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        INTRODUÇÃO

        A proposta dessa pesquisa é explicitar a relativização propositiva de um
processo artístico, contextualizando a prática de trabalho com a sua reflexão
teórica. Estudo aprofundado que se configurou no presente projeto, de título Em
estado de sítio, que trata da relação entre objeto artístico e o lugar de sua
instalação; e objetiva a instauração de uma interferência na Pinacoteca Barão do
Santo Ângelo, estabelecendo uma relação entre o entorno do lugar e a estrutura
intervencionista. O texto é construído pela própria pesquisa prática suportada por
referenciais artísticos e teóricos, que são entrecruzados do desenvolvimento do
processo à reflexão da sua apreensão no trabalho. O entendimento do processo é
descrito através de experiências pessoais substanciadas por um aporte histórico,
delineando uma linha de pensamento que vai conduzindo a prática do trabalho. O
processo iniciou-se com o desejo de materializar o ar no espaço, mas a
contingência do lugar de montagem foi subvertendo esse ideal, transformando a
relação do lugar com o objeto artístico no grande potencial da pesquisa.

        A construção do meu processo artístico é articulada pela relação entre a
prática e a proposição, uma discordando da outra num embate que vai
configurando todo o meu trabalho. Através de pensamentos, lembranças e
dúvidas vou descrevendo a trajetória que configurou-se na atual proposição de
trabalho. Estabeleço uma reflexão teórica simultaneamente à experiência prática,
comparando-as     e   relativizando   o   que   cada   uma   contribuiu    para   o
desenvolvimento conjunto do processo. Também, ressalto a divisão que o
trabalho foi recebendo, sendo cada etapa fundamental na construção da sua
totalidade.

        Ao longo do processo o interesse em materializar o ar no espaço foi
descoberto; e depois de alguns experimentos na tentativa de amarrar o ar, foram
surgindo novas problemáticas. A conformação do trabalho em relação ao seu local
de instalação, a rearticulação do espaço diante do objeto, a participação do
espectador no seu meio, a operação crítica que um trabalho infere ao lugar;
implicações essas que foram transformando o objetivo inicial, de amarrar o ar,
numa contextualização mais potente da prática de trabalho. A proposição passou
a ser delineada por essa prática; de um trabalho a outro significações foram
9
surgindo, confluindo num ideal ainda mais forte.

         A progressão do processo vai rearticulando-se, desde a ideia inicial de
amarrar o ar, passando pelas adaptações ocorridas diante da contingência do
espaço, até alcançar as proposições específicas para cada lugar; tornando-se a
proposta principal do trabalho essa relação intrincada entre a intervenção e o seu
ambiente físico. O interesse não é somente a apreensão da arquitetura do
ambiente, nem se detém no olhar para o objeto; e sim concentra a significação do
trabalho no conjunto dessa relação criada: objeto visual + entorno do lugar, seja
um ambiente interior ou exterior; estabelecendo um instrumento visual que busca
evidenciar o espaço “entre” esses dois elementos. Configura-se numa situação
que desconcerta tanto o lugar como o projeto do trabalho, estabelecendo uma
correspondência entre algo permanente e algo provisório, uma tensão que coloca
o lugar em estado de sítio. Um evento que acorda o lugar revelando nele um
território artístico.

         Em estado de sítio é a relação provisória entre as estruturas de um
ambiente (no caso a Pinacoteca Barão do Santo Ângelo) e o objeto artístico (a
amarração de fita adesiva); uma relação que acontece no lugar, para o lugar, é o
próprio lugar.

         É possível um acontecimento ser capaz de reestruturar um lugar a ponto
de ampliar a sua percepção? Como uma intervenção pode apreender novos
olhares para um ambiente esquecido, subjugado? De que maneira essa situação
temporária pode suscitar questionamentos, implica experimentações? Que
possibilidades distintas essa interferência pode causar após a sua retirada? E
essa intromissão, foi importante para quê?
10
        1. A CONSTRUÇÃO PRÁTICA DO PROCESSO

        Compreender o meu processo de trabalho a ponto de explicitá-lo em uma
pesquisa é uma tarefa árdua. Eu o percebo instintivamente, porém colocá-lo em
discussão é uma ação que me desperta questionamentos. Isso se deve ao fato de
que, enquanto agente do trabalho, faz-se difícil alcançar o distanciamento
necessário para a visualização de toda a sua articulação no processo; o
envolvimento com a prática domina-me de maneira a direcionar todos os meus
procedimentos    nesse     sentido,   sendo    impossível   apreender     toda   a
contextualização do processo. Enfim, meu intuito neste texto é pensar as minhas
ideias a respeito do meu processo de trabalho. Por meio de ideais, lembranças, e
inquietações, que foram surgindo ao longo da minha trajetória; busquei
estabelecer uma linha de pensamento que descrevesse o que eu desejo
desenvolver com o trabalho, e o que o trabalho pode oferecer. Sei que neste
momento não atinjo todas as respostas à minha pesquisa prática, mas continuarei
buscando-as e a questionando sempre.

        1.1 RAÍZES DE UM PROCESSO

        Em 2005, durante um exercício de aula na faculdade, foi proposta a
escolha de dois objetos e/ou materiais para se desenvolver, a partir deles, uma
série de trabalhos. O termo “série” logo me remeteu às progressões matemáticas;
e, como em uma progressão, tratava-se de um trabalho após o outro, que
mudava, mas estabelecia uma dependência entre seus elementos. Os eleitos
nessa empreitada foram dois velhos conhecidos meus, a caixa de papelão e o
arame. Lembro claramente minha escolha imediata pelo papelão; dita a proposta,
olhei para o lado e lá estava a minha boa companheira, a caixa de papelão.

        Grande parte da minha infância foi vivida enquanto eu entrava e saía de
caixas de papelão, empacotando alguma coisa ou a mim mesmo. Debruçava-me
à noite sobre as minhas cartolinas e fazia projetos de armaduras inspirados em
meus heróis japoneses (Jaspion, Jiraya, Jiban, Cybercops...) e durante o dia eu
colocava os planos em prática. Fixava o papelão com fitas e revestia as
“armaduras” com papel alumínio. Era um tormento para minha família, pois eu
empregava a fita isolante do meu pai, os adesivos da minha irmã [aliás, ela fazia o
11
papel dos meus inimigos, o monstro com quem eu lutava nas brincadeiras], os
rolos de lã da minha mãe; enfim, todo o aparato que estivesse ao alcance dos
meus olhos, e o de menos era eu me empoleirar nos móveis e estruturas da casa.

        Voltando ao exercício da faculdade. Cheguei em casa (com uma caixa de
baixo do braço) pensando no outro objeto, quando vejo meu pai de pé, em cima
da mesa, com um rolo de arame no braço arrumando o lustre. Aí estava decidido,
o bendito arame, elemento que tanto presenciei ao longo de inúmeras gambiarras
que meu pai fazia nos consertos da nossa casa; meu pai sempre resolveu/resolve
tudo com um pedaço de arame e uma tira de fita isolante.

        Escolhidos os dois elementos, iniciei uma série de desenhos de
representação, estabelecendo relações entre os dois; essas composições traziam
tanto aspectos formais como dinâmicos dos materiais. No dia da apresentação,
trouxe todos os desenhos, e eram muitos, juntamente com os seus modelos: a
caixa de papelão e o rolo de arame. Ocupei o chão da sala quase por inteiro com
a disposição dos desenhos e acima deles, no teto, enrolei o arame pendurando
nele a caixa de papelão (fig. 1). Até então eu não havia me conscientizado sobre a
importância do modelo e da representação colocados juntos, mas quando eu os
dispus daquele modo parecia que um estalo norteou-me para os objetos, o
interesse na hora voltou-se para os modelos e não para os seus desenhos. Na
minha defesa do trabalho, inclusive, eu subjuguei os desenhos e me detive na
caixa e no arame, salientando aquela arrumação dos materiais, tornando-se esse
fato o mais importante do exercício.

        Desse experimento em diante, passei a trabalhar com os materiais:
papelão e arame. Desenvolveram-se vários trabalhos misturando os dois
elementos; rasgando e costurando o papelão com o arame, exercícios e mais
exercícios que exploravam uma relação dinâmica entre os materiais (fig. 2). Pouco
a pouco o arame foi sendo encolhido nos trabalhos, até que o interesse se firmou
apenas no papelão. Nos trabalhos seguintes explorei diversas possibilidades do
material, tanto nas suas características formais como nas suas aplicações no dia
a dia. Foram representações da matéria, jogos com os signos das embalagens,
inserções do material em contextos inapropriados ao seu uso, chegando a
registros fotográficos da atuação do material dentro do seu ciclo de importância
13
(fig. 3, 4, 5).


           Dos muitos experimentos dedicados ao papelão, eu comecei a me
interessar pela fita que empacotava as caixas. E esse novo interesse foi
modificando o meu processo de trabalho; uma mudança que transformaria a
simples representação de objetos numa relação entre forma e conteúdo. As
descolagens e colagens das fitas nas caixas produziram alguns trabalhos que
ultrapassaram a forma do material, explorando uma interação minha mais
sensorial com a matéria das caixas. O ruído da descolagem da fita, o rasgo do
papel, as dobraduras das caixas foram me influenciando na prática de
representações formais desses experimentos (fig. 6, 7, 8). Era um novo interesse,
mas a sua realização parecia conformá-los como meros exercícios de percepção
do material. Não conseguia compreender os experimentos como parte, ou como o
próprio trabalho, e continuava tratando-os como estudos para um plano de
representação.

           Nessa etapa, parecia que eu encontrava um bloqueio no entendimento
das minhas intenções de trabalho. Tudo aquilo que eu pensava em relação a ele
acabava           se   estabelecendo,   conformado,   no   plano   do   papel.   Produzi
representações em série, do papelão e seus “derivados”. Esses procedimentos de
estetização das ideias dentro do trabalho estavam me incomodando. Não
conseguia tratar com seriedade as minhas proposições e não era mais possível
artificializá-las em exercícios estéticos ineficazes; apenas em aplicações
decorativas à ideia proposital.

           Do conflito assim estabelecido, resolvi medir o que estava fazendo,
comparar os resultados obtidos aos meus pensamentos propositivos. Dessa
maneira, busquei compreender o que me interessava realmente no trabalho, o
que a sua realização implicaria em soluções satisfatórias para essa compreensão
e o que construiria trabalhos que não perdessem seus ideais ao longo de sua
formalização. Desde o exercício da caixa de papelão e do arame eu pude
identificar um interesse, não pela representação formal, e sim pelo seu potencial
de contribuição às formulações de minhas ideias, sobre o modo como a própria
matéria poderia concentrar as proposições do trabalho. Dessa constatação, a
minha prática de trabalho passou a ser conformada por uma certa disciplina, um
17
cuidado constante para não desviar-se do propósito central. E por muitas vezes
eu encontrava-me “decorando” as propostas de trabalho. Uma etapa bem
conflitante, mas fundamental para o entendimento do meu processo.

          Em junho de 2008, retornei aos testes com a fita e a caixa de papelão.
Repeti mais uma vez os procedimentos de descolagem da fita no papelão, de
novo o ruído e a conformação desse experimento. Gravei todos os testes e,
depois, visualizando-os fiquei intrigado com a forma da caixa e a amarração da
fita, reduzi o volume e repetidamente percebi a fita contornando a caixa, indo e
voltando o vídeo, colando e descolando a fita na superfície da caixa. Esse
momento foi mágico para mim e imediatamente pensei na experiência esdrúxula
que tive com a obra O ar mais próximo1 (fig. 9), do Waltercio Caldas.

          Lembro caminhar entre os fios de lã suspensos no espaço da exposição,
da minha ironia ao assoprar os fios; eu estava irritado com aquilo que vira. Na
saída li a etiqueta com o título O ar mais próximo e, ao me virar, enquadrei a obra
pelo recorte da porta; tive a impressão nesse exato momento como se os fios de
lã amarrassem o ar. Visualizei este como um “queijo provolone”, amarrado por fios
de barbante. Essa situação estranha incomodou-me por dias, passei de um
irônico sopro a uma admiração pela obra do Waltercio Caldas.

          O episódio do ar/queijo amarrado ficou fixado em minha mente e, no
exato momento da gravação da fita envolvendo a caixa, fez todo o sentido; a
experiência elucidou-me um novo interesse. A caixa sumiu como o queijo e, assim
como os fios, as fitas adesivas ficaram sozinhas contornando o ar, amarrando
aquele paralelepípedo construído de ar, de um vazio que para mim transbordava
de cheio.

          Daí em diante, o ar, o vazio que é cheio, e a fita adesiva transparente
passaram a ser meus objetos de desejo. Fiquei alguns dias perdido pensando
como tornar esse desejo realizável, colocá-lo em prática. Mais uma vez recorri
aos planos de representação da ideia, mais uma vez estava estetizando um

1 Experiência ocorrida durante a 6ª Bienal do Mercosul (2007); é importante comentar o formato da mostra
  Conversas na qual essa obra estava exposta: as salas eram divididas em “cubos brancos” instalados no
  armazém do cais do porto (Porto Alegre); cada sala tinha a obra de um artista âncora juntamente a outros
  trabalhos que dialogassem entre si. Essa configuração da sala proporcionou o único recorte, a porta, e da
  diferença entre o espaço expositivo e o lugar da mostra pude estabelecer esse enquadramento.
19
resultado frustrado de concretizar o propósito do trabalho (fig. 10, 11). Encorajado
pelas palavras do professor Flávio, durante a disciplina de Criativo I (setembro de
2008), a pensar o que me interessava de fato no trabalho, a desprender-me
desses exercícios decorativos da proposta, a repensar o que realmente faz o
trabalho.

        Com esse propósito voltei a repensar o objeto de desejo que eu havia
descoberto, no ar acima de tudo. Pensando nisso, lembrei minha infância, a
primeira série na escola; os primeiros exercícios de matemática, nos quais,
durante as avaliações, eu costumava tracejar no ar os pauzinhos correspondentes
às operações de soma e subtração. Recordo-me perfeitamente quando eu riscava
dez pauzinhos e passava o traço por cima de todos fechando a dezena, abaixo eu
fazia uma nova sequência, conforme a necessidade da operação, tudo no ar.
Lembro a professora Olga a me perguntar o que eu estava fazendo. Eu respondi
que contava as carreiras desta maneira. Ela perguntou por que eu não fazia na
folha de papel. E eu respondi que não gostava de sujar o papel e que, além disso,
eu enxergava melhor. Sorrindo ela perguntou se eu não me perdia nas contas, se
não esquecia as carreiras de pauzinhos. Eu prontamente respondi que não e
mostrei a ela como eu fazia as contagens do exercício no ar. Agora, agradeço
muito à professora Olga por ter respeitado a maneira como eu resolvia o
problema, pela atenção dedicada e pela compreensão do meu perfil diferenciado
de aprender.

        1.2 DO IDEAL NA PRÁTICA

        Reunindo essas lembranças, a indicação do professor Flávio e o episódio
da caixa de papelão pendurada, iniciei a tarefa de construir esses contornos para
o ar. O propósito do trabalho parecia estabelecido, o ideal de contornar o ar
tornar-se-ia meu objetivo central. No entanto, colocar em prática esse ideal
transformaria toda a sua importância dentro do processo; a conformação concreta
da ideia perderia a sua potencialidade diante do seu entorno. O lugar de
montagem e o trabalho passariam a interpenetrar-se, e o contorno do ar acabaria
se tornando matéria dessa relação. Nessa pesquisa prática cito alguns
referenciais artísticos e teóricos, referências que são cruzadas entre o
desenvolvimento do processo e a reflexão da sua apreensão no trabalho.
21
          Iniciei uma sequência de experimentos com fita adesiva transparente de
empacotamento, a mesma das caixas de papelão, agora sozinha no trabalho,
buscando uma configuração que se aproximasse do ideal de amarrar o ar. Nesse
período, tomei conhecimento da obra de Fred Sandback (fig. 12, 13), que aliada à
obra e aos escritos do Waltercio Caldas, proporcionaram uma ampliação do meu
entendimento a respeito do espaço atmosférico como possibilidade material do
trabalho. Aliás, as minhas intenções em materializar o ar de algum modo são bem
elucidadas nas palavras do artista Waltercio Caldas:

                          Cada artista tem uma maneira diferente de “ver” o ar e de dar-lhe uma
                          forma. Minha expectativa poética em relação ao ar é que ele reverbere e
                          tilinte como um corpo sólido. Minha intenção é fazer com que o ar seja o
                          mais visível possível, quase um som que necessita de um corpo
                          transparente, fundamental. Um ar óptico. (HONÓRIO, 2006, p. 29)


          As construções geométricas, inicialmente paralelepípedos em função da
forma da caixa de papelão, foram se desenvolvendo no espaço. Eu esticava fios
de poliamida para servirem de estrutura do revestimento feito com a fita, material
todo transparente, uma regra na construção do trabalho. O primeiro experimento
tinha a estrutura toda coberta pela fita, mas perdia a noção de ar amarrado,
tornando-se um sólido pseudo transparente. A transparência não ficava tão
evidente, e o brilho do material intensificava a solidez da forma. Para tanto, resolvi
fragmentar o revestimento da forma, operando sempre com uma camada de fita e
outra de vazio/ar; solução inspirada num trabalho anterior, Ó em metro1 (fig. 14).
Essas amarrações escultóricas pareciam concentrar o ar numa área marcada, ora
o contorno da fita como o positivo da matéria e o ar como o negativo, ora vice-
versa (fig. 15).

