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CAPÍTULO III
DAS AULAS DE SOCIOLOGIA À RECONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES
Pesquisador - Professor você já foi discriminado?
Professor Venâncio - já várias vezes [...] Estava de férias na casa do meu
irmão, num condomínio em Vinhedo. Num dia pela manhã, acordei e fui
fazer uma caminhada. Atravessei uma das pontes sobre um riacho que
atravessa o condomínio, circundei uma praça, com aparelhos de ginástica,
subi uma rua e percebi um carro vindo vagarosamente em minha direção.
Logo, entendi que era da segurança do condomínio. O motorista parou e
me perguntou.
- O senhor é morador?
- Eu respondi: Por que a pergunta?
- Porque o senhor estava caminhando num local pouco usado [...] Numa
área verde, aí me mandaram verificar.
- Pensei que era porque eu sou negro! Pois, logo acham que é ladrão!
E continuei caminhando. Ele ficou nervoso e respondeu.
- Não é isso não! Esse é o procedimento normal da segurança.
- Foi atrás de mim e perguntou:
- o Sr está na casa de quem?
- Estou na casa do meu irmão.
- Qual o nome dele?
- Marcelino Ferreira da Silva.
- E qual o seu nome?
- Venâncio Ferreira da Silva. E continuei caminhando. Quando dobrei a
próxima rua ele estava na esquina me observando. Ao chegar em casa, já
tinham ligado para saber se eu estava hospedado lá.
O negro é sempre um suspeito! Eu sou negro meu irmão é "branco", ele é
chef. de cozinha, bem sucedido, hoje trabalha para uma multinacional, a
Unilevi. Se ele fosse negro duvido que chegaria onde chegou, a maioria
das portas teriam se fechado para ele.
Introdução
Este capítulo irá interpretar as fontes selecionadas num conjunto de entrevistas e
grupos focais, segundo os conceitos que foram considerados relevantes pelo pesquisador e
apresentadas nas considerações teóricas. A primeira parte discutirá o lugar social do negro,
tendo esse mesmo título. Para isso foram criadas cinco categorias, a fim de situar as pessoas
negras em diferentes posições sociais. A segunda parte, intitulada tornando-se negro,
discutirá as dificuldades que uma pessoa afro-descendente tem para construir uma identidade
negra aceita pela sociedade e pelo seu próprio ego. A terceira parte, intitulada os cabelos na
construção da identidade feminina, é uma continuidade da discussão anterior, que aborda
especificamente a importância dos cabelos para a construção da identidade da mulher negra.
91
O Lugar Social dos Negros
Figura 4- Foto do ex-aluno Abraão Ramos. Voltou ao colégio orgulhoso para mostrar que foi bem
sucedido na vida.
O professor Venâncio tem razão. De fato, existem situações exemplares nas quais
podemos classificar as pessoas negras por estarem dentro ou fora do "seu lugar social".
Tais situações produziram ditados populares como: Ponha-se no seu lugar; cada macaco
no seu galho, ou a versão ideologicamente absorvida pelos negros: Eu sei qual é o meu
lugar. O lugar social dos negros no Brasil foi principalmente imposto pelos brancos, pois,
no período escravista, detinham o poder político, econômico e sobre o próprio corpo dos
escravos. Mesmo durante o século XX, tendo os brancos uma hegemonia ideológica que
não forma, mas deforma a identidade negra, a margem de negociação de espaços sociais
para os negros tem sido pequena. Como observa Costa (1983):
A violência racista do branco exerce-se, antes de mais nada, pela
impiedosa tendência a destruir a identidade do sujeito negro. Este, através
da internalização compulsória e brutal de um ideal de Ego branco, é
obrigado a formular para si um projeto identificatório incompatível com as
92
propriedades biológicas do seu corpo. Entre o Ego e o seu ideal cria-se um
fosso que o sujeito negro tenta transpor, à custa de sua possibilidade de
felicidade, quando não de seu equilíbrio psíquico. (COSTA, in SOUZA
1983, p. 2-3). (Grifo meu).
Esta circulação por espaços sociais definidos pela hegemonia branca ultrapassa o
nível das idéias, chegando à negação do corpo do sujeito, produzindo nos negros, mulatos
e mestiços um mito de brancura inalcançável, comprometendo a construção de uma
identidade “sadia”.
A seguir, serão analisadas cinco diferentes situações, nas quais se podem
identificar diversas formas de tratamento dadas às pessoas negras, segundo critérios
inconscientes que a população brasileira considera como “o lugar do negro”, ou situação
em que os negros são vistos como intrusos por estarem “fora do seu lugar social”.
1) O negro no seu lugar - Quando uma pessoa negra está no "seu lugar social",
ela de fato parece invisível. Consequentemente, as discriminações sobre ela são tão
'naturalizadas', que recaem nos casos em que se tem chamado de a invisibilidade do negro
e do racismo. São as situações classificadas no capítulo anterior como racismo
inconsciente.
Por exemplo: pessoas negras, quando estão trabalhando em funções sem
prestígio, moram em bairros pobres, usam transporte coletivo, são atendidas em hospitais
públicos etc. São pouco percebidas por dirigentes governamentais, empresários e
políticos, pois estariam no "seu lugar social natural" e, portanto, não têm porque se
preocuparem com elas.
O conceito de discriminação inconsciente pode explicar por que, há décadas,
sucessivos prefeitos gastam grande parte do orçamento da cidade do Rio de Janeiro apenas
na Zona Sul. Fazem obras frequentemente entre Copacabana e Barra da Tijuca e, mesmo
assim, o Vidigal e a Rocinha lhes parecem invisíveis, como se fossem territórios que não
fizessem parte da sua governabilidade. Ainda que até para os turistas esses territórios
sempre tenham sido bem visíveis.
Em geral, essa população é tratada com indiferença, às vezes até com desprezo,
por funcionários públicos ou prestadores de serviços. Qualquer pessoa sabe a diferença de
tratamento que um médico, por exemplo, dispensa a um paciente num hospital público e
como ele trata um paciente num hospital particular. O médico é um caso tipo ideal,
93
porque há muitas reclamações contra eles. Não por acaso, em sua maioria, são brancos, de
classe média e se sentem superiores.
Alguns desavisados podem argumentar que essa discriminação é econômica e não
racial. Porém, "todos sabem [...] como é que pretos, pobres e mulatos ou quase brancos
quase pretos de tão pobres são tratados. Ninguém, ninguém é cidadão"34
. Ou seja, no
Brasil, mesmo com os adventos da Abolição e da República, com exceção das chibatadas,
os pobres herdaram a maneira como se tratavam os escravos. Este comportamento de
"superioridade" continuou no inconsciente coletivo das elites descendentes dos senhores
de escravos. É um dos arquétipos que perdurou durante o século XX.
Como os escravos, por conveniência, não eram nem considerados humanos, no
pós-abolição, os negros não foram tratados como cidadãos e este olhar das elites brancas,
às vezes de desprezo, mas em geral de indiferença, estendeu-se aos mulatos, pardos e
quase brancos pobres e favelados. O tratamento dado pelas “patroas” às empregadas
domésticas representou uma extensão do tratamento conferido pelas sinhás às mucamas,
assim como o tratamento dos patrões dado aos trabalhadores subalternos não difere muito
do tratamento dado aos escravos da casa. A rigor não se trata apenas da "a República que
não foi", como descreveu José Murilo de Carvalho35
, a “abolição também não”, pois, os
negros continuaram "presos na miséria da favela"36
, sem direito à justiça e sem
oportunidades iguais, como pressupõe uma República democrática.
Nas situações citadas acima, os negros quase não são percebidos como
indivíduos, assim como não são respeitados como cidadãos. De fato, há uma invisibilidade
não só da sua pessoa, mas também da sua condição social, de seus direitos, de suas
oportunidades, que lhes são “naturalmente” e, inconscientemente, negadas.
2) O suspeito de sempre. Entretanto, quando uma pessoa negra está "fora do seu
lugar social", jamais passa despercebida. A invisibilidade se inverte e ela parece um ser
fosforescente. Nesse outro contexto, pelo menos três situações são exemplares: quando
uma pessoa negra entra num shopping, num banco, ou quando está numa situação como a
citada pelo professor Venâncio é sempre suspeita, antes que se prove o contrário ou antes
mesmo que aconteça algum delito. No relato do professor Venâncio, seria muito fácil
34
Haiti, música de Caetano Veloso e Gilberto Gil.
35
José Murilo de Carvalho, historiador e autor do livro Os Bestializados: O Rio de Janeiro e a República que
não foi.
36
Trecho da letra do samba do Grêmio Recreativo Escola de Samba Estação Primeira da Mangueira do carnaval
de 1988, quando se comemorou o centenário da assinatura da Lei Áurea.
94
identificar que ele estava fazendo uma caminhada, tanto pela vestimenta, quanto pelos
passos cadenciados. É fácil diferenciar quem está correndo de quem está simplesmente
andando ou fazendo caminhada. A suspeita ocorreu simplesmente por se tratar de um
negro desconhecido num condomínio de alto poder aquisitivo. Nesse caso, pela mente dos
seguranças passou algo semelhante a: o que um negro está fazendo caminhando aqui?
É muito constrangedor para uma pessoa ser frequentemente vigiada. Entretanto,
mais grave ainda são os efeitos desses eventos, que se incorporam na construção da
identidade dos negros. Da infância até o final da adolescência, é tempo suficiente para que
a formação do eu de um jovem negro seja distorcida em função de eventos cotidianos
discriminatórios, travestidos de “normais”, de “sem querer” ou “brincadeiras”.
3) O negro intruso - Quando uma pessoa negra alcança uma posição social que
não é considerada “para negros", ou alguma posição de poder, ela é vista como um intruso
fora do seu lugar social. Está fazendo o quê aqui! Quando está em cargo de diretoria ou
alcança status em sua profissão, a sua simples presença incomoda. Às vezes é até
perseguido gratuitamente, em mais uma modalidade de racismo inconsciente. Que
dificilmente é passível de provas. Vejamos um exemplo:
Professor Venâncio – Quando estudei num colégio federal tive uma
professora de português que me perseguia. Ela vivia me dizendo:
– Eu não quero jubilar ninguém!
Quem fosse reprovado duas vezes era jubilado (expulso do colégio).
Um dia ela me perguntou:
– Como você veio parar neste colégio?
Eu respondi: Para entrar aqui fiz provas de Matemática e Português, e sou
o melhor aluno em Matemática. Não sou em Português porque só tive
professores iguais à senhora.
Naquele ano fiquei reprovado. Não por acaso, no colégio todo, só havia
três alunos negros, e ela também perseguiu outra aluna negra e que não era
pobre como eu. O outro aluno não era da minha turma.
O relato demonstra que, consciente ou inconscientemente, a professora não
concebia que os dois alunos negros estudassem ali, pois aquele colégio parecia ser para
uma elite branca, talvez mais elite intelectual que econômica. De qualquer forma, a
presença dos alunos negros a incomodava, pois eles estavam num lugar social em que
quase não havia negros. Por isso o espanto e o querer saber como ele foi “parar” ali. Pois,
para ela, um aluno negro não teria capacidade nem competência ou não conseguiria
ultrapassar todos os obstáculos para estudar naquele colégio.
95
Situações como essa são comuns para pessoas negras que, depois de muito
esforço e de vencerem muitos obstáculos, conseguem alcançar um espaço acadêmico ou
uma profissão reservada socialmente para uma elite intelectual que sempre foi branca no
Brasil. Quando alcançam, são vistas com desconfiança quanto a sua competência ou
capacidade. Nesses casos, a realidade é exatamente contrária, pois as barreiras são tantas
que os que chegam, em geral, têm mais potencial que a média dos que estão naquele
espaço. Ainda hoje, mesmo com a política parcial de cotas e com o Prouni, esse espaço
avançou pouco ou apenas mudou de lugar. As dificuldades passaram da graduação para a
pós-graduação, por meio de uma espécie de reserva de vagas não declarada, por meio das
entrevistas dos mestrados e doutorados.
É evidente que há espaços sociais da elite branca, intelectual ou econômica em
que o negro é bem aceito, mas, ainda assim, nesses espaços ele tende a não ser visto como
igual.
4) O negrinho coitadinho - Quando uma pessoa negra alcança um espaço social
por seus próprios méritos, com as dificuldades “normais” das relações de poder
econômico, intelectual ou político, e mesmo que nesse espaço social haja pessoas
sensíveis e que gostem dele, ainda assim não é visto como um igual. É visto como o
coitadinho. Ficam com pena pelas dificuldades por que passou para chegar naquele espaço
ou o tratam como um incapaz, que precisa ser ajudado o tempo todo. Quando ele
demonstra competência, as pessoas se surpreendem. Como ele consegue? Como se o
natural fosse ser incompetente. Ou seja, continua a não ser tratado como igual. Ele acaba
vivendo o conflito de ter que abandonar seu eu negro para assumir um ego de brancura.
É difícil para uma pessoa negra vivenciar esses papéis sociais, sendo o diferente o
tempo todo. Fica evidente que, na construção de sua identidade, frequentemente carregue
os efeitos do racismo.
Esses são motivos pelos quais a maioria dos brasileiros quer ser igual e não
diferente. Portanto, construir uma identidade negra, no Brasil, tanto individual quanto
coletiva, como propõe o MN, é uma tarefa muito árdua. Os negros não querem formar um
povo negro, pois já se sentem o tempo todo diferentes e, por conta disso, excluídos. Como
a construção da identidade coletiva requer a construção das diferenças individuais e
coletivas em relação ao outro grupo, esta é uma contradição difícil de ser superada. A
consequência é que os negros acabam tendo o branco como “espelho” na formação do seu
ego. Ou como afirma (COSTA, in SOUZA 1983, p. 3):
96
Acompanhando o desenvolvimento biológico da criança, elas permitem
ao sujeito infantil o acesso a uma outra ordem do existente – a ordem da
cultura – onde a palavra e desejos maternos não mais serão as únicas
fontes de definição de “verdade” ou “realidade” de sua identidade. Em
primeiro lugar, pela presença do pai, em seguida pela presença dos pares,
que serão todos os outros sujeitos exteriores à comunidade familiar.
Estas instanciais vão, mostrar ao sujeito aquilo que lhe é permitido,
proibido ou prescrito sentir ou exprimir, a fim de que sejam garantidos,
simultaneamente, seu direito a existência, enquanto ser psíquico
autônomo, e o da existência de seu grupo, enquanto comunidade
histórico-social.
Tal processo de negação-aceitação do ego-ideal de ego, entre a criança e o adulto,
entre o sujeito e a cultura constrói o fetiche da brancura, produzindo naqueles que
almejam ser aceitos no mundo branco, o que o sábio ditado popular chamou de “negro de
alma branca”.
5 - O negro de alma branca – Como em nossa sociedade ser negro é um
marcador social que, além de pressupor a diferença, acarreta discriminação e
desigualdade, inconscientemente uma parcela da população negra, como não pode
literalmente ser branca, procura ao menos, ser “negra de alma branca”, buscando a
aceitação social. O objetivo é assimilar o máximo possível não só as formas de
pensamentos ou as ideologias dominantes, mas até a aparência física.
