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Universidade de Passo Fundo
IFCH/ PPGL - Mestrado e Doutorado em Letras
Disciplina: Romance Moderno e Pós-Moderno
Professor: Dr. Gerson Werlang
A representação picaresca do casamento por conveniência
em Moll Flanders, de Daniel Defoe
Doutorando: Adilson Barbosa
Junho de 2015
Romance inglês escrito em
1722 por Daniel Defoe que
narra excepcional história de
uma mulher, saída da prisão
de Newgate, que depois de
uma série de tragédias
pessoais converteu-se à
religião no final da vida para
expiar seus numerosos
pecados.
Daniel Defoe (1660-1731)
Foi um dos fundadores do romance
na língua inglesa.
Tornou-se mundialmente
conhecido e passou a ser lido por
sucessivas gerações de leitores
graças, especialmente, à criação de
seu personagem Robinson
Crusoe, que se imortalizou como
um dos grandes heróis da
literatura de viagens.
Era considerado “dissidente”,
protestante não anglicano, visto
com mal olhos pela religião oficial.
Em sua vida de comerciante,
crontraiu muitas dívidas.
Objetivo da apresentação:
Demonstrar que Daniel Defoe usa os elementos do romance
picaresco em Moll Flanders, para satirizar os vícios e atitudes
hipócritas do modelo de união conjugal baseado na
conveniência, que viria a ser incentivado pela ética protestante
inglesa no século XVIII.
Contexto histórico
Inglaterra, século XVIII:
● Capitais acumulados, mão-de-obra, matéria prima disponível.
● Mercado consumidor (colônias, países europeus e assalariados).
● Marinha mercante poderosa;
● Burguesia ao poder (parlamento).
● Ética protestante (estímulo ao lucro)
Tudo isso resultaria na Revolução Industrial, ocorriada em meados do
século XVIII, que liquidaria com os resquícios da produção baseada
em relações feudais, consolidando definitivamente o modo de
produção capitalista;
(HOBSBAWM, 2003)
Casamento Malthusiano
Mcfarlane (1990), citado por Mária de Fátima Araújo (2002), “denominou de
casamento malthusiano o modelo de união conjugal que tem como premissas
básicas o afeto, a amizade e o companheirismo entre os cônjuges e a
procriação não é o objetivo principal do casamento.”
A autora comenta que Malthus, clérico inglês do século XVIII, “propõe um
sistema de casamento que privilegia a ética acumulativa, o desejo de
ascensão social e o individualismo possessivo, valores fundamentais da
ideologia burguesa. Esse sistema de casamento surgiu na Inglaterra na fase de
ascensão do capitalismo (séculos XVIII e XIX) para dar impulso ao
desenvolvimento econômico. (ARAÚJO, 2002, grifo nosso)
Referencial Teórico
O romance picaresco
Ao lermos Alonso Zamora Vicente (2003), é possível afirmar que o romance picaresco
normalmente apresenta as seguintes características:
1. O protagonista é um pícaro, filho de pais considerados sem honra, abertamente
marginalizados ou criminosos, que aspira deixar de ser pobre para melhorar suas
condições sociais, por isso usa da astúcia e artifícios como o engano ou a fraude.
2. O tema principal é a fome, a miséria e a pobreza extrema. Essa miséria é sobretudo
material, mas também moral e, portanto, provoca uma árdua luta pela sobrevivência.
3. Estrutura-se como uma falsa autobiografia. É narrado em primeria pessoa como se o
protagonista fosse um pecador arrependido. Trata-se de um anti-herói que, com pouca
vergonha de sua vida passada, narra suas aventuras começando por suas origens
chegando até o presente.
4. Possui muitos traços de humor negro. Os episódios de enganos
são bastante divertidos e parecem tirados de anedotas populares,
mas frequentemente também resultam cruéis e não poupam
detalhes estatológicos ou, inclusive, macabros.
5. Determinismo social: por mais que o pícaro tente melhorar sua
condição, sempre fracassa, porque, por natureza está “viciado” e
não pode deixar de ser mau.
6. Ideologia moralizante e pessimista. O romance picaresco é
narrado a partir de uma perspectiva final de desilusão do barroco.
Por isso, o protagonista representaria um exemplo de má conduta
que, sistematicamente acaba sendo castigado.
7. Estrutura itinerante e repleta de aventuras. Novela de viagens
em que os episódios do jovem de muitos amos poderia continuar
indefinidamente e nunca teriam fim.
8. Clara intenção satírica. O protagonista entra em
contato com personagens de diversas classes
sociais e procura retratar os vícios de todos os
segmentos. Rechaça, sobretudo, a hipocrisia e a
falsidade dos que aparentam o que não são.
9. Realismo, e inclusive naturalismo, ao descrever
alguns dos aspectos mais desagradáveis da
realidade, que nunca se apresenta idealizada.
10. Grande riqueza e variedade linguística, pois
reflete tanto as diversas formas da fala popular,
como o discurso elevado.
O arquétipo do Pícaro
Christopher Vogler (1998), a partir de um conceito oriundo da psicologia analítica de
Jung, define arquétipo como sendo os personagens que povoam o país da narrativa.