          Durante esses experimentos foi surgindo uma nova problemática, a
conformação do trabalho em relação ao seu local de instalação. Do esboço inicial
à sua concretização, a proposta sofria alterações muitas vezes drásticas. Um
tamanho era proposto, mas a altura do ambiente dificultava a fixação da sua
estrutura, alterando a escala do trabalho. A própria materialidade foi sofrendo
adequações dependendo de vários fatores do ambiente de sua montagem, como

1 “Ó em metro”, instalação de desenhos, feitos em bobina de calculadora e bobina de fax, com projeção de
  imagem; a montagem é feita intercalando paralelamente as faixas de desenho e as faixas de vazio.
23
a iluminação, a ventilação; a fita, por ser um material frágil, foi recebendo
diferentes readaptações em sua fixação. Além disso, é fundamental mencionar os
aspectos cinestésicos ao redor do trabalho. Enfim, a complexidade da realização
formal estava instaurada, dificultada, necessitando de uma solução que
viabilizasse, não somente o processo de instalação, mas o conjunto do trabalho,
que deveria ser todo repensado e reconfigurado. Segundo Danto, “[...] algumas
vezes mudamos o mundo para que ele se encaixe em nossas representações; e
outras vezes mudamos nossas representações para que elas se encaixem no
mundo” (2006, p. 12).

          A solução para as dificuldades foi sendo resolvida quando eu comecei a
me preocupar com todas as etapas do trabalho, a colocar em perspectiva todo o
seu processo de viabilização, desde sua ideia inicial até a sua configuração real.
Essa solução encontrou na projeção 2 algo que pudesse medir todas essas
possibilidades de desvio, uma organização que pudesse estruturar melhor todos
os procedimentos de sua possível realização. O conjunto do trabalho passava a
depender de um roteiro traçado pelo seu projeto.

          Desse modo, as primeiras esculturas efêmeras de fita adesiva foram
projetadas, testadas e finalmente instaladas. No entanto, poucas dessas
construções escultóricas não sofreram alterações em relação ao ambiente em
que foram montadas. E dessa relação inconstante do projeto à sua instalação
física foram surgindo novas conformações. O projeto sempre sofria alterações por
uma coluna no meio da sala, por aberturas que desconsertavam a sua
visibilidade, pela iluminação pendente, ventilação excessiva, pelo trânsito do local;
ou seja, do conflito do trabalho no espaço e do espaço no trabalho. Um projeto
estrutural não dava conta das especificidades do lugar em que seria instalado.

          Toda essa problemática se criou em torno da instauração do trabalho em
determinado espaço expositivo. A relação de uma proposta com a sua
configuração física no local de montagem foi se tornando insustentável. Eu
passava mais tempo entretido com as adaptações ao espaço de montagem do
que com a idealização da proposta inicial. O projeto inicial passou a ser como um
rascunho, visto que, não ordenava o trabalho, e a sua montagem assumiu o papel
2 No sentido de colocar as ideias no plano do papel, em projetos de trabalho.
24
de ordenar, de reestruturar o projeto conforme as necessidades do lugar no qual a
construção se instalava.

        Assim, o que era uma escultura efêmera transacional passou a ser
conformado como instalação irrepetível de sua primeira montagem/adaptação ao
espaço expositivo (fig. 16, 17, 18). Ainda que possa ser instalada em outros lugares,
tanto sua estruturação na arquitetura do lugar como a contextualização ambiental
não se repetirão, transformando o projeto inicial a cada montagem específica.
Essa adaptação, de um mesmo projeto, a diferentes lugares e contextos no início
me agradava, era uma maneira de confrontar essas conformações com a
proposta central do trabalho; uma possibilidade que foi se distanciando dos
objetivos iniciais e da configuração que a minha pesquisa necessitava
experimentar. É importante, nessa fase, citar a obra (fig. 19) e o posicionamento
político do artista Daniel Buren, referencial que me proporcionou um
aprofundamento das questões centrais do meu processo; problematizando o
trabalho além das implicações formais, apontando para a sua importância
ideológica dentro de um contexto social e artístico.

        O interesse, a partir daí, voltou-se para uma conexão entre o projeto do
trabalho e o seu local de montagem. Eu comecei a buscar estratégias que
relacionassem a minha proposição central à contingência do seu lugar de
instalação. Da insatisfação anterior com trabalhos que brigavam com seus
espaços de montagem, que acabavam indiferentes à sua proposta central em
detrimento de uma maior acomodação ao lugar da sua instalação; desse embate
que eu cheguei às proposições específicas para cada lugar. Uma nova
configuração do meu processo de trabalho passou a investir na capacidade
espacial de um lugar específico, seja o lugar um ambiente urbano ou rural, seja
uma clausura arquitetural (fig. 20) ou uma paisagem exterior (fig. 21); tanto no
ambiente tradicional da arte como em lugares não comuns a prática artística. A
conformação física da interferência era agora construída a partir do entorno do
seu lugar, e sua espacialização se transformou numa situação que opera
criticamente a condição segregada e/ou inativa desse lugar. Para esses trabalhos
gosto do termo “cerimônia de exposição” trazido por Stéphane Huchet e
explicitado por Jennifer Licht:
28
                       O espaço é agora considerado como um ingrediente ativo, a ser não
                       apenas representado mas conformado (shaped) e tornado característico
                       pelo artista, capaz de envolver e mergulhar o observador e a arte numa
                       situação de maior porte (of greater scope) e escala. De fato, o
                       espectador agora entra no espaço interior da obra de arte […] e se lhe é
                       apresentado um conjunto de condições em vez de um objeto acabado.
                       […] o artista é livre para influenciar, determinar e inclusive governar as
                       sensações do observador. A presença humana e a percepção do
                       contexto espacial tornaram-se materiais da arte. (LICHT. In: HUCHET,
                       2006, p. 31)

Huchet cita dois aspectos que possibilitam essa “cerimônia de exposição”: o
primeiro da genialidade espacial, o desvendar das potencialidades dinâmicas do
espaço; e o segundo da invenção do ato de expor moderno, desde Marcel
Duchamp com suas provocações lançadas às instituições artísticas no início do
século XX. (op. cit. p. 21).

        As adaptações do trabalho encontram suporte no próprio entendimento da
linguagem “instalação”. Segundo Leprun: “A instalação é uma resposta adaptada,
efêmera, frequentemente transformável, que ordena exibe e constrói uma
verdadeira sociabilidade plástica” (1999, p. 21). Considero esse conceito
amplamente discutido por mim ao longo da minha prática de trabalho, visto que a
configuração final de um trabalho meu sempre sofreu alguma adaptação ao seu
lugar de montagem, sendo este muitas vezes transformador da proposta (fig. 22,
23, 24). Para James Elkins (s/d, p. 8), uma instalação bem sucedida controla o

espaço, assim como responde às suas peculiaridades, e uma mal resolvida torna-
se “perdida” no espaço, ou é “indiferente” ao seu entorno. Isso se confirmou com
maior impacto quando resolvi pensar o espaço do lugar relacionado ao trabalho;
não continuaria a construir trabalhos que fossem indiferentes ao seu ambiente de
instalação.

        A função do trabalho não se detém apenas da amarração do espaço
atmosférico, mas também está comprometida na reconfiguração física de um
lugar, em estabelecer outro contexto socioambiental. O trabalho passa a implicar,
além de fatores propositivos, aspectos físicos e sociais num estado provisório que
transforma determinado lugar por um período. A sua interferência torna-se uma
operação crítica na conformação estável de um lugar, configurando-se numa
situação que desestabiliza a percepção e a funcionalidade desse ambiente. Como
a intervenção da artista Ana Maria Tavares (fig. 25, 26), no Projeto Arte/Cidade Zona
30
Leste (2002):

                        A proposta visa romper esta sistemática do acesso e da percepção.
                        Trata-se da instalação de um conjunto de passarelas e escadas que
                        interliguem as diversas áreas existentes nos andares e, através de
                        aberturas feitas nas lajes, os diferentes pisos entre si. Instaurando um
                        dispositivo de circulação inteiramente distinto daquele imposto pela
                        estrutura arquitetônica. O percurso criado não pretende oferecer acesso
                        aos locais. Pelo contrário, trata de evidenciar a impossibilidade de
                        acesso físico a lugares específicos e, ao mesmo tempo, proporcionar
                        uma visão ampliada da arquitetura. O conjunto deve criar uma rede
                        ilógica de tráfego, deslocando o visitante de seu ponto de vista usual e
                        proporcionando-lhe uma distinta experiência espacial. (s/d, s/p.)

Espaços     com     usos     segregados      são     reestruturados      recebendo      novas
possibilidades de fluxo; o trabalho se faz nesse espaço articulando diferentes
maneiras de interação e visualização do seu entorno. “Trabalho e lugar não se
diferenciam, se interpenetram.” (NAVAS, 2009, p. 61) Áreas inativas de
determinado lugar são reanimadas recebendo por imposição alguma visibilidade
dentro do contexto espacial do trabalho. Como escreveu Ligia Canongia:

                        O sentido do objeto nasce no e do espaço público, instituindo uma
                        interdependência notável entre o objeto e o lugar. O próprio conceito de
                        “instalação” que temos hoje parte do pressuposto dessa relação
                        necessária entre o acontecimento formal propriamente dito e o lugar de
                        sua apresentação. (2005, p. 65)




         Com o espaço do lugar integrando formal e propositalmente o trabalho,
uma nova questão insurgiu-se no processo de construção: a experiência do
espectador em relação à situação imposta no determinado lugar. Das questões de
Régis Durand3: “Qual a relação com o espectador tal obra induz? Qual mundo,
qual ‘espaço mental’ ela constitui, e quais procedimentos ela coloca em jogo para
regular a percepção que temos dela?” (In: HUCHET, op. cit. p. 27); à procura de
respostas, busquei repensar minhas proposições. Sendo um lugar ocupado por
uma interrupção provisória é necessário que o conjunto do trabalho considere a
interação dos seus visitantes com essa situação imposta. Portanto, a
reestruturação do espaço não poderia apenas levar em conta os limites
arquitetônicos e/ou paisagísticos do lugar específico, mas também deveria
considerar os padrões de fluxo, as necessidades de trânsito dos visitantes;


3 Durante a leitura dessas questões, em 2009, que me conscientizei da importância do espectador
  interagindo com o trabalho.
32
reconfigurando de modo que transforme, mas não impossibilite a experiência com
o estado temporário do lugar. Preocupação que vai além da interação física, que
possibilita uma relação dialética entre o trabalho e o espectador. Didi-Huberman
trata essa relação como a aura de uma situação, a distância espacial entre o
objeto artístico e o seu experienciador, na qual um olha para o outro.

                     Só pode ser compreendida na dinâmica de um lugar constantemente
                     inquieto […] que tendem a produzir visualmente o efeito de uma
                     ilimitação do objeto, quando este capta e recolhe nele as imagens de um
                     espaço e mesmo corpos espectadores, que se acham em torno dele.
                     (DIDI-HUBERMAN, 1998, p. 139/141)

Robert Morris fala de uma maior consciência do espectador diante de uma obra
em contexto espacial:

                     O espectador torna-se mais consciente do que antes do fato de estar ele
                     mesmo estabelecendo relações, uma vez que apreende o objeto a parte
                     de posições variadas e sob condições variáveis de luz e
                     contextualização espacial. (apud. FRIED, 1993, p. 135)




        O meu trabalho, assim, passou a configurar-se no lugar, para o lugar; é o
próprio lugar [numa espécie de] em estado de sítio. Uma situação que abala as
estruturas do ambiente que ali se inaugura, como escreveu Paulo Sérgio Duarte:
“Ali é ‘o’ lugar da escultura, não poderia ser outro, pois ela fundou esse lugar, e,
ali instalada, praticamente o inaugurou” (2001, p. 44). O conjunto provisório
instaurado se transforma em instrumento visual à experiência do visitante, ativa
um campo de ação dando à percepção o presságio de uma reconfiguração
iminente. Um evento que demarca o espaço de um determinado lugar durante um
intervalo de tempo, que amarra o ar desse ambiente. E é desse ponto que eu
venho operacionalizando toda a minha prática propositiva de trabalho.
33
        2.    PROPOSIÇÃO EM PERSPECTIVA

                      Ou seja, coisas a ver de longe e a tocar de perto coisas que se quer ou
                      não se podem acariciar. Obstáculos, mas também coisas de onde sair e
                      onde reentrar. Ou seja, volumes dotados de vazios. Precisemos ainda a
                      questão: o que seria portanto um volume – um volume, um corpo já –
                      que mostrasse a perda de um corpo? O que é um volume portador,
                      mostrador de vazio? Como mostrar um vazio? E como fazer desse ato
                      uma forma – uma forma que nos olha? (DIDI-HUBERMAN, op. cit. p. 35)




        O conjunto provisório que o trabalho formaliza leva em consideração o
seu lugar de instauração, depende em primeiro passo da escolha desse lugar. A
proposição do trabalho parte das especificidades do ambiente no qual pretende
interferir. Do cruzamento do meu desejo em amarrar o ar, torná-lo visível no
espaço, com as implicações específicas do lugar da interferência; dessa tensão
que o trabalho insurge criticamente, materializa-se no lugar. E, da proposição à
interferência, uma série de levantamentos são confrontados numa pesquisa sobre
o trabalho; pesquisa que vai articulando todo o processo dentro de uma produção
documental, documentos que roteirizam os procedimentos e arquivo que
comprova a existência da intervenção. Material constituinte de um evento com
lugar e tempo marcados; uma das partes da totalidade do trabalho. Para tanto,
explico a divisão de todo o processo relacionando as questões propositivas às
suas demandas em cada etapa.

        2.1 DAS ETAPAS DO PROCESSO

        O processo do trabalho é dividido de maneira sistemática, e isso é
imposto por mim de modo que cada etapa objetive uma demanda própria dentro
do processo. Cada etapa seguida da outra de modo a operacionalizar todo o
conjunto do trabalho. A divisão é feita em quatro etapas:

             I. LUGAR – a escolha do lugar, o levantamento do seu potencial de
                espacialidade, a referência topográfica específica

             II. ARQUIVO – a elaboração de uma documentação do trabalho: os
                esboços, os projetos/croquis, as vistas partidas, a maquete

             III. MONTAGEM – a experiência de instalar o trabalho, os dados de
34
               desvio com as adaptações ocorridas do projeto à sua estruturação
               física

           IV. SITUAÇÃO – a interferência no lugar, o lugar na interferência; uma
               análise dessa conformação do conjunto diante da situação
               estabelecida

        2.2. OPERAÇÃO CRÍTICA

        A intenção do conjunto do trabalho opera na desestabilização do lugar,
criando uma nova configuração física para o ambiente, com outras possibilidades
perceptivas para esse determinado lugar. A interferência serve como um
dispositivo de reanimação do espaço inativo ou subjugado do lugar, rearticulando
suas necessidades físicas e sociais diante de uma situação temporária. Acima de
tudo, serve como uma crítica à acomodação perceptiva de determinados lugares.
Segundo Rosalyn Deutsche (apud. KWON, 1997, p.184), existem dois modelos
distintos de sítio específico: o assimilativo e o intervencionista; sendo o primeiro
uma integração do trabalho ao ambiente físico, e o segundo como uma
intervenção crítica na ordem existente do local. Dessa distinção, estabeleço uma
relação: o trabalho é integrado ao ambiente ao mesmo tempo em que interfere na
sua dinâmica comum; sua operação crítica se apoia nas estruturas existentes,
transformando-as de maneira a romper com a ordem do lugar; um modelo, desse
modo, assimilativo intervencionista.