Essa busca se dá principalmente de três formas: pela cor, pelos cabelos e pela
ascensão socioeconômica. Muitos mulatos e mestiços negam sua origem afro-descendente,
declarando-se morenos ou brancos quando se pergunta sobre sua cor. Isso se torna mais
fácil quando essas pessoas ascendem econômica e socialmente, assimilando os
comportamentos e a linguagem das classes médias ou das elites brancas. A ascensão social
ou econômica serve de máscara para esses afrodescendentes “esquecerem” esta parte de
suas origens e passam a se ver como brancos. Muitos deles sofrem um choque de
realidade quando saem do país, pois são vistos e tratados como negros. Por outro lado, os
afro-descendentes pobres que moram em favelas e têm baixo índice educacional,
fatalmente são vistos e tratados como negros. Logo, não têm muita oportunidade de
passarem como brancos.
A outra forma de negação das origens afro-descendentes corresponde às
tentativas de modificarem os cabelos para que fiquem “compridos, lisos e loiros”, ou seja,
parecidos com a aparência dos brancos, isso se torna quase uma obsessão, principalmente
97
para as mulheres negras, mulatas e mestiças. Os homens, tradicionalmente, usam o
artifício contrário, cortam os cabelos o mais baixo possível para “esconder as suas raízes”.
Assim como o corpo é o objeto primevo utilizado na construção da identidade de
uma pessoa, nesses casos, a sua negação, ou da pele ou dos cabelos, fatalmente vai
produzir um ego, uma alma, no mínimo conturbada. Pois, segundo Marcel Mauss (2003),
a construção da pessoa se dá num entrelaçamento entre o biológico, o social e o
psicológico e tem de ser analisado desse tríplice ponto de vista.
A aparência dos brancos, ao longo dos séculos de dominação, virou sinônimo de
beleza. Além disso, a beleza é um dos principais instrumentos de poder que as mulheres
têm em nossa sociedade. Ainda na adolescência, as mulheres aprendem que aquelas
consideradas as mais bonitas obtêm vantagens sociais e econômicas em relação às outras.
Assim, todas as mulheres querem assimilar o padrão branco de beleza.
O fato dos mulatos ou mestiços, pelos motivos já expostos, não quererem se
identificar com sua descendência negra dificulta os objetivos políticos e ideológicos do
Movimento Negro de construir uma identidade coletiva negra. A postura do MN, embora
politicamente legítima, é arbitrária, pois uma pessoa filha de branco com negro,
teoricamente, pode reivindicar tanto uma identidade negra quanto branca. Como os bens
sociais são reservados aos brancos, as crianças pretas, mulatas e mestiças crescem
querendo ser brancas.
Aluna Teresa – Minha filha não aceitava ser negra. Porque todas as amigas
dela eram brancas, aí ela não aceitava ser negra. Aí o que eu fiz. Peguei as
roupas dela que tinham as cores mais fortes e falei:
– Bota essa amarela aqui, bota essa amarelona.
Aí ela botou e eu falei:
– Olha no espelho! Me diz se não ficou bonito. Você quer ver? Tá aquele
sol e estão todas as pessoas branquinhas pegando sol querendo ficar com a
cor que Deus te deu. Isso é um privilégio, você é morena o ano inteiro.
Aluna Teresa - Dentro da minha família, a única menina branca dos olhos
verdes que cismou em casar com negão (risos) foi minha mãe. Toda a
minha família é branca de descendência portuguesa. Então dentro da minha
família mesmo, soltam aquelas: tinha que ser preto! Minha avó era quem
mais falava que não entendia porque minha mãe manchou a família, porque
minha mãe envergonhou a família. Que odiava preto, que não queria ver o
preto na frente dela! O preto de quem ela falava era meu pai.
O relato acima mostra como as crianças cedo percebem que não é vantajoso ser
negro. Aquelas pertencentes às famílias compostas por brancos e negros vivenciam os
maiores conflitos, oscilando entre se identificar com o pai ou com a mãe, independente do
98
sexo. Constrói-se uma relação de amor e ódio com o cônjuge negro. Vejamos os
depoimentos de outras alunas adolescentes:
Pesquisador – Quando foi que, pela primeira vez, vocês se deram conta de
que eram mulheres e negras?
Aluna Amanda – Eu acho que é quando a gente começa o ensino
fundamental, o pré. Que começam a falar assim. Aquela menina ali é mais
clarinha. Acho que é daí que a gente começa a ver que tem o claro, que tem
o branco e o negro.
Aluna Betânia – Assim, na escola, quando a gente é pequenininha. Você
tem cabelo duro, meu cabelo é liso.
– Ela tem cabelo duro, tem piolho.
Aluna Carmem Lúcia – Na rua ficam zoando! Ah, neguinha do cabelo
duro, meu cabelo é liso. Você é preta do cabelo duro.
As crianças costumam ser mais sinceras emitindo suas opiniões sem rodeios, por
isso as discriminações, de forma individual e direta, são mais comuns entre as crianças e
adolescentes. A escola é um ambiente apropriado para detectar tais manifestações, pois é
um espaço de convivência longo e intenso para as crianças e adolescentes. Grande parte
das amizades duradouras ou desafetos são construídos no período escolar. Porém, muitas
delas esquecem ou recalcam as discriminações sofridas nesta fase da vida.
Pesquisador – Vocês já foram discriminadas algumas vezes?
Aluna Amanda – Não.
Aluna Betânia – Não.
Aluna Carmem Lúcia – Não.
Aluna Débora – Também não.
Aluna Talita – Eu nunca reparei não. Eu já reparei preconceito com outras
pessoas. Direcionado a mim eu nunca reparei não.
Não é raro ouvir de pessoas negras dizerem que nunca foram discriminadas e que
basta o negro se esforçar para que alcance seus objetivos. Trata-se de um discurso da elite
branca e são duas afirmativas falaciosas. Em primeiro lugar, já foi muitas vezes
demonstrado pelas teorias marxistas que, quando isso acontece, apesar das divisões de
classes sociais, é mera exceção e não a regra da sociedade capitalista.
99
Segundo, porque se vivemos numa sociedade que está estruturada com base em
ideologias racistas, se um dos seus pilares de dominação ocorreu no período escravista e
continua havendo discriminação racial é praticamente impossível para uma pessoa negra
que nasceu e cresceu nesta sociedade não ser impactada por suas formas de pensamentos
mais básicas. Pois elas estão profundamente assentadas no inconsciente coletivo e no
inconsciente individual dos membros dessa sociedade. Tal fato, se fosse possível,
contrariaria os fundamentos da Sociologia, da História e da Psicologia.
Pessoas que não foram xingadas ou menosprezadas diretamente por causa da sua
cor, como os casos aqui tipificados de racismo individual, são levadas a pensar que não
são discriminadas. Uma aluna branca, com os cabelos tingidos de loiro, relatou o seguinte
episódio num debate em sala de aula: ela e uma amiga negra foram ao shopping no
período anterior ao Natal para se candidatarem a emprego de vendedora temporária. Ela
voltou empregada e a colega negra não. A aluna disse que o currículo da amiga era melhor
que o dela, com alguns cursos adicionais, como informática e inglês. Porém, na maioria
dos casos, recebeu a resposta de que não tinha o perfil adequado para o cargo. Como não
houve nenhuma referência à cor, a colega não associou a negação do emprego à cor da
pele.
Este é o tipo de racismo difuso e inconsciente que “não é percebido” pela pessoa
que praticou, nem pela pessoa que sofreu o racismo. Algumas dessas pessoas continuam
afirmando que nunca sofreram racismo. Outras recalcam tanto a “sua identidade” afro-
brasileira que sequer conseguem admitir a discriminação ou até o fato de serem negras,
como ficou evidente nos percentuais sobre cor nas pesquisas do IBGE.
Vejamos outro exemplo:
Pesquisador – Você já foi discriminada?
Aluna Tereza – Na escola em relação à cor. Eu estava na 3ª série. Quando
a gente estava no pátio, a professora era um anjo. Quando a gente subia,
ela parava toda a turma e falava “os negrinhos para trás!” Aí formava uma
fila só de negros atrás e os branquinhos passavam para frente. Dentro da
sala os branquinhos sentavam na frente e os negros atrás. A gente não
podia pedir para ir ao banheiro. Isso eu não tenho como provar, mas tenho
testemunhas que eram da minha sala e que também passaram por isso. A
gente não lanchava junto com eles. Eles lanchavam e quando voltavam a
gente ia. A gente não podia chegar perto dela para perguntar nada.
Tínhamos que deixar nossos cadernos numa mesinha no fundo da sala, pra
que ela no final pegasse. A gente não podia encostar nela.
100
Muitas crianças que vivenciam situações como esta passam a negar sua cor e sua
descendência afro-brasileira. Há quem, em determinado momento da vida, consiga trazer
ao consciente a sua “identidade negra”, outras não. Isso depende de vários fatores, dentre
os quais a participação em eventos que discutam abertamente a discriminação racial, como
os promovidos pelas entidades do MN ou debates de sala de aula, de forma orientada, com
professores capacitados para tal, como veremos a seguir. Por isso a importância da Lei
10.639/03.
Tornando-se Negro
Pesquisador – Professora Gracinha, você tem alguma experiência sobre
racismo na escola que queira contar?
Professora Gracinha – Na sala de aula havia um aluno que era bem
escurinho e todos chamavam ele de tiziu. Perguntei: Por que Tiziu? [...]
Então eu também sou tiziu?
Os alunos responderam:
– Não, professora, a senhora não é tiziu não.
– Ué, então porque ele é tiziu e eu não? É por causa da cor dele? – É sim.
– Então eu também sou tiziu. Ainda brinquei: Qual é o feminino de tiziu?
É tiziua? (risos)
– Não, professora, a senhora não, nós gostamos tanto da senhora, a senhora
é tão legal!
– E ele? Ele não é legal?
– É.
–Vocês não gostam de ser chamados assim. Por que chamam ele?
– Ah, professora, porque a gente já acostumou.
Foi a hora em que eu dei um sermão e, depois daquele dia, ninguém mais
chamou aquele menino de tiziu. Quer dizer, foi uma coisa que acabou [...].
O nome dele era Marco Aurélio. Perguntei a ele:
– Você gosta de ser chamado de tiziu?
– Eu não.
A partir daquele dia, ninguém tornou a chamá-lo de tiziu.
Os apelidos, em geral, têm uma conotação pejorativa. Muitos professores os
colocam numa classificação genérica de bullying. Entretanto, apelidos como tiziu,
macaco, macacão, negão e mesmo aqueles mais “afetivos”: neguinha, pretinha, chocotona
etc., além de pejorativos, têm uma conotação inconsciente de agressão à origem do
indivíduo.
Até antes da constituição de 1988 e da lei Caó, que tipificou o racismo como
crime, estes apelidos eram muito mais corriqueiros. Hoje em dia, como a Lei 10.639/03
não pode ser aplicada aos menores de dezoito anos, e as professoras encaram estes eventos
como brincadeiras de criança, eles persistem e ainda são relativamente frequentes nas
101
escolas de ensino básico. Não basta colocar no currículo escolar a história da África e dos
afro-descendentes. É necessário que um número muito maior de professores seja
capacitado para lidar com as diferentes circunstâncias que envolvem a discriminação
racial cotidiana, que é difusa e inconsciente.
Professora Dalila da Pena.
– Eu estava num evento e uma professora contou o seguinte fato: Eu dou
aula em uma escola aqui da Zona Oeste e na minha sala tem uma aluna
preta, bem preta e aconteceu uma coisa de criança que eu considero ruim.
Ela sofreu bullying. Alguém chamou ela de macaca, de beiçuda, de
fedorenta, de negrinha fedorenta, coisa de crianças que estão sempre
praticando o bullying. Mandei a turma ficar quieta continuei passando
exercício no quadro. Dali a pouco a diretora mandou me chamar e lá
estavam a polícia, o conselho tutelar, o conselho da criança e do
adolescente, todo mundo na escola, porque a garota pediu pra ir no
banheiro e ligou, chamou todo mundo. A mãe foi na escola e exigiu
indenização de 35 mil reais. Quem vai pagar é a escola ou o Município,
mas alguém vai ter que pagar, então vocês que vão pra sala de aula
precisam estar muito atentas porque os alunos também não estão bobos
não. A televisão e internet está aí, muitos deles sabem seus direitos.
O relato demonstra que a professora não estava preparada para lidar com o
fenômeno e ainda o classificou no conceito genérico de bullying, mascarando a
especificidade do racismo. Não só os apelidos, já que eles têm a força da repetição, mas
também eventos significativos de discriminação de crianças e adolescentes podem causar
profundas marcas na construção da identidade das pessoas, que às vezes só um processo
psicoterapêutico pode curar ou, então, uma participação frequente em eventos ou
instituições como as do Movimento Negro.
Outro exemplo muito comum no período da adolescência envolve os primeiros
jogos de escolha dos parceiros afetivos, que influenciam fortemente na formação
multirracial das famílias brasileiras.
Pesquisador – Professor, como foi a tomada de consciência de sua
negritude?
Professor Venâncio – Foi aos poucos. Com quatorze anos fui paquerar uma
garota e me respondeu “Sai pra lá, macaco”. Passei a ignorá-la. Algum
tempo depois, flagrei-a chorando. Então perguntei a uma colega comum
por que ela estava chorando. A colega respondeu:
– Ela anda chorando porque gosta de você, mas você nem liga pra ela.
Ela tinha um fenótipo bem característico de índia. Eu tenho alguma
descendência indígena, da minha avó. A partir daquele fato foi que me dei
conta da minha cor negra. Passei a me olhar no espelho e a procurar traços
indígenas em mim; identificava traços no cabelo e na cor da pele. Passei a
negar minha negritude e a classificar minha cor de chocolate. Aos dezoito
anos, fui a uma festa chamada Noite da Beleza Negra, organizada por um
102
grupo do Movimento Negro que se chamava Agbara Dudu. Fiquei
encantado com as músicas e com o concurso da negra e do negro mais
bonito! Voltei da festa me achando bonito e me assumindo enquanto negro.
Alguns anos depois, comecei a participar de grupos do MN, o que não só
fortaleceu minha autoestima enquanto negro, mas me fez compreender com
mais profundidade o racismo.
A construção de identidade dos povos dominados ou dos grupos sociais
minoritários, do ponto de vista das relações de poder, é sempre muito complexa e cheia de
contradições, já que muitas vezes carregam e reforçam as ideologias dos dominadores. As
particularidades da História brasileira fizeram com que negros, brancos e índios, em
determinadas situações, convivessem intimamente, a ponto de chegarem ao mais profundo
grau de intimidade, que são as relações sexuais e/ou as relações afetivas de amor e paixão.
Essa característica, bem diversa das histórias dos americanos e dos sul-africanos,
contribuiu fortemente para que se chegasse à conclusão equivocada de que, no Brasil não
havia racismo, ou que o racismo no país era mais brando que em outros países. Estes
argumentos já foram cientificamente desconstruídos, porém seus efeitos colaterais no
imaginário do senso comum ainda não.
Uma das contradições mais intrigantes das relações afro-afetivas dos brasileiros é
que uma pessoa branca possa gostar, ter relações sexuais e se apaixonar por uma pessoa
negra e continuar sendo racista e discriminando a pessoa amada. Os conceitos teóricos da
psicologia de pulsão37
, inconsciente coletivo e inconsciente individual, discutidos no
capítulo anterior, podem ajudar a explicar tal contradição. Isso porque o fato de uma
pessoa branca, mestiça ou negra gostar de outra pessoa negra, não elimina
necessariamente o racismo inconsciente nela contido. O amor e o racismo estão
canalizados em pulsões diferentes. Seguindo a lógica do pensamento freudiano, o amor é
alimentado pela pulsão de vida e o racismo pela pulsão de morte. Assim como as pessoas
podem sentir amor e ódio ao mesmo tempo por outra pessoa, elas também podem amar e
discriminar a mesma pessoa.