“O conceito de arquétipo é uma ferramenta indispensável para se compreender o
propósito ou função dos personagens em uma história. Se você descobrir qual
a função do arquétipo que um determinado personagem está expressando,
isso pode lhe ajudar a determinar se o personagem está jogando todo o seu
peso na história. Os arquétipos fazem parte da linguagem universal da
narrativa.” (VOGLER, 1998, p. 48)
“O arquétipo do Pícaro incorpora as energias da vontade de pregar peças e do
desejo de mudança.” (VOGLER, 1998, p. 87)
Para Vogler, o arquétipo do pícaro exerce funções tanto psicológicas como
dramáticas. Afinal, esse arquétipo:
- Poda os egos grandes demais;
- Ajuda-nos a perceber nossos vínculos comuns, apontando as bobagens e a
hipocrisia.
- Como é o inimigos natural do status quo, alerta para a necessidade de
mudança.
- Surge para que não nos levemos demais a sério.
- Serve como alívio cômico.
Resumo da obra
Moll Flanders é uma criança órfã (sua mãe foi deportada, pois era ladra) que, após
algumas peripécias, vai morar na casa de uma família. Lá ela se envolve com o irmão
mais velho, porém se casa com o irmão mais novo.
Quando este morre, ela se casa novamente com um comerciante, que acaba falindo e
foge. Como seu segundo marido gastou todo o dinheiro que tinha economizado, Moll
resolve ser mais cautelosa com suas finanças.
Após um jogo de palavras, ela consegue se casar com um proprietário de terras
americano e com ele se muda para os Estados Unidos. Ao se tornar íntima de sua
sogra, acaba por descobrir que se trata de sua própria mãe. Horrorizada com o incesto
que cometia, ela abandona o marido/irmão e volta para a Inglaterra.
Ao chegar, ela se instala em Bath e toma um amante. Ele era casado, mas, como sua
esposa era muito doente, ele e Moll viviam quase que maritalmente. Um dia, porém,
ele adoece e, ao se recuperar, decide que não deve continuar em pecado e abandona
Moll.
Como suas economias diminuíram consideravelmente, ela resolve se mudar para
o norte a fim de poupar o pouco que conseguiu guardar. Lá ela se casa com
James, que pensava ser rico. Na noite de núpcias, eles descobrem que, como
ambos são pobres, um enganou o outro e resolvem se separar.
Ela volta a Londres e se casa com um banqueiro. Seu casamento é bom, mas
seu marido cai doente, após falir, e morre.
Já velha e sem perspectiva de conseguir se casar novamente, Moll começa a
roubar. Em uma certa noite, ela assalta um homem que a confundira com uma
prostituta e eles se tornam amantes. Durante a época que mantiveram esse
relacionamento, ela abandonou a vida de crime, porém, ao romperem a
relação, ela volta a roubar e acaba sendo presa.
Na prisão, ela se reencontra com James e ambos vão para a América, onde se
estabelecem e, por meio do trabalho, conseguem prosperar e enriquecer.
Análise da Obra
1. Moll Flanders pode ser considerada uma pícara, pois nasceu numa prisão e
sua mãe era uma ladra que foi deportada para a Virgínia, deixando-a na
Inglaterra aos cuidados de não se sabe quem.
“Minha mãe foi declarada culpada do crime de um roubo insignificante
que mal merece ser contado […] apelou para seu ventre, e, tendo
sido verificada a gravidez, obteve uma suspensão da pena por
aproximadamente sete meses; mas, depois que ela me deu à luz,
mandou-se executar seu primeiro julgamento, como me foi dito. Ela
conseguiu o favor de ser deportada para as plantações e me
abandonou, quando eu tinha cerca de seis meses; e em péssimas
mãos, como será fácil reconhecer.” (DEFOE, 1987, p. 13)
Contudo, Moll aspira deixar de ser pobre e tornar-se uma dama de sociedade, melhorando sua
condição social, para isso contará com sua sagacidade:
“Pois bem, não fiquei satisfeita, porque a ideia de ser criada me horrorizava. Se ela me tivesse
prometido que eu só iria trabalhar depois dos vinte anos, o efeito seria exatamente o mesmo.
Creio que teria chorado pela simples ideia de que um dia a coisa acabaria por acontecer.
Quando percebeu que não me havia apaziguado, encolerizou-se:
— O que você quer ainda? — perguntou-me. Já não lhe disse que não será empregada antes de
crescer?
— Sei, mas um dia eu vou ter de tornar-me criada.
— Como? O quê? Essa menina está ficando louca? O que você pretende ser? Uma dama de
sociedade?
— É isso mesmo — disse, e continuei chorando tanto que o meu coração parecia querer saltar do
peito”. (DEFOE, 1987, p. 15)
2. Embora Moll Flanders não passe fome em nenhum momento de sua
vida, o medo desse sofrimento a atormenta constantemente. Por isso,
ela trava uma constante luta pela sobrevivência e vê no casamento uma
possibilidade de não apenas “suprir suas necessidades materiais” mas
também ascender socialmente.
“Minha situação, recordo-me agora, estava de tal forma, que o
oferecimento de um bom marido era a coisa mais necessária do mundo
para mim. Logo descobri que a boa solução não seria desvalorizar-me
tornando-lhe fácil. Era fácil de perceber logo que a viúva não tinha
fortuna, e dizer isso era fazer-me grande mal, pois todos os candidatos
ao casamento me abandonariam.” (DEFOE, 1987, p. 54)
3. O romance é uma falsa autobiografia, narrada em primeira pessoa
como se a protagonista fosse uma pecadora arrependida. Uma anti-
heroína que, um pouco envergonhada de sua vida passada,
especialmente no que se refere à sua busca por casamentos por
interesse, conta suas aventuras começando por suas origens e chegando
até o presente.