        Segundo Miwon Kwon, a garantia de uma relação específica entre o
trabalho artístico e o seu lugar (site) está no reconhecimento da sua
impermanência móvel, na sua experimentação como uma situação irrepetível e
evanescente. “O trabalho não quer mais ser um substantivo/objeto, mas um
verbo/processo, provocando a acuidade crítica (não somente física) do
espectador no que concerne às condições ideológicas dessa experiência”
(KWON, op. cit. p.170/171). Dessa análise e para que essa situação se configure
no meu trabalho, é necessário um conhecimento preestabelecido do lugar
específico por parte dos espectadores, do contrário duas possibilidades de
apreensão do trabalho serão colocadas em questão: a primeira como apropriação
do lugar, a relação da intervenção com o seu entorno; e a segunda como uma
35
adaptação ao ambiente de sua instalação.

        O potencial de ativação do espaço, através da situação imposta pela
interferência, passado um tempo acaba sendo incorporado ao lugar; isso ocorre
porque a visualização contínua de um acontecimento acaba retirando a sua
importância, tornando-o, como o seu lugar anterior à intervenção, indiferente a
percepção cotidiana. Para a apreensão da capacidade de ativação do lugar é
necessária a retirada da materialidade instalada, assimilando características
próprias do lugar que o trabalho tornou a aparecer. Desse modo, estabelece-se
uma relevância crítica entre um estado inativo e/ou segregado anterior e o estado
que o determinado lugar esteve durante a situação imposta pela interferência,
dessa comparação insurge outros olhares para esse lugar.

        2.3. DO LUGAR

        A procura de um lugar específico para cada situação de trabalho vai além
de razões estéticas, como as arquitetônicas ou paisagísticas. Essa busca de um
lugar próprio é irrelevante, pois todo lugar possui um potencial de espacialização
contido no seu entorno. E a sua procura deve se pautar na delimitação dessa
potencialidade, que posta à prova, materializará a intervenção; conciliar os
contornos particulares desse lugar para definir uma estrutura que faça o espaço
do ar, o espaço atmosférico, apresentar-se no ambiente. Nessa conciliação as
necessidades contextuais do lugar devem ser consideradas. E o trabalho se
instaura, na medida em que a intervenção se articula dentro desse contexto do
lugar e na maneira como essa situação interruptiva se transforma em um novo, e
próprio, contexto para o lugar.

        A relação da interferência com a arquitetura do lugar poderia ser
aprofundada diante das muitas aproximações interdisciplinares da arte com outras
ciências humanas, mas o objetivo do trabalho não se detém às possibilidades
arquitetônicas ou é configurado para a arquitetura; isso não é o mais relevante no
conjunto do trabalho, visto que a articulação é voltada para “lugares”, sejam
ambientes internos ou externos. O conjunto do trabalho não se propõe a construir
um novo espaço ou uma nova funcionalidade para o lugar, mas atenta-se ao seu
despertar perceptivo, a um reaparecimento e uma rearticulação no mundo. A
36
relação com a arquitetura pode acontecer e acontece, mas em detrimento da
potencialidade espacial do lugar, da dimensão transformadora que a situação
temporária causará no ambiente através de uma multiplicidade de apreensões do
estado de sítio do lugar. O interesse está voltado para um desconforto usual,
arquitetônico ou paisagístico, operando uma certa instabilidade desconcertante.
Enfim, o objetivo da interferência é a dinamização do espaço do lugar, ampliando
o foco a qualquer lugar que um trabalho venha a conectar-se. Posso interferir
numa praça, numa cozinha qualquer, numa montanha, num poste de iluminação,
num lago; o que importa nessa possível intervenção não é o lugar em si, mas
como essa interrupção pode reanimá-lo, recontextualizá-lo ao seu meio
coexistente.

       O fazer espaço num determinado lugar implica em conferir-lhe uma
parcela de vida, visto que um espaço só existe mediante um conjunto de relações
entre um ambiente físico e seus habitantes; fazer espaço é acordar o lugar, com
as palavras Heidegger:

                     Na palavra espaço, está contido o fazer – e deixar – espaço. Isso
                     significa desmatar, preparar o terreno. Fazer espaço é livre doação de
                     lugares. No fazer espaços se expressa e se esconde ao mesmo tempo
                     um acontecer. Como se dá o fazer e deixar espaço? É um dispor e pôr
                     em ordem, e isso, por sua vez, no dúplice modo do acordar [harmonizar]
                     o acesso e do instalar. Fazer-espaço é o evento que acorda os lugares.
                     (1998, p. 27).




À medida que um lugar tem seu espaço obliterado de função, de percepção, esse
espaço passa a não existir, invisível, um território de ninguém. Escreveu Merleau-
Ponty: “o espaço não é um ambiente (real ou lógico) em que as coisas se
dispõem, mas o meio pelo qual a posição das coisas se torna possível” (1996, p.
328). E é essa estagnação espacial que o trabalho se propõe a transformar,
mexendo com o espaço atmosférico do lugar através do seu entorno apagado
e/ou subjugado; estabelecendo uma relação entre o espaço atmosférico e a sua
estrutura arquitetural anulada, despercebida, configurando uma forma geométrica
capaz de lidar com essa tensão despertada.
37
          2.4. ESPAÇO ENTRE

          Na amarração proposta em determinado espaço, constrói-se um outro
tipo de volume, um volume vazio do visível. Para Aristóteles, “a teoria de que o
vazio existe envolve a existência de lugar: poder-se-ia definir o vazio como o lugar
desprovido de corpo” (ARISTÓTELES, Livro 4, Parte 1). O ar do ambiente parece
embaçar contornos através das múltiplas espacializações que as faixas de fita
produzem. Esses contornos levemente construídos pelo olhar diante da situação
do lugar vão criando infinitas espacialidades do vazio. Vão propondo uma
possível visibilidade, ainda que virtual 1, do ar do ambiente. A alternância entre
uma faixa de fita e uma faixa de vazio, e de sua reverberação pelo espaço
atmosférico, faz do espaço entre uma tensão entre o real e o virtual. Uma relação
entre o visto e o proposto a ver; matéria da situação:

                            O ar que as cerca ou que as atravessa parece expressivo, como os
                            intervalos de silêncio numa composição musical. Como se o trabalho
                            também se construísse ao lado, e não só onde ele se encontra. O ar e o
                            vazio, ao contrário de “representações” do nada, adquirem o estatuto de
                            material da obra, muitas vezes o mais abundante.(DUARTE, 2001,p. 76) 2

          2.5. ARQUIVO

          A projeção de um trabalho, para mim, já é conformada na sua idealização,
na sua concepção, na importância que o objeto desempenhará quando intervier
no mundo. E, desde o primeiro esboço (fig. 27), o trabalho já começa a medir essa
necessidade em tornar-se um acontecimento concreto, tangível à realidade do
mundo. Os esboços, os croquis, a maquete, as vistas partidas, entre outras
maneiras de representar um projeto são para mim como pensamentos práticos do
trabalho. São ideias concretas que vão estabelecendo relações entre a primeira
idealização até uma possível realização. Estudos que vão além de um roteiro do
trabalho, tornando-se agentes esmiuçadores das possibilidades de uma
interferência. São o peso e a medida de um processo que configura o produto
final. Documentos que comprovam a existência de uma ideia, e que depois da
realização, tornam-se arquivos do trabalho, comprovantes de todo o processo.

          O arquivo do trabalho acaba configurando uma documentação do

1 Em meu trabalho entendo por virtual a possibilidade de visualizar algo suscetível a materialização.
2 Comentário de Paulo Sérgio Duarte a respeito da obra “O ar mais próximo”do Waltercio Caldas.
39
processo, articulando desde o seu roteiro até a sua dimensão técnica. A etapa
final, do estabelecimento físico, muitas vezes não consegue apreender toda a sua
dimensão estrutural, seja pela exacerbação da interferência que se impõe diante
do lugar, seja pelo caráter fenomenológico da situação imposta diante do
visualizador; sendo um desenho do projeto capaz de orientar uma visão ampla de
sua conformação física e propositiva. Todos os desenhos que acompanham o
projeto, depois do término da intervenção, acabam colaborando para a
preservação do seu acontecimento físico (fig. 28); são como certidões de
nascimento e óbito da situação gerada pela intervenção. Enquanto os registros
fotográficos se detêm na forma e na interação da interferência com o lugar e
desse conjunto com o espectador, os desenhos do projeto se ocupam da
materialização das ideias contidas no programa de construção do trabalho.

        As fotografias, assim como a experiência do visitante, são rapidamente
desviadas pelo poder de sedução da intervenção. Os recortes visuais que a forma
produz são múltiplos, de um lado a outro se perde a noção da totalidade, cada
parte parece derrubar a outra, formando um jogo de ângulos percorridos visual e
fisicamente. E essa experiência fragmentada faz da compreensão do trabalho
algo desconcertante, sendo necessário um material de apoio que concentre mais
objetivamente o eixo central da intervenção no lugar (fig. 29, 30); função que a
fotografia documental única não oferece, sendo a sua capacidade limitada a
exatidão do recorte visual da forma instalada.

        Não considero a instalação física como um trabalho em si, e sim a
conformação final de um processo que se iniciou com o primeiro esboço, tornando
cada etapa importante para a instauração do trabalho. Essa compartição do
processo deve ser contabilizada, a cada procedimento, como um todo e o todo
como o próprio trabalho. Como a própria interferência, os desenhos são sim
ilustrações, mas ilustrações da ideia, do pensamento que a proposição do
trabalho carrega. Já, o conjunto de todos esses meios de ilustração, concentra um
consenso decorrente do próprio processo, todas as mudanças, os desvios, os
avanços que evoluíram na conformação final da intervenção.

        Os diferentes modos de visualização do processo são dispostos com
proveito, de maneira hierarquizada, organizando os documentos conforme a
41
operacionalização do projeto. A linha do tempo, detalhada pela documentação,
passa a dar conta do andamento e da espacialização da interferência no lugar. Os
desenhos são como um glossário bem resolvido do processo de instauração do
trabalho. Conforme Sylviane Leprun:

                     Croquis, esboço e desenho preparatório, são outros vocábulos
                     profissionais que introduzem/imiscuem-se no espaço da instalação,
                     permitindo medir a parte de aleatório do projeto, mas também a
                     necessidade de dominar o espaço, a fim de alcançar o efeito
                     convencionado e desejado. (1999, op. cit. p. 22)




        A produção dos documentos arquivísticos é um período de pesquisa que
estrutura toda a produção do trabalho, que põe em prova todo o caráter aleatório.
Daniel Buren ressalta o caráter de incerteza do projeto, “o que é decisivo só a
realização virá indicar visualmente (praticamente) o que esse trabalho quer dizer
(teoricamente), ressaltando então, as distâncias entre uma hipótese de trabalho e
sua realização” (In: LEPRUN, op. cit. p. 23). Ultrapassa a maneira convencional
de uma projeção representativa para se enquadrar como absoluto do trabalho.
Material arquivístico que dá a sua dimensão antropológica; tanto na produção
(antes) e na instauração (durante), como depois, sendo a memória, a
comprovação documental dessa determinada situação. Escrituras de um
acontecimento social artístico.

        2.6 A MATERIALIDADE

        A construção material do meu trabalho é, acima de tudo, proposta pelo
seu local de instalação, e essa relação com lugar é possível pela própria matéria
empregada. A sua configuração se dá através dos componentes estruturais do
lugar, seja um ambiente interno ou externo, opera numa conformação com o
determinado lugar. A dimensão exacerbada está contida na própria proposição do
trabalho. Dentro dessa conformação, é claro, existe um interesse meu pelas
formas geométricas contidas e estruturadas pela arquitetura e/ou paisagem
urbana, um interesse que busca desdobrar-se na apreensão do vazio contido no
espaço. No entanto, é preciso considerar o modo como idealizo essa
materialização física, os meus interesses reais na sua operacionalização. Fecho
essas considerações dedicando-me à visualidade da interferência.
42
           A dimensão, primeiramente, é estabelecida na quase totalidade do
espaço do lugar em função do meu estado exagerado de ser. Em segundo, pela
imposição da presença, não pensaria em fazer um trabalho que não fosse notado,
faço-o presente obrigando a sua visualização. Numa atitude crítica em relação ao
desapego          perceptivo           que       a     velocidade            da      informação            carrega,         uma
inconformação minha de um universo abarrotado dessas informações e vazio de
significados. Como se a vertigem da velocidade estivesse substituindo a ideia! Da
música Aprendiz de feiticeiro1, do compositor Itamar Assumpção: “Aprendi da
importância de não dar muita importância/ Ficar com os meus pés no chão […].”
Esse trecho resume bem a atual condição de desapego ao diferente, a tudo que
modifica ou causa um estranhamento, parece mesmo uma atitude de
esvaziamento das ideias e da capacidade de assimilação. Eu tento contrariar
esse contexto com a configuração do trabalho, amplio o seu tamanho a
capacidade de envolver o visitante, não sendo esse capaz de fugir da experiência.
De certo modo, essa atitude de imposição é drástica, mas nesse momento eu
penso ser uma alternativa interruptiva necessária. Quando tudo aparece com a
mesma importância, então tudo passa a ter importância nenhuma. Emprego as
palavras de Waltercio Caldas para resumir a grande dimensão da presença:
“Tendo a acreditar que o significado é a capacidade que o objeto tem de preservar
sua capacidade de aparecer; capacidade que ele próprio produz com uma energia
inventada de presença.” (HONÓRIO, op. cit. p. 30)

           A relação entre o lugar e a sua interferência só é possível através da
matéria da fita adesiva. A transparência do material deixa revelar o seu entorno,
forma uma camada que não segura o olhar, faz ultrapassá-lo além da sua
conformação física. O brilho revelado pela iluminação do ambiente acaba
contribuindo para uma inebriante percepção da matéria, deixando as fitas presas
às estruturas do espaço, mas livres a espacialidades visuais. A tensão gerada
pelo esticamento das fitas, de um ponto ao outro do ambiente, contrasta com a
sua fragilidade. O aspecto fragmentado sequencial das faixas de fita materializa o

1 Interpretada por Cássia Eller, álbum “Com você... meu mundo ficaria completo”(1998). Letra completa:
   Aprendiz de feiticeiro [refrão]/ [refrão](3x)/ Aprendi quando criança que além de tudo/ Balança/ Esse nosso mundo cão/ Aprendi
   que quem não dança, já dançou na sua infância/ Senão rock foi baião/ Aprendi da importância de não dar muita importância/ Ficar
   com os meus pés no chão/ Aprendi que viver cansa, mesmo vivendo na França/ Mesmo indo de avião/ Aprendi que a desavença é
   porque sempre/ Alguém pensa/ Que ninguém mais tem razão/ [refrão](2x)/ Aprendi que tudo passa, tomando chá ou cachaça/
   Tomando champanhe ou não/ Aprendi que a descrença, a desconfiança e a doença/ São partes da maldição/ Aprendi que a
   ignorância, a sordidez e a ganância/ São lavas desse vulcão/ Aprendi que essa fumaça a minha janela embaça/ Por fora, por dentro,
   não/ Aprendi tetra depressa que a taça do mundo é nossa/ E que São Paulo é meu sertão/ [refrão]
43
espaço interior da amarração, e nesses recortes de fita e vazio o ar circula,
agregando-se na cola das faixas adesivas; condensando a matéria da
interferência numa relação espaçotemporal. A trama das faixas é como um respiro
do lugar em relação à interferência e da interferência em relação ao lugar; ambos
pulsando juntos, movimentando esse estado temporário.