Em termos psicanalíticos, afirmamos que o principal vetor de
crescimento e desenvolvimento psicológicos é a experiência de
satisfação. O sujeito busca sempre reencontrar na realidade um objeto
que corresponda ao traço mnêmico de um objeto primordial, Matriz de
uma experiência de satisfação inesquecível. Este movimento do
psiquismo com vistas à reedição do prazer constitui o desejo. O desejo
37
Para Freud, existem duas pulsões básicas no homem: a pulsão de vida e a pulsão de morte.
103
em sua vertente erótica, é este impulso, esta moção em direção ao objeto
e à situação de prazer. (COSTA, in SOUZA, 1983, p. 9).
O exemplo citado acima, em que a adolescente, num ato falho, chama o rapaz de
macaco e, algum tempo depois, chora porque ele não corresponde ao amor dela, ilustra
bem a convivência conflituosa dos dois sentimentos. Exemplos como esses não são casos
isolados: é grande o número de relações afro-afetivas conflituosas no Brasil, que, por
causa do racismo inconsciente, dificultam, por exemplo, que muitos deles se consolidem
ou acabem em casamento. Diferente das relações de namoro, na concretização de um
casamento a interferência das famílias é muito maior. Além dos familiares não sentirem
amor pelo possível cônjuge, costumam pôr em jogo, além do racismo, os interesses que
sempre condicionaram as alianças de parentesco, ou seja, os interesses econômicos, de
status social e de poder.
Quando o parceiro negro, que é a maioria dos casos, não possui dinheiro ou poder
para trocar pelo “dote” do outro, que entra com o status de brancura, a família geralmente
impede o enlace. Mesmo quando ele se concretiza, os parceiros seguem vivendo os
conflitos inconscientes entre a atração do amor e a rejeição da cor produzida pelo racismo.
Inclusive o mais claro, pois este, além de vivenciar o sentimento da paixão, ao mesmo
tempo rejeita inconscientemente seu parceiro, por causa do racismo que está sedimentado
no seu ego. Já o parceiro negro, acaba rejeitando seu próprio corpo.
Aluna Tereza – A gente estava na nossa casa e, quando minha avó
chegava, minha mãe pedia para ele sair.
Pesquisador – Isso criava algum conflito entre sua mãe e seu pai?
Aluna Tereza – Criava muitos. Eu ouvia quando criança (minha mãe é
falecida). Ele falava: “Você não me defende! Você não fala nada”.
Realmente ela não falava nada, não defendia mesmo.
Pesquisador – E o que você achava disso?
Aluna Tereza – Na realidade ela amava muito meu pai, mas gostaria que
ele fosse branco. Acho que, no fundo, no fundo, ela se arrependia um
pouco [...]. Eu não me lembro de um Natal, um Ano Novo, com toda a
minha família reunida e com meu pai também. Ele não ia. Não ia mesmo!
Minha mãe teve cinco filhos, quatro são negros, minha irmã nasceu mais
pra cor da minha mãe. E um irmão meu é negro de olhos verdes. Minha
família é muito grande, você olha e são quatro pontinhos negros.
A pressão imposta pela família, que a coloca como se o relacionamento a tornasse
“suja”, faz com que o parceiro branco termine por ser também discriminado, como se
também tivesse se tornado negro. Ele acaba sofrendo por viver a contradição entre dar seu
amor ao parceiro ou deixar de receber o amor da família, geralmente do pai ou da mãe.
104
Em muitos desses casos, o parceiro branco tem plena consciência do racismo, luta contra
ele, às vezes até é militante da causa, porém, os conteúdos do seu inconsciente coletivo,
reforçados pelo arquétipo racista da família, frequentemente se manifestam, levando-o a
discriminar seu parceiro de forma indireta e velada. Tal situação produz conflitos que
parecem ser de relacionamento do casal, mas que, no fundo, são conflitos psico-raciais,
tanto do parceiro branco, quanto do parceiro negro.
Os Cabelos na Construção da Identidade Feminina
Pesquisador – Qual o estilo de cabelo vocês acham mais bonito? Liso ou
crespo?
Aluna Amanda – Crespo.
Aluna Betânia – Crespo.
Aluna Carmem Lúcia- Crespo.
Aluna Débora – Liso.
Pesquisador – Por que então vocês alisam os cabelos?
Aluna Amanda – Por onda, todo mundo estava usando formol, com o
cabelo bonito, fiz também!
Aluna Betânia – Eu também, só que me arrependi.
Pesquisador – Agora a moda das artistas negras é usar os cabelos crespos,
o que vocês estão achando?
Aluna Amanda – Acho lindo.
Aluna Betânia – Lindo!
Aluna Carmem Lúcia – Também acho lindo.
Pesquisador – Vocês vão usar o cabelo crespo igual ao delas?
Aluna Amanda – Não, agora com o formol ele não fica mais.
Aluna Débora – Eu não gosto. Comigo ficaria horrível.
Aluna Talita – Gosto do cabelo cacheado.
Pesquisador – Vocês acham lindo mas não querem usar? Por quê? (Risos).
Aluna Amanda – Minha mãe também me influencia para alisar.
Podem-se classificar os diversos modos ou modas de se usar os cabelos dentro do
que Marcel Mauss (2003) chamou de as técnicas do corpo. Para o autor, na arte de usar o
corpo predomina a influência da educação. As crianças, em particular, imitam melhor os
atos que elas viram realizados por pessoas, nas quais elas confiam ou admiram ou que têm
autoridade sobre ela. O ato imitador impõe-se de fora para dentro, de acordo com o
elemento social, psicológico e biológico e de forma indissolúvel. Nessa análise, é preciso
fazer uma observação tríplice, do “homem total”. Duas coisas são imediatamente visíveis,
a partir dessa noção de técnicas do corpo: elas se dividem e variam por sexos e por idades.
Ou seja, são marcantes as diferenças na construção das identidades do masculino e do
feminino, assim como as diferenças dos jovens para os adultos.
105
Além do crescimento nos índices educacionais, construir uma autoestima positiva é
outro grande passo para a mulher negra conquistar sua dignidade, já que se perceber como
bonita diante do espelho é fundamental na reconstrução da sua identidade. Para isso, o seu
corpo precisa ser ainda mais valorizado, não apenas pelas suas curvas, mas também por
outra forma de expressão que nega ou reafirma sua beleza: seus cabelos.
A mulher brasileira precisa construir um conceito de beleza para os cabelos crespos
e desconstruir do imaginário social a ideia de que eles são “ruins” e feios. Para as
mulheres em geral, os cabelos são uma das principais expressões de beleza. Como os
cabelos crespos não são considerados bonitos, a mulher negra acrescenta um novo item de
negação na formação de sua identidade, elas têm pouca saídas diferentes de reconstruir os
conceitos do que é possuir um cabelo bom e bonito.
É preciso lembrar que a beleza ou a feiura não é algo inato, mas sim um padrão
social e historicamente construído. Vale recordar que depois que o concurso Miss
Universo passou a ser questionado pelo seu padrão único de beleza – o europeu – mudou-
se a percepção dos jurados. De lá para cá, as mulheres asiáticas, indígenas e africanas têm
estado com alguma frequência entre as finalistas e a última vencedora foi a angolana Leila
Lopes. A beleza não é apenas um dado biológico, como pensa a maioria das pessoas. As
mulheres africanas e asiáticas não se tornaram mais bonitas nem mais feias. O que mudou
foi apenas a percepção dos jurados. Ela é construída a partir dos elementos ou traços
corporais que cada sociedade elege para compor o seu padrão de beleza.
A percepção de beleza negra e mestiça precisa ser (re)construída nos brasileiros
para que as pessoas não precisem se tornar brancas para serem consideradas bonitas. A
mulher europeia, em particular a francesa, adotou o cabelo curto como “chique”. Quando
a cantora Elis Regina, na década de 1970, apareceu de cabelo curto, foi um escândalo. O
cabelo no estilo Black Power já foi considerado bonito para a juventude da década de
1970. O cabelo com o corte moicano era considerado estranho, coisa de índio selvagem e
hoje é moda entre os jovens. Seguem abaixo músicas aparentemente inocentes, que
durante muitos anos expressaram ou ajudaram a construir a negação às mulheres negras de
seu direito de serem consideradas bonitas.
106
Nega do cabelo duro
Nega do cabelo duro, Qual é o pente que te penteia?
Ondulado, permanente. Teu cabelo é de sereia
E a pergunta que sai da mente
Qual é o pente que te penteia?
Quando tu entra na roda. O teu corpo bamboleia
Minha nega meu amor
Qual é o pente que te penteia?
Teu cabelo a couve flor. Tem um “quê” que me tonteia
Minha nega, meu amor
Qual é o pente que te penteia?
Misamplis a ferro e fogo. Não desmancha nem na areia
Toma banho em Botafogo
Qual é o pente que te penteia?
Nega do cabelo duro, (Oh, minha nega!)
Qual é o pente que te penteia?
Nega do cabelo duro, qual é o pente que te penteia
Qual é o pente que te penteia. Oh nega.38
A letra desta música revela vários pontos que já foram discutidos neste capítulo e
no anterior. Desde o fato de que um parceiro pode discriminar o outro, mesmo que o ame,
até a revelação mais explícita de como a discriminação da mulher negra através dos seus
cabelos era uma coisa corriqueira e considerada normal, ou mera brincadeira, até as
veementes denúncias do MN nos anos de 1980. Tal fato só diminuiu com a lei Caó. Outra
marchinha de Lamartine Babo contêm os mesmos temas que a anterior. Um homem
branco que está apaixonado pela mulata, mas, renega e discrimina a sua cor e o seu
cabelo.
38
http: //letras.terra.combr/ultramen/1431283 Acessado em 18 de março de 2012. Música cantada por Zé e Zilda.
Há uma polêmica quanto a sua autoria: está registrada como: “De Rubens Soares e David Nasser”. A melodia é
calcada na de Sinhô e que Nestor de Holanda já ouvira fazendo parte de um ponto de terreiro, segundo o site.
107
Figura 5. Ex- aluna Talita orgulhosa por usar seus cabelos naturais sem
alisamento.
O TEU CABELO NÃO NEGA, MULATA39
O teu cabelo não nega, mulata
Porque és mulata na cor
Mas como a cor não pega, mulata,
Mulata eu quero o teu amor!
Tens um sabor bem do Brasil;
Tens a alma cor de anil;
Mulata, mulatinha, meu amor,
Fui nomeado teu tenente interventor.
Embalado pelo sucesso de: O Teu Cabelo não Nega, Mulata, no ano seguinte,
Lamartine Babo fez Linda Morena. Embora o objetivo consciente do autor fosse exaltar a
mulher brasileira, o seu inconsciente o traiu, e, ao mesmo tempo em que exaltou a mulata,
ele também a discriminou, ao dizer que: mas como a cor não pega, mula ... eu quero o teu
39
HTTP://palavrasinistrablogspot.commbr2005/04teu-cabelo-no-nega-
mulatahtm?m=1 Em 08de abril de 2012.
108
amor, o que não aconteceu com a exaltação da morena, considerada por alguns artistas
modernistas como o ideal de mulher.
LINDA MORENA (Lamartine Babo, 1932)
Linda morena, morena,
Morena que me faz penar.
A lua cheia que tanto brilha
Não brilha tanto quanto o teu olhar.
Tu és morena, uma ótima pequena,
Não há branco que não perca até o juízo.
Onde tu passas
Sai às vezes bofetão,
Toda gente faz questão
Do teu sorriso.40
No ano seguinte, Braguinha segue a fórmula de Lamartine e lança Linda Lourinha,
também com grande sucesso. Nesse caso, porém, colocando a mulher branca na
construção da imagem da mulher brasileira. Para outras correntes, a mulher brasileira era
a mistura das três raças.
LINDA LOURINHA
Lourinha, lourinha. Dos olhos claros de cristal,
Desta vez em vez da moreninha. Serás a rainha do meu carnaval!
Loura boneca. Que vens de outra terra,
Que vens da Inglaterra. Que vens de Paris,
Quero te dar. O meu amor mais quente
Do que o sol ardente. Deste meu país!
Linda loirinha,
Tens o olhar tão claro. Deste azul tão raro
Como um céu de anil. Mas as tuas faces
Vão ficar morenas. Como as das pequenas
Deste meu Brasil!41
Na marchinha “Linda Lourinha” são exaltados, além dos cabelos, os “olhos claros
de cristal”, como ela não é considerada de fato brasileira, “as suas faces vão ficar morenas
como as pequenas deste meu Brasil”. Não é por acaso que no Brasil tem-se a cultura das
branquinhas se bronzearem ao sol nas praias na estação do verão. Pela influência de
40
Linda Morena. Música de Lamartine Babo, 1932. http://www.almacarioca.net/falandodecarnaval. Acesso em
19 de março de 2012.
41
Linda lourinha. Música de Braguinha, 1933. http://www.almacarioca.net/falandodecarnaval. Acesso em 19 de
março de 2012.
109
grande parte do Movimento Modernista42
, a morena era considerada a verdadeira mulher
brasileira, por descender das índias. Além da exaltação da mulher brasileira, as
marchinhas demonstram também a busca de uma identidade para a mulher brasileira, além
de uma identidade nacional, algo que vem desde a Semana de Arte Moderna.
Historicamente percebe-se que as diversas tentativas de se construir uma
identidade nacional passam pela construção da identidade da mulher. Logo, a mulher
brasileira faz parte do pacote de imagens do Brasil que se vende para os estrangeiros.
Porém, ao se vender a mulata, a mestiça e a morena, não teria cabimento se vender a
lourinha para o europeu, pois ele já tem a original: esta é a contradição entre o mito das
três raças e o mito da brancura. Ser branco no Brasil é um mito aos olhos dos europeus.
Para eles, nós somos mestiços latinos.
As marchinhas refletem um momento histórico e podem ser vistas de vários
ângulos. Para o contexto em pauta, percebe-se também uma imagem de mulher ainda
inocente, bem diferente das que representam o período posterior aos movimentos
feministas, no qual a mulher reivindicou, dentre outras coisas, a liberdade sexual.
Embora a mulata já carregasse a sexualidade na sua identidade social, a partir das
mulatas do Sargentelli43
, essa sexualidade se acentua publicamente e, no embalo do
feminismo e do crescimento da mídia, essa imagem sexualizada estende-se às mulheres
brancas, até então consideradas recatadas, “boas para casar”, reconstruindo assim, a
imagem da identidade da mulher brasileira em geral. Nesse novo contexto histórico, a
mulher, mais do que contestar o uso da sexualidade na reconstrução de sua imagem pela
mídia, tirou partido disso. Pois a mulher também buscava sua independência financeira em
relação ao homem. Ao vender a imagem do seu corpo e da sua sexualidade, virou
mercadoria, o que, literalmente foi um bom negócio, que mobilizou toda sorte de
comerciais, programas de TV e revistas masculinas como Playboy.
Comparando as quatro marchinhas, as duas que se referem à mulher negra contêm
conteúdos discriminatórios que ultrapassam o imaginário de seus autores. A frase: Nega do
cabelo duro, Qual é o pente que te penteia? atravessou gerações, reconstruindo uma imagem
de inferioridade para os cabelos da mulher negra, que até hoje é motivo de brincadeiras de
42
Movimento cultural marcado pela Semana de arte Moderna de 1922, realizada entre 11 e 18 de fevereiro de
1922 no Teatro Municipal de São Paulo. Um dos objetivos do movimento era realizar uma arte nitidamente
brasileira, sem complexo de inferioridade em relação à arte produzida na Europa.