“Meu verdadeiro nome é bastante conhecido nos arquivos ou registros
das prisões de Newgate e Old Bailey, e certos processos de maior ou
menor importância relativos à minha conduta pessoal encontram-se
ainda pendentes. Por isso não se deve esperar a inclusão de meu nome
ou de especificações sobre a minha família, nesta obra. Quem sabe se,
após a minha morte, tudo venha a ser mais bem esclarecido.[...] Basta
dizer que alguns dos meus piores camaradas, [...] conheciam-me por
Moll Flanders. Seja-me, pois, permitido falar de mim sob esse nome,
até que ouse reconhecer quem fui eu e quem sou.” (DEFOE, 1987, p.
13)
4. Por mais que Moll Flanders tente melhorar sua condição
através do casamento interesseiro ou do roubo, ela sempre
fracassa, pois enquanto estiver agindo por meio de atitudes
viciadas estará fadada ao insucesso. Enquanto o roubo é um
vício universalmente condenado, a busca pelo casamento
com interesse financeiro é contraditório.
Embora esse tipo de união conjugal não fosse visto com
demérito pela sociedade inglesa do final do século XVII e
início do XVIII, sendo, inclusive, estimulado por razões do
equilíbrio da economia, o romance procura criticar esse
estímulo através do sofrimento que tal matrimônio provoca a
protagonista. Prova disso é que Moll apenas encontra a tão
desejada felicidade no final da narrativa, quando rompe com
esse paradigma e casa-se com James por amor, provendo seu
5. O romance de Defoe não deixa de possuir uma
ideologia moralizante e pessimista, característica
comum aos romances picarescos, pois Moll Flanders
é descrita por ela mesma como exemplo de mau
comportamento e, por isso mesmo, o fracasso em
seus casamentos são “castigos” para essa má
conduta.
Conforme afirma Shellida F. C. Viegas (2007), “Cabe
dizer que ela [Moll] nunca obteve lucro com seus
relacionamentos, na verdade sua condição financeira
piorava a cada término de
casamento/amansebamento”.
6.Outra característica que liga Moll Flanders à tradição picaresca é sua
estrutura itinerante e repleta de aventuras. Moll transita por vários lugares. O
principal deles é Londres. Ela frequenta tanto a alta sociedade londrina ou de
Colchester, quando se casa ainda jovem com o “irmão mais novo”, como a
periferia, como o bairro londrino do Mint, que naquela época era habitado
por ladrões e prostitutas. Ela viaja para Oxford, com seu segundo
marido,onde interage com um ambiente universitário. Atravessa o Atlântico e
conhece os assentamentos britânicos da Virgínia. De volta à Inglaterra, vai a
Bath e depois resolve tentar a sorte no norte. Por fim volta a Londres. Em
cada lugar, ela vive uma aventura diferente, tem contato com persongagens
diferentes, e vislumbra um novo casamento, sempre com vistas a melhorar
sua condição financeira.
7. Como a protagonista entra em contato com personagens de
diversas classes sociais, a partir de seu ponto-de-vista vão se
desenhando os vícios dessas personagens, revelando uma
clara intenção satírica da obra, uma das vocações do romance
picaresco. No que se refere ao matrimônio interesseiro, há uma
figura que é muito satirizada por Defoe: a alcoviteira. Ela
aparece personificada na mulher do capitão.
“A mulher do capitão colocou-me então este projeto na cabeça. Disse que,
se me deixasse dirigir por ela, eu conseguiria um marido rico, sem lhe
dar mais pretexto para lamentar-me por falta de dinheiro.” (DEFOE,
1987, p. 54)
“Espalhou-se por toda a vizinhança que a jovem viúva da casa do
capitão tinha fortuna, que possuía ao menos 1 500 libras e talvez muito
mais. O capitão o havia dito. Se alguém interrogava o capitão a meu
respeito, ele não tinha escrúpulo em afirmá-lo, embora não soubesse do
negócio, salvo o que sua mulher lhe tinha dito. Ele não via nada de
mal, pois acreditava que isto era verdade, tendo vindo de sua mulher:
as pessoas constroem sobre uma base tão frágil, que por pouco
acreditam que uma fortuna está em jogo.”(DEFOE, 1987, p. 54)
Primeiramente, a crítica recai sobre a figura da alcoviteira, que age,
valendo-se do engodo e da confiança que lhe depositam, a fim de obter
determinado resultado, no caso específico: a crença de que Moll
Flanders possui fortuna, o que a torna desejável para os pretendentes.
Mas também a própria sociedade, representada pelos pretendentes, é
satirizada por se deixar enganar, ao vislumbrar um “ganho material” a
partir do casamento com uma viúva rica. Enfim, notamos que o está
em jogo o tempo todo aqui é a contrução de uma crítica ao casamento
8. Outro ponto que aproxima Moll Flanders do romance picaresco
são suas descrições realistas de aspectos desagradáveis da
realidade, que nunca se apresenta idealizada. Vemos isso
claramente quando Moll recebe a visita de uma parteira que a
convida para dar a luz sob seus cuidados em sua pensão. O
diálogo revela uma preocupação de ambas as partes puramente
financeira, desconsiderando a vida do bebê.
— De fato — disse-lhe —, nem mesmo tão barato, pois pago aqui 6 xelins por semana pelo meu quarto e ainda pago
minha alimentação, o que me custa caro.