         O meu interesse pelas formas geométricas, delimitadas pelas estruturas
do ambiente, está mais relacionado à vontade de materializar o espaço entre do
lugar, o espaço atmosférico, do ar. As formas criam uma tensão entre o que posso
realizar com os elementos que tenho do lugar e a quantidade de formas que elas
logram produzir apesar da minha deliberação. Eu as conduzo, não as comando.
Mesmo assim é importante ressaltar o meu interesse pela matemática, como
ciência capaz de elucidar ideias, pô-las em cheque fazendo a prova dos nove.
Desde os desenhos, de todo o material do arquivo, já está implicada uma
perspectiva do trabalho, algo que configura o processo contabilizando as suas
partes, mas que se ocupa primeiramente em medir o vazio do espaço, a sua
atmosfera. Sobre a perspectiva (do vazio):

                         Esse sistema, estruturado a partir da descoberta da perspectiva, permitiu
                         a medição dos objetos no espaço, mas a grande inovação foi que ele
                         servia à medição dos vazios. Era impossível medi-los anteriormente e
                         provavelmente muito difícil de entendê-los para um indivíduo anterior ao
                         Renascimento, ainda baseado e influenciado pelas percepções e medos
                         da Antiguidade. No Renascimento, os indivíduos estavam, pelo contrário,
                         prontos para desbravar novos mundos e cobrir as áreas vazias dos
                         mapas e do conhecimento. (KIRSCHBAUM. In: CATTANI, 2004,
                         P.194/195)2

         Ainda, sobre a forma que o trabalho assume, eu poderia abraçar estudos
aprofundados de geometria descritiva, também fazer comparações com os ideais
construtivistas, ou ainda pontuar os princípios da Gestalt. No entanto, considero
essas aproximações demasiadamente redundantes e inapropriadas. Vejo, tanto
as operações geométricas como a suposta correspondência construtivista, como
sendo configurações trabalhadas por mim, mas acima de tudo impostas por
componentes exclusivos de um material, de um objeto ou da própria estrutura do
lugar; e não posso traçar significações que para mim são coadjuvantes do


2 Nesse texto, Michal Kirschbaum faz importante estudo sobre a representação espacial na arte
  contemporânea, desde uma análise do espaço bidimensional até os sistemas técnicos empregados em
  projetos artísticos, o que ele chama “arte no processo”(p. 196).
44
trabalho, conhecimento agregado, de orelhada . Afinal, ao longo dos últimos
                                                               3


noventa anos, qual paisagem urbana ou ambiente interno não: Influenciou-se ou
se estruturou nos moldes do construtivismo? Guiou-se pelas leis da Gestalt? Que
para tanto usaram a geometria? Eu respondo, todos e tudo. Por isso, não
considero a forma do trabalho uma recorrência de algum movimento, escola, ou
conhecimento científico aprofundado; esse tipo de relação chega ao mais simples
do descritível. O que a configura são influências contaminadas no próprio
contexto, tanto do meu processo de criação como do ambiente que o trabalho se
insere; parte de uma linguagem que, por assim dizer, pertence ao mundo. Não
quero com esse trabalho ensinar a ordem das coisas, expressar os meus ideais
de alguma coisa interior; quero sim é reordenar o fluxo existente, desestabilizar as
estruturas estagnadas, amarrar os extremos jogando-os ao meio, sacudir o
espaço “entre” dessa amarração, configurar uma situação própria para se
perceber além dessa relação provisória. Conforme Didi-Huberman:

                           Eis, em todo caso, o que permanece difícil de pensar: que um volume
                           geométrico possa inquietar nosso ver e nos olhar desde seu fundo de
                           humanidade fugaz; desde sua estatura e desde sua dessemelhança
                           visual que opera uma perda e faz o visível voar em pedaços. Eis a dupla
                           distância que devemos tentar compreender. (DIDI-HUBERMAN, 1998, p.
                           146)

          Sobre a visualidade do trabalho, ressalto a sua relevância na experiência
com o visitante, na sedução que a forma infere ao seu experimentador. Em
estado de chamar a atenção, a configuração física instiga a sua percepção. A sua
beleza cambiante entra como matéria da interferência, como possibilidade de sua
fruição. Resumo minha intenção a respeito da visualidade nas palavras de Daniel
Buren:

                           Se é bonito, tanto melhor. Como todo mundo sabe, o que cria a beleza
                           eminentemente misteriosa, pode ajudar a compreensão. Isto não pode
                           ser negativo. O que é negativo é a beleza por ela, mas neste caso, trata-
                           se ainda de beleza? Não acredito. Dito isso, tanto melhor se o produto
                           ainda por cima é bonito, isso faz parte do luxo e da generosidade. A
                           beleza, como “instrumento visual”, não é o objetivo do trabalho, mas um
                           dos seus meios. (2001, p. 141)




3 Expressão popular (bras.) dada a todo conhecimento que é ensinado por fontes inapropriadas, ou ainda,
  através de terceiros. Exemplo: O que é hostil? Ah! Hostil é um comprimido que se dá na igreja.
45
         3. PROJETO PINACOTECA

                          Contemplando o local, ele reverberava para os horizontes sugerindo um
                          ciclone imóvel, enquanto a luz bruxuleante fazia com que a paisagem
                          inteira parecesse sacudir. Um terremoto dormente propagava-se por uma
                          imensa circularidade. Desse espaço giratório surgiu a possibilidade do
                          Quebra-mar espiral. Nenhuma ideia, conceito, sistema, estrutura ou
                          abstração podiam sustentar-se diante da realidade daquela prova
                          fenomenológica. (SMITHSON. In: KRAUSS, 1998, p. 336) 1




         Com o relato de Smithson, inicio a proposta de intervenção na
Pinacoteca Barão de Santo Ângelo, e comento que uma proposição específica a
um determinado lugar sempre é guiada por uma experiência com esse lugar, uma
correspondência dialética entre o lugar e o seu interventor.

         Para o projeto de interferência na pinacoteca me detive, primeiramente,
em dois elementos presentes na sua arquitetura: as barras para sustentação e a
coluna. A coluna por sempre me parecer a atriz principal do ambiente, e as barras
pelo seu esquecimento visual e funcional. Esses dois elementos são unidos de
modo que configurem um novo contexto para o ambiente da pinacoteca. É
necessário também distinguir um trabalho feito em território da arte de um
trabalho que demarque um território artístico dentro de um contexto que não lhe é
comum, nas implicações críticas que essa interrupção traz. Ainda mais, explicar a
construção de um território artístico dentro de um contexto que é da arte.

         A pinacoteca, no contexto de um espaço de exposição, prima por uma
neutralidade sensorial do seu ambiente. Implicada em suportar o significante, a
obra de arte, sendo na maioria das vezes um receptáculo neutro que se restringe
diante de algo maior. Confesso que essa implicação não me faz diferenciar esse
trabalho de uma interferência, por exemplo, em uma praça; apenas a pontuo por
fazer parte do contexto do lugar 2; questionamentos que eu levantaria em
“qualquer” outro lugar que eu venha a inferir um trabalho. Considerando que no
âmbito da arte já passamos a fase do “cubo branco” 3, respiro as palavras de

1 Escrito de Robert Smithson sobre o seu primeiro contato com o lugar do trabalho, experiência que
  originou a obra “Quebra-mar espiral”.
2 O termo “lugar” aqui é empregado além da função de localização específica, estende-se ao contexto de
  território artístico, de espaço da arte.
3 Modelo museológico moderno que neutraliza o espaço arquitetônico em função de uma melhor exposição
  dos objetos artísticos.
46
Miwon Kwon:

                     Depois da arte site specific, […] o espaço estéril e idealista puro dos
                     modernismos dominantes foi radicalmente deslocado pela materialidade
                     da paisagem natural ou do espaço impuro e ordinário do cotidiano. O
                     espaço de arte não era mais percebido como lacuna, tabula rasa, mas
                     como espaço real. (op. cit. p. 86)

Embora seja um ambiente artístico, considero a sua arquitetura uma ousadia a
esse conceito de espaço neutro; sua estrutura física é bem marcante e, para mim,
às vezes, sobrepõe-se aos objetos expostos. A sala vazia, de objetos, por si já se
mostra um espaço atrativo à percepção, é só olhar o desenho do piso, o gradil do
teto e sua iluminação, a forma em L, a coluna onipresente; enfim, aí já reside boa
parte do meu interesse em mexer com esse lugar.

        Tudo é reordenado no espaço do lugar. Transforma-se a compreensão de
altura, largura, profundidade; o teto torna-se inatingível e o fluxo ganha uma nova
circulação. A coluna, peça única de destaque dentro da pinacoteca, na
sustentação do prédio; pelas implicações físicas e funcionais ela é uma peça
adversa no âmbito artístico, sendo um bloqueio ao espaço neutral que a galeria
supostamente se propõe. Confesso que ao entrar na pinacoteca o que vejo
primeiro e, aliás, ao pensar, é o que primeiro visualizo. Ou seja, para mim, a
coluna é um elemento arquitetural que por si só desestabiliza a compreensão da
funcionalidade do espaço. Já as barras, que um dia serviram como sustentação a
obras penduráveis, parecem anuladas a meros elementos constituintes das
paredes da pinacoteca. Passaram de funcionais a adereços por vezes nem vistos,
segregados a não utilidade e a não percepção; estando ali apagados na
configuração atual do espaço da pinacoteca. Dessa dualidade entre aparecido e
apagado que se configura a forma do trabalho.

        Com a interferência, o trânsito no espaço da pinacoteca passa a ter uma
nova dinâmica, possibilitando novas percepções do próprio lugar. Das diferentes
visitas a exposições e eventos na pinacoteca, pude perceber que o fluxo de
visitantes e profissionais atuantes se desloca nas áreas centrais do espaço. Na
maioria das vezes, é esse o deslocamento do circulante, notadamente uma
atitude de zelo e/ou afastamento diante dos objetos artísticos ali expostos. E,
nesse modo de circulação, o trabalho também se ocupa de desarticular, fazendo a
47
forma da interferência preencher o centro, os meios do espaço, obliterando um
percurso pelos contornos quase rente às paredes. A nova configuração distorce o
fluxo, a estrutura amarrada impõe uma disciplina no percurso dos visitantes,
restringindo caminhos usuais e obrigando novas possibilidades de visualização do
próprio ambiente. A interferência não limita os passos do visitante, o limite é
apenas ao fluxo usual, estando o espaço todo articulado para inúmeras maneiras
de interação.

         Para a montagem da interferência, divido as respectivas barras das
paredes da pinacoteca em sete partes, o mesmo número de paredes do
ambiente. A coluna, com seus quatro lados que são divididos em sete partes,
cada parte de acordo com a sua respectiva barra/parede. O revestimento com as
fitas faz a correspondência entre essas sete retas reversas, as horizontais das
barras nas paredes e as verticais das barras na coluna. Saindo da primeira barra
em direção ao seu respectivo ponto na coluna, repetindo o mesmo procedimento
até completar a forma da intervenção. (fig. 31, 32, 33, 34, 35, 36)

         Portanto, determinei a construção desse trabalho na pinacoteca de modo
que ele reestruturasse toda a dinâmica visual e física do lugar. E isso não limita
um interesse apenas pelos aspectos arquiteturais do ambiente ao invés de um
olhar para o objeto, mas sim objetiva a compreensão/função do trabalho no
conjunto dessa relação criada: objeto visual + arquitetura do lugar; estabelecendo
um instrumento visual que busca evidenciar o espaço “entre” dois elementos. A
correspondência entre algo estabelecido e algo provisório, configurando uma
situação que desestabiliza tanto o lugar como o projeto do trabalho, uma tensão
que põe o lugar em estado de sítio. Um evento que acorda o lugar revelando um
território artístico.
51
       CONSIDERAÇÕES FINAIS

       O objetivo do trabalho foi rearticular a dinâmica visual e física da
Pinacoteca Barão do Santo Ângelo. Ainda que eu não tenha realizado a
montagem da interferência, saliento a importância da construção do arquivo
desse trabalho, que possibilitou toda a sua operacionalização formal e conceitual
e que, de certo modo, tranquiliza-me dos possíveis resultados do trabalho.
Também considero a pesquisa muito relevante para o entendimento do meu
próprio processo artístico, a problematização que esse estudo gerou dentro da
minha prática de trabalho e de que maneira isso foi indispensável para o
fortalecimento das minhas ideias. Finalizo direcionando os próximos passos da
pesquisa, quais questionamentos já tenho em mente e quais estratégias buscarei
para respondê-los.

       A interferência que se realizará na Pinacoteca Barão do Santo Ângelo, no
que concerne a sua exequibilidade, já está toda articulada por seus projetos
gráficos. O arquivo, assim, desempenha (além de comprovante da situação ali
instalada) um papel controlador de sua montagem. Claro que a execução da
montagem acarretará outras insurgências (dados de desvio que eu faço questão
de registrar), mas na grande maioria está tudo controlado pelo projeto. Nesse
estágio sobrepõem-se três apreensões: a suposta certeza da projeção, o encontro
real do trabalho na situação e a minha própria relativização desse contexto; dessa
confluência de estados o acontecimento se instaura.

       A importância da pesquisa vai além do desenvolvimento da minha prática
artística, e torna-se mais relevante para o crescimento dos meus propósitos de
trabalho, para o entendimento do meu próprio processo artístico. Durante o
estudo pude perceber novos interesses e demandas de trabalho que a prática
instintiva não oportunizara. Surgiram várias questões que o trabalho necessitava
responder, tanto na proposição das ideias como na sua materialização.
Discordâncias e constatações que imbricaram-se na atual proposta do meu
trabalho, no meu interesse pelo potencial de espacialização de lugares
específicos. Nesse sentido, a pesquisa foi fundamental e transformadora.

       Do processo de entendimento do meu trabalho, pude compreender a
52
dinâmica de uma pesquisa artística. Para mim, o desenvolvimento antes era
realizado através dos trabalhos prontos, que se sucediam estabelecendo relações
ou discordando completamente. E através dessa pesquisa pude perceber uma
linha de conexão não entre trabalhos materiais, e sim questões de trabalho,
propósitos principais que encontram-se na totalidade do processo. Passei a ver o
meu trabalho como um processo, prático nas resultantes materializadas e
ideológico nos questionamentos propositivos.

          O meu processo artístico foi configurando-se através de novas demandas
que o trabalho necessitava experimentar. Iniciei com exercícios aleatórios de
representação, constatei um ideal maior e tentei colocá-lo em prática, construí
alguns experimentos geométricos espaciais e na ampliação desses para trabalhos
físicos surgiram alguns problemas; passei um período tentando conformar isso
nos espaços de montagem, algumas vezes consegui, outras não. E nesse
caminho um interesse norteador conferiu-se ao trabalho: o lugar. Acima de
qualquer outro desejo meu o lugar se impunha, manifestava-se de maneira
potencial no trabalho; dessa constatação não tive outra alternativa que não fosse
trabalhar, mexer com lugares, de construir trabalhos que já foram, são e serão
lugares. Interferências provisórias que se propõem a explicitar esse jogo entre o
antes, o durante e o depois.

          Da apreensão do meu propósito principal de trabalho, estabeleço outras
direções para o processo. Divido a atual conformação do meu trabalho em dois
interesses que continuarei explorando: a construção do espaço entre, numa
preocupação com a materialização desse ideal; e o lugar, as possibilidades que
diferentes lugares podem proporcionar como matéria do trabalho. Desse último,
buscarei um desenvolvimento que supere a interação espacial com uma clausura
arquitetural ou uma paisagem exterior; que possibilite uma investigação mais
geográfica, antropológica dos lugares. Talvez uma dimensão ainda mais
exacerbada, na escala pública, como as mega interferências de Janet Echelman 1
(fig. 37, 38). Trabalhos que extravasem lugares, que se enriqueçam do próprio


1 Artista americana. Trabalha com grandes instalações em ambientes internos, mas sobretudo na paisagem
  urbana. A materialidade de suas interferências são repetidas, as formas e o material (rede de nylon) são
  recorrências na sua trajetória, e o que as diferencia são as características locais, o seu contexto
  sociológico; pesquisa de especifidades do lugar que Echelman aprofunda e converte nas cores, no
  posicionamento e nos títulos de seus trabalhos.
54
ambiente para se materializarem, mas que acima de tudo proporcionem uma
reviravolta no contexto do lugar (fig. 39). Minha intenção aponta para um
deslocamento entre lugares distintos, um itinerário de estudo que vá descobrindo
potenciais específicos de trabalho em cada local; uma busca e uma postura que
poderia ser chamada de “arqueologia poética”. Materializar esses mapeamentos
eu ainda não sei como, mas o processo está lançado. De fazer espaço num lugar
eu passarei a pensar lugares, discutir seus espaços. Enfim, a matéria do meu
trabalho agora é o lugar, e dele nada ambiciono apenas recebo.
56
        BIBLIOGRAFIA

ARCHER, Michael. Arte contemporânea. Uma história concisa. São Paulo:
Martins, Fontes, 2001.