HTTP://www.pitoresco.com.br/art_data/semana/index.htm
43
Oswaldo Sargentelli, criador dos Shwos de Mulatas na década de 1970. [1]
(Rio de Janeiro, 8 de dezembro de
1924 — Rio de Janeiro, 13 de abril de 2002) foi um radialista, apresentador de televisão e empresário da noite
brasileiro. Era filho de Maria Amélia Sargentelli e de Leopoldo de Azeredo Babo, irmão de Lamartine Babo.
110
mau gosto pelas crianças na escola. Como nas falas das alunas Betânia: Ela tem cabelo duro,
tem piolho, e Carmem Lúcia: O seu cabelo é duro o meu é liso.
Essas músicas continuam no imaginário coletivo, razão do sucesso estrondoso que
fizeram, estão mais vivas na memória oral do povo brasileiro que, as que falam da morena
e da lourinha, justamente porque seus conteúdos são racistas. Segundo Merleau-Ponty
(1999), “não há uma palavra, um gesto humano, mesmo distraído ou habitual, que não
tenham significação”. Essas marchinhas carregam os significados sociais mais profundos
sobre a mulher negra.
Recentemente, o palhaço Tiririca gravou uma música com o mesmo sentido, porém
bem mais deprimente, que dizia “ veja, veja os cabelos dela, parece bom-bril de arear
panela”44
, tentando reeditar os sucessos das marchinhas, mas foi fortemente combatido pelo
MN.
As leis anti-racismo têm sido importantes para frear atitudes explícitas de grande
alcance que depõem contra a identidade negra, mas não são suficientes no combate às
micro-discriminações cotidianas que continuam reproduzindo o imaginário social herdado
do período escravista de que os negros são inferiores.
Não foi mera coincidência que, neste período da história, as mulheres negras
começassem a passar um pente de ferro quente nos cabelos, procurando alisá-los para
ficarem parecidos com os cabelos escorridos da mulher morena. Quando se perguntava a
cor de uma mulher filha de branco com preto, ela se declarava morena, por sentir
vergonha de sua cor e de seus cabelos. “Esconder” a sua cor e alisar os cabelos são:
[...] gestos, considerados bioculturais, expressam a nossa própria vida
individual e coletiva porque têm um sentido histórico. Formando a
linguagem do corpo, por meio dos gestos somos capazes de expressar
(alguns) símbolos e esconder outros [...]. Envolve corpo, natureza e cultura
[...] (MENDES e NÓBREGA, 2009, p. 2-3).
Depois do ferro quente veio o henê e vários outros artifícios até o atual secador de
cabelos, seguidos do alisamento com formol e da tintura para deixá-los também louros.
Logo, muitas das mulheres mestiças, depois que alisam e pintam os cabelos de louro, se
declaram brancas. Parece que se está tatuando no próprio corpo a ideologia do
branqueamento, na versão feminina. Na década de 1970, surgiu uma alternativa
ideológica, buscando um caminho “mais digno” de reconstrução da identidade negra, o
44
TIRIRICA, 1996, música Veja os Cabelos dela.
111
movimento Black Power. O uso do cabelo naturalmente crespo, que surgiu nos EUA,
tinha como proposta construir outra estética para os negros, visando ao abandono do
alisamento e procurando desconstruir a ideologia do branqueamento. Porém, ao ser
absorvida maciçamente pela juventude negra brasileira, tomou um significado de rebeldia
e de modismo, encobrindo o seu conteúdo ideológico original.
Quem já passa dos 40 anos sabe que, nos anos 70, quanto maior era o
Black Power mais seria respeitado pela turma. O primeiro famoso a
assumir o pixaim foi Toni Tornado, depois Tim Maia. Ambos haviam
morado nos Estados Unidos por um tempo. A atriz Zezé Mota conta que,
em visita àquele país, na época, deparou com os negros usando cabelo
natural, voltou para o hotel e enfiou correndo a cabeça debaixo do chuveiro
e sentiu como se fosse uma libertação. A onda pegou tanto no Brasil que
virou símbolo de modernidade não só para negros. Jô Soares, Marcos
Paulo, Roberto e Erasmo Carlos (cantores), todos usavam. Até que, em
meados de 1974, Paulo César, jogador do Flamengo e da Seleção
Brasileira, inovou, colorindo o black de caju. Ganhou até o apelido de
Paulo César Caju.45
(LOURENÇO e OLIVEIRA, 2012).
O uso do cabelo Black Power na década de 1970 que teve como ícones os
jogadores, Paulo César e Jairzinho e os cantores Jair Rodrigues e Tony Tornado, logo foi
absorvido muito mais pelos homens que pelas mulheres que, em sua maioria, não aderiram
à moda e seguiram alisando os cabelos. Na década de 1980 surge o movimento Rastafari,
com seus cabelos trançados naturalmente (dreadlocks). O movimento teve origem na
Etiópia, com objetivo de reafirmação e independência cultural em relação à Europa, e
conquistou visibilidade mundial e na Jamaica graças ao cantor de reggae Bob Marley.
No Brasil, o movimento ganhou a adesão dos adeptos do reggae e o uso dos seus
cabelos trançados foi largamente utilizado também pelos militantes do Movimento Negro
como uma nova proposta estética para os cabelos crespos, com conteúdo de desconstrução
da ideologia do branqueamento. No início, o cabelo trançado no estilo rastafari foi mais
usado pelos homens; porém, logo as mulheres o remodelaram, passando a utilizar um
trançado de nylon agregado ao cabelo natural. Essa modificação estética fez crescer
significativamente o número de adeptos ao trançado dos cabelos, que se transformou em
moda para uma parcela significativa das mulheres negras, embora perdendo parcialmente
seu objetivo político-ideológico.
As pressões e as críticas do MN, nas duas últimas décadas, em particular à mídia,
têm produzido efeitos positivos. O número de atores e atrizes negras na televisão (ainda
45
http://racabrasil.uol.com.br/edicoes/86/artigo7858-1asp. Acesso em 19 de março de 2012.
112
que seja um por programa) já traz um incremento significativo à imagem positiva do
negro na mídia.
De acordo com Santos:
À medida que a televisão omite a imagem dos negros na telinha mágica,
ela reforça a cultura discriminatória da invisibilidade, ela deixa de
construir no inconsciente individual e coletivo das crianças, à imagem do
negro, num lugar social importantíssimo, que são os aparelhos de
multimídia da era pós-moderna. A televisão dificulta as crianças negras de
se verem nesse espelho coletivo onde as pessoas sempre aparecem bonitas,
logo, elas dificilmente vão achar um negro bonito, vão ter vergonha da sua
cor, da sua origem, da sua raça e de si mesma. Produzindo uma baixa
autoestima difícil de ser curada ao longo da vida. (SANTOS, 2010, P. 10).
O crescente aumento da presença negra na mídia pode ser fundamental para a
reconstrução de uma identidade positiva nas crianças afro-descendentes. Quando pelo
menos metade dos personagens da televisão brasileira for composta por negros e mulatos,
ou seja, uma representação proporcional à realidade de cor da população, poderá haver
mudanças significativas na sociedade brasileira. A força da mídia poderá ajudar
desconstruir os arquétipos de que os negros são inferiores. Depois da mídia, a escola é
outro grande trunfo nessa luta.
No âmbito específico das práticas escolares, o próprio sentido do que seja
“educação” amplia-se em direção ao entendimento de que os aprendizados
sobre modos de existência, sobre modos de comportar-se, sobre modos de
constituir-se a si mesmo, particularmente para as populações mais jovens –
se fazem com a contribuição inegável dos meios de comunicação [...] trata-
se bem mais de um lugar poderoso [...] no que tange à produção e a
circulação de uma série de valores [...] relacionados a um aprendizado
cotidiano sobre quem nós somos, como devemos educar nossos filhos [...]
como deve ser visto por nós os negros, as mulheres, as pessoas de camadas
populares [...] Em suma: torna-se impossível fechar os olhos e negar-se a
ver que os espaços da mídia constituem-se também como lugares de
formação ao lado da escola, da família, das instituições religiosas
(FISCHER, 2002, p. 151-162).
Xô, chapinha! Foi-se o tempo em que o hit da mulherada eram os cabelos
escorridos, de tão lisos. Se até a poderosa Gisele Bündchen pisa nas
passarelas mais badaladas do mundo com seus ondulados, no melhor estilo
"sou natural", não há por que as brasileiras não se encorajarem a desfilar
por aí com os cachos que Deus lhes deu. –
Depois de cinco anos de progressivas, agressivas e afins, as mulheres estão
voltando a tratar dos cabelos com ondas e cachos mais largos ou menores.
113
É só ter o corte certo e a hidratação correta – afirma o cabeleireiro e
maquiador Fernando Torquatto, considerado um mago das celebridades[...]
Como os cabelos já são volumosos por si só, é bom evitar pintá-los com
cores mais escuras. A "massa" em torno do rosto vai ficar maior ainda e a
fisionomia, muito pesada. O ideal é um tom do castanho médio para o mais
claro – indica Torquatto, que já está preparando o visual de Taís Araújo
para a Helena de "Viver a vida", próxima novela das oito, de Manoel
Carlos: - Depois daquele cabelo lisão e misturado com aplique de "A
favorita", a intenção é que a Taís assuma, nesse novo trabalho, seus cachos
de negra, bonitos e bem tratados. Algo como se ela lavasse, balançasse a
cabeça e saísse, naturalmente.46
Pesquisador – Artistas negras como Sheron Menezes, Tais Araujo, Isabel
Filardis e Juliana Alves estão usando os cabelos crespos. O que você está
achando disso?
Aluna Tereza – Em minha opinião, é muito bom, pois a nossa raça era
muito desvalorizada também por causa disso. Quando ia procurar emprego
[...] pela estética seria apropriado pranchar o cabelo. Quanto mais gente
com os cabelos assumidos, crespo, cacheado, ondulado, fica mais fácil pra
gente [...] Foi uma liberdade. Tiraram aquele peso todo. A própria
sociedade já está falando. Por que você não deixa seu cabelo enrolado,
Black [...] antes o volume do seu cabelo era associado a relaxamento. A
Tais Araújo quando botou aquele cabelão, com aquela flor, o pessoal se
amarrou. Agora quem deu à cara a tapa primeiro foi a Adriana Bombom,
na época da Xuxa, lá atrás.
Na fala da Tereza, convém ressaltar que, quando diz que “tiraram aquele peso
todo”, reflete o mesmo sentimento de Zezé Mota, na década de 1970, ao declarar que,
quando viu nos EUA o Movimento Black Power, botou os cabelos em baixo d água e
“sentiu como se fosse uma libertação”. Ambos os discursos revelam a opressão, ainda que
inconsciente, sofrida pelas mulheres negras ao ter que usar artifícios nos cabelos para
ficarem ao menos parecidas com as mulheres brancas. É o que Neusa Souza chamaria de
um Ideal de Ego, liberto:
O Ideal do Ego é o domínio do simbólico. [...] O Ideal do Ego é, portanto,
a instância que estrutura o sujeito psíquico, vinculando-o à Lei e a Ordem.
É o lugar do discurso [...] é a estrutura mediante a qual “se produz a
conexão da normatividade libidinal com a cultura”. Realizar o Ideal de Ego
é uma exigência dificilmente burlável - que o superego vai impor ao ego.
46
http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EMI214409-15230,00.html. Acesso em 26 de março de 2012.
114
“Há sempre uma sensação de triunfo quando algo no ego coincide com o
Ideal do Ego. E o sentimento de culpa (bem como o de inferioridade)
também pode ser entendido como uma tensão entre o Ego e o Ideal de
Ego”. (SOUZA, 1983, p. 33-34).
A autora continua demonstrando que o negro que ascende socialmente no Brasil é
aquele que tem um ideal de ego branco. Pois, ele nasce e sobrevive numa ideologia que lhe é
imposta pelo branco como um ideal a ser atingido. No caso da estética, o “negro é o outro do
belo”.
As mulheres pretas, mulatas e mestiças estão buscando um ideal de ego inatingível
quando alisam e tingem de louro seus cabelos. Esse mito da brancura impede os pretos,
mulatos e mestiços, por exemplo, de se verem enquanto grupo, de construírem uma identidade
coletiva como sugere o MN. Mas também impede de construírem uma identidade individual
autônoma, à medida que não tem um espelho que reflita um mito de origem aceito
socialmente.
Pesquisador – Recentemente muitas artistas estão usando o cabelo crespo, mas
eu ti vi antes delas, usar o cabelo crespo, o que te levou a parar de alisar o
cabelo?
Talita - Foi mais pra mudar. Quando eu era pequena eu usava o cabelo
cacheado. Eu quis mudar e usar ele mais natural.
Pesquisador – A primeira que eu vi na mídia, parar de alisar o cabelo foi a
repórter Zileide Silva. E logo depois eu vi você. Você teve alguma influência
da mídia ou do Movimento Negro?
Talita, - Não, foi mesmo a vontade de mudar. A própria Ester, minha amiga, e
outras colegas que tinham os cabelos cacheados, isso me influenciou. Mas
depois eu percebi, porque as pessoas comentaram. Seu cabelo fica bonito
assim.
Pesquisador – Como você está vendo este movimento das mulheres estarem
usando o cabelo crespo?
Talita – Eu acho bom as pessoas assumirem o cabelo natural. Terem menos
trabalho. Eu acho bonito o cacheado. É mais saudável, do que está usando
estas químicas. Tem gente que tem o cabelo cheio de cachinhos e vai alisar.
Eu falo: não, deixa assim, é mais bonito.
Pesquisador – Para as mulheres bonitas é mais fácil usarem o cabelo crespo.
Você acha que para as mulheres negras em geral há a possibilidade de virar
moda?
Talita – Acho que pode virar moda sim. É mais fácil ter o cabelo natural. Mas
a maioria prefere o cabelo liso, não assumem, umas colocam implante, não
assumem.
A fala da Tereza indica que pode ser que este “neo” movimento Black Power se
restrinja a uma parcela da juventude mais esclarecida, mais identificada com as propostas do
MN. Já a fala da Talita indica uma tendência mais espontânea que pode ir muito além das
propostas do MN ou das artistas de TV. Porém, ainda que a maiorias das meninas venha a
115
usar o cabelo crespo, pode não passar de mais um modismo e não atingir as estruturas do
inconsciente coletivo da nossa sociedade. Sem atingi-las, não há mudanças efetivas.
Conclusões
A identidade individual é uma elaborada construção que contém a interpretação que se
faz do corpo biológico, considerando as pulsões dos desejos psíquicos e as representações
sociais oriundas da cultura. Logo, pressupõe a existência de uma identidade coletiva, que no
Brasil continua pervertida (no sentido psicológico) pelo mito da brancura. Seja entre os
negros, os mestiços ou os brancos, o mito atinge cada pessoa segundo o ideal de ego que ela
constrói com base na sua tonalidade de cor. Entre os negros produz-se um ego com forte
tendência ao complexo de inferioridade. Entre os mestiços há uma internalização do ego
branco, que não é completamente compatível com o seu corpo. Por mais que pinte de louro e
alise os cabelos, há sempre um fosso, uma tensão entre o Ego e o Ideal de Ego, que mantém o
mestiço frustrado, dificultando sua felicidade. Entre os brancos há uma tendência a construir
um ego com complexo de superioridade. Todos eles são perversos e frustrantes à medida que
deturpam a “realidade”.