— Então, minha senhora — disse-me — se a criança não viver ou nascer morta, o que acontece às vezes, como bem
sabe, a despesa com o padre é poupada, e, se não tem amigos para visitá-la, economiza-se a despesa do jantar. De
maneira que, se não fizer essas despesas, seu parto não lhe custará mais de 5 libras e 3 xelins, além das despesas
normais. (DEFOE, 1987, p. 104)
Conforme Maria de Fátima Araújo (2002),
“Na visão malthusiana, a procriação deixa de ser a finalidade principal do
casamento, e os propósitos econômicos e psicológicos do casal passam a ser
os objetivos centrais[...] Embora considerando o casamento por amor como a
relação mais importante na vida de uma pessoa, Malthus o coloca como
uma escolha racional sobre a qual a condição econômica pesa na decisão
e na idade de casar. Dessa forma, a irracionalidade do amor romântico e da
paixão sexual são domesticadas dentro do casamento, não mais ameaçando a
racionalidade do capitalismo.”
Segundo Tonus, citado por Coelho & Costa (2012),
[...] Moll Flanders apresenta inúmeras das características dos pícaros
tradicionais, porém não faz rir, não consegue ser ridícula. O forte realismo
cômico fica por conta da intencionalidade revelada pela protagonista que, por
cúmulo da hipocrisia, diz escrever sua própria história com o objetivo de
ajudar os incautos a não se deixarem lograr por pessoas desonestas como ela
própria. (TONUS, 2008, p. 107 apud COELHO & COSTA, 2012, p.103)
9. A enorme riqueza e variedade linguística, que
reflete tanto as diversas formas da fala popular,
quanto o discurso elevado, constituem o
“linguageiro” do romance Moll Flanders.
Basicamente o romance se utiliza de uma linguagem
popular, constantemente entrecortada por
provérbios, como no exemplo abaixo:
“— Que provérbio? — disse ele. — Oh, eu me recordo dele agora:
Se na alma está o amor,
Uma besta é o doutor.
— Será este, srta. Betty?” (DEFOE, 1987, p. 36)
“Deste modo, convencia de que, se os homens levavam vantagem sobre o nosso sexo pelo
casamento, de acordo com a suposição de que havia muitas possibilidades de escolha e que as
mulheres eram fáceis de acomodar, isto só acontecia devido ao fato de as mulheres não terem
coragem para manter suas posições e sustentar seu papel; já dizia lorde Rochester:
Uma mulher jamais fica completamente arruinada
Sem poder vingar-se do homem que a leva à ruína.” (DEFOE, 1987, p. 51)
Além disso, cartas de amantes de Moll são transcritas integralmente no
romance (ver p.79), bem como orçamentos relacionados à pensão
especializada em gestantes solitárias (ver p. 103).
Mais do que garantir a presença da linguagem cotidiana no romance,
isso faz parte de uma estratégia de construção de uma maior
verossimilhança da narrativa, dada pela presença dessa múltiplas
vozes que se inserem no discurso da narradora. Esse mecanismo já
acontece no prefácio, escrito pelo próprio Defoe, no qual afirma que a
história narrada é factual.
O que fica evidente em Moll Flanders é a clara intensão satírica de expor
a hipocrisia e o sinismo que permeavam às uniões conjugais da
sociedade inglesa do final do século XVII e início do XVIII,
consequência das mudanças sociais e econômicas que acabaram
tranformando valores e costumes. A construção do romance, alinhado à
tradição picaresca, serviu perfeitamente a este propósito.
Além disso, Daniel Defoe identifica Moll Flanders como prostituta, no
resumo da obra e no próprio nome da personagem, pois “moll” é a
palavra inglesa para “rameira”, mas, em nenhum momento do
romance, ela se torna prostituta ou se prostitui efetivamente. Essa
aparente incoerência é resolvida pela intenção de, a partir do estilo
picaresco, fazer com que a protagonista seja considerada prostituta, por
ter buscado no relacionamento matrimonial, estabilidade financeira e
ascensão social.
Considerações Finais
Contudo, o autor vai além nesse romance, pois responsabiliza a sociedade por estimular
esse tipo de união conjugal, como fica evidente nas palavras da narradora:
“Aqui [Londres (metonímia da Inglaterra)] os casamentos eram a consequência de
uma política interessada e baseada nos negócios, pois amor ou não existia ou era
pouco. Como dizia minha cunhada de Colchester, a beleza, o espírito, a educação, o
bom senso, o humor, a conduta honesta, a virtude, a piedade ou qualquer outra
qualidade física ou mental não constituem prendas. Só o dinheiro torna uma
mulher desejável.” (DEFOE, 1987, p. 48, grifo nosso)
Desse modo, o casamento de conveniência é exposto como reflexo da decadência dos
valores morais e dos próprios costumes, que pressionam homens e, principalmente,
mulheres a almejar esse tipo de união, conformando-se com uma espécie de
prostituição matrimonial.
Referências
DEFOE, Daniel. As aventuras e desventuras da famosa Moll Flanders. São
Paulo: Nova Cultural, 1987.
VICENTE, Alonso Zamora. Qué es a novela picaresca. Madrid: Biblioteca
Virtual Universal, 2003.
VOGLER, Christopher. A jornada do escritor: estruturas míticas para escritores.
Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006.
ARAÚJO, Maria de Fátima. Amor, casamento e sexualidade: velhas e novas
configurações. Psicol. cienc. prof. vol.22 no.2 Brasília June 2002
<http://dx.doi.org/10.1590/S1414-98932002000200009>
VIEGAS, Shellida Fernanda da Collina. A Prostituição Matrimonial De Moll
Flanders. Sínteses – Revista dos Cursos de Pós-Graduação Vol. 12 p.345-352
2007.
COELHO, Patricia Margarida Farias; COSTA, Marcos Rogério Martins.
