar uma revista, uma
imagem composta de várias partes, uma reprodução artística ou podemos parar frente a uma
vitrine onde estão expostos objetos diferentes. Após um tempo de observação, fechamos os
olhos e procuramos nos lembrar do maior número possível de detalhes da imagem ou dos
objetos. No início os resultados não são muito bons. Geralmente só lembramos de metade
daquilo que observamos. Aos poucos vamos perceber como essa função pode ser cultivada e
isto evoca um sentimento de competência e de presença.
Às vezes, estamos lendo um livro e nos vem à mente fazer alguma outra coisa, por exemplo, ir
passear. Em vez de ir passear, esperamos algum tempo, lemos esse livro durante cinco minutos
sem nos distrair. É uma maneira simples e eficiente para aumentar nossa capacidade de nos
concentrar.
Outra maneira de desenvolver a vontade é encontrar as prioridades de nossa vida.
Uma psicóloga americana, Lakein, pergunta às pessoas:
O que você faz do seu tempo?
Você está contente do modo como você o utiliza?
Você o utiliza da melhor forma possível?
Muitos dentre nós, quando confrontados com a pergunta “Quais são as prioridades de sua vida”,
têm muita dificuldade em responder. Muitas darão respostas diferentes em momentos diferentes.
Experimente fazer o seguinte exercício: pegar uma folha de papel, perguntar-se “o que eu
quero fazer da minha vida?” Fazer uma lista rápida, sem muita reflexão, escrevendo também
coisas que lhe pareçam extravagantes. Não é um compromisso para fazer algo, é somente uma
espécie de inventário. Escreva tudo: eu quero fazer uma viagem, eu quero casar, eu quero
aprender alemão, aprender a dançar, aprender a fazer yoga... qualquer coisa!
Deixar essa lista de lado e faça outra pergunta: “O que eu gostaria de fazer daqui a cinco
anos?” é uma pergunta mais circunscrita. Responda da mesma maneira que fez na pergunta
anterior, fazendo outra lista. Pode ser que você tenha as mesmas respostas mas também é
possível aparecerem outras diferentes. Em seguida, faça-se uma terceira pergunta: “Se eu
tivesse somente seis meses de vida, o que eu faria?”
Nesse ponto muitas pessoas descobrem que, se elas tivessem somente seis meses de vida,
elas fariam coisas completamente diferentes das que estão fazendo no momento. Isto pode
nos fazer refletir, pois pode significar que o que elas estão fazendo agora na sua vida, não é
a coisa mais importante. Quando terminar essas três listas, escolher duas ou três respostas
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em relação às quais você quer dar mais atenção e valor: elas são nossas prioridades, o que
tem o poder de dar um sentido e uma dinâmica à nossa vida. Quando acordamos mais
atenção e mais energia às nossas prioridades, e menos aos detalhes pouco significativos,
nos sentimos mais satisfeitos. Pode-se variar a lista a qualquer momento. O importante
consiste em fazer, cada dia, algo que tenha a ver com a primeira, a segunda e a terceira
prioridade que listamos. Não deixar passar um dia sem fazer isto. É assim, nesse momento,
que temos a sensação de verdadeiramente não nos perder em coisas que não são essenciais,
de funcionar.
Podemos nos perguntar: “Mas para que fazer isto?” Por que não nos sentimos
naturalmente dispostos a fazer coisas que consideramos importantes?
As coisas mais importantes são aquelas que requerem mais energia, mais compromisso, algum
risco, ou são muito novas. Em contrapartida, é freqüentemente mais simples deixar-se fazer tudo
aquilo que é mais evidente e mais fácil: assistir a televisão, ler o jornal, fazer um passeio e adiar,
em vez de fazer logo a coisa mais importante da nossa vida.
Um outro meio de cultivar e de descobrir nossa vontade, é nas relações com os outros.
Muitas pessoas sentem que não têm a força de se afirmar na vida e, por medo das reações dos
outros, não se dão valor, são manipuladas pelos outros. Naturalmente, nesse caso, o trabalho
com a vontade consiste a não se deixar manipular e a se afirmar.
Mas... como fazemos para nos afirmar? Assim como todo trabalho com a vontade, é algo que
podemos aprender: nós aprendemos fazendo.