A maior dificuldade para combater o mito da brancura na sociedade brasileira é o seu
caráter inconsciente, que torna suas práticas cotidianas invisíveis para a maioria da sociedade,
inclusive para os professores. Será preciso construir diversas frentes culturais, políticas e
ideológicas que modifiquem as instituições, em particular a escola, para que se contraponham
ao mito da ideologia do branqueamento. Não basta a sociedade brasileira combater apenas as
discriminações individuais e continuar fazendo um discurso de não ao racismo. É necessário
mudar também as práticas cotidianas impessoais que perpetuam o negro como ser de segunda
categoria. Se olharmos para a base da pirâmide social, veremos que as favelas, os presídios e
as “moradias” nas ruas continuam sendo espaços “naturais” dos negros. Esse é o nosso maior
desafio.

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O lugar social do negro na sociedade brasileira

  • 1. 90 CAPÍTULO III DAS AULAS DE SOCIOLOGIA À RECONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES Pesquisador - Professor você já foi discriminado? Professor Venâncio - já várias vezes [...] Estava de férias na casa do meu irmão, num condomínio em Vinhedo. Num dia pela manhã, acordei e fui fazer uma caminhada. Atravessei uma das pontes sobre um riacho que atravessa o condomínio, circundei uma praça, com aparelhos de ginástica, subi uma rua e percebi um carro vindo vagarosamente em minha direção. Logo, entendi que era da segurança do condomínio. O motorista parou e me perguntou. - O senhor é morador? - Eu respondi: Por que a pergunta? - Porque o senhor estava caminhando num local pouco usado [...] Numa área verde, aí me mandaram verificar. - Pensei que era porque eu sou negro! Pois, logo acham que é ladrão! E continuei caminhando. Ele ficou nervoso e respondeu. - Não é isso não! Esse é o procedimento normal da segurança. - Foi atrás de mim e perguntou: - o Sr está na casa de quem? - Estou na casa do meu irmão. - Qual o nome dele? - Marcelino Ferreira da Silva. - E qual o seu nome? - Venâncio Ferreira da Silva. E continuei caminhando. Quando dobrei a próxima rua ele estava na esquina me observando. Ao chegar em casa, já tinham ligado para saber se eu estava hospedado lá. O negro é sempre um suspeito! Eu sou negro meu irmão é "branco", ele é chef. de cozinha, bem sucedido, hoje trabalha para uma multinacional, a Unilevi. Se ele fosse negro duvido que chegaria onde chegou, a maioria das portas teriam se fechado para ele. Introdução Este capítulo irá interpretar as fontes selecionadas num conjunto de entrevistas e grupos focais, segundo os conceitos que foram considerados relevantes pelo pesquisador e apresentadas nas considerações teóricas. A primeira parte discutirá o lugar social do negro, tendo esse mesmo título. Para isso foram criadas cinco categorias, a fim de situar as pessoas negras em diferentes posições sociais. A segunda parte, intitulada tornando-se negro, discutirá as dificuldades que uma pessoa afro-descendente tem para construir uma identidade negra aceita pela sociedade e pelo seu próprio ego. A terceira parte, intitulada os cabelos na construção da identidade feminina, é uma continuidade da discussão anterior, que aborda especificamente a importância dos cabelos para a construção da identidade da mulher negra.
  • 2. 91 O Lugar Social dos Negros Figura 4- Foto do ex-aluno Abraão Ramos. Voltou ao colégio orgulhoso para mostrar que foi bem sucedido na vida. O professor Venâncio tem razão. De fato, existem situações exemplares nas quais podemos classificar as pessoas negras por estarem dentro ou fora do "seu lugar social". Tais situações produziram ditados populares como: Ponha-se no seu lugar; cada macaco no seu galho, ou a versão ideologicamente absorvida pelos negros: Eu sei qual é o meu lugar. O lugar social dos negros no Brasil foi principalmente imposto pelos brancos, pois, no período escravista, detinham o poder político, econômico e sobre o próprio corpo dos escravos. Mesmo durante o século XX, tendo os brancos uma hegemonia ideológica que não forma, mas deforma a identidade negra, a margem de negociação de espaços sociais para os negros tem sido pequena. Como observa Costa (1983): A violência racista do branco exerce-se, antes de mais nada, pela impiedosa tendência a destruir a identidade do sujeito negro. Este, através da internalização compulsória e brutal de um ideal de Ego branco, é obrigado a formular para si um projeto identificatório incompatível com as
  • 3. 92 propriedades biológicas do seu corpo. Entre o Ego e o seu ideal cria-se um fosso que o sujeito negro tenta transpor, à custa de sua possibilidade de felicidade, quando não de seu equilíbrio psíquico. (COSTA, in SOUZA 1983, p. 2-3). (Grifo meu). Esta circulação por espaços sociais definidos pela hegemonia branca ultrapassa o nível das idéias, chegando à negação do corpo do sujeito, produzindo nos negros, mulatos e mestiços um mito de brancura inalcançável, comprometendo a construção de uma identidade “sadia”. A seguir, serão analisadas cinco diferentes situações, nas quais se podem identificar diversas formas de tratamento dadas às pessoas negras, segundo critérios inconscientes que a população brasileira considera como “o lugar do negro”, ou situação em que os negros são vistos como intrusos por estarem “fora do seu lugar social”. 1) O negro no seu lugar - Quando uma pessoa negra está no "seu lugar social", ela de fato parece invisível. Consequentemente, as discriminações sobre ela são tão 'naturalizadas', que recaem nos casos em que se tem chamado de a invisibilidade do negro e do racismo. São as situações classificadas no capítulo anterior como racismo inconsciente. Por exemplo: pessoas negras, quando estão trabalhando em funções sem prestígio, moram em bairros pobres, usam transporte coletivo, são atendidas em hospitais públicos etc. São pouco percebidas por dirigentes governamentais, empresários e políticos, pois estariam no "seu lugar social natural" e, portanto, não têm porque se preocuparem com elas. O conceito de discriminação inconsciente pode explicar por que, há décadas, sucessivos prefeitos gastam grande parte do orçamento da cidade do Rio de Janeiro apenas na Zona Sul. Fazem obras frequentemente entre Copacabana e Barra da Tijuca e, mesmo assim, o Vidigal e a Rocinha lhes parecem invisíveis, como se fossem territórios que não fizessem parte da sua governabilidade. Ainda que até para os turistas esses territórios sempre tenham sido bem visíveis. Em geral, essa população é tratada com indiferença, às vezes até com desprezo, por funcionários públicos ou prestadores de serviços. Qualquer pessoa sabe a diferença de tratamento que um médico, por exemplo, dispensa a um paciente num hospital público e como ele trata um paciente num hospital particular. O médico é um caso tipo ideal,
  • 4. 93 porque há muitas reclamações contra eles. Não por acaso, em sua maioria, são brancos, de classe média e se sentem superiores. Alguns desavisados podem argumentar que essa discriminação é econômica e não racial. Porém, "todos sabem [...] como é que pretos, pobres e mulatos ou quase brancos quase pretos de tão pobres são tratados. Ninguém, ninguém é cidadão"34 . Ou seja, no Brasil, mesmo com os adventos da Abolição e da República, com exceção das chibatadas, os pobres herdaram a maneira como se tratavam os escravos. Este comportamento de "superioridade" continuou no inconsciente coletivo das elites descendentes dos senhores de escravos. É um dos arquétipos que perdurou durante o século XX. Como os escravos, por conveniência, não eram nem considerados humanos, no pós-abolição, os negros não foram tratados como cidadãos e este olhar das elites brancas, às vezes de desprezo, mas em geral de indiferença, estendeu-se aos mulatos, pardos e quase brancos pobres e favelados. O tratamento dado pelas “patroas” às empregadas domésticas representou uma extensão do tratamento conferido pelas sinhás às mucamas, assim como o tratamento dos patrões dado aos trabalhadores subalternos não difere muito do tratamento dado aos escravos da casa. A rigor não se trata apenas da "a República que não foi", como descreveu José Murilo de Carvalho35 , a “abolição também não”, pois, os negros continuaram "presos na miséria da favela"36 , sem direito à justiça e sem oportunidades iguais, como pressupõe uma República democrática. Nas situações citadas acima, os negros quase não são percebidos como indivíduos, assim como não são respeitados como cidadãos. De fato, há uma invisibilidade não só da sua pessoa, mas também da sua condição social, de seus direitos, de suas oportunidades, que lhes são “naturalmente” e, inconscientemente, negadas. 2) O suspeito de sempre. Entretanto, quando uma pessoa negra está "fora do seu lugar social", jamais passa despercebida. A invisibilidade se inverte e ela parece um ser fosforescente. Nesse outro contexto, pelo menos três situações são exemplares: quando uma pessoa negra entra num shopping, num banco, ou quando está numa situação como a citada pelo professor Venâncio é sempre suspeita, antes que se prove o contrário ou antes mesmo que aconteça algum delito. No relato do professor Venâncio, seria muito fácil 34 Haiti, música de Caetano Veloso e Gilberto Gil. 35 José Murilo de Carvalho, historiador e autor do livro Os Bestializados: O Rio de Janeiro e a República que não foi. 36 Trecho da letra do samba do Grêmio Recreativo Escola de Samba Estação Primeira da Mangueira do carnaval de 1988, quando se comemorou o centenário da assinatura da Lei Áurea.
  • 5. 94 identificar que ele estava fazendo uma caminhada, tanto pela vestimenta, quanto pelos passos cadenciados. É fácil diferenciar quem está correndo de quem está simplesmente andando ou fazendo caminhada. A suspeita ocorreu simplesmente por se tratar de um negro desconhecido num condomínio de alto poder aquisitivo. Nesse caso, pela mente dos seguranças passou algo semelhante a: o que um negro está fazendo caminhando aqui? É muito constrangedor para uma pessoa ser frequentemente vigiada. Entretanto, mais grave ainda são os efeitos desses eventos, que se incorporam na construção da identidade dos negros. Da infância até o final da adolescência, é tempo suficiente para que a formação do eu de um jovem negro seja distorcida em função de eventos cotidianos discriminatórios, travestidos de “normais”, de “sem querer” ou “brincadeiras”. 3) O negro intruso - Quando uma pessoa negra alcança uma posição social que não é considerada “para negros", ou alguma posição de poder, ela é vista como um intruso fora do seu lugar social. Está fazendo o quê aqui! Quando está em cargo de diretoria ou alcança status em sua profissão, a sua simples presença incomoda. Às vezes é até perseguido gratuitamente, em mais uma modalidade de racismo inconsciente. Que dificilmente é passível de provas. Vejamos um exemplo: Professor Venâncio – Quando estudei num colégio federal tive uma professora de português que me perseguia. Ela vivia me dizendo: – Eu não quero jubilar ninguém! Quem fosse reprovado duas vezes era jubilado (expulso do colégio). Um dia ela me perguntou: – Como você veio parar neste colégio? Eu respondi: Para entrar aqui fiz provas de Matemática e Português, e sou o melhor aluno em Matemática. Não sou em Português porque só tive professores iguais à senhora. Naquele ano fiquei reprovado. Não por acaso, no colégio todo, só havia três alunos negros, e ela também perseguiu outra aluna negra e que não era pobre como eu. O outro aluno não era da minha turma. O relato demonstra que, consciente ou inconscientemente, a professora não concebia que os dois alunos negros estudassem ali, pois aquele colégio parecia ser para uma elite branca, talvez mais elite intelectual que econômica. De qualquer forma, a presença dos alunos negros a incomodava, pois eles estavam num lugar social em que quase não havia negros. Por isso o espanto e o querer saber como ele foi “parar” ali. Pois, para ela, um aluno negro não teria capacidade nem competência ou não conseguiria ultrapassar todos os obstáculos para estudar naquele colégio.