Romance: um gênero em (trans)formação – reflexões sobre o realismo
formal em Moll Flanders, de Daniel Defoe. Revista Todas as Letras, v.

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  • 1. Universidade de Passo Fundo IFCH/ PPGL - Mestrado e Doutorado em Letras Disciplina: Romance Moderno e Pós-Moderno Professor: Dr. Gerson Werlang A representação picaresca do casamento por conveniência em Moll Flanders, de Daniel Defoe Doutorando: Adilson Barbosa Junho de 2015
  • 2. Romance inglês escrito em 1722 por Daniel Defoe que narra excepcional história de uma mulher, saída da prisão de Newgate, que depois de uma série de tragédias pessoais converteu-se à religião no final da vida para expiar seus numerosos pecados.
  • 3. Daniel Defoe (1660-1731) Foi um dos fundadores do romance na língua inglesa. Tornou-se mundialmente conhecido e passou a ser lido por sucessivas gerações de leitores graças, especialmente, à criação de seu personagem Robinson Crusoe, que se imortalizou como um dos grandes heróis da literatura de viagens. Era considerado “dissidente”, protestante não anglicano, visto com mal olhos pela religião oficial. Em sua vida de comerciante, crontraiu muitas dívidas.
  • 4. Objetivo da apresentação: Demonstrar que Daniel Defoe usa os elementos do romance picaresco em Moll Flanders, para satirizar os vícios e atitudes hipócritas do modelo de união conjugal baseado na conveniência, que viria a ser incentivado pela ética protestante inglesa no século XVIII.
  • 5. Contexto histórico Inglaterra, século XVIII: ● Capitais acumulados, mão-de-obra, matéria prima disponível. ● Mercado consumidor (colônias, países europeus e assalariados). ● Marinha mercante poderosa; ● Burguesia ao poder (parlamento). ● Ética protestante (estímulo ao lucro) Tudo isso resultaria na Revolução Industrial, ocorriada em meados do século XVIII, que liquidaria com os resquícios da produção baseada em relações feudais, consolidando definitivamente o modo de produção capitalista; (HOBSBAWM, 2003)
  • 6. Casamento Malthusiano Mcfarlane (1990), citado por Mária de Fátima Araújo (2002), “denominou de casamento malthusiano o modelo de união conjugal que tem como premissas básicas o afeto, a amizade e o companheirismo entre os cônjuges e a procriação não é o objetivo principal do casamento.” A autora comenta que Malthus, clérico inglês do século XVIII, “propõe um sistema de casamento que privilegia a ética acumulativa, o desejo de ascensão social e o individualismo possessivo, valores fundamentais da ideologia burguesa. Esse sistema de casamento surgiu na Inglaterra na fase de ascensão do capitalismo (séculos XVIII e XIX) para dar impulso ao desenvolvimento econômico. (ARAÚJO, 2002, grifo nosso)
  • 7. Referencial Teórico O romance picaresco Ao lermos Alonso Zamora Vicente (2003), é possível afirmar que o romance picaresco normalmente apresenta as seguintes características: 1. O protagonista é um pícaro, filho de pais considerados sem honra, abertamente marginalizados ou criminosos, que aspira deixar de ser pobre para melhorar suas condições sociais, por isso usa da astúcia e artifícios como o engano ou a fraude. 2. O tema principal é a fome, a miséria e a pobreza extrema. Essa miséria é sobretudo material, mas também moral e, portanto, provoca uma árdua luta pela sobrevivência. 3. Estrutura-se como uma falsa autobiografia. É narrado em primeria pessoa como se o protagonista fosse um pecador arrependido. Trata-se de um anti-herói que, com pouca vergonha de sua vida passada, narra suas aventuras começando por suas origens chegando até o presente.
  • 8. 4. Possui muitos traços de humor negro. Os episódios de enganos são bastante divertidos e parecem tirados de anedotas populares, mas frequentemente também resultam cruéis e não poupam detalhes estatológicos ou, inclusive, macabros. 5. Determinismo social: por mais que o pícaro tente melhorar sua condição, sempre fracassa, porque, por natureza está “viciado” e não pode deixar de ser mau. 6. Ideologia moralizante e pessimista. O romance picaresco é narrado a partir de uma perspectiva final de desilusão do barroco. Por isso, o protagonista representaria um exemplo de má conduta que, sistematicamente acaba sendo castigado. 7. Estrutura itinerante e repleta de aventuras. Novela de viagens em que os episódios do jovem de muitos amos poderia continuar indefinidamente e nunca teriam fim.
  • 9. 8. Clara intenção satírica. O protagonista entra em contato com personagens de diversas classes sociais e procura retratar os vícios de todos os segmentos. Rechaça, sobretudo, a hipocrisia e a falsidade dos que aparentam o que não são. 9. Realismo, e inclusive naturalismo, ao descrever alguns dos aspectos mais desagradáveis da realidade, que nunca se apresenta idealizada. 10. Grande riqueza e variedade linguística, pois reflete tanto as diversas formas da fala popular, como o discurso elevado.