As possibilidades são numerosas. Podemos aprender a:
Não se deixar dominar pelos caprichos e opiniões dos outros.
Expressar nossa opinião mesmo se for difícil fazê-lo.
Pedir o que queremos em vez de ignorar sistematicamente as nossas necessidades.
Fazer aquilo que nos parece justo apesar da reprovação dos outros.
Não deixar nosso tempo e nossos recursos colonizados por aqueles que se aproveitam de
nós.
Saber dizer não.
Isto é possível quando vemos a vida como um laboratório; nesse caso cada situação se torna um
campo de ação e de trabalho.
Um meio de usar a vontade é fazer aquilo que escolhemos fazer, fazê-lo imediatamente, sem
adiar. Podemos nos engajar de diferentes maneiras: colocar ordem no escritório, escrever uma
carta, fazer todos os dias um exercício de psicossíntese, despachar imediatamente e sem queixas,
as tarefas burocráticas habituais, às exigências da vida. Quando fazemos algo neutro ou um
pouco “chato”, com precisão, engajamento e presença, estamos utilizando a vontade e assim
transformamos a vida cotidiana.
Não devemos pensar que os exercícios da vontade sejam somente o “fazer”; pelo contrário, a
vontade pode ser também o não fazer: não olhar a televisão durante uma semana, simplificar os
horários, eliminar compromissos excessivos, interromper algum hábito. Freqüentemente nossa
vida é invadida por aquilo que não é essencial e que é supérfluo, logo, eliminar se torna
trabalhoso. A vontade é também usar tesouras.
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A vontade pode ser utilizada para “podar”, isto é, para decidir fazer menos coisas. Uma árvore à
qual podamos alguns galhos, se desenvolve com os galhos restantes. Goethe dizia que é na arte
de se colocar limites que se reconhece o verdadeiro mestre.
O ato da vontade não é simplesmente uma idéia. Ao ato da vontade corresponde uma atividade
cerebral específica. Num experimento feito, conectaram a atividade elétrica do cérebro humano
aos comandos de um televisor. A eletricidade cerebral era amplificada de tal maneira que ela
desencadeava o funcionamento do interruptor que acendia a televisão.
Pedia-se à pessoa conectada a esse equipamento apertar o botão para ligar manualmente o
televisor. A primeira vez, a pressão exercida sobre o botão acendia e ligava o televisor.
A segunda vez, o televisor ligava, não devido à pressão no botão, mas um instante antes do
botão ser tocado.
O ato da vontade de ligar o televisor evocava potenciais elétricos que, oportunamente
amplificados, conseguiam desencadear o dispositivo que provoca o ligar.
Logo, com um ato da vontade, não aumentamos somente nosso potencial psíquico, mas também
nosso potencial bio-elétrico.
Podemos compreender a vontade por outra perspectiva.
Um biólogo inglês, Sheldrake, sustenta que as leis do universo não são imutáveis; ele sustenta
que elas são hábitos enraizados que podem ser mudados. Por exemplo, quando num laboratório
consegue-se sintetizar pela primeira vez uma substancia orgânica é muito difícil fazê-lo. Porém,
a segunda vez é mais fácil mesmo que feito por outra pessoa e que mesmo que essa pessoa não
conheça o procedimento que já foi seguido e utilizado.
Sheldrake diz que se cria um precedente: um “campo morfogenético”, isto é, um esquema
invisível, mas existente, que determina que todas as sínteses sucessivas desta substância.
Na Inglaterra, há muitos anos, o leite era entregue em garrafas com uma tampa de estanho.
Essas garrafas eram colocadas no chão, na porta das casas. Um belo dia, um pássaro, que tinha
aprendido a furar a tampa de estanho, bebia um pouco do leite. De repente, em poucos dias, em
grande parte da Inglaterra, um grande número de pássaros fizeram a mesma coisa a tal ponto
que a empresa responsável pelo engarrafamento do leite teve que modificá-lo.