  • 6. 95 Situações como essa são comuns para pessoas negras que, depois de muito esforço e de vencerem muitos obstáculos, conseguem alcançar um espaço acadêmico ou uma profissão reservada socialmente para uma elite intelectual que sempre foi branca no Brasil. Quando alcançam, são vistas com desconfiança quanto a sua competência ou capacidade. Nesses casos, a realidade é exatamente contrária, pois as barreiras são tantas que os que chegam, em geral, têm mais potencial que a média dos que estão naquele espaço. Ainda hoje, mesmo com a política parcial de cotas e com o Prouni, esse espaço avançou pouco ou apenas mudou de lugar. As dificuldades passaram da graduação para a pós-graduação, por meio de uma espécie de reserva de vagas não declarada, por meio das entrevistas dos mestrados e doutorados. É evidente que há espaços sociais da elite branca, intelectual ou econômica em que o negro é bem aceito, mas, ainda assim, nesses espaços ele tende a não ser visto como igual. 4) O negrinho coitadinho - Quando uma pessoa negra alcança um espaço social por seus próprios méritos, com as dificuldades “normais” das relações de poder econômico, intelectual ou político, e mesmo que nesse espaço social haja pessoas sensíveis e que gostem dele, ainda assim não é visto como um igual. É visto como o coitadinho. Ficam com pena pelas dificuldades por que passou para chegar naquele espaço ou o tratam como um incapaz, que precisa ser ajudado o tempo todo. Quando ele demonstra competência, as pessoas se surpreendem. Como ele consegue? Como se o natural fosse ser incompetente. Ou seja, continua a não ser tratado como igual. Ele acaba vivendo o conflito de ter que abandonar seu eu negro para assumir um ego de brancura. É difícil para uma pessoa negra vivenciar esses papéis sociais, sendo o diferente o tempo todo. Fica evidente que, na construção de sua identidade, frequentemente carregue os efeitos do racismo. Esses são motivos pelos quais a maioria dos brasileiros quer ser igual e não diferente. Portanto, construir uma identidade negra, no Brasil, tanto individual quanto coletiva, como propõe o MN, é uma tarefa muito árdua. Os negros não querem formar um povo negro, pois já se sentem o tempo todo diferentes e, por conta disso, excluídos. Como a construção da identidade coletiva requer a construção das diferenças individuais e coletivas em relação ao outro grupo, esta é uma contradição difícil de ser superada. A consequência é que os negros acabam tendo o branco como “espelho” na formação do seu ego. Ou como afirma (COSTA, in SOUZA 1983, p. 3):
  • 7. 96 Acompanhando o desenvolvimento biológico da criança, elas permitem ao sujeito infantil o acesso a uma outra ordem do existente – a ordem da cultura – onde a palavra e desejos maternos não mais serão as únicas fontes de definição de “verdade” ou “realidade” de sua identidade. Em primeiro lugar, pela presença do pai, em seguida pela presença dos pares, que serão todos os outros sujeitos exteriores à comunidade familiar. Estas instanciais vão, mostrar ao sujeito aquilo que lhe é permitido, proibido ou prescrito sentir ou exprimir, a fim de que sejam garantidos, simultaneamente, seu direito a existência, enquanto ser psíquico autônomo, e o da existência de seu grupo, enquanto comunidade histórico-social. Tal processo de negação-aceitação do ego-ideal de ego, entre a criança e o adulto, entre o sujeito e a cultura constrói o fetiche da brancura, produzindo naqueles que almejam ser aceitos no mundo branco, o que o sábio ditado popular chamou de “negro de alma branca”. 5 - O negro de alma branca – Como em nossa sociedade ser negro é um marcador social que, além de pressupor a diferença, acarreta discriminação e desigualdade, inconscientemente uma parcela da população negra, como não pode literalmente ser branca, procura ao menos, ser “negra de alma branca”, buscando a aceitação social. O objetivo é assimilar o máximo possível não só as formas de pensamentos ou as ideologias dominantes, mas até a aparência física. Essa busca se dá principalmente de três formas: pela cor, pelos cabelos e pela ascensão socioeconômica. Muitos mulatos e mestiços negam sua origem afro-descendente, declarando-se morenos ou brancos quando se pergunta sobre sua cor. Isso se torna mais fácil quando essas pessoas ascendem econômica e socialmente, assimilando os comportamentos e a linguagem das classes médias ou das elites brancas. A ascensão social ou econômica serve de máscara para esses afrodescendentes “esquecerem” esta parte de suas origens e passam a se ver como brancos. Muitos deles sofrem um choque de realidade quando saem do país, pois são vistos e tratados como negros. Por outro lado, os afro-descendentes pobres que moram em favelas e têm baixo índice educacional, fatalmente são vistos e tratados como negros. Logo, não têm muita oportunidade de passarem como brancos. A outra forma de negação das origens afro-descendentes corresponde às tentativas de modificarem os cabelos para que fiquem “compridos, lisos e loiros”, ou seja, parecidos com a aparência dos brancos, isso se torna quase uma obsessão, principalmente
  • 8. 97 para as mulheres negras, mulatas e mestiças. Os homens, tradicionalmente, usam o artifício contrário, cortam os cabelos o mais baixo possível para “esconder as suas raízes”. Assim como o corpo é o objeto primevo utilizado na construção da identidade de uma pessoa, nesses casos, a sua negação, ou da pele ou dos cabelos, fatalmente vai produzir um ego, uma alma, no mínimo conturbada. Pois, segundo Marcel Mauss (2003), a construção da pessoa se dá num entrelaçamento entre o biológico, o social e o psicológico e tem de ser analisado desse tríplice ponto de vista. A aparência dos brancos, ao longo dos séculos de dominação, virou sinônimo de beleza. Além disso, a beleza é um dos principais instrumentos de poder que as mulheres têm em nossa sociedade. Ainda na adolescência, as mulheres aprendem que aquelas consideradas as mais bonitas obtêm vantagens sociais e econômicas em relação às outras. Assim, todas as mulheres querem assimilar o padrão branco de beleza. O fato dos mulatos ou mestiços, pelos motivos já expostos, não quererem se identificar com sua descendência negra dificulta os objetivos políticos e ideológicos do Movimento Negro de construir uma identidade coletiva negra. A postura do MN, embora politicamente legítima, é arbitrária, pois uma pessoa filha de branco com negro, teoricamente, pode reivindicar tanto uma identidade negra quanto branca. Como os bens sociais são reservados aos brancos, as crianças pretas, mulatas e mestiças crescem querendo ser brancas. Aluna Teresa – Minha filha não aceitava ser negra. Porque todas as amigas dela eram brancas, aí ela não aceitava ser negra. Aí o que eu fiz. Peguei as roupas dela que tinham as cores mais fortes e falei: – Bota essa amarela aqui, bota essa amarelona. Aí ela botou e eu falei: – Olha no espelho! Me diz se não ficou bonito. Você quer ver? Tá aquele sol e estão todas as pessoas branquinhas pegando sol querendo ficar com a cor que Deus te deu. Isso é um privilégio, você é morena o ano inteiro. Aluna Teresa - Dentro da minha família, a única menina branca dos olhos verdes que cismou em casar com negão (risos) foi minha mãe. Toda a minha família é branca de descendência portuguesa. Então dentro da minha família mesmo, soltam aquelas: tinha que ser preto! Minha avó era quem mais falava que não entendia porque minha mãe manchou a família, porque minha mãe envergonhou a família. Que odiava preto, que não queria ver o preto na frente dela! O preto de quem ela falava era meu pai. O relato acima mostra como as crianças cedo percebem que não é vantajoso ser negro. Aquelas pertencentes às famílias compostas por brancos e negros vivenciam os maiores conflitos, oscilando entre se identificar com o pai ou com a mãe, independente do
  • 9. 98 sexo. Constrói-se uma relação de amor e ódio com o cônjuge negro. Vejamos os depoimentos de outras alunas adolescentes: Pesquisador – Quando foi que, pela primeira vez, vocês se deram conta de que eram mulheres e negras? Aluna Amanda – Eu acho que é quando a gente começa o ensino fundamental, o pré. Que começam a falar assim. Aquela menina ali é mais clarinha. Acho que é daí que a gente começa a ver que tem o claro, que tem o branco e o negro. Aluna Betânia – Assim, na escola, quando a gente é pequenininha. Você tem cabelo duro, meu cabelo é liso. – Ela tem cabelo duro, tem piolho. Aluna Carmem Lúcia – Na rua ficam zoando! Ah, neguinha do cabelo duro, meu cabelo é liso. Você é preta do cabelo duro. As crianças costumam ser mais sinceras emitindo suas opiniões sem rodeios, por isso as discriminações, de forma individual e direta, são mais comuns entre as crianças e adolescentes. A escola é um ambiente apropriado para detectar tais manifestações, pois é um espaço de convivência longo e intenso para as crianças e adolescentes. Grande parte das amizades duradouras ou desafetos são construídos no período escolar. Porém, muitas delas esquecem ou recalcam as discriminações sofridas nesta fase da vida. Pesquisador – Vocês já foram discriminadas algumas vezes? Aluna Amanda – Não. Aluna Betânia – Não. Aluna Carmem Lúcia – Não. Aluna Débora – Também não. Aluna Talita – Eu nunca reparei não. Eu já reparei preconceito com outras pessoas. Direcionado a mim eu nunca reparei não. Não é raro ouvir de pessoas negras dizerem que nunca foram discriminadas e que basta o negro se esforçar para que alcance seus objetivos. Trata-se de um discurso da elite branca e são duas afirmativas falaciosas. Em primeiro lugar, já foi muitas vezes demonstrado pelas teorias marxistas que, quando isso acontece, apesar das divisões de classes sociais, é mera exceção e não a regra da sociedade capitalista.
  • 10. 99 Segundo, porque se vivemos numa sociedade que está estruturada com base em ideologias racistas, se um dos seus pilares de dominação ocorreu no período escravista e continua havendo discriminação racial é praticamente impossível para uma pessoa negra que nasceu e cresceu nesta sociedade não ser impactada por suas formas de pensamentos mais básicas. Pois elas estão profundamente assentadas no inconsciente coletivo e no inconsciente individual dos membros dessa sociedade. Tal fato, se fosse possível, contrariaria os fundamentos da Sociologia, da História e da Psicologia. Pessoas que não foram xingadas ou menosprezadas diretamente por causa da sua cor, como os casos aqui tipificados de racismo individual, são levadas a pensar que não são discriminadas. Uma aluna branca, com os cabelos tingidos de loiro, relatou o seguinte episódio num debate em sala de aula: ela e uma amiga negra foram ao shopping no período anterior ao Natal para se candidatarem a emprego de vendedora temporária. Ela voltou empregada e a colega negra não. A aluna disse que o currículo da amiga era melhor que o dela, com alguns cursos adicionais, como informática e inglês. Porém, na maioria dos casos, recebeu a resposta de que não tinha o perfil adequado para o cargo. Como não houve nenhuma referência à cor, a colega não associou a negação do emprego à cor da pele. Este é o tipo de racismo difuso e inconsciente que “não é percebido” pela pessoa que praticou, nem pela pessoa que sofreu o racismo. Algumas dessas pessoas continuam afirmando que nunca sofreram racismo. Outras recalcam tanto a “sua identidade” afro- brasileira que sequer conseguem admitir a discriminação ou até o fato de serem negras, como ficou evidente nos percentuais sobre cor nas pesquisas do IBGE. Vejamos outro exemplo: Pesquisador – Você já foi discriminada? Aluna Tereza – Na escola em relação à cor. Eu estava na 3ª série. Quando a gente estava no pátio, a professora era um anjo. Quando a gente subia, ela parava toda a turma e falava “os negrinhos para trás!” Aí formava uma fila só de negros atrás e os branquinhos passavam para frente. Dentro da sala os branquinhos sentavam na frente e os negros atrás. A gente não podia pedir para ir ao banheiro. Isso eu não tenho como provar, mas tenho testemunhas que eram da minha sala e que também passaram por isso. A gente não lanchava junto com eles. Eles lanchavam e quando voltavam a gente ia. A gente não podia chegar perto dela para perguntar nada. Tínhamos que deixar nossos cadernos numa mesinha no fundo da sala, pra que ela no final pegasse. A gente não podia encostar nela.
  • 11. 100 Muitas crianças que vivenciam situações como esta passam a negar sua cor e sua descendência afro-brasileira. Há quem, em determinado momento da vida, consiga trazer ao consciente a sua “identidade negra”, outras não. Isso depende de vários fatores, dentre os quais a participação em eventos que discutam abertamente a discriminação racial, como os promovidos pelas entidades do MN ou debates de sala de aula, de forma orientada, com professores capacitados para tal, como veremos a seguir. Por isso a importância da Lei 10.639/03. Tornando-se Negro Pesquisador – Professora Gracinha, você tem alguma experiência sobre racismo na escola que queira contar? Professora Gracinha – Na sala de aula havia um aluno que era bem escurinho e todos chamavam ele de tiziu. Perguntei: Por que Tiziu? [...] Então eu também sou tiziu? Os alunos responderam: – Não, professora, a senhora não é tiziu não. – Ué, então porque ele é tiziu e eu não? É por causa da cor dele? – É sim. – Então eu também sou tiziu. Ainda brinquei: Qual é o feminino de tiziu? É tiziua? (risos) – Não, professora, a senhora não, nós gostamos tanto da senhora, a senhora é tão legal! – E ele? Ele não é legal? – É. –Vocês não gostam de ser chamados assim. Por que chamam ele? – Ah, professora, porque a gente já acostumou. Foi a hora em que eu dei um sermão e, depois daquele dia, ninguém mais chamou aquele menino de tiziu. Quer dizer, foi uma coisa que acabou [...]. O nome dele era Marco Aurélio. Perguntei a ele: – Você gosta de ser chamado de tiziu? – Eu não. A partir daquele dia, ninguém tornou a chamá-lo de tiziu. Os apelidos, em geral, têm uma conotação pejorativa. Muitos professores os colocam numa classificação genérica de bullying. Entretanto, apelidos como tiziu, macaco, macacão, negão e mesmo aqueles mais “afetivos”: neguinha, pretinha, chocotona etc., além de pejorativos, têm uma conotação inconsciente de agressão à origem do indivíduo. Até antes da constituição de 1988 e da lei Caó, que tipificou o racismo como crime, estes apelidos eram muito mais corriqueiros. Hoje em dia, como a Lei 10.639/03 não pode ser aplicada aos menores de dezoito anos, e as professoras encaram estes eventos como brincadeiras de criança, eles persistem e ainda são relativamente frequentes nas
  • 12. 101 escolas de ensino básico. Não basta colocar no currículo escolar a história da África e dos afro-descendentes. É necessário que um número muito maior de professores seja capacitado para lidar com as diferentes circunstâncias que envolvem a discriminação racial cotidiana, que é difusa e inconsciente. Professora Dalila da Pena. – Eu estava num evento e uma professora contou o seguinte fato: Eu dou aula em uma escola aqui da Zona Oeste e na minha sala tem uma aluna preta, bem preta e aconteceu uma coisa de criança que eu considero ruim. Ela sofreu bullying. Alguém chamou ela de macaca, de beiçuda, de fedorenta, de negrinha fedorenta, coisa de crianças que estão sempre praticando o bullying. Mandei a turma ficar quieta continuei passando exercício no quadro. Dali a pouco a diretora mandou me chamar e lá estavam a polícia, o conselho tutelar, o conselho da criança e do adolescente, todo mundo na escola, porque a garota pediu pra ir no banheiro e ligou, chamou todo mundo. A mãe foi na escola e exigiu indenização de 35 mil reais. Quem vai pagar é a escola ou o Município, mas alguém vai ter que pagar, então vocês que vão pra sala de aula precisam estar muito atentas porque os alunos também não estão bobos não. A televisão e internet está aí, muitos deles sabem seus direitos. O relato demonstra que a professora não estava preparada para lidar com o fenômeno e ainda o classificou no conceito genérico de bullying, mascarando a especificidade do racismo. Não só os apelidos, já que eles têm a força da repetição, mas também eventos significativos de discriminação de crianças e adolescentes podem causar profundas marcas na construção da identidade das pessoas, que às vezes só um processo psicoterapêutico pode curar ou, então, uma participação frequente em eventos ou instituições como as do Movimento Negro. Outro exemplo muito comum no período da adolescência envolve os primeiros jogos de escolha dos parceiros afetivos, que influenciam fortemente na formação multirracial das famílias brasileiras. Pesquisador – Professor, como foi a tomada de consciência de sua negritude? Professor Venâncio – Foi aos poucos. Com quatorze anos fui paquerar uma garota e me respondeu “Sai pra lá, macaco”. Passei a ignorá-la. Algum tempo depois, flagrei-a chorando. Então perguntei a uma colega comum por que ela estava chorando. A colega respondeu: – Ela anda chorando porque gosta de você, mas você nem liga pra ela. Ela tinha um fenótipo bem característico de índia. Eu tenho alguma descendência indígena, da minha avó. A partir daquele fato foi que me dei conta da minha cor negra. Passei a me olhar no espelho e a procurar traços indígenas em mim; identificava traços no cabelo e na cor da pele. Passei a negar minha negritude e a classificar minha cor de chocolate. Aos dezoito anos, fui a uma festa chamada Noite da Beleza Negra, organizada por um
  • 13. 102 grupo do Movimento Negro que se chamava Agbara Dudu. Fiquei encantado com as músicas e com o concurso da negra e do negro mais bonito! Voltei da festa me achando bonito e me assumindo enquanto negro. Alguns anos depois, comecei a participar de grupos do MN, o que não só fortaleceu minha autoestima enquanto negro, mas me fez compreender com mais profundidade o racismo. A construção de identidade dos povos dominados ou dos grupos sociais minoritários, do ponto de vista das relações de poder, é sempre muito complexa e cheia de contradições, já que muitas vezes carregam e reforçam as ideologias dos dominadores. As particularidades da História brasileira fizeram com que negros, brancos e índios, em determinadas situações, convivessem intimamente, a ponto de chegarem ao mais profundo grau de intimidade, que são as relações sexuais e/ou as relações afetivas de amor e paixão. Essa característica, bem diversa das histórias dos americanos e dos sul-africanos, contribuiu fortemente para que se chegasse à conclusão equivocada de que, no Brasil não havia racismo, ou que o racismo no país era mais brando que em outros países. Estes argumentos já foram cientificamente desconstruídos, porém seus efeitos colaterais no imaginário do senso comum ainda não. Uma das contradições mais intrigantes das relações afro-afetivas dos brasileiros é que uma pessoa branca possa gostar, ter relações sexuais e se apaixonar por uma pessoa negra e continuar sendo racista e discriminando a pessoa amada. Os conceitos teóricos da psicologia de pulsão37 , inconsciente coletivo e inconsciente individual, discutidos no capítulo anterior, podem ajudar a explicar tal contradição. Isso porque o fato de uma pessoa branca, mestiça ou negra gostar de outra pessoa negra, não elimina necessariamente o racismo inconsciente nela contido. O amor e o racismo estão canalizados em pulsões diferentes. Seguindo a lógica do pensamento freudiano, o amor é alimentado pela pulsão de vida e o racismo pela pulsão de morte. Assim como as pessoas podem sentir amor e ódio ao mesmo tempo por outra pessoa, elas também podem amar e discriminar a mesma pessoa. Em termos psicanalíticos, afirmamos que o principal vetor de crescimento e desenvolvimento psicológicos é a experiência de satisfação. O sujeito busca sempre reencontrar na realidade um objeto que corresponda ao traço mnêmico de um objeto primordial, Matriz de uma experiência de satisfação inesquecível. Este movimento do psiquismo com vistas à reedição do prazer constitui o desejo. O desejo 37 Para Freud, existem duas pulsões básicas no homem: a pulsão de vida e a pulsão de morte.