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57
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Introdução ao processo artístico de amarrar o ar e sua relação com o espaço de instalação

  • 1. 8 INTRODUÇÃO A proposta dessa pesquisa é explicitar a relativização propositiva de um processo artístico, contextualizando a prática de trabalho com a sua reflexão teórica. Estudo aprofundado que se configurou no presente projeto, de título Em estado de sítio, que trata da relação entre objeto artístico e o lugar de sua instalação; e objetiva a instauração de uma interferência na Pinacoteca Barão do Santo Ângelo, estabelecendo uma relação entre o entorno do lugar e a estrutura intervencionista. O texto é construído pela própria pesquisa prática suportada por referenciais artísticos e teóricos, que são entrecruzados do desenvolvimento do processo à reflexão da sua apreensão no trabalho. O entendimento do processo é descrito através de experiências pessoais substanciadas por um aporte histórico, delineando uma linha de pensamento que vai conduzindo a prática do trabalho. O processo iniciou-se com o desejo de materializar o ar no espaço, mas a contingência do lugar de montagem foi subvertendo esse ideal, transformando a relação do lugar com o objeto artístico no grande potencial da pesquisa. A construção do meu processo artístico é articulada pela relação entre a prática e a proposição, uma discordando da outra num embate que vai configurando todo o meu trabalho. Através de pensamentos, lembranças e dúvidas vou descrevendo a trajetória que configurou-se na atual proposição de trabalho. Estabeleço uma reflexão teórica simultaneamente à experiência prática, comparando-as e relativizando o que cada uma contribuiu para o desenvolvimento conjunto do processo. Também, ressalto a divisão que o trabalho foi recebendo, sendo cada etapa fundamental na construção da sua totalidade. Ao longo do processo o interesse em materializar o ar no espaço foi descoberto; e depois de alguns experimentos na tentativa de amarrar o ar, foram surgindo novas problemáticas. A conformação do trabalho em relação ao seu local de instalação, a rearticulação do espaço diante do objeto, a participação do espectador no seu meio, a operação crítica que um trabalho infere ao lugar; implicações essas que foram transformando o objetivo inicial, de amarrar o ar, numa contextualização mais potente da prática de trabalho. A proposição passou a ser delineada por essa prática; de um trabalho a outro significações foram
  • 2. 9 surgindo, confluindo num ideal ainda mais forte. A progressão do processo vai rearticulando-se, desde a ideia inicial de amarrar o ar, passando pelas adaptações ocorridas diante da contingência do espaço, até alcançar as proposições específicas para cada lugar; tornando-se a proposta principal do trabalho essa relação intrincada entre a intervenção e o seu ambiente físico. O interesse não é somente a apreensão da arquitetura do ambiente, nem se detém no olhar para o objeto; e sim concentra a significação do trabalho no conjunto dessa relação criada: objeto visual + entorno do lugar, seja um ambiente interior ou exterior; estabelecendo um instrumento visual que busca evidenciar o espaço “entre” esses dois elementos. Configura-se numa situação que desconcerta tanto o lugar como o projeto do trabalho, estabelecendo uma correspondência entre algo permanente e algo provisório, uma tensão que coloca o lugar em estado de sítio. Um evento que acorda o lugar revelando nele um território artístico. Em estado de sítio é a relação provisória entre as estruturas de um ambiente (no caso a Pinacoteca Barão do Santo Ângelo) e o objeto artístico (a amarração de fita adesiva); uma relação que acontece no lugar, para o lugar, é o próprio lugar. É possível um acontecimento ser capaz de reestruturar um lugar a ponto de ampliar a sua percepção? Como uma intervenção pode apreender novos olhares para um ambiente esquecido, subjugado? De que maneira essa situação temporária pode suscitar questionamentos, implica experimentações? Que possibilidades distintas essa interferência pode causar após a sua retirada? E essa intromissão, foi importante para quê?
  • 3. 10 1. A CONSTRUÇÃO PRÁTICA DO PROCESSO Compreender o meu processo de trabalho a ponto de explicitá-lo em uma pesquisa é uma tarefa árdua. Eu o percebo instintivamente, porém colocá-lo em discussão é uma ação que me desperta questionamentos. Isso se deve ao fato de que, enquanto agente do trabalho, faz-se difícil alcançar o distanciamento necessário para a visualização de toda a sua articulação no processo; o envolvimento com a prática domina-me de maneira a direcionar todos os meus procedimentos nesse sentido, sendo impossível apreender toda a contextualização do processo. Enfim, meu intuito neste texto é pensar as minhas ideias a respeito do meu processo de trabalho. Por meio de ideais, lembranças, e inquietações, que foram surgindo ao longo da minha trajetória; busquei estabelecer uma linha de pensamento que descrevesse o que eu desejo desenvolver com o trabalho, e o que o trabalho pode oferecer. Sei que neste momento não atinjo todas as respostas à minha pesquisa prática, mas continuarei buscando-as e a questionando sempre. 1.1 RAÍZES DE UM PROCESSO Em 2005, durante um exercício de aula na faculdade, foi proposta a escolha de dois objetos e/ou materiais para se desenvolver, a partir deles, uma série de trabalhos. O termo “série” logo me remeteu às progressões matemáticas; e, como em uma progressão, tratava-se de um trabalho após o outro, que mudava, mas estabelecia uma dependência entre seus elementos. Os eleitos nessa empreitada foram dois velhos conhecidos meus, a caixa de papelão e o arame. Lembro claramente minha escolha imediata pelo papelão; dita a proposta, olhei para o lado e lá estava a minha boa companheira, a caixa de papelão. Grande parte da minha infância foi vivida enquanto eu entrava e saía de caixas de papelão, empacotando alguma coisa ou a mim mesmo. Debruçava-me à noite sobre as minhas cartolinas e fazia projetos de armaduras inspirados em meus heróis japoneses (Jaspion, Jiraya, Jiban, Cybercops...) e durante o dia eu colocava os planos em prática. Fixava o papelão com fitas e revestia as “armaduras” com papel alumínio. Era um tormento para minha família, pois eu empregava a fita isolante do meu pai, os adesivos da minha irmã [aliás, ela fazia o
  • 4. 11 papel dos meus inimigos, o monstro com quem eu lutava nas brincadeiras], os rolos de lã da minha mãe; enfim, todo o aparato que estivesse ao alcance dos meus olhos, e o de menos era eu me empoleirar nos móveis e estruturas da casa. Voltando ao exercício da faculdade. Cheguei em casa (com uma caixa de baixo do braço) pensando no outro objeto, quando vejo meu pai de pé, em cima da mesa, com um rolo de arame no braço arrumando o lustre. Aí estava decidido, o bendito arame, elemento que tanto presenciei ao longo de inúmeras gambiarras que meu pai fazia nos consertos da nossa casa; meu pai sempre resolveu/resolve tudo com um pedaço de arame e uma tira de fita isolante. Escolhidos os dois elementos, iniciei uma série de desenhos de representação, estabelecendo relações entre os dois; essas composições traziam tanto aspectos formais como dinâmicos dos materiais. No dia da apresentação, trouxe todos os desenhos, e eram muitos, juntamente com os seus modelos: a caixa de papelão e o rolo de arame. Ocupei o chão da sala quase por inteiro com a disposição dos desenhos e acima deles, no teto, enrolei o arame pendurando nele a caixa de papelão (fig. 1). Até então eu não havia me conscientizado sobre a importância do modelo e da representação colocados juntos, mas quando eu os dispus daquele modo parecia que um estalo norteou-me para os objetos, o interesse na hora voltou-se para os modelos e não para os seus desenhos. Na minha defesa do trabalho, inclusive, eu subjuguei os desenhos e me detive na caixa e no arame, salientando aquela arrumação dos materiais, tornando-se esse fato o mais importante do exercício. Desse experimento em diante, passei a trabalhar com os materiais: papelão e arame. Desenvolveram-se vários trabalhos misturando os dois elementos; rasgando e costurando o papelão com o arame, exercícios e mais exercícios que exploravam uma relação dinâmica entre os materiais (fig. 2). Pouco a pouco o arame foi sendo encolhido nos trabalhos, até que o interesse se firmou apenas no papelão. Nos trabalhos seguintes explorei diversas possibilidades do material, tanto nas suas características formais como nas suas aplicações no dia a dia. Foram representações da matéria, jogos com os signos das embalagens, inserções do material em contextos inapropriados ao seu uso, chegando a registros fotográficos da atuação do material dentro do seu ciclo de importância
  • 5. 13 (fig. 3, 4, 5). Dos muitos experimentos dedicados ao papelão, eu comecei a me interessar pela fita que empacotava as caixas. E esse novo interesse foi modificando o meu processo de trabalho; uma mudança que transformaria a simples representação de objetos numa relação entre forma e conteúdo. As descolagens e colagens das fitas nas caixas produziram alguns trabalhos que ultrapassaram a forma do material, explorando uma interação minha mais sensorial com a matéria das caixas. O ruído da descolagem da fita, o rasgo do papel, as dobraduras das caixas foram me influenciando na prática de representações formais desses experimentos (fig. 6, 7, 8). Era um novo interesse, mas a sua realização parecia conformá-los como meros exercícios de percepção do material. Não conseguia compreender os experimentos como parte, ou como o próprio trabalho, e continuava tratando-os como estudos para um plano de representação. Nessa etapa, parecia que eu encontrava um bloqueio no entendimento das minhas intenções de trabalho. Tudo aquilo que eu pensava em relação a ele acabava se estabelecendo, conformado, no plano do papel. Produzi representações em série, do papelão e seus “derivados”. Esses procedimentos de estetização das ideias dentro do trabalho estavam me incomodando. Não conseguia tratar com seriedade as minhas proposições e não era mais possível artificializá-las em exercícios estéticos ineficazes; apenas em aplicações decorativas à ideia proposital. Do conflito assim estabelecido, resolvi medir o que estava fazendo, comparar os resultados obtidos aos meus pensamentos propositivos. Dessa maneira, busquei compreender o que me interessava realmente no trabalho, o que a sua realização implicaria em soluções satisfatórias para essa compreensão e o que construiria trabalhos que não perdessem seus ideais ao longo de sua formalização. Desde o exercício da caixa de papelão e do arame eu pude identificar um interesse, não pela representação formal, e sim pelo seu potencial de contribuição às formulações de minhas ideias, sobre o modo como a própria matéria poderia concentrar as proposições do trabalho. Dessa constatação, a minha prática de trabalho passou a ser conformada por uma certa disciplina, um
  • 6. 17 cuidado constante para não desviar-se do propósito central. E por muitas vezes eu encontrava-me “decorando” as propostas de trabalho. Uma etapa bem conflitante, mas fundamental para o entendimento do meu processo. Em junho de 2008, retornei aos testes com a fita e a caixa de papelão. Repeti mais uma vez os procedimentos de descolagem da fita no papelão, de novo o ruído e a conformação desse experimento. Gravei todos os testes e, depois, visualizando-os fiquei intrigado com a forma da caixa e a amarração da fita, reduzi o volume e repetidamente percebi a fita contornando a caixa, indo e voltando o vídeo, colando e descolando a fita na superfície da caixa. Esse momento foi mágico para mim e imediatamente pensei na experiência esdrúxula que tive com a obra O ar mais próximo1 (fig. 9), do Waltercio Caldas. Lembro caminhar entre os fios de lã suspensos no espaço da exposição, da minha ironia ao assoprar os fios; eu estava irritado com aquilo que vira. Na saída li a etiqueta com o título O ar mais próximo e, ao me virar, enquadrei a obra pelo recorte da porta; tive a impressão nesse exato momento como se os fios de lã amarrassem o ar. Visualizei este como um “queijo provolone”, amarrado por fios de barbante. Essa situação estranha incomodou-me por dias, passei de um irônico sopro a uma admiração pela obra do Waltercio Caldas. O episódio do ar/queijo amarrado ficou fixado em minha mente e, no exato momento da gravação da fita envolvendo a caixa, fez todo o sentido; a experiência elucidou-me um novo interesse. A caixa sumiu como o queijo e, assim como os fios, as fitas adesivas ficaram sozinhas contornando o ar, amarrando aquele paralelepípedo construído de ar, de um vazio que para mim transbordava de cheio. Daí em diante, o ar, o vazio que é cheio, e a fita adesiva transparente passaram a ser meus objetos de desejo. Fiquei alguns dias perdido pensando como tornar esse desejo realizável, colocá-lo em prática. Mais uma vez recorri aos planos de representação da ideia, mais uma vez estava estetizando um 1 Experiência ocorrida durante a 6ª Bienal do Mercosul (2007); é importante comentar o formato da mostra Conversas na qual essa obra estava exposta: as salas eram divididas em “cubos brancos” instalados no armazém do cais do porto (Porto Alegre); cada sala tinha a obra de um artista âncora juntamente a outros trabalhos que dialogassem entre si. Essa configuração da sala proporcionou o único recorte, a porta, e da diferença entre o espaço expositivo e o lugar da mostra pude estabelecer esse enquadramento.
  • 7. 19 resultado frustrado de concretizar o propósito do trabalho (fig. 10, 11). Encorajado pelas palavras do professor Flávio, durante a disciplina de Criativo I (setembro de 2008), a pensar o que me interessava de fato no trabalho, a desprender-me desses exercícios decorativos da proposta, a repensar o que realmente faz o trabalho. Com esse propósito voltei a repensar o objeto de desejo que eu havia descoberto, no ar acima de tudo. Pensando nisso, lembrei minha infância, a primeira série na escola; os primeiros exercícios de matemática, nos quais, durante as avaliações, eu costumava tracejar no ar os pauzinhos correspondentes às operações de soma e subtração. Recordo-me perfeitamente quando eu riscava dez pauzinhos e passava o traço por cima de todos fechando a dezena, abaixo eu fazia uma nova sequência, conforme a necessidade da operação, tudo no ar. Lembro a professora Olga a me perguntar o que eu estava fazendo. Eu respondi que contava as carreiras desta maneira. Ela perguntou por que eu não fazia na folha de papel. E eu respondi que não gostava de sujar o papel e que, além disso, eu enxergava melhor. Sorrindo ela perguntou se eu não me perdia nas contas, se não esquecia as carreiras de pauzinhos. Eu prontamente respondi que não e mostrei a ela como eu fazia as contagens do exercício no ar. Agora, agradeço muito à professora Olga por ter respeitado a maneira como eu resolvia o problema, pela atenção dedicada e pela compreensão do meu perfil diferenciado de aprender. 1.2 DO IDEAL NA PRÁTICA Reunindo essas lembranças, a indicação do professor Flávio e o episódio da caixa de papelão pendurada, iniciei a tarefa de construir esses contornos para o ar. O propósito do trabalho parecia estabelecido, o ideal de contornar o ar tornar-se-ia meu objetivo central. No entanto, colocar em prática esse ideal transformaria toda a sua importância dentro do processo; a conformação concreta da ideia perderia a sua potencialidade diante do seu entorno. O lugar de montagem e o trabalho passariam a interpenetrar-se, e o contorno do ar acabaria se tornando matéria dessa relação. Nessa pesquisa prática cito alguns referenciais artísticos e teóricos, referências que são cruzadas entre o desenvolvimento do processo e a reflexão da sua apreensão no trabalho.
  • 8. 21 Iniciei uma sequência de experimentos com fita adesiva transparente de empacotamento, a mesma das caixas de papelão, agora sozinha no trabalho, buscando uma configuração que se aproximasse do ideal de amarrar o ar. Nesse período, tomei conhecimento da obra de Fred Sandback (fig. 12, 13), que aliada à obra e aos escritos do Waltercio Caldas, proporcionaram uma ampliação do meu entendimento a respeito do espaço atmosférico como possibilidade material do trabalho. Aliás, as minhas intenções em materializar o ar de algum modo são bem elucidadas nas palavras do artista Waltercio Caldas: Cada artista tem uma maneira diferente de “ver” o ar e de dar-lhe uma forma. Minha expectativa poética em relação ao ar é que ele reverbere e tilinte como um corpo sólido. Minha intenção é fazer com que o ar seja o mais visível possível, quase um som que necessita de um corpo transparente, fundamental. Um ar óptico. (HONÓRIO, 2006, p. 29) As construções geométricas, inicialmente paralelepípedos em função da forma da caixa de papelão, foram se desenvolvendo no espaço. Eu esticava fios de poliamida para servirem de estrutura do revestimento feito com a fita, material todo transparente, uma regra na construção do trabalho. O primeiro experimento tinha a estrutura toda coberta pela fita, mas perdia a noção de ar amarrado, tornando-se um sólido pseudo transparente. A transparência não ficava tão evidente, e o brilho do material intensificava a solidez da forma. Para tanto, resolvi fragmentar o revestimento da forma, operando sempre com uma camada de fita e outra de vazio/ar; solução inspirada num trabalho anterior, Ó em metro1 (fig. 14). Essas amarrações escultóricas pareciam concentrar o ar numa área marcada, ora o contorno da fita como o positivo da matéria e o ar como o negativo, ora vice- versa (fig. 15). Durante esses experimentos foi surgindo uma nova problemática, a conformação do trabalho em relação ao seu local de instalação. Do esboço inicial à sua concretização, a proposta sofria alterações muitas vezes drásticas. Um tamanho era proposto, mas a altura do ambiente dificultava a fixação da sua estrutura, alterando a escala do trabalho. A própria materialidade foi sofrendo adequações dependendo de vários fatores do ambiente de sua montagem, como 1 “Ó em metro”, instalação de desenhos, feitos em bobina de calculadora e bobina de fax, com projeção de imagem; a montagem é feita intercalando paralelamente as faixas de desenho e as faixas de vazio.