Num laboratório, quando se dá uma determinada tarefa a um ratinho, em Londres, por exemplo,
e que se refaz a mesma experiência, num laboratório nas antípodas com ratos diferentes,
Sheldrake sustenta que esses pássaros e esses ratos provocam um “campo morfogenético”, isto
é, um campo que cria uma nova forma, uma nova possibilidade. Essa possibilidade, se for
repetida, se torna pouco a pouco uma lei, se torna uma realidade.
Há controvérsias a respeito dessa teoria.
Na psique humana, acontece um pouco a mesma coisa. Um pensamento que é repetido uma,
cem, mil vezes gera uma realidade psíquica que podemos considerar como imutável e que faz
com que afirmemos “eu sou assim”. Pelo contrário, podemos decidir (eis a vontade) criar uma
outra realidade psíquica, mudando nossos pensamentos, a direção de nossa imaginação. Em
sânscrito, essas formações psíquicas são chamadas Samskara. Um Samskara é simplesmente um
pensamento que foi pensado mil vezes e que é, por assim dizer, depositado na profundeza da
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psiche. Pouco a pouco, o pensamento se solidifica e se torna parte da nossa personalidade. É
quando, então, pensamos que somos assim. No entanto, quando percebemos que cada vez que
pensamos desse modo reforçamos esse pensamento, e decidimos pensar de um modo diverso,
podemos aos poucos obter resultados positivos.
Há técnicas específicas para aprender a dirigir nossos pensamentos e criar novos Samskaras:
podemos transformar nossa personalidade, dar-lhe uma forma diferente, nos tornar os artesãos
de nosso ser, depositando um pensamento, uma atitude novos, dia após dia, re-criando-se. Já que
fazemos isto naturalmente, vamos aprender a fazê-lo bem e conscientemente.
Outra característica da vontade é a neutralidade. Uma pessoa pode cultivá-la e aprender a ter
uma incidência maior sobre a realidade, com maior eficácia. Mas esse poder não é
necessariamente benéfico: com efeito, pode ser dirigido para objetivos nefastos e contrários aos
interesses dos outros. Daí a necessidade urgente para o mundo hoje de criar e desenvolver uma
vontade ética, boa, que esteja presente e que aja em prol do bem comum, para o benefício de
todos. Trata-se de orientar a vontade para objetivos nobres e importantes.
A vontade do bem é uma das manifestações mais elevadas do espírito humano: nela produz-se
uma síntese do elemento volitivo com os sentimentos superiores do supraconsciente. A pessoa
que ativa sua própria vontade do bem se sente una e coerente.
Essa é uma ação benéfica na qual investimos, de modo deliberado e sistemático, todo nosso ser.
Nesse momento, de uma certa forma, ultrapassamos a nós mesmos e vivenciamos a experiência
de ser parte de um todo maior do que nós.
Piero Ferrucci
(*) Piero Ferrucci: Psicoterapeuta; formado em Filosofia pela Università de Torino em 1970;
praticante da Psicossíntese; autor de artigos e livros, nas línguas inglesa, italiana e alemão,
sobre psicossíntese, espiritualidade, música, beleza, crianças. Foi estudante de Dr. Roberto
Assagioli de 1968 a 1974 e depois se tornou seu assistente. Foi diretor do Istituto di
Psicosintesi, de Florença, Itália. Citamos alguns de seus livros:
The Power of Kindness: The Unexpected Benefits of Leading a Compassionate Life
(prefaceado pelo Dalai Lama) (2007) [Traduzido para o portugués: A Arte da Gentileza,
Elsevier-Alegro Editora, Rio de Janeiro - 2004]
Nur die Freundlichen überleben (2006)
Unermesslicher Reichtum des Herzens (2006)
What Our Children Teach Us (2002)
Psicosíntesis (Psychosynthesis) (2001)
I bambini ci insegnano (Ingrandimenti) (1997)
Inevitable Grace: Breakthroughs in the Lives of Great Men and Women: Guides to Your
Self-Realization (1991, 2009)
Roberto Assagioli 1888-1988 (1990)
What We May Be: Techniques for Psychological and Spiritual Growth (1982, 2004).
[Traduzido para o portugués: O que podemos vir a ser, Totalidade Editora, São Paulo -
1999]
Psychosynthesis (1981)
http://www.psicossintese.org.br/Boletins_anteriores/Mostra_um_Boletim.asp?tipo=34 24/6/2009
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