  • 14. 103 em sua vertente erótica, é este impulso, esta moção em direção ao objeto e à situação de prazer. (COSTA, in SOUZA, 1983, p. 9). O exemplo citado acima, em que a adolescente, num ato falho, chama o rapaz de macaco e, algum tempo depois, chora porque ele não corresponde ao amor dela, ilustra bem a convivência conflituosa dos dois sentimentos. Exemplos como esses não são casos isolados: é grande o número de relações afro-afetivas conflituosas no Brasil, que, por causa do racismo inconsciente, dificultam, por exemplo, que muitos deles se consolidem ou acabem em casamento. Diferente das relações de namoro, na concretização de um casamento a interferência das famílias é muito maior. Além dos familiares não sentirem amor pelo possível cônjuge, costumam pôr em jogo, além do racismo, os interesses que sempre condicionaram as alianças de parentesco, ou seja, os interesses econômicos, de status social e de poder. Quando o parceiro negro, que é a maioria dos casos, não possui dinheiro ou poder para trocar pelo “dote” do outro, que entra com o status de brancura, a família geralmente impede o enlace. Mesmo quando ele se concretiza, os parceiros seguem vivendo os conflitos inconscientes entre a atração do amor e a rejeição da cor produzida pelo racismo. Inclusive o mais claro, pois este, além de vivenciar o sentimento da paixão, ao mesmo tempo rejeita inconscientemente seu parceiro, por causa do racismo que está sedimentado no seu ego. Já o parceiro negro, acaba rejeitando seu próprio corpo. Aluna Tereza – A gente estava na nossa casa e, quando minha avó chegava, minha mãe pedia para ele sair. Pesquisador – Isso criava algum conflito entre sua mãe e seu pai? Aluna Tereza – Criava muitos. Eu ouvia quando criança (minha mãe é falecida). Ele falava: “Você não me defende! Você não fala nada”. Realmente ela não falava nada, não defendia mesmo. Pesquisador – E o que você achava disso? Aluna Tereza – Na realidade ela amava muito meu pai, mas gostaria que ele fosse branco. Acho que, no fundo, no fundo, ela se arrependia um pouco [...]. Eu não me lembro de um Natal, um Ano Novo, com toda a minha família reunida e com meu pai também. Ele não ia. Não ia mesmo! Minha mãe teve cinco filhos, quatro são negros, minha irmã nasceu mais pra cor da minha mãe. E um irmão meu é negro de olhos verdes. Minha família é muito grande, você olha e são quatro pontinhos negros. A pressão imposta pela família, que a coloca como se o relacionamento a tornasse “suja”, faz com que o parceiro branco termine por ser também discriminado, como se também tivesse se tornado negro. Ele acaba sofrendo por viver a contradição entre dar seu amor ao parceiro ou deixar de receber o amor da família, geralmente do pai ou da mãe.
  • 15. 104 Em muitos desses casos, o parceiro branco tem plena consciência do racismo, luta contra ele, às vezes até é militante da causa, porém, os conteúdos do seu inconsciente coletivo, reforçados pelo arquétipo racista da família, frequentemente se manifestam, levando-o a discriminar seu parceiro de forma indireta e velada. Tal situação produz conflitos que parecem ser de relacionamento do casal, mas que, no fundo, são conflitos psico-raciais, tanto do parceiro branco, quanto do parceiro negro. Os Cabelos na Construção da Identidade Feminina Pesquisador – Qual o estilo de cabelo vocês acham mais bonito? Liso ou crespo? Aluna Amanda – Crespo. Aluna Betânia – Crespo. Aluna Carmem Lúcia- Crespo. Aluna Débora – Liso. Pesquisador – Por que então vocês alisam os cabelos? Aluna Amanda – Por onda, todo mundo estava usando formol, com o cabelo bonito, fiz também! Aluna Betânia – Eu também, só que me arrependi. Pesquisador – Agora a moda das artistas negras é usar os cabelos crespos, o que vocês estão achando? Aluna Amanda – Acho lindo. Aluna Betânia – Lindo! Aluna Carmem Lúcia – Também acho lindo. Pesquisador – Vocês vão usar o cabelo crespo igual ao delas? Aluna Amanda – Não, agora com o formol ele não fica mais. Aluna Débora – Eu não gosto. Comigo ficaria horrível. Aluna Talita – Gosto do cabelo cacheado. Pesquisador – Vocês acham lindo mas não querem usar? Por quê? (Risos). Aluna Amanda – Minha mãe também me influencia para alisar. Podem-se classificar os diversos modos ou modas de se usar os cabelos dentro do que Marcel Mauss (2003) chamou de as técnicas do corpo. Para o autor, na arte de usar o corpo predomina a influência da educação. As crianças, em particular, imitam melhor os atos que elas viram realizados por pessoas, nas quais elas confiam ou admiram ou que têm autoridade sobre ela. O ato imitador impõe-se de fora para dentro, de acordo com o elemento social, psicológico e biológico e de forma indissolúvel. Nessa análise, é preciso fazer uma observação tríplice, do “homem total”. Duas coisas são imediatamente visíveis, a partir dessa noção de técnicas do corpo: elas se dividem e variam por sexos e por idades. Ou seja, são marcantes as diferenças na construção das identidades do masculino e do feminino, assim como as diferenças dos jovens para os adultos.
  • 16. 105 Além do crescimento nos índices educacionais, construir uma autoestima positiva é outro grande passo para a mulher negra conquistar sua dignidade, já que se perceber como bonita diante do espelho é fundamental na reconstrução da sua identidade. Para isso, o seu corpo precisa ser ainda mais valorizado, não apenas pelas suas curvas, mas também por outra forma de expressão que nega ou reafirma sua beleza: seus cabelos. A mulher brasileira precisa construir um conceito de beleza para os cabelos crespos e desconstruir do imaginário social a ideia de que eles são “ruins” e feios. Para as mulheres em geral, os cabelos são uma das principais expressões de beleza. Como os cabelos crespos não são considerados bonitos, a mulher negra acrescenta um novo item de negação na formação de sua identidade, elas têm pouca saídas diferentes de reconstruir os conceitos do que é possuir um cabelo bom e bonito. É preciso lembrar que a beleza ou a feiura não é algo inato, mas sim um padrão social e historicamente construído. Vale recordar que depois que o concurso Miss Universo passou a ser questionado pelo seu padrão único de beleza – o europeu – mudou- se a percepção dos jurados. De lá para cá, as mulheres asiáticas, indígenas e africanas têm estado com alguma frequência entre as finalistas e a última vencedora foi a angolana Leila Lopes. A beleza não é apenas um dado biológico, como pensa a maioria das pessoas. As mulheres africanas e asiáticas não se tornaram mais bonitas nem mais feias. O que mudou foi apenas a percepção dos jurados. Ela é construída a partir dos elementos ou traços corporais que cada sociedade elege para compor o seu padrão de beleza. A percepção de beleza negra e mestiça precisa ser (re)construída nos brasileiros para que as pessoas não precisem se tornar brancas para serem consideradas bonitas. A mulher europeia, em particular a francesa, adotou o cabelo curto como “chique”. Quando a cantora Elis Regina, na década de 1970, apareceu de cabelo curto, foi um escândalo. O cabelo no estilo Black Power já foi considerado bonito para a juventude da década de 1970. O cabelo com o corte moicano era considerado estranho, coisa de índio selvagem e hoje é moda entre os jovens. Seguem abaixo músicas aparentemente inocentes, que durante muitos anos expressaram ou ajudaram a construir a negação às mulheres negras de seu direito de serem consideradas bonitas.
  • 17. 106 Nega do cabelo duro Nega do cabelo duro, Qual é o pente que te penteia? Ondulado, permanente. Teu cabelo é de sereia E a pergunta que sai da mente Qual é o pente que te penteia? Quando tu entra na roda. O teu corpo bamboleia Minha nega meu amor Qual é o pente que te penteia? Teu cabelo a couve flor. Tem um “quê” que me tonteia Minha nega, meu amor Qual é o pente que te penteia? Misamplis a ferro e fogo. Não desmancha nem na areia Toma banho em Botafogo Qual é o pente que te penteia? Nega do cabelo duro, (Oh, minha nega!) Qual é o pente que te penteia? Nega do cabelo duro, qual é o pente que te penteia Qual é o pente que te penteia. Oh nega.38 A letra desta música revela vários pontos que já foram discutidos neste capítulo e no anterior. Desde o fato de que um parceiro pode discriminar o outro, mesmo que o ame, até a revelação mais explícita de como a discriminação da mulher negra através dos seus cabelos era uma coisa corriqueira e considerada normal, ou mera brincadeira, até as veementes denúncias do MN nos anos de 1980. Tal fato só diminuiu com a lei Caó. Outra marchinha de Lamartine Babo contêm os mesmos temas que a anterior. Um homem branco que está apaixonado pela mulata, mas, renega e discrimina a sua cor e o seu cabelo. 38 http: //letras.terra.combr/ultramen/1431283 Acessado em 18 de março de 2012. Música cantada por Zé e Zilda. Há uma polêmica quanto a sua autoria: está registrada como: “De Rubens Soares e David Nasser”. A melodia é calcada na de Sinhô e que Nestor de Holanda já ouvira fazendo parte de um ponto de terreiro, segundo o site.
  • 18. 107 Figura 5. Ex- aluna Talita orgulhosa por usar seus cabelos naturais sem alisamento. O TEU CABELO NÃO NEGA, MULATA39 O teu cabelo não nega, mulata Porque és mulata na cor Mas como a cor não pega, mulata, Mulata eu quero o teu amor! Tens um sabor bem do Brasil; Tens a alma cor de anil; Mulata, mulatinha, meu amor, Fui nomeado teu tenente interventor. Embalado pelo sucesso de: O Teu Cabelo não Nega, Mulata, no ano seguinte, Lamartine Babo fez Linda Morena. Embora o objetivo consciente do autor fosse exaltar a mulher brasileira, o seu inconsciente o traiu, e, ao mesmo tempo em que exaltou a mulata, ele também a discriminou, ao dizer que: mas como a cor não pega, mula ... eu quero o teu 39 HTTP://palavrasinistrablogspot.commbr2005/04teu-cabelo-no-nega- mulatahtm?m=1 Em 08de abril de 2012.
  • 19. 108 amor, o que não aconteceu com a exaltação da morena, considerada por alguns artistas modernistas como o ideal de mulher. LINDA MORENA (Lamartine Babo, 1932) Linda morena, morena, Morena que me faz penar. A lua cheia que tanto brilha Não brilha tanto quanto o teu olhar. Tu és morena, uma ótima pequena, Não há branco que não perca até o juízo. Onde tu passas Sai às vezes bofetão, Toda gente faz questão Do teu sorriso.40 No ano seguinte, Braguinha segue a fórmula de Lamartine e lança Linda Lourinha, também com grande sucesso. Nesse caso, porém, colocando a mulher branca na construção da imagem da mulher brasileira. Para outras correntes, a mulher brasileira era a mistura das três raças. LINDA LOURINHA Lourinha, lourinha. Dos olhos claros de cristal, Desta vez em vez da moreninha. Serás a rainha do meu carnaval! Loura boneca. Que vens de outra terra, Que vens da Inglaterra. Que vens de Paris, Quero te dar. O meu amor mais quente Do que o sol ardente. Deste meu país! Linda loirinha, Tens o olhar tão claro. Deste azul tão raro Como um céu de anil. Mas as tuas faces Vão ficar morenas. Como as das pequenas Deste meu Brasil!41 Na marchinha “Linda Lourinha” são exaltados, além dos cabelos, os “olhos claros de cristal”, como ela não é considerada de fato brasileira, “as suas faces vão ficar morenas como as pequenas deste meu Brasil”. Não é por acaso que no Brasil tem-se a cultura das branquinhas se bronzearem ao sol nas praias na estação do verão. Pela influência de 40 Linda Morena. Música de Lamartine Babo, 1932. http://www.almacarioca.net/falandodecarnaval. Acesso em 19 de março de 2012. 41 Linda lourinha. Música de Braguinha, 1933. http://www.almacarioca.net/falandodecarnaval. Acesso em 19 de março de 2012.
  • 20. 109 grande parte do Movimento Modernista42 , a morena era considerada a verdadeira mulher brasileira, por descender das índias. Além da exaltação da mulher brasileira, as marchinhas demonstram também a busca de uma identidade para a mulher brasileira, além de uma identidade nacional, algo que vem desde a Semana de Arte Moderna. Historicamente percebe-se que as diversas tentativas de se construir uma identidade nacional passam pela construção da identidade da mulher. Logo, a mulher brasileira faz parte do pacote de imagens do Brasil que se vende para os estrangeiros. Porém, ao se vender a mulata, a mestiça e a morena, não teria cabimento se vender a lourinha para o europeu, pois ele já tem a original: esta é a contradição entre o mito das três raças e o mito da brancura. Ser branco no Brasil é um mito aos olhos dos europeus. Para eles, nós somos mestiços latinos. As marchinhas refletem um momento histórico e podem ser vistas de vários ângulos. Para o contexto em pauta, percebe-se também uma imagem de mulher ainda inocente, bem diferente das que representam o período posterior aos movimentos feministas, no qual a mulher reivindicou, dentre outras coisas, a liberdade sexual. Embora a mulata já carregasse a sexualidade na sua identidade social, a partir das mulatas do Sargentelli43 , essa sexualidade se acentua publicamente e, no embalo do feminismo e do crescimento da mídia, essa imagem sexualizada estende-se às mulheres brancas, até então consideradas recatadas, “boas para casar”, reconstruindo assim, a imagem da identidade da mulher brasileira em geral. Nesse novo contexto histórico, a mulher, mais do que contestar o uso da sexualidade na reconstrução de sua imagem pela mídia, tirou partido disso. Pois a mulher também buscava sua independência financeira em relação ao homem. Ao vender a imagem do seu corpo e da sua sexualidade, virou mercadoria, o que, literalmente foi um bom negócio, que mobilizou toda sorte de comerciais, programas de TV e revistas masculinas como Playboy. Comparando as quatro marchinhas, as duas que se referem à mulher negra contêm conteúdos discriminatórios que ultrapassam o imaginário de seus autores. A frase: Nega do cabelo duro, Qual é o pente que te penteia? atravessou gerações, reconstruindo uma imagem de inferioridade para os cabelos da mulher negra, que até hoje é motivo de brincadeiras de 42 Movimento cultural marcado pela Semana de arte Moderna de 1922, realizada entre 11 e 18 de fevereiro de 1922 no Teatro Municipal de São Paulo. Um dos objetivos do movimento era realizar uma arte nitidamente brasileira, sem complexo de inferioridade em relação à arte produzida na Europa. HTTP://www.pitoresco.com.br/art_data/semana/index.htm 43 Oswaldo Sargentelli, criador dos Shwos de Mulatas na década de 1970. [1] (Rio de Janeiro, 8 de dezembro de 1924 — Rio de Janeiro, 13 de abril de 2002) foi um radialista, apresentador de televisão e empresário da noite brasileiro. Era filho de Maria Amélia Sargentelli e de Leopoldo de Azeredo Babo, irmão de Lamartine Babo.