  • 10. O arquétipo do Pícaro Christopher Vogler (1998), a partir de um conceito oriundo da psicologia analítica de Jung, define arquétipo como sendo os personagens que povoam o país da narrativa. “O conceito de arquétipo é uma ferramenta indispensável para se compreender o propósito ou função dos personagens em uma história. Se você descobrir qual a função do arquétipo que um determinado personagem está expressando, isso pode lhe ajudar a determinar se o personagem está jogando todo o seu peso na história. Os arquétipos fazem parte da linguagem universal da narrativa.” (VOGLER, 1998, p. 48)
  • 11. “O arquétipo do Pícaro incorpora as energias da vontade de pregar peças e do desejo de mudança.” (VOGLER, 1998, p. 87) Para Vogler, o arquétipo do pícaro exerce funções tanto psicológicas como dramáticas. Afinal, esse arquétipo: - Poda os egos grandes demais; - Ajuda-nos a perceber nossos vínculos comuns, apontando as bobagens e a hipocrisia. - Como é o inimigos natural do status quo, alerta para a necessidade de mudança. - Surge para que não nos levemos demais a sério. - Serve como alívio cômico.
  • 12. Resumo da obra Moll Flanders é uma criança órfã (sua mãe foi deportada, pois era ladra) que, após algumas peripécias, vai morar na casa de uma família. Lá ela se envolve com o irmão mais velho, porém se casa com o irmão mais novo. Quando este morre, ela se casa novamente com um comerciante, que acaba falindo e foge. Como seu segundo marido gastou todo o dinheiro que tinha economizado, Moll resolve ser mais cautelosa com suas finanças. Após um jogo de palavras, ela consegue se casar com um proprietário de terras americano e com ele se muda para os Estados Unidos. Ao se tornar íntima de sua sogra, acaba por descobrir que se trata de sua própria mãe. Horrorizada com o incesto que cometia, ela abandona o marido/irmão e volta para a Inglaterra. Ao chegar, ela se instala em Bath e toma um amante. Ele era casado, mas, como sua esposa era muito doente, ele e Moll viviam quase que maritalmente. Um dia, porém, ele adoece e, ao se recuperar, decide que não deve continuar em pecado e abandona Moll.
  • 13. Como suas economias diminuíram consideravelmente, ela resolve se mudar para o norte a fim de poupar o pouco que conseguiu guardar. Lá ela se casa com James, que pensava ser rico. Na noite de núpcias, eles descobrem que, como ambos são pobres, um enganou o outro e resolvem se separar. Ela volta a Londres e se casa com um banqueiro. Seu casamento é bom, mas seu marido cai doente, após falir, e morre. Já velha e sem perspectiva de conseguir se casar novamente, Moll começa a roubar. Em uma certa noite, ela assalta um homem que a confundira com uma prostituta e eles se tornam amantes. Durante a época que mantiveram esse relacionamento, ela abandonou a vida de crime, porém, ao romperem a relação, ela volta a roubar e acaba sendo presa. Na prisão, ela se reencontra com James e ambos vão para a América, onde se estabelecem e, por meio do trabalho, conseguem prosperar e enriquecer.
  • 14. Análise da Obra 1. Moll Flanders pode ser considerada uma pícara, pois nasceu numa prisão e sua mãe era uma ladra que foi deportada para a Virgínia, deixando-a na Inglaterra aos cuidados de não se sabe quem. “Minha mãe foi declarada culpada do crime de um roubo insignificante que mal merece ser contado […] apelou para seu ventre, e, tendo sido verificada a gravidez, obteve uma suspensão da pena por aproximadamente sete meses; mas, depois que ela me deu à luz, mandou-se executar seu primeiro julgamento, como me foi dito. Ela conseguiu o favor de ser deportada para as plantações e me abandonou, quando eu tinha cerca de seis meses; e em péssimas mãos, como será fácil reconhecer.” (DEFOE, 1987, p. 13)
  • 15. Contudo, Moll aspira deixar de ser pobre e tornar-se uma dama de sociedade, melhorando sua condição social, para isso contará com sua sagacidade: “Pois bem, não fiquei satisfeita, porque a ideia de ser criada me horrorizava. Se ela me tivesse prometido que eu só iria trabalhar depois dos vinte anos, o efeito seria exatamente o mesmo. Creio que teria chorado pela simples ideia de que um dia a coisa acabaria por acontecer. Quando percebeu que não me havia apaziguado, encolerizou-se: — O que você quer ainda? — perguntou-me. Já não lhe disse que não será empregada antes de crescer? — Sei, mas um dia eu vou ter de tornar-me criada. — Como? O quê? Essa menina está ficando louca? O que você pretende ser? Uma dama de sociedade? — É isso mesmo — disse, e continuei chorando tanto que o meu coração parecia querer saltar do peito”. (DEFOE, 1987, p. 15)
  • 16. 2. Embora Moll Flanders não passe fome em nenhum momento de sua vida, o medo desse sofrimento a atormenta constantemente. Por isso, ela trava uma constante luta pela sobrevivência e vê no casamento uma possibilidade de não apenas “suprir suas necessidades materiais” mas também ascender socialmente. “Minha situação, recordo-me agora, estava de tal forma, que o oferecimento de um bom marido era a coisa mais necessária do mundo para mim. Logo descobri que a boa solução não seria desvalorizar-me tornando-lhe fácil. Era fácil de perceber logo que a viúva não tinha fortuna, e dizer isso era fazer-me grande mal, pois todos os candidatos ao casamento me abandonariam.” (DEFOE, 1987, p. 54)
  • 17. 3. O romance é uma falsa autobiografia, narrada em primeira pessoa como se a protagonista fosse uma pecadora arrependida. Uma anti- heroína que, um pouco envergonhada de sua vida passada, especialmente no que se refere à sua busca por casamentos por interesse, conta suas aventuras começando por suas origens e chegando até o presente. “Meu verdadeiro nome é bastante conhecido nos arquivos ou registros das prisões de Newgate e Old Bailey, e certos processos de maior ou menor importância relativos à minha conduta pessoal encontram-se ainda pendentes. Por isso não se deve esperar a inclusão de meu nome ou de especificações sobre a minha família, nesta obra. Quem sabe se, após a minha morte, tudo venha a ser mais bem esclarecido.[...] Basta dizer que alguns dos meus piores camaradas, [...] conheciam-me por Moll Flanders. Seja-me, pois, permitido falar de mim sob esse nome, até que ouse reconhecer quem fui eu e quem sou.” (DEFOE, 1987, p. 13)