  • 9. 23 a iluminação, a ventilação; a fita, por ser um material frágil, foi recebendo diferentes readaptações em sua fixação. Além disso, é fundamental mencionar os aspectos cinestésicos ao redor do trabalho. Enfim, a complexidade da realização formal estava instaurada, dificultada, necessitando de uma solução que viabilizasse, não somente o processo de instalação, mas o conjunto do trabalho, que deveria ser todo repensado e reconfigurado. Segundo Danto, “[...] algumas vezes mudamos o mundo para que ele se encaixe em nossas representações; e outras vezes mudamos nossas representações para que elas se encaixem no mundo” (2006, p. 12). A solução para as dificuldades foi sendo resolvida quando eu comecei a me preocupar com todas as etapas do trabalho, a colocar em perspectiva todo o seu processo de viabilização, desde sua ideia inicial até a sua configuração real. Essa solução encontrou na projeção 2 algo que pudesse medir todas essas possibilidades de desvio, uma organização que pudesse estruturar melhor todos os procedimentos de sua possível realização. O conjunto do trabalho passava a depender de um roteiro traçado pelo seu projeto. Desse modo, as primeiras esculturas efêmeras de fita adesiva foram projetadas, testadas e finalmente instaladas. No entanto, poucas dessas construções escultóricas não sofreram alterações em relação ao ambiente em que foram montadas. E dessa relação inconstante do projeto à sua instalação física foram surgindo novas conformações. O projeto sempre sofria alterações por uma coluna no meio da sala, por aberturas que desconsertavam a sua visibilidade, pela iluminação pendente, ventilação excessiva, pelo trânsito do local; ou seja, do conflito do trabalho no espaço e do espaço no trabalho. Um projeto estrutural não dava conta das especificidades do lugar em que seria instalado. Toda essa problemática se criou em torno da instauração do trabalho em determinado espaço expositivo. A relação de uma proposta com a sua configuração física no local de montagem foi se tornando insustentável. Eu passava mais tempo entretido com as adaptações ao espaço de montagem do que com a idealização da proposta inicial. O projeto inicial passou a ser como um rascunho, visto que, não ordenava o trabalho, e a sua montagem assumiu o papel 2 No sentido de colocar as ideias no plano do papel, em projetos de trabalho.
  • 10. 24 de ordenar, de reestruturar o projeto conforme as necessidades do lugar no qual a construção se instalava. Assim, o que era uma escultura efêmera transacional passou a ser conformado como instalação irrepetível de sua primeira montagem/adaptação ao espaço expositivo (fig. 16, 17, 18). Ainda que possa ser instalada em outros lugares, tanto sua estruturação na arquitetura do lugar como a contextualização ambiental não se repetirão, transformando o projeto inicial a cada montagem específica. Essa adaptação, de um mesmo projeto, a diferentes lugares e contextos no início me agradava, era uma maneira de confrontar essas conformações com a proposta central do trabalho; uma possibilidade que foi se distanciando dos objetivos iniciais e da configuração que a minha pesquisa necessitava experimentar. É importante, nessa fase, citar a obra (fig. 19) e o posicionamento político do artista Daniel Buren, referencial que me proporcionou um aprofundamento das questões centrais do meu processo; problematizando o trabalho além das implicações formais, apontando para a sua importância ideológica dentro de um contexto social e artístico. O interesse, a partir daí, voltou-se para uma conexão entre o projeto do trabalho e o seu local de montagem. Eu comecei a buscar estratégias que relacionassem a minha proposição central à contingência do seu lugar de instalação. Da insatisfação anterior com trabalhos que brigavam com seus espaços de montagem, que acabavam indiferentes à sua proposta central em detrimento de uma maior acomodação ao lugar da sua instalação; desse embate que eu cheguei às proposições específicas para cada lugar. Uma nova configuração do meu processo de trabalho passou a investir na capacidade espacial de um lugar específico, seja o lugar um ambiente urbano ou rural, seja uma clausura arquitetural (fig. 20) ou uma paisagem exterior (fig. 21); tanto no ambiente tradicional da arte como em lugares não comuns a prática artística. A conformação física da interferência era agora construída a partir do entorno do seu lugar, e sua espacialização se transformou numa situação que opera criticamente a condição segregada e/ou inativa desse lugar. Para esses trabalhos gosto do termo “cerimônia de exposição” trazido por Stéphane Huchet e explicitado por Jennifer Licht:
  • 11. 28 O espaço é agora considerado como um ingrediente ativo, a ser não apenas representado mas conformado (shaped) e tornado característico pelo artista, capaz de envolver e mergulhar o observador e a arte numa situação de maior porte (of greater scope) e escala. De fato, o espectador agora entra no espaço interior da obra de arte […] e se lhe é apresentado um conjunto de condições em vez de um objeto acabado. […] o artista é livre para influenciar, determinar e inclusive governar as sensações do observador. A presença humana e a percepção do contexto espacial tornaram-se materiais da arte. (LICHT. In: HUCHET, 2006, p. 31) Huchet cita dois aspectos que possibilitam essa “cerimônia de exposição”: o primeiro da genialidade espacial, o desvendar das potencialidades dinâmicas do espaço; e o segundo da invenção do ato de expor moderno, desde Marcel Duchamp com suas provocações lançadas às instituições artísticas no início do século XX. (op. cit. p. 21). As adaptações do trabalho encontram suporte no próprio entendimento da linguagem “instalação”. Segundo Leprun: “A instalação é uma resposta adaptada, efêmera, frequentemente transformável, que ordena exibe e constrói uma verdadeira sociabilidade plástica” (1999, p. 21). Considero esse conceito amplamente discutido por mim ao longo da minha prática de trabalho, visto que a configuração final de um trabalho meu sempre sofreu alguma adaptação ao seu lugar de montagem, sendo este muitas vezes transformador da proposta (fig. 22, 23, 24). Para James Elkins (s/d, p. 8), uma instalação bem sucedida controla o espaço, assim como responde às suas peculiaridades, e uma mal resolvida torna- se “perdida” no espaço, ou é “indiferente” ao seu entorno. Isso se confirmou com maior impacto quando resolvi pensar o espaço do lugar relacionado ao trabalho; não continuaria a construir trabalhos que fossem indiferentes ao seu ambiente de instalação. A função do trabalho não se detém apenas da amarração do espaço atmosférico, mas também está comprometida na reconfiguração física de um lugar, em estabelecer outro contexto socioambiental. O trabalho passa a implicar, além de fatores propositivos, aspectos físicos e sociais num estado provisório que transforma determinado lugar por um período. A sua interferência torna-se uma operação crítica na conformação estável de um lugar, configurando-se numa situação que desestabiliza a percepção e a funcionalidade desse ambiente. Como a intervenção da artista Ana Maria Tavares (fig. 25, 26), no Projeto Arte/Cidade Zona
  • 12. 30 Leste (2002): A proposta visa romper esta sistemática do acesso e da percepção. Trata-se da instalação de um conjunto de passarelas e escadas que interliguem as diversas áreas existentes nos andares e, através de aberturas feitas nas lajes, os diferentes pisos entre si. Instaurando um dispositivo de circulação inteiramente distinto daquele imposto pela estrutura arquitetônica. O percurso criado não pretende oferecer acesso aos locais. Pelo contrário, trata de evidenciar a impossibilidade de acesso físico a lugares específicos e, ao mesmo tempo, proporcionar uma visão ampliada da arquitetura. O conjunto deve criar uma rede ilógica de tráfego, deslocando o visitante de seu ponto de vista usual e proporcionando-lhe uma distinta experiência espacial. (s/d, s/p.) Espaços com usos segregados são reestruturados recebendo novas possibilidades de fluxo; o trabalho se faz nesse espaço articulando diferentes maneiras de interação e visualização do seu entorno. “Trabalho e lugar não se diferenciam, se interpenetram.” (NAVAS, 2009, p. 61) Áreas inativas de determinado lugar são reanimadas recebendo por imposição alguma visibilidade dentro do contexto espacial do trabalho. Como escreveu Ligia Canongia: O sentido do objeto nasce no e do espaço público, instituindo uma interdependência notável entre o objeto e o lugar. O próprio conceito de “instalação” que temos hoje parte do pressuposto dessa relação necessária entre o acontecimento formal propriamente dito e o lugar de sua apresentação. (2005, p. 65) Com o espaço do lugar integrando formal e propositalmente o trabalho, uma nova questão insurgiu-se no processo de construção: a experiência do espectador em relação à situação imposta no determinado lugar. Das questões de Régis Durand3: “Qual a relação com o espectador tal obra induz? Qual mundo, qual ‘espaço mental’ ela constitui, e quais procedimentos ela coloca em jogo para regular a percepção que temos dela?” (In: HUCHET, op. cit. p. 27); à procura de respostas, busquei repensar minhas proposições. Sendo um lugar ocupado por uma interrupção provisória é necessário que o conjunto do trabalho considere a interação dos seus visitantes com essa situação imposta. Portanto, a reestruturação do espaço não poderia apenas levar em conta os limites arquitetônicos e/ou paisagísticos do lugar específico, mas também deveria considerar os padrões de fluxo, as necessidades de trânsito dos visitantes; 3 Durante a leitura dessas questões, em 2009, que me conscientizei da importância do espectador interagindo com o trabalho.
  • 13. 32 reconfigurando de modo que transforme, mas não impossibilite a experiência com o estado temporário do lugar. Preocupação que vai além da interação física, que possibilita uma relação dialética entre o trabalho e o espectador. Didi-Huberman trata essa relação como a aura de uma situação, a distância espacial entre o objeto artístico e o seu experienciador, na qual um olha para o outro. Só pode ser compreendida na dinâmica de um lugar constantemente inquieto […] que tendem a produzir visualmente o efeito de uma ilimitação do objeto, quando este capta e recolhe nele as imagens de um espaço e mesmo corpos espectadores, que se acham em torno dele. (DIDI-HUBERMAN, 1998, p. 139/141) Robert Morris fala de uma maior consciência do espectador diante de uma obra em contexto espacial: O espectador torna-se mais consciente do que antes do fato de estar ele mesmo estabelecendo relações, uma vez que apreende o objeto a parte de posições variadas e sob condições variáveis de luz e contextualização espacial. (apud. FRIED, 1993, p. 135) O meu trabalho, assim, passou a configurar-se no lugar, para o lugar; é o próprio lugar [numa espécie de] em estado de sítio. Uma situação que abala as estruturas do ambiente que ali se inaugura, como escreveu Paulo Sérgio Duarte: “Ali é ‘o’ lugar da escultura, não poderia ser outro, pois ela fundou esse lugar, e, ali instalada, praticamente o inaugurou” (2001, p. 44). O conjunto provisório instaurado se transforma em instrumento visual à experiência do visitante, ativa um campo de ação dando à percepção o presságio de uma reconfiguração iminente. Um evento que demarca o espaço de um determinado lugar durante um intervalo de tempo, que amarra o ar desse ambiente. E é desse ponto que eu venho operacionalizando toda a minha prática propositiva de trabalho.
  • 14. 33 2. PROPOSIÇÃO EM PERSPECTIVA Ou seja, coisas a ver de longe e a tocar de perto coisas que se quer ou não se podem acariciar. Obstáculos, mas também coisas de onde sair e onde reentrar. Ou seja, volumes dotados de vazios. Precisemos ainda a questão: o que seria portanto um volume – um volume, um corpo já – que mostrasse a perda de um corpo? O que é um volume portador, mostrador de vazio? Como mostrar um vazio? E como fazer desse ato uma forma – uma forma que nos olha? (DIDI-HUBERMAN, op. cit. p. 35) O conjunto provisório que o trabalho formaliza leva em consideração o seu lugar de instauração, depende em primeiro passo da escolha desse lugar. A proposição do trabalho parte das especificidades do ambiente no qual pretende interferir. Do cruzamento do meu desejo em amarrar o ar, torná-lo visível no espaço, com as implicações específicas do lugar da interferência; dessa tensão que o trabalho insurge criticamente, materializa-se no lugar. E, da proposição à interferência, uma série de levantamentos são confrontados numa pesquisa sobre o trabalho; pesquisa que vai articulando todo o processo dentro de uma produção documental, documentos que roteirizam os procedimentos e arquivo que comprova a existência da intervenção. Material constituinte de um evento com lugar e tempo marcados; uma das partes da totalidade do trabalho. Para tanto, explico a divisão de todo o processo relacionando as questões propositivas às suas demandas em cada etapa. 2.1 DAS ETAPAS DO PROCESSO O processo do trabalho é dividido de maneira sistemática, e isso é imposto por mim de modo que cada etapa objetive uma demanda própria dentro do processo. Cada etapa seguida da outra de modo a operacionalizar todo o conjunto do trabalho. A divisão é feita em quatro etapas: I. LUGAR – a escolha do lugar, o levantamento do seu potencial de espacialidade, a referência topográfica específica II. ARQUIVO – a elaboração de uma documentação do trabalho: os esboços, os projetos/croquis, as vistas partidas, a maquete III. MONTAGEM – a experiência de instalar o trabalho, os dados de
  • 15. 34 desvio com as adaptações ocorridas do projeto à sua estruturação física IV. SITUAÇÃO – a interferência no lugar, o lugar na interferência; uma análise dessa conformação do conjunto diante da situação estabelecida 2.2. OPERAÇÃO CRÍTICA A intenção do conjunto do trabalho opera na desestabilização do lugar, criando uma nova configuração física para o ambiente, com outras possibilidades perceptivas para esse determinado lugar. A interferência serve como um dispositivo de reanimação do espaço inativo ou subjugado do lugar, rearticulando suas necessidades físicas e sociais diante de uma situação temporária. Acima de tudo, serve como uma crítica à acomodação perceptiva de determinados lugares. Segundo Rosalyn Deutsche (apud. KWON, 1997, p.184), existem dois modelos distintos de sítio específico: o assimilativo e o intervencionista; sendo o primeiro uma integração do trabalho ao ambiente físico, e o segundo como uma intervenção crítica na ordem existente do local. Dessa distinção, estabeleço uma relação: o trabalho é integrado ao ambiente ao mesmo tempo em que interfere na sua dinâmica comum; sua operação crítica se apoia nas estruturas existentes, transformando-as de maneira a romper com a ordem do lugar; um modelo, desse modo, assimilativo intervencionista. Segundo Miwon Kwon, a garantia de uma relação específica entre o trabalho artístico e o seu lugar (site) está no reconhecimento da sua impermanência móvel, na sua experimentação como uma situação irrepetível e evanescente. “O trabalho não quer mais ser um substantivo/objeto, mas um verbo/processo, provocando a acuidade crítica (não somente física) do espectador no que concerne às condições ideológicas dessa experiência” (KWON, op. cit. p.170/171). Dessa análise e para que essa situação se configure no meu trabalho, é necessário um conhecimento preestabelecido do lugar específico por parte dos espectadores, do contrário duas possibilidades de apreensão do trabalho serão colocadas em questão: a primeira como apropriação do lugar, a relação da intervenção com o seu entorno; e a segunda como uma
