O documento discute como a declaração de Ronaldinho de que é branco pode ter um grande impacto negativo na autoestima de crianças negras no Brasil. Ao negar sua identidade racial, Ronaldinho reforça a ideia de que ser branco traz privilégios e status, e pode levar crianças negras a questionarem seu valor por causa de sua cor.
Branquitude e identidade racial no futebol brasileiro
1. Rio de Janeiro, 29 de maio de 2005.
Simulacro da brancur
a
Comum nos EUA e na África do Sul, o debate em torno da branquitude tem chamado a
atenção de alguns pesquisadores brasileiros. Sem pretender adentrar muito no tema, a
branquitude consiste em um conjunto de mecanismos no qual a identidade dominante nos
diversos contextos póscoloniais, a de homem branco, prevalece e exerce poder sobre as outras
identidades, hierarquizando visões de mundo e determinando, conseqüentemente, a
“redistribuição” de espaços de poder, ou seja, fazendo o poder circular no interior de somente um
grupo. O termo não substitui a idéia clássica de dominação de classe ou outra categoria
sociológica qualquer. Pelo contrário, se pensada de maneira interrelacionada com outras
categorias explicativas de subalternidades raciais e sociais, esta termina por potencializar em
muito a compreensão das lógicas de dominação nos mais variados contextos. No caso brasileiro,
a branquitude tem se afirmado enquanto espaço de exercício de poder dos grupos brancos
(notem o plural) sobre as outras coletividades, notadamente as coletividades negras. O
mecanismo é tão bem construído que os próprios brancos “esquecem” que o possuem. Teóricos e
analistas sociais importantes das ciências sociais e das humanidades, mesmo ao elaborar
explicações das relações raciais brasileiras, deixam de lado ou não problematizam
suficientemente seu próprio lugar enquanto pesquisadores brancos. Selam assim com os demais
o chamado pacto silencioso da brancura. Por lugar de branco entendase espaço de reprodução e
usufruto de poder: poder econômico, social, simbólico, de produção cultural, de interpretar
realidades, enfim, um conjunto abrangente de poderes que ideologizam a dominação e que, vez
ou outra, conta com a bondosa colaboração de membros dos grupos subaternizados. Em outros
termos, ser branco no Brasil significa capitalizar todos os bônus sociais e psicológicos advindos
disso. Quer dizer que um branco pobre, desempregado, etc, também usufruiu deste bônus?
Secamente falando, sim. Por mais que continue pobre, desempregado e digno de políticas
públicas de inclusão social, esse branco termina por levar vantagem se comparado a um negro.
Neste sentido, todo bônus pressupõe um ônus.
Quando Ronaldo diz que é branco, o que ele quer na verdade dizer é isso: “também quero
esse bônus que a brancura traz. Também quero capitalizar para mim as vantagens que a
(suposta) democracia racial brasileira (ou se preferirem, o racismo brasileiro camuflado de
democrático) me possibilita por passarme branco, casandome com brancas e cegando meu
passado de negro.
Se a branquitude é a ideologia oculta dos brancos, a declaração de Ronaldo acaba de
atestar que ela também pode servir para alguns negros. Não como válvula de escape do mulato,
como propagado por muitos tempos atrás, mas como atalho ao mundo branco tão profundamente
sonhado e desejado. Sem receio de errar, podemos dizer que o sonho de Ronaldo será a exata
desgraça cognitiva de milhares de crianças e adolescentes negros brasileiros, registrados como
pardos, pretos ou mesmo brancos em suas certidões de nascimento. O “Fenômeno”, que boa
parte deles entendiam por negro, diz que é, na verdade, branco. Como na letra da música: “ovelha
branca da raça, traidor!!” Não custa, estórias assim vão começar a pipocar lares afora: “Papai,
também vou dizer por ai que sou branco, tipo o Ronaldinho. Quem sabe assim aquela menininha
branquinha lá da escola não olha pra mim. Quem sabe assim a professora não me faz elogios
também” (essa uma ficção). Ou então: “Mãe, queria pegar a doença do Michael Jackson e ficar
branco”. “O que é isso, pra quê que filho?” “Porque na minha escola ninguém quer brincar comigo,
falam que é porque eu sou preto”. Silêncio... Angústia... Novamente o silêncio... Com o choro
aprisionado, a irmã me chama: “André, vem aqui falar com ele, pois já não sei....” (essa, verídica,
2. aconteceu lá em casa com o meu sobrinho. Felizmente o pretinho continua gostando das músicas
do Michael, mas não tá nem ai pra doença dele. Agora prefere ouvir os Racionais).
O desserviço para a autoestima das crianças negras e nãobrancas feito por Ronaldinho
Antifenomenal é de tamanha proporção que prevejo um mercado de trabalho promissor para
psicólogos sociais que se formarão daqui a uns cinquenta anos. O craque dos gramados jogou a
merda no ventilador ao denegar sua identidade racial, dando descarga no vaso com todas as
forças à sua negritude. Só em pensar que crianças, adolescentes e mesmo adultos de
praticamente todo o planeta se inspiram em sua história de “superação” da pobreza e de sucesso
profissional, dá um arrepio grande.
Lembro de um filme americano (pra variar) muito interessante chamado Esquadrão da
Reforma (Drop Squad) que expressa bem a idéia desse ensaio. Um grupo de afroamericanos
radicais tipo Panteras Negras dos anos 90 seqüestram outros afroamericanos que trabalham em
empresas de brancos e ao ascenderem socialmente “esquecem” totalmente suas comunidades e
de condição de negros. Os seqüestrados ficam durante semanas, meses, sob tortura psicológica
pesada, revendo momentos emblemáticos da cultura negra norteamericana e a luta pelos direitos
civis até recobrarem a “lembrança” do lugar de onde vieram. Alguns simplesmente não
“respondem” bem ao processo e ficam durante longos meses imersos na brancura recém
conquistada e outros, após muito Marvin Gaye e Harold Melvin na mente, voltam pouco a pouco a
valorizar seu real pertencimento. Não que esteja proponho o seqüestro (ao menos
metaforicamente) do nosso exFenômeno, mas bem que ele devia passar uns meseszinhos preso
para parar de brincar de ser branco. Ser branco é mole, quero ver é ficar com a cara preta
estampada as porradas da realidade e ainda por cima ter orgulho de ser o que se é. Não basta
dizerse contra o racismo e a discriminação racial, como declarou. Há que se ter coerência. O anti
racismo racista brasileiro já expôs a sua total falácia: ao confessar que há racismo nega que seja
racista. Ou seja, lava as mãos. Estamos longe da pretensão de estabelecer o que seria certo ou
errado neste sentido. Quem tem boca, afinal, fala o que quer. Agora, peralá... Tudo tem limite.
Esse menino está brincando com os nossos brios. Levamos quase o século 20 inteiro para
convencer a negligente elite brasileira e a sociedade a reconhecer minimamente a existência do
racismo e a começar a nos tratar com a dignidade que exigimos e vem esses exnegros brincar de
ser branco!! Sinceramente, fica difícil.
Melhor torcermos desde já para essa onda não se espalhar feito uma tsunami
embranquecedora. Imaginem se o Robinho resolve aparecer amanhã e dizer que é branco
também, ou então o Cafu, o Grafite, o Romário, o Ronaldinho Gaúcho, o Junior Baiano, o Pelé...
Bom, quanto ao Pelé, melhor deixar pra lá por enquanto. É... e muitos duvidavam da eficácia do
sistema.
Marcio André dos Santos é sociólogo e mestrando em ciências sociais na Universidade do Estado
do Rio de Janeiro.
Email: marcre27@yahoo.com.br