  • 18. 4. Por mais que Moll Flanders tente melhorar sua condição através do casamento interesseiro ou do roubo, ela sempre fracassa, pois enquanto estiver agindo por meio de atitudes viciadas estará fadada ao insucesso. Enquanto o roubo é um vício universalmente condenado, a busca pelo casamento com interesse financeiro é contraditório. Embora esse tipo de união conjugal não fosse visto com demérito pela sociedade inglesa do final do século XVII e início do XVIII, sendo, inclusive, estimulado por razões do equilíbrio da economia, o romance procura criticar esse estímulo através do sofrimento que tal matrimônio provoca a protagonista. Prova disso é que Moll apenas encontra a tão desejada felicidade no final da narrativa, quando rompe com esse paradigma e casa-se com James por amor, provendo seu
  • 19. 5. O romance de Defoe não deixa de possuir uma ideologia moralizante e pessimista, característica comum aos romances picarescos, pois Moll Flanders é descrita por ela mesma como exemplo de mau comportamento e, por isso mesmo, o fracasso em seus casamentos são “castigos” para essa má conduta. Conforme afirma Shellida F. C. Viegas (2007), “Cabe dizer que ela [Moll] nunca obteve lucro com seus relacionamentos, na verdade sua condição financeira piorava a cada término de casamento/amansebamento”.
  • 20. 6.Outra característica que liga Moll Flanders à tradição picaresca é sua estrutura itinerante e repleta de aventuras. Moll transita por vários lugares. O principal deles é Londres. Ela frequenta tanto a alta sociedade londrina ou de Colchester, quando se casa ainda jovem com o “irmão mais novo”, como a periferia, como o bairro londrino do Mint, que naquela época era habitado por ladrões e prostitutas. Ela viaja para Oxford, com seu segundo marido,onde interage com um ambiente universitário. Atravessa o Atlântico e conhece os assentamentos britânicos da Virgínia. De volta à Inglaterra, vai a Bath e depois resolve tentar a sorte no norte. Por fim volta a Londres. Em cada lugar, ela vive uma aventura diferente, tem contato com persongagens diferentes, e vislumbra um novo casamento, sempre com vistas a melhorar sua condição financeira.
  • 21. 7. Como a protagonista entra em contato com personagens de diversas classes sociais, a partir de seu ponto-de-vista vão se desenhando os vícios dessas personagens, revelando uma clara intenção satírica da obra, uma das vocações do romance picaresco. No que se refere ao matrimônio interesseiro, há uma figura que é muito satirizada por Defoe: a alcoviteira. Ela aparece personificada na mulher do capitão. “A mulher do capitão colocou-me então este projeto na cabeça. Disse que, se me deixasse dirigir por ela, eu conseguiria um marido rico, sem lhe dar mais pretexto para lamentar-me por falta de dinheiro.” (DEFOE, 1987, p. 54)
  • 22. “Espalhou-se por toda a vizinhança que a jovem viúva da casa do capitão tinha fortuna, que possuía ao menos 1 500 libras e talvez muito mais. O capitão o havia dito. Se alguém interrogava o capitão a meu respeito, ele não tinha escrúpulo em afirmá-lo, embora não soubesse do negócio, salvo o que sua mulher lhe tinha dito. Ele não via nada de mal, pois acreditava que isto era verdade, tendo vindo de sua mulher: as pessoas constroem sobre uma base tão frágil, que por pouco acreditam que uma fortuna está em jogo.”(DEFOE, 1987, p. 54) Primeiramente, a crítica recai sobre a figura da alcoviteira, que age, valendo-se do engodo e da confiança que lhe depositam, a fim de obter determinado resultado, no caso específico: a crença de que Moll Flanders possui fortuna, o que a torna desejável para os pretendentes. Mas também a própria sociedade, representada pelos pretendentes, é satirizada por se deixar enganar, ao vislumbrar um “ganho material” a partir do casamento com uma viúva rica. Enfim, notamos que o está em jogo o tempo todo aqui é a contrução de uma crítica ao casamento
  • 23. 8. Outro ponto que aproxima Moll Flanders do romance picaresco são suas descrições realistas de aspectos desagradáveis da realidade, que nunca se apresenta idealizada. Vemos isso claramente quando Moll recebe a visita de uma parteira que a convida para dar a luz sob seus cuidados em sua pensão. O diálogo revela uma preocupação de ambas as partes puramente financeira, desconsiderando a vida do bebê. — De fato — disse-lhe —, nem mesmo tão barato, pois pago aqui 6 xelins por semana pelo meu quarto e ainda pago minha alimentação, o que me custa caro. — Então, minha senhora — disse-me — se a criança não viver ou nascer morta, o que acontece às vezes, como bem sabe, a despesa com o padre é poupada, e, se não tem amigos para visitá-la, economiza-se a despesa do jantar. De maneira que, se não fizer essas despesas, seu parto não lhe custará mais de 5 libras e 3 xelins, além das despesas normais. (DEFOE, 1987, p. 104)
  • 24. Conforme Maria de Fátima Araújo (2002), “Na visão malthusiana, a procriação deixa de ser a finalidade principal do casamento, e os propósitos econômicos e psicológicos do casal passam a ser os objetivos centrais[...] Embora considerando o casamento por amor como a relação mais importante na vida de uma pessoa, Malthus o coloca como uma escolha racional sobre a qual a condição econômica pesa na decisão e na idade de casar. Dessa forma, a irracionalidade do amor romântico e da paixão sexual são domesticadas dentro do casamento, não mais ameaçando a racionalidade do capitalismo.”