  • 16. 35 adaptação ao ambiente de sua instalação. O potencial de ativação do espaço, através da situação imposta pela interferência, passado um tempo acaba sendo incorporado ao lugar; isso ocorre porque a visualização contínua de um acontecimento acaba retirando a sua importância, tornando-o, como o seu lugar anterior à intervenção, indiferente a percepção cotidiana. Para a apreensão da capacidade de ativação do lugar é necessária a retirada da materialidade instalada, assimilando características próprias do lugar que o trabalho tornou a aparecer. Desse modo, estabelece-se uma relevância crítica entre um estado inativo e/ou segregado anterior e o estado que o determinado lugar esteve durante a situação imposta pela interferência, dessa comparação insurge outros olhares para esse lugar. 2.3. DO LUGAR A procura de um lugar específico para cada situação de trabalho vai além de razões estéticas, como as arquitetônicas ou paisagísticas. Essa busca de um lugar próprio é irrelevante, pois todo lugar possui um potencial de espacialização contido no seu entorno. E a sua procura deve se pautar na delimitação dessa potencialidade, que posta à prova, materializará a intervenção; conciliar os contornos particulares desse lugar para definir uma estrutura que faça o espaço do ar, o espaço atmosférico, apresentar-se no ambiente. Nessa conciliação as necessidades contextuais do lugar devem ser consideradas. E o trabalho se instaura, na medida em que a intervenção se articula dentro desse contexto do lugar e na maneira como essa situação interruptiva se transforma em um novo, e próprio, contexto para o lugar. A relação da interferência com a arquitetura do lugar poderia ser aprofundada diante das muitas aproximações interdisciplinares da arte com outras ciências humanas, mas o objetivo do trabalho não se detém às possibilidades arquitetônicas ou é configurado para a arquitetura; isso não é o mais relevante no conjunto do trabalho, visto que a articulação é voltada para “lugares”, sejam ambientes internos ou externos. O conjunto do trabalho não se propõe a construir um novo espaço ou uma nova funcionalidade para o lugar, mas atenta-se ao seu despertar perceptivo, a um reaparecimento e uma rearticulação no mundo. A
  • 17. 36 relação com a arquitetura pode acontecer e acontece, mas em detrimento da potencialidade espacial do lugar, da dimensão transformadora que a situação temporária causará no ambiente através de uma multiplicidade de apreensões do estado de sítio do lugar. O interesse está voltado para um desconforto usual, arquitetônico ou paisagístico, operando uma certa instabilidade desconcertante. Enfim, o objetivo da interferência é a dinamização do espaço do lugar, ampliando o foco a qualquer lugar que um trabalho venha a conectar-se. Posso interferir numa praça, numa cozinha qualquer, numa montanha, num poste de iluminação, num lago; o que importa nessa possível intervenção não é o lugar em si, mas como essa interrupção pode reanimá-lo, recontextualizá-lo ao seu meio coexistente. O fazer espaço num determinado lugar implica em conferir-lhe uma parcela de vida, visto que um espaço só existe mediante um conjunto de relações entre um ambiente físico e seus habitantes; fazer espaço é acordar o lugar, com as palavras Heidegger: Na palavra espaço, está contido o fazer – e deixar – espaço. Isso significa desmatar, preparar o terreno. Fazer espaço é livre doação de lugares. No fazer espaços se expressa e se esconde ao mesmo tempo um acontecer. Como se dá o fazer e deixar espaço? É um dispor e pôr em ordem, e isso, por sua vez, no dúplice modo do acordar [harmonizar] o acesso e do instalar. Fazer-espaço é o evento que acorda os lugares. (1998, p. 27). À medida que um lugar tem seu espaço obliterado de função, de percepção, esse espaço passa a não existir, invisível, um território de ninguém. Escreveu Merleau- Ponty: “o espaço não é um ambiente (real ou lógico) em que as coisas se dispõem, mas o meio pelo qual a posição das coisas se torna possível” (1996, p. 328). E é essa estagnação espacial que o trabalho se propõe a transformar, mexendo com o espaço atmosférico do lugar através do seu entorno apagado e/ou subjugado; estabelecendo uma relação entre o espaço atmosférico e a sua estrutura arquitetural anulada, despercebida, configurando uma forma geométrica capaz de lidar com essa tensão despertada.
  • 18. 37 2.4. ESPAÇO ENTRE Na amarração proposta em determinado espaço, constrói-se um outro tipo de volume, um volume vazio do visível. Para Aristóteles, “a teoria de que o vazio existe envolve a existência de lugar: poder-se-ia definir o vazio como o lugar desprovido de corpo” (ARISTÓTELES, Livro 4, Parte 1). O ar do ambiente parece embaçar contornos através das múltiplas espacializações que as faixas de fita produzem. Esses contornos levemente construídos pelo olhar diante da situação do lugar vão criando infinitas espacialidades do vazio. Vão propondo uma possível visibilidade, ainda que virtual 1, do ar do ambiente. A alternância entre uma faixa de fita e uma faixa de vazio, e de sua reverberação pelo espaço atmosférico, faz do espaço entre uma tensão entre o real e o virtual. Uma relação entre o visto e o proposto a ver; matéria da situação: O ar que as cerca ou que as atravessa parece expressivo, como os intervalos de silêncio numa composição musical. Como se o trabalho também se construísse ao lado, e não só onde ele se encontra. O ar e o vazio, ao contrário de “representações” do nada, adquirem o estatuto de material da obra, muitas vezes o mais abundante.(DUARTE, 2001,p. 76) 2 2.5. ARQUIVO A projeção de um trabalho, para mim, já é conformada na sua idealização, na sua concepção, na importância que o objeto desempenhará quando intervier no mundo. E, desde o primeiro esboço (fig. 27), o trabalho já começa a medir essa necessidade em tornar-se um acontecimento concreto, tangível à realidade do mundo. Os esboços, os croquis, a maquete, as vistas partidas, entre outras maneiras de representar um projeto são para mim como pensamentos práticos do trabalho. São ideias concretas que vão estabelecendo relações entre a primeira idealização até uma possível realização. Estudos que vão além de um roteiro do trabalho, tornando-se agentes esmiuçadores das possibilidades de uma interferência. São o peso e a medida de um processo que configura o produto final. Documentos que comprovam a existência de uma ideia, e que depois da realização, tornam-se arquivos do trabalho, comprovantes de todo o processo. O arquivo do trabalho acaba configurando uma documentação do 1 Em meu trabalho entendo por virtual a possibilidade de visualizar algo suscetível a materialização. 2 Comentário de Paulo Sérgio Duarte a respeito da obra “O ar mais próximo”do Waltercio Caldas.
  • 19. 39 processo, articulando desde o seu roteiro até a sua dimensão técnica. A etapa final, do estabelecimento físico, muitas vezes não consegue apreender toda a sua dimensão estrutural, seja pela exacerbação da interferência que se impõe diante do lugar, seja pelo caráter fenomenológico da situação imposta diante do visualizador; sendo um desenho do projeto capaz de orientar uma visão ampla de sua conformação física e propositiva. Todos os desenhos que acompanham o projeto, depois do término da intervenção, acabam colaborando para a preservação do seu acontecimento físico (fig. 28); são como certidões de nascimento e óbito da situação gerada pela intervenção. Enquanto os registros fotográficos se detêm na forma e na interação da interferência com o lugar e desse conjunto com o espectador, os desenhos do projeto se ocupam da materialização das ideias contidas no programa de construção do trabalho. As fotografias, assim como a experiência do visitante, são rapidamente desviadas pelo poder de sedução da intervenção. Os recortes visuais que a forma produz são múltiplos, de um lado a outro se perde a noção da totalidade, cada parte parece derrubar a outra, formando um jogo de ângulos percorridos visual e fisicamente. E essa experiência fragmentada faz da compreensão do trabalho algo desconcertante, sendo necessário um material de apoio que concentre mais objetivamente o eixo central da intervenção no lugar (fig. 29, 30); função que a fotografia documental única não oferece, sendo a sua capacidade limitada a exatidão do recorte visual da forma instalada. Não considero a instalação física como um trabalho em si, e sim a conformação final de um processo que se iniciou com o primeiro esboço, tornando cada etapa importante para a instauração do trabalho. Essa compartição do processo deve ser contabilizada, a cada procedimento, como um todo e o todo como o próprio trabalho. Como a própria interferência, os desenhos são sim ilustrações, mas ilustrações da ideia, do pensamento que a proposição do trabalho carrega. Já, o conjunto de todos esses meios de ilustração, concentra um consenso decorrente do próprio processo, todas as mudanças, os desvios, os avanços que evoluíram na conformação final da intervenção. Os diferentes modos de visualização do processo são dispostos com proveito, de maneira hierarquizada, organizando os documentos conforme a
  • 20. 41 operacionalização do projeto. A linha do tempo, detalhada pela documentação, passa a dar conta do andamento e da espacialização da interferência no lugar. Os desenhos são como um glossário bem resolvido do processo de instauração do trabalho. Conforme Sylviane Leprun: Croquis, esboço e desenho preparatório, são outros vocábulos profissionais que introduzem/imiscuem-se no espaço da instalação, permitindo medir a parte de aleatório do projeto, mas também a necessidade de dominar o espaço, a fim de alcançar o efeito convencionado e desejado. (1999, op. cit. p. 22) A produção dos documentos arquivísticos é um período de pesquisa que estrutura toda a produção do trabalho, que põe em prova todo o caráter aleatório. Daniel Buren ressalta o caráter de incerteza do projeto, “o que é decisivo só a realização virá indicar visualmente (praticamente) o que esse trabalho quer dizer (teoricamente), ressaltando então, as distâncias entre uma hipótese de trabalho e sua realização” (In: LEPRUN, op. cit. p. 23). Ultrapassa a maneira convencional de uma projeção representativa para se enquadrar como absoluto do trabalho. Material arquivístico que dá a sua dimensão antropológica; tanto na produção (antes) e na instauração (durante), como depois, sendo a memória, a comprovação documental dessa determinada situação. Escrituras de um acontecimento social artístico. 2.6 A MATERIALIDADE A construção material do meu trabalho é, acima de tudo, proposta pelo seu local de instalação, e essa relação com lugar é possível pela própria matéria empregada. A sua configuração se dá através dos componentes estruturais do lugar, seja um ambiente interno ou externo, opera numa conformação com o determinado lugar. A dimensão exacerbada está contida na própria proposição do trabalho. Dentro dessa conformação, é claro, existe um interesse meu pelas formas geométricas contidas e estruturadas pela arquitetura e/ou paisagem urbana, um interesse que busca desdobrar-se na apreensão do vazio contido no espaço. No entanto, é preciso considerar o modo como idealizo essa materialização física, os meus interesses reais na sua operacionalização. Fecho essas considerações dedicando-me à visualidade da interferência.
  • 21. 42 A dimensão, primeiramente, é estabelecida na quase totalidade do espaço do lugar em função do meu estado exagerado de ser. Em segundo, pela imposição da presença, não pensaria em fazer um trabalho que não fosse notado, faço-o presente obrigando a sua visualização. Numa atitude crítica em relação ao desapego perceptivo que a velocidade da informação carrega, uma inconformação minha de um universo abarrotado dessas informações e vazio de significados. Como se a vertigem da velocidade estivesse substituindo a ideia! Da música Aprendiz de feiticeiro1, do compositor Itamar Assumpção: “Aprendi da importância de não dar muita importância/ Ficar com os meus pés no chão […].” Esse trecho resume bem a atual condição de desapego ao diferente, a tudo que modifica ou causa um estranhamento, parece mesmo uma atitude de esvaziamento das ideias e da capacidade de assimilação. Eu tento contrariar esse contexto com a configuração do trabalho, amplio o seu tamanho a capacidade de envolver o visitante, não sendo esse capaz de fugir da experiência. De certo modo, essa atitude de imposição é drástica, mas nesse momento eu penso ser uma alternativa interruptiva necessária. Quando tudo aparece com a mesma importância, então tudo passa a ter importância nenhuma. Emprego as palavras de Waltercio Caldas para resumir a grande dimensão da presença: “Tendo a acreditar que o significado é a capacidade que o objeto tem de preservar sua capacidade de aparecer; capacidade que ele próprio produz com uma energia inventada de presença.” (HONÓRIO, op. cit. p. 30) A relação entre o lugar e a sua interferência só é possível através da matéria da fita adesiva. A transparência do material deixa revelar o seu entorno, forma uma camada que não segura o olhar, faz ultrapassá-lo além da sua conformação física. O brilho revelado pela iluminação do ambiente acaba contribuindo para uma inebriante percepção da matéria, deixando as fitas presas às estruturas do espaço, mas livres a espacialidades visuais. A tensão gerada pelo esticamento das fitas, de um ponto ao outro do ambiente, contrasta com a sua fragilidade. O aspecto fragmentado sequencial das faixas de fita materializa o 1 Interpretada por Cássia Eller, álbum “Com você... meu mundo ficaria completo”(1998). Letra completa: Aprendiz de feiticeiro [refrão]/ [refrão](3x)/ Aprendi quando criança que além de tudo/ Balança/ Esse nosso mundo cão/ Aprendi que quem não dança, já dançou na sua infância/ Senão rock foi baião/ Aprendi da importância de não dar muita importância/ Ficar com os meus pés no chão/ Aprendi que viver cansa, mesmo vivendo na França/ Mesmo indo de avião/ Aprendi que a desavença é porque sempre/ Alguém pensa/ Que ninguém mais tem razão/ [refrão](2x)/ Aprendi que tudo passa, tomando chá ou cachaça/ Tomando champanhe ou não/ Aprendi que a descrença, a desconfiança e a doença/ São partes da maldição/ Aprendi que a ignorância, a sordidez e a ganância/ São lavas desse vulcão/ Aprendi que essa fumaça a minha janela embaça/ Por fora, por dentro, não/ Aprendi tetra depressa que a taça do mundo é nossa/ E que São Paulo é meu sertão/ [refrão]
  • 22. 43 espaço interior da amarração, e nesses recortes de fita e vazio o ar circula, agregando-se na cola das faixas adesivas; condensando a matéria da interferência numa relação espaçotemporal. A trama das faixas é como um respiro do lugar em relação à interferência e da interferência em relação ao lugar; ambos pulsando juntos, movimentando esse estado temporário. O meu interesse pelas formas geométricas, delimitadas pelas estruturas do ambiente, está mais relacionado à vontade de materializar o espaço entre do lugar, o espaço atmosférico, do ar. As formas criam uma tensão entre o que posso realizar com os elementos que tenho do lugar e a quantidade de formas que elas logram produzir apesar da minha deliberação. Eu as conduzo, não as comando. Mesmo assim é importante ressaltar o meu interesse pela matemática, como ciência capaz de elucidar ideias, pô-las em cheque fazendo a prova dos nove. Desde os desenhos, de todo o material do arquivo, já está implicada uma perspectiva do trabalho, algo que configura o processo contabilizando as suas partes, mas que se ocupa primeiramente em medir o vazio do espaço, a sua atmosfera. Sobre a perspectiva (do vazio): Esse sistema, estruturado a partir da descoberta da perspectiva, permitiu a medição dos objetos no espaço, mas a grande inovação foi que ele servia à medição dos vazios. Era impossível medi-los anteriormente e provavelmente muito difícil de entendê-los para um indivíduo anterior ao Renascimento, ainda baseado e influenciado pelas percepções e medos da Antiguidade. No Renascimento, os indivíduos estavam, pelo contrário, prontos para desbravar novos mundos e cobrir as áreas vazias dos mapas e do conhecimento. (KIRSCHBAUM. In: CATTANI, 2004, P.194/195)2 Ainda, sobre a forma que o trabalho assume, eu poderia abraçar estudos aprofundados de geometria descritiva, também fazer comparações com os ideais construtivistas, ou ainda pontuar os princípios da Gestalt. No entanto, considero essas aproximações demasiadamente redundantes e inapropriadas. Vejo, tanto as operações geométricas como a suposta correspondência construtivista, como sendo configurações trabalhadas por mim, mas acima de tudo impostas por componentes exclusivos de um material, de um objeto ou da própria estrutura do lugar; e não posso traçar significações que para mim são coadjuvantes do 2 Nesse texto, Michal Kirschbaum faz importante estudo sobre a representação espacial na arte contemporânea, desde uma análise do espaço bidimensional até os sistemas técnicos empregados em projetos artísticos, o que ele chama “arte no processo”(p. 196).