  • 21. 110 mau gosto pelas crianças na escola. Como nas falas das alunas Betânia: Ela tem cabelo duro, tem piolho, e Carmem Lúcia: O seu cabelo é duro o meu é liso. Essas músicas continuam no imaginário coletivo, razão do sucesso estrondoso que fizeram, estão mais vivas na memória oral do povo brasileiro que, as que falam da morena e da lourinha, justamente porque seus conteúdos são racistas. Segundo Merleau-Ponty (1999), “não há uma palavra, um gesto humano, mesmo distraído ou habitual, que não tenham significação”. Essas marchinhas carregam os significados sociais mais profundos sobre a mulher negra. Recentemente, o palhaço Tiririca gravou uma música com o mesmo sentido, porém bem mais deprimente, que dizia “ veja, veja os cabelos dela, parece bom-bril de arear panela”44 , tentando reeditar os sucessos das marchinhas, mas foi fortemente combatido pelo MN. As leis anti-racismo têm sido importantes para frear atitudes explícitas de grande alcance que depõem contra a identidade negra, mas não são suficientes no combate às micro-discriminações cotidianas que continuam reproduzindo o imaginário social herdado do período escravista de que os negros são inferiores. Não foi mera coincidência que, neste período da história, as mulheres negras começassem a passar um pente de ferro quente nos cabelos, procurando alisá-los para ficarem parecidos com os cabelos escorridos da mulher morena. Quando se perguntava a cor de uma mulher filha de branco com preto, ela se declarava morena, por sentir vergonha de sua cor e de seus cabelos. “Esconder” a sua cor e alisar os cabelos são: [...] gestos, considerados bioculturais, expressam a nossa própria vida individual e coletiva porque têm um sentido histórico. Formando a linguagem do corpo, por meio dos gestos somos capazes de expressar (alguns) símbolos e esconder outros [...]. Envolve corpo, natureza e cultura [...] (MENDES e NÓBREGA, 2009, p. 2-3). Depois do ferro quente veio o henê e vários outros artifícios até o atual secador de cabelos, seguidos do alisamento com formol e da tintura para deixá-los também louros. Logo, muitas das mulheres mestiças, depois que alisam e pintam os cabelos de louro, se declaram brancas. Parece que se está tatuando no próprio corpo a ideologia do branqueamento, na versão feminina. Na década de 1970, surgiu uma alternativa ideológica, buscando um caminho “mais digno” de reconstrução da identidade negra, o 44 TIRIRICA, 1996, música Veja os Cabelos dela.
  • 22. 111 movimento Black Power. O uso do cabelo naturalmente crespo, que surgiu nos EUA, tinha como proposta construir outra estética para os negros, visando ao abandono do alisamento e procurando desconstruir a ideologia do branqueamento. Porém, ao ser absorvida maciçamente pela juventude negra brasileira, tomou um significado de rebeldia e de modismo, encobrindo o seu conteúdo ideológico original. Quem já passa dos 40 anos sabe que, nos anos 70, quanto maior era o Black Power mais seria respeitado pela turma. O primeiro famoso a assumir o pixaim foi Toni Tornado, depois Tim Maia. Ambos haviam morado nos Estados Unidos por um tempo. A atriz Zezé Mota conta que, em visita àquele país, na época, deparou com os negros usando cabelo natural, voltou para o hotel e enfiou correndo a cabeça debaixo do chuveiro e sentiu como se fosse uma libertação. A onda pegou tanto no Brasil que virou símbolo de modernidade não só para negros. Jô Soares, Marcos Paulo, Roberto e Erasmo Carlos (cantores), todos usavam. Até que, em meados de 1974, Paulo César, jogador do Flamengo e da Seleção Brasileira, inovou, colorindo o black de caju. Ganhou até o apelido de Paulo César Caju.45 (LOURENÇO e OLIVEIRA, 2012). O uso do cabelo Black Power na década de 1970 que teve como ícones os jogadores, Paulo César e Jairzinho e os cantores Jair Rodrigues e Tony Tornado, logo foi absorvido muito mais pelos homens que pelas mulheres que, em sua maioria, não aderiram à moda e seguiram alisando os cabelos. Na década de 1980 surge o movimento Rastafari, com seus cabelos trançados naturalmente (dreadlocks). O movimento teve origem na Etiópia, com objetivo de reafirmação e independência cultural em relação à Europa, e conquistou visibilidade mundial e na Jamaica graças ao cantor de reggae Bob Marley. No Brasil, o movimento ganhou a adesão dos adeptos do reggae e o uso dos seus cabelos trançados foi largamente utilizado também pelos militantes do Movimento Negro como uma nova proposta estética para os cabelos crespos, com conteúdo de desconstrução da ideologia do branqueamento. No início, o cabelo trançado no estilo rastafari foi mais usado pelos homens; porém, logo as mulheres o remodelaram, passando a utilizar um trançado de nylon agregado ao cabelo natural. Essa modificação estética fez crescer significativamente o número de adeptos ao trançado dos cabelos, que se transformou em moda para uma parcela significativa das mulheres negras, embora perdendo parcialmente seu objetivo político-ideológico. As pressões e as críticas do MN, nas duas últimas décadas, em particular à mídia, têm produzido efeitos positivos. O número de atores e atrizes negras na televisão (ainda 45 http://racabrasil.uol.com.br/edicoes/86/artigo7858-1asp. Acesso em 19 de março de 2012.
  • 23. 112 que seja um por programa) já traz um incremento significativo à imagem positiva do negro na mídia. De acordo com Santos: À medida que a televisão omite a imagem dos negros na telinha mágica, ela reforça a cultura discriminatória da invisibilidade, ela deixa de construir no inconsciente individual e coletivo das crianças, à imagem do negro, num lugar social importantíssimo, que são os aparelhos de multimídia da era pós-moderna. A televisão dificulta as crianças negras de se verem nesse espelho coletivo onde as pessoas sempre aparecem bonitas, logo, elas dificilmente vão achar um negro bonito, vão ter vergonha da sua cor, da sua origem, da sua raça e de si mesma. Produzindo uma baixa autoestima difícil de ser curada ao longo da vida. (SANTOS, 2010, P. 10). O crescente aumento da presença negra na mídia pode ser fundamental para a reconstrução de uma identidade positiva nas crianças afro-descendentes. Quando pelo menos metade dos personagens da televisão brasileira for composta por negros e mulatos, ou seja, uma representação proporcional à realidade de cor da população, poderá haver mudanças significativas na sociedade brasileira. A força da mídia poderá ajudar desconstruir os arquétipos de que os negros são inferiores. Depois da mídia, a escola é outro grande trunfo nessa luta. No âmbito específico das práticas escolares, o próprio sentido do que seja “educação” amplia-se em direção ao entendimento de que os aprendizados sobre modos de existência, sobre modos de comportar-se, sobre modos de constituir-se a si mesmo, particularmente para as populações mais jovens – se fazem com a contribuição inegável dos meios de comunicação [...] trata- se bem mais de um lugar poderoso [...] no que tange à produção e a circulação de uma série de valores [...] relacionados a um aprendizado cotidiano sobre quem nós somos, como devemos educar nossos filhos [...] como deve ser visto por nós os negros, as mulheres, as pessoas de camadas populares [...] Em suma: torna-se impossível fechar os olhos e negar-se a ver que os espaços da mídia constituem-se também como lugares de formação ao lado da escola, da família, das instituições religiosas (FISCHER, 2002, p. 151-162). Xô, chapinha! Foi-se o tempo em que o hit da mulherada eram os cabelos escorridos, de tão lisos. Se até a poderosa Gisele Bündchen pisa nas passarelas mais badaladas do mundo com seus ondulados, no melhor estilo "sou natural", não há por que as brasileiras não se encorajarem a desfilar por aí com os cachos que Deus lhes deu. – Depois de cinco anos de progressivas, agressivas e afins, as mulheres estão voltando a tratar dos cabelos com ondas e cachos mais largos ou menores.
  • 24. 113 É só ter o corte certo e a hidratação correta – afirma o cabeleireiro e maquiador Fernando Torquatto, considerado um mago das celebridades[...] Como os cabelos já são volumosos por si só, é bom evitar pintá-los com cores mais escuras. A "massa" em torno do rosto vai ficar maior ainda e a fisionomia, muito pesada. O ideal é um tom do castanho médio para o mais claro – indica Torquatto, que já está preparando o visual de Taís Araújo para a Helena de "Viver a vida", próxima novela das oito, de Manoel Carlos: - Depois daquele cabelo lisão e misturado com aplique de "A favorita", a intenção é que a Taís assuma, nesse novo trabalho, seus cachos de negra, bonitos e bem tratados. Algo como se ela lavasse, balançasse a cabeça e saísse, naturalmente.46 Pesquisador – Artistas negras como Sheron Menezes, Tais Araujo, Isabel Filardis e Juliana Alves estão usando os cabelos crespos. O que você está achando disso? Aluna Tereza – Em minha opinião, é muito bom, pois a nossa raça era muito desvalorizada também por causa disso. Quando ia procurar emprego [...] pela estética seria apropriado pranchar o cabelo. Quanto mais gente com os cabelos assumidos, crespo, cacheado, ondulado, fica mais fácil pra gente [...] Foi uma liberdade. Tiraram aquele peso todo. A própria sociedade já está falando. Por que você não deixa seu cabelo enrolado, Black [...] antes o volume do seu cabelo era associado a relaxamento. A Tais Araújo quando botou aquele cabelão, com aquela flor, o pessoal se amarrou. Agora quem deu à cara a tapa primeiro foi a Adriana Bombom, na época da Xuxa, lá atrás. Na fala da Tereza, convém ressaltar que, quando diz que “tiraram aquele peso todo”, reflete o mesmo sentimento de Zezé Mota, na década de 1970, ao declarar que, quando viu nos EUA o Movimento Black Power, botou os cabelos em baixo d água e “sentiu como se fosse uma libertação”. Ambos os discursos revelam a opressão, ainda que inconsciente, sofrida pelas mulheres negras ao ter que usar artifícios nos cabelos para ficarem ao menos parecidas com as mulheres brancas. É o que Neusa Souza chamaria de um Ideal de Ego, liberto: O Ideal do Ego é o domínio do simbólico. [...] O Ideal do Ego é, portanto, a instância que estrutura o sujeito psíquico, vinculando-o à Lei e a Ordem. É o lugar do discurso [...] é a estrutura mediante a qual “se produz a conexão da normatividade libidinal com a cultura”. Realizar o Ideal de Ego é uma exigência dificilmente burlável - que o superego vai impor ao ego. 46 http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EMI214409-15230,00.html. Acesso em 26 de março de 2012.
  • 25. 114 “Há sempre uma sensação de triunfo quando algo no ego coincide com o Ideal do Ego. E o sentimento de culpa (bem como o de inferioridade) também pode ser entendido como uma tensão entre o Ego e o Ideal de Ego”. (SOUZA, 1983, p. 33-34). A autora continua demonstrando que o negro que ascende socialmente no Brasil é aquele que tem um ideal de ego branco. Pois, ele nasce e sobrevive numa ideologia que lhe é imposta pelo branco como um ideal a ser atingido. No caso da estética, o “negro é o outro do belo”. As mulheres pretas, mulatas e mestiças estão buscando um ideal de ego inatingível quando alisam e tingem de louro seus cabelos. Esse mito da brancura impede os pretos, mulatos e mestiços, por exemplo, de se verem enquanto grupo, de construírem uma identidade coletiva como sugere o MN. Mas também impede de construírem uma identidade individual autônoma, à medida que não tem um espelho que reflita um mito de origem aceito socialmente. Pesquisador – Recentemente muitas artistas estão usando o cabelo crespo, mas eu ti vi antes delas, usar o cabelo crespo, o que te levou a parar de alisar o cabelo? Talita - Foi mais pra mudar. Quando eu era pequena eu usava o cabelo cacheado. Eu quis mudar e usar ele mais natural. Pesquisador – A primeira que eu vi na mídia, parar de alisar o cabelo foi a repórter Zileide Silva. E logo depois eu vi você. Você teve alguma influência da mídia ou do Movimento Negro? Talita, - Não, foi mesmo a vontade de mudar. A própria Ester, minha amiga, e outras colegas que tinham os cabelos cacheados, isso me influenciou. Mas depois eu percebi, porque as pessoas comentaram. Seu cabelo fica bonito assim. Pesquisador – Como você está vendo este movimento das mulheres estarem usando o cabelo crespo? Talita – Eu acho bom as pessoas assumirem o cabelo natural. Terem menos trabalho. Eu acho bonito o cacheado. É mais saudável, do que está usando estas químicas. Tem gente que tem o cabelo cheio de cachinhos e vai alisar. Eu falo: não, deixa assim, é mais bonito. Pesquisador – Para as mulheres bonitas é mais fácil usarem o cabelo crespo. Você acha que para as mulheres negras em geral há a possibilidade de virar moda? Talita – Acho que pode virar moda sim. É mais fácil ter o cabelo natural. Mas a maioria prefere o cabelo liso, não assumem, umas colocam implante, não assumem. A fala da Tereza indica que pode ser que este “neo” movimento Black Power se restrinja a uma parcela da juventude mais esclarecida, mais identificada com as propostas do MN. Já a fala da Talita indica uma tendência mais espontânea que pode ir muito além das propostas do MN ou das artistas de TV. Porém, ainda que a maiorias das meninas venha a
  • 26. 115 usar o cabelo crespo, pode não passar de mais um modismo e não atingir as estruturas do inconsciente coletivo da nossa sociedade. Sem atingi-las, não há mudanças efetivas. Conclusões A identidade individual é uma elaborada construção que contém a interpretação que se faz do corpo biológico, considerando as pulsões dos desejos psíquicos e as representações sociais oriundas da cultura. Logo, pressupõe a existência de uma identidade coletiva, que no Brasil continua pervertida (no sentido psicológico) pelo mito da brancura. Seja entre os negros, os mestiços ou os brancos, o mito atinge cada pessoa segundo o ideal de ego que ela constrói com base na sua tonalidade de cor. Entre os negros produz-se um ego com forte tendência ao complexo de inferioridade. Entre os mestiços há uma internalização do ego branco, que não é completamente compatível com o seu corpo. Por mais que pinte de louro e alise os cabelos, há sempre um fosso, uma tensão entre o Ego e o Ideal de Ego, que mantém o mestiço frustrado, dificultando sua felicidade. Entre os brancos há uma tendência a construir um ego com complexo de superioridade. Todos eles são perversos e frustrantes à medida que deturpam a “realidade”. A maior dificuldade para combater o mito da brancura na sociedade brasileira é o seu caráter inconsciente, que torna suas práticas cotidianas invisíveis para a maioria da sociedade, inclusive para os professores. Será preciso construir diversas frentes culturais, políticas e ideológicas que modifiquem as instituições, em particular a escola, para que se contraponham ao mito da ideologia do branqueamento. Não basta a sociedade brasileira combater apenas as discriminações individuais e continuar fazendo um discurso de não ao racismo. É necessário mudar também as práticas cotidianas impessoais que perpetuam o negro como ser de segunda categoria. Se olharmos para a base da pirâmide social, veremos que as favelas, os presídios e as “moradias” nas ruas continuam sendo espaços “naturais” dos negros. Esse é o nosso maior desafio.