  • 25. Segundo Tonus, citado por Coelho & Costa (2012), [...] Moll Flanders apresenta inúmeras das características dos pícaros tradicionais, porém não faz rir, não consegue ser ridícula. O forte realismo cômico fica por conta da intencionalidade revelada pela protagonista que, por cúmulo da hipocrisia, diz escrever sua própria história com o objetivo de ajudar os incautos a não se deixarem lograr por pessoas desonestas como ela própria. (TONUS, 2008, p. 107 apud COELHO & COSTA, 2012, p.103)
  • 26. 9. A enorme riqueza e variedade linguística, que reflete tanto as diversas formas da fala popular, quanto o discurso elevado, constituem o “linguageiro” do romance Moll Flanders. Basicamente o romance se utiliza de uma linguagem popular, constantemente entrecortada por provérbios, como no exemplo abaixo: “— Que provérbio? — disse ele. — Oh, eu me recordo dele agora: Se na alma está o amor, Uma besta é o doutor. — Será este, srta. Betty?” (DEFOE, 1987, p. 36)
  • 27. “Deste modo, convencia de que, se os homens levavam vantagem sobre o nosso sexo pelo casamento, de acordo com a suposição de que havia muitas possibilidades de escolha e que as mulheres eram fáceis de acomodar, isto só acontecia devido ao fato de as mulheres não terem coragem para manter suas posições e sustentar seu papel; já dizia lorde Rochester: Uma mulher jamais fica completamente arruinada Sem poder vingar-se do homem que a leva à ruína.” (DEFOE, 1987, p. 51) Além disso, cartas de amantes de Moll são transcritas integralmente no romance (ver p.79), bem como orçamentos relacionados à pensão especializada em gestantes solitárias (ver p. 103). Mais do que garantir a presença da linguagem cotidiana no romance, isso faz parte de uma estratégia de construção de uma maior verossimilhança da narrativa, dada pela presença dessa múltiplas vozes que se inserem no discurso da narradora. Esse mecanismo já acontece no prefácio, escrito pelo próprio Defoe, no qual afirma que a história narrada é factual.
  • 28. O que fica evidente em Moll Flanders é a clara intensão satírica de expor a hipocrisia e o sinismo que permeavam às uniões conjugais da sociedade inglesa do final do século XVII e início do XVIII, consequência das mudanças sociais e econômicas que acabaram tranformando valores e costumes. A construção do romance, alinhado à tradição picaresca, serviu perfeitamente a este propósito. Além disso, Daniel Defoe identifica Moll Flanders como prostituta, no resumo da obra e no próprio nome da personagem, pois “moll” é a palavra inglesa para “rameira”, mas, em nenhum momento do romance, ela se torna prostituta ou se prostitui efetivamente. Essa aparente incoerência é resolvida pela intenção de, a partir do estilo picaresco, fazer com que a protagonista seja considerada prostituta, por ter buscado no relacionamento matrimonial, estabilidade financeira e ascensão social. Considerações Finais
  • 29. Contudo, o autor vai além nesse romance, pois responsabiliza a sociedade por estimular esse tipo de união conjugal, como fica evidente nas palavras da narradora: “Aqui [Londres (metonímia da Inglaterra)] os casamentos eram a consequência de uma política interessada e baseada nos negócios, pois amor ou não existia ou era pouco. Como dizia minha cunhada de Colchester, a beleza, o espírito, a educação, o bom senso, o humor, a conduta honesta, a virtude, a piedade ou qualquer outra qualidade física ou mental não constituem prendas. Só o dinheiro torna uma mulher desejável.” (DEFOE, 1987, p. 48, grifo nosso) Desse modo, o casamento de conveniência é exposto como reflexo da decadência dos valores morais e dos próprios costumes, que pressionam homens e, principalmente, mulheres a almejar esse tipo de união, conformando-se com uma espécie de prostituição matrimonial.
  • 30. Referências DEFOE, Daniel. As aventuras e desventuras da famosa Moll Flanders. São Paulo: Nova Cultural, 1987. VICENTE, Alonso Zamora. Qué es a novela picaresca. Madrid: Biblioteca Virtual Universal, 2003. VOGLER, Christopher. A jornada do escritor: estruturas míticas para escritores. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006. ARAÚJO, Maria de Fátima. Amor, casamento e sexualidade: velhas e novas configurações. Psicol. cienc. prof. vol.22 no.2 Brasília June 2002 <http://dx.doi.org/10.1590/S1414-98932002000200009> VIEGAS, Shellida Fernanda da Collina. A Prostituição Matrimonial De Moll Flanders. Sínteses – Revista dos Cursos de Pós-Graduação Vol. 12 p.345-352 2007. COELHO, Patricia Margarida Farias; COSTA, Marcos Rogério Martins. Romance: um gênero em (trans)formação – reflexões sobre o realismo formal em Moll Flanders, de Daniel Defoe. Revista Todas as Letras, v.