  • 23. 44 trabalho, conhecimento agregado, de orelhada . Afinal, ao longo dos últimos 3 noventa anos, qual paisagem urbana ou ambiente interno não: Influenciou-se ou se estruturou nos moldes do construtivismo? Guiou-se pelas leis da Gestalt? Que para tanto usaram a geometria? Eu respondo, todos e tudo. Por isso, não considero a forma do trabalho uma recorrência de algum movimento, escola, ou conhecimento científico aprofundado; esse tipo de relação chega ao mais simples do descritível. O que a configura são influências contaminadas no próprio contexto, tanto do meu processo de criação como do ambiente que o trabalho se insere; parte de uma linguagem que, por assim dizer, pertence ao mundo. Não quero com esse trabalho ensinar a ordem das coisas, expressar os meus ideais de alguma coisa interior; quero sim é reordenar o fluxo existente, desestabilizar as estruturas estagnadas, amarrar os extremos jogando-os ao meio, sacudir o espaço “entre” dessa amarração, configurar uma situação própria para se perceber além dessa relação provisória. Conforme Didi-Huberman: Eis, em todo caso, o que permanece difícil de pensar: que um volume geométrico possa inquietar nosso ver e nos olhar desde seu fundo de humanidade fugaz; desde sua estatura e desde sua dessemelhança visual que opera uma perda e faz o visível voar em pedaços. Eis a dupla distância que devemos tentar compreender. (DIDI-HUBERMAN, 1998, p. 146) Sobre a visualidade do trabalho, ressalto a sua relevância na experiência com o visitante, na sedução que a forma infere ao seu experimentador. Em estado de chamar a atenção, a configuração física instiga a sua percepção. A sua beleza cambiante entra como matéria da interferência, como possibilidade de sua fruição. Resumo minha intenção a respeito da visualidade nas palavras de Daniel Buren: Se é bonito, tanto melhor. Como todo mundo sabe, o que cria a beleza eminentemente misteriosa, pode ajudar a compreensão. Isto não pode ser negativo. O que é negativo é a beleza por ela, mas neste caso, trata- se ainda de beleza? Não acredito. Dito isso, tanto melhor se o produto ainda por cima é bonito, isso faz parte do luxo e da generosidade. A beleza, como “instrumento visual”, não é o objetivo do trabalho, mas um dos seus meios. (2001, p. 141) 3 Expressão popular (bras.) dada a todo conhecimento que é ensinado por fontes inapropriadas, ou ainda, através de terceiros. Exemplo: O que é hostil? Ah! Hostil é um comprimido que se dá na igreja.
  • 24. 45 3. PROJETO PINACOTECA Contemplando o local, ele reverberava para os horizontes sugerindo um ciclone imóvel, enquanto a luz bruxuleante fazia com que a paisagem inteira parecesse sacudir. Um terremoto dormente propagava-se por uma imensa circularidade. Desse espaço giratório surgiu a possibilidade do Quebra-mar espiral. Nenhuma ideia, conceito, sistema, estrutura ou abstração podiam sustentar-se diante da realidade daquela prova fenomenológica. (SMITHSON. In: KRAUSS, 1998, p. 336) 1 Com o relato de Smithson, inicio a proposta de intervenção na Pinacoteca Barão de Santo Ângelo, e comento que uma proposição específica a um determinado lugar sempre é guiada por uma experiência com esse lugar, uma correspondência dialética entre o lugar e o seu interventor. Para o projeto de interferência na pinacoteca me detive, primeiramente, em dois elementos presentes na sua arquitetura: as barras para sustentação e a coluna. A coluna por sempre me parecer a atriz principal do ambiente, e as barras pelo seu esquecimento visual e funcional. Esses dois elementos são unidos de modo que configurem um novo contexto para o ambiente da pinacoteca. É necessário também distinguir um trabalho feito em território da arte de um trabalho que demarque um território artístico dentro de um contexto que não lhe é comum, nas implicações críticas que essa interrupção traz. Ainda mais, explicar a construção de um território artístico dentro de um contexto que é da arte. A pinacoteca, no contexto de um espaço de exposição, prima por uma neutralidade sensorial do seu ambiente. Implicada em suportar o significante, a obra de arte, sendo na maioria das vezes um receptáculo neutro que se restringe diante de algo maior. Confesso que essa implicação não me faz diferenciar esse trabalho de uma interferência, por exemplo, em uma praça; apenas a pontuo por fazer parte do contexto do lugar 2; questionamentos que eu levantaria em “qualquer” outro lugar que eu venha a inferir um trabalho. Considerando que no âmbito da arte já passamos a fase do “cubo branco” 3, respiro as palavras de 1 Escrito de Robert Smithson sobre o seu primeiro contato com o lugar do trabalho, experiência que originou a obra “Quebra-mar espiral”. 2 O termo “lugar” aqui é empregado além da função de localização específica, estende-se ao contexto de território artístico, de espaço da arte. 3 Modelo museológico moderno que neutraliza o espaço arquitetônico em função de uma melhor exposição dos objetos artísticos.
  • 25. 46 Miwon Kwon: Depois da arte site specific, […] o espaço estéril e idealista puro dos modernismos dominantes foi radicalmente deslocado pela materialidade da paisagem natural ou do espaço impuro e ordinário do cotidiano. O espaço de arte não era mais percebido como lacuna, tabula rasa, mas como espaço real. (op. cit. p. 86) Embora seja um ambiente artístico, considero a sua arquitetura uma ousadia a esse conceito de espaço neutro; sua estrutura física é bem marcante e, para mim, às vezes, sobrepõe-se aos objetos expostos. A sala vazia, de objetos, por si já se mostra um espaço atrativo à percepção, é só olhar o desenho do piso, o gradil do teto e sua iluminação, a forma em L, a coluna onipresente; enfim, aí já reside boa parte do meu interesse em mexer com esse lugar. Tudo é reordenado no espaço do lugar. Transforma-se a compreensão de altura, largura, profundidade; o teto torna-se inatingível e o fluxo ganha uma nova circulação. A coluna, peça única de destaque dentro da pinacoteca, na sustentação do prédio; pelas implicações físicas e funcionais ela é uma peça adversa no âmbito artístico, sendo um bloqueio ao espaço neutral que a galeria supostamente se propõe. Confesso que ao entrar na pinacoteca o que vejo primeiro e, aliás, ao pensar, é o que primeiro visualizo. Ou seja, para mim, a coluna é um elemento arquitetural que por si só desestabiliza a compreensão da funcionalidade do espaço. Já as barras, que um dia serviram como sustentação a obras penduráveis, parecem anuladas a meros elementos constituintes das paredes da pinacoteca. Passaram de funcionais a adereços por vezes nem vistos, segregados a não utilidade e a não percepção; estando ali apagados na configuração atual do espaço da pinacoteca. Dessa dualidade entre aparecido e apagado que se configura a forma do trabalho. Com a interferência, o trânsito no espaço da pinacoteca passa a ter uma nova dinâmica, possibilitando novas percepções do próprio lugar. Das diferentes visitas a exposições e eventos na pinacoteca, pude perceber que o fluxo de visitantes e profissionais atuantes se desloca nas áreas centrais do espaço. Na maioria das vezes, é esse o deslocamento do circulante, notadamente uma atitude de zelo e/ou afastamento diante dos objetos artísticos ali expostos. E, nesse modo de circulação, o trabalho também se ocupa de desarticular, fazendo a
  • 26. 47 forma da interferência preencher o centro, os meios do espaço, obliterando um percurso pelos contornos quase rente às paredes. A nova configuração distorce o fluxo, a estrutura amarrada impõe uma disciplina no percurso dos visitantes, restringindo caminhos usuais e obrigando novas possibilidades de visualização do próprio ambiente. A interferência não limita os passos do visitante, o limite é apenas ao fluxo usual, estando o espaço todo articulado para inúmeras maneiras de interação. Para a montagem da interferência, divido as respectivas barras das paredes da pinacoteca em sete partes, o mesmo número de paredes do ambiente. A coluna, com seus quatro lados que são divididos em sete partes, cada parte de acordo com a sua respectiva barra/parede. O revestimento com as fitas faz a correspondência entre essas sete retas reversas, as horizontais das barras nas paredes e as verticais das barras na coluna. Saindo da primeira barra em direção ao seu respectivo ponto na coluna, repetindo o mesmo procedimento até completar a forma da intervenção. (fig. 31, 32, 33, 34, 35, 36) Portanto, determinei a construção desse trabalho na pinacoteca de modo que ele reestruturasse toda a dinâmica visual e física do lugar. E isso não limita um interesse apenas pelos aspectos arquiteturais do ambiente ao invés de um olhar para o objeto, mas sim objetiva a compreensão/função do trabalho no conjunto dessa relação criada: objeto visual + arquitetura do lugar; estabelecendo um instrumento visual que busca evidenciar o espaço “entre” dois elementos. A correspondência entre algo estabelecido e algo provisório, configurando uma situação que desestabiliza tanto o lugar como o projeto do trabalho, uma tensão que põe o lugar em estado de sítio. Um evento que acorda o lugar revelando um território artístico.
  • 27. 51 CONSIDERAÇÕES FINAIS O objetivo do trabalho foi rearticular a dinâmica visual e física da Pinacoteca Barão do Santo Ângelo. Ainda que eu não tenha realizado a montagem da interferência, saliento a importância da construção do arquivo desse trabalho, que possibilitou toda a sua operacionalização formal e conceitual e que, de certo modo, tranquiliza-me dos possíveis resultados do trabalho. Também considero a pesquisa muito relevante para o entendimento do meu próprio processo artístico, a problematização que esse estudo gerou dentro da minha prática de trabalho e de que maneira isso foi indispensável para o fortalecimento das minhas ideias. Finalizo direcionando os próximos passos da pesquisa, quais questionamentos já tenho em mente e quais estratégias buscarei para respondê-los. A interferência que se realizará na Pinacoteca Barão do Santo Ângelo, no que concerne a sua exequibilidade, já está toda articulada por seus projetos gráficos. O arquivo, assim, desempenha (além de comprovante da situação ali instalada) um papel controlador de sua montagem. Claro que a execução da montagem acarretará outras insurgências (dados de desvio que eu faço questão de registrar), mas na grande maioria está tudo controlado pelo projeto. Nesse estágio sobrepõem-se três apreensões: a suposta certeza da projeção, o encontro real do trabalho na situação e a minha própria relativização desse contexto; dessa confluência de estados o acontecimento se instaura. A importância da pesquisa vai além do desenvolvimento da minha prática artística, e torna-se mais relevante para o crescimento dos meus propósitos de trabalho, para o entendimento do meu próprio processo artístico. Durante o estudo pude perceber novos interesses e demandas de trabalho que a prática instintiva não oportunizara. Surgiram várias questões que o trabalho necessitava responder, tanto na proposição das ideias como na sua materialização. Discordâncias e constatações que imbricaram-se na atual proposta do meu trabalho, no meu interesse pelo potencial de espacialização de lugares específicos. Nesse sentido, a pesquisa foi fundamental e transformadora. Do processo de entendimento do meu trabalho, pude compreender a
  • 28. 52 dinâmica de uma pesquisa artística. Para mim, o desenvolvimento antes era realizado através dos trabalhos prontos, que se sucediam estabelecendo relações ou discordando completamente. E através dessa pesquisa pude perceber uma linha de conexão não entre trabalhos materiais, e sim questões de trabalho, propósitos principais que encontram-se na totalidade do processo. Passei a ver o meu trabalho como um processo, prático nas resultantes materializadas e ideológico nos questionamentos propositivos. O meu processo artístico foi configurando-se através de novas demandas que o trabalho necessitava experimentar. Iniciei com exercícios aleatórios de representação, constatei um ideal maior e tentei colocá-lo em prática, construí alguns experimentos geométricos espaciais e na ampliação desses para trabalhos físicos surgiram alguns problemas; passei um período tentando conformar isso nos espaços de montagem, algumas vezes consegui, outras não. E nesse caminho um interesse norteador conferiu-se ao trabalho: o lugar. Acima de qualquer outro desejo meu o lugar se impunha, manifestava-se de maneira potencial no trabalho; dessa constatação não tive outra alternativa que não fosse trabalhar, mexer com lugares, de construir trabalhos que já foram, são e serão lugares. Interferências provisórias que se propõem a explicitar esse jogo entre o antes, o durante e o depois. Da apreensão do meu propósito principal de trabalho, estabeleço outras direções para o processo. Divido a atual conformação do meu trabalho em dois interesses que continuarei explorando: a construção do espaço entre, numa preocupação com a materialização desse ideal; e o lugar, as possibilidades que diferentes lugares podem proporcionar como matéria do trabalho. Desse último, buscarei um desenvolvimento que supere a interação espacial com uma clausura arquitetural ou uma paisagem exterior; que possibilite uma investigação mais geográfica, antropológica dos lugares. Talvez uma dimensão ainda mais exacerbada, na escala pública, como as mega interferências de Janet Echelman 1 (fig. 37, 38). Trabalhos que extravasem lugares, que se enriqueçam do próprio 1 Artista americana. Trabalha com grandes instalações em ambientes internos, mas sobretudo na paisagem urbana. A materialidade de suas interferências são repetidas, as formas e o material (rede de nylon) são recorrências na sua trajetória, e o que as diferencia são as características locais, o seu contexto sociológico; pesquisa de especifidades do lugar que Echelman aprofunda e converte nas cores, no posicionamento e nos títulos de seus trabalhos.
  • 29. 54 ambiente para se materializarem, mas que acima de tudo proporcionem uma reviravolta no contexto do lugar (fig. 39). Minha intenção aponta para um deslocamento entre lugares distintos, um itinerário de estudo que vá descobrindo potenciais específicos de trabalho em cada local; uma busca e uma postura que poderia ser chamada de “arqueologia poética”. Materializar esses mapeamentos eu ainda não sei como, mas o processo está lançado. De fazer espaço num lugar eu passarei a pensar lugares, discutir seus espaços. Enfim, a matéria do meu trabalho agora é o lugar, e dele nada ambiciono apenas recebo.
  • 30. 56 BIBLIOGRAFIA ARCHER, Michael. Arte contemporânea. Uma história concisa. São Paulo: Martins, Fontes, 2001. BUREN, Daniel. Textos e entrevistas escolhidos [1967-2000]. Rio de Janeiro: Centro de Arte Hélio Oiticica, Paulo Sérgio Duarte (org.), 2001. BUREN, Daniel. Disponível em: <http://www.danielburen.com> CALDAS, Waltercio. Waltercio. São Paulo: Cosac & Naify, 2001. (texto) Paulo Sérgio Duarte. CALDAS, Waltercio. Disponível em: <http://www.walterciocaldas.com.br> CANONGIA, Ligia. O legado dos anos 60 e 70. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005. CASTILLO, Sonia Salcedo Del. Cenário da arquitetura da arte: montagens e espaços de exposições. São Paulo: Martins Fontes, 2008. CHIPP. H.B.. Teorias da Arte Moderna. São Paulo: Ed. Martins Fontes, 1999. DANTO, Arthur C.. A transfiguração do lugar-comum : uma filosofia da arte. São Paulo: Cosac & Naify, 2006. DIDI-HUBERMAN, Georges. O que vemos, o que nos olha. São Paulo: Ed. 34, 1998. ECHELMAN, Janet. Disponível em: <http://www.echelman.com/site/madrid.html> ELKINS, James. The poetics of perspective. Ithaca: Cornell University, 1994. _____________. Instalation objects in their settings from ancient tombs to comteporary art. Polígrafo In: The School Art Institute of Chigago. (s/d). FRIED, M. Arte e objetividade. In: Arte e ensaios. Rio de Janeiro: UFRJ, 2003. HEIDEGGER, Martin. L’arte e lo spazio. Genova: Il Melangolo, 1998. HONÓRIO, Thiago. Ensaio. Dissertação (Mestrado) – Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP), São Paulo, 2006. HUCHET, Stéphane. A instalação em situação. In: Concepções contemporâneas da arte. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006. JUNQUEIRA, Fernanda. Sobre o conceito de instalação. Rio de Janeiro, Revista Gávea, n.14, 1996. KIRSCHBAUM, Michal. Sistemas técnicos de representação na arte
  • 31. 57 contemporânea. In: Mestiçagens na arte contemporânea. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2007. KRAUSS, Rosalind. Caminhos da Escultura Moderna. São Paulo: Martins Fontes, 1998. KWON, Miwon. One place after another. Revista October 80, spring, 1997. Tradução Jorge Menna Barreto. LEPRUN, Sylviane. Sobre maneiras de instalações. In: Porto arte: revista de artes visuais, v. 10, 1999. MADERUELO, Javier. El espacio raptado – interferencias entre arquitectura y escultura. Madri: Biblioteca Mondadori, 1990. MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da percepção. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1996. NAVAS, Adolfo Montejo. Obra e lugar: outras relações estéticas. In: Revista DASartes, n. 2, Rio de Janeiro: O Selo, 2009. O’DOHERTY, Brian. No interior do cubo branco: a ideologia do espaço da arte. (trad.) Carlos S. Mendes Rosa. São Paulo: Martins Fontes, 2002. SANDBACK, Fred. Disponível em: <http://www.artnet.com/artist/14859/fred-sandback.html> SANTOS, Milton. A natureza do espaço. São Paulo: Hucitec,1999. TAVARES, Ana Maria. Disponível em: <http://www.pucsp.br/artecidade/novo/txcurador_tavares.htm>