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ASPECTOS ÉTNICOS E SOCIOCULTURAIS DO POVO MURA NA
MICRORREGIÃO DE MANAUS (AM)
Sueuda Rebelo Cavalcante1
Jesse Rodrigues dos Santos2
Resumo
O presente texto resulta de breves reflexões sobre a sociocultura e a economia de uma Aldeia
Mura localizada no Município de Autazes. O objetivo do trabalho é reunir evidências que
possam estar relacionadas à “emergência étnica” dos Muras. Após a revisão de partes da
escassa literatura que trata de temas relacionados aos Muras, realizaram-se incursões ao
campo, especificamente, na Aldeia do Lago da Josefa. Naquele lugar observou-se, através de
entrevistas e da permanência no lugar, a organização sócio-política da Aldeia e suas práticas
econômicas. Os resultados mostraram que há distinções marcantes no que diz respeito à
organização sócio-política, mas, quanto às práticas econômicas há grandes similiaridades com
os caboclos interioranos. Conclui-se que são necessários esforços para ampliar os estudos a
fim de coletar dados sobre as demais aldeias a fim de se produzirem informações que
possibilitem uma compreensão mais genérica sobre os processos de mudança sociocultural e
econômica vivenciados pelos Muras de Autazes.
Palavras-Chave: Muras; Autazes; Socioeconomia; Mudança sociocultural.
1 Introdução
A microrregião de Manaus é composta por sete municípios3
. Apesar de a presença
indígena ser freqüente nos municípios de Careiro e de Autazes, é neste ultimo que se
concentram diversas comunidades camponesas constituídas por elementos da etnia Mura.
Essas comunidades compõem o Povo Mura presente na microrregião de Manaus, cuja história
está associada à severa resistência contra o colonizador português que ocupou a Amazônia
desde o século XVII. Essa resistência implicou num grande esforço histórico para a
criminalização dessa resistência e, ainda, para afirmar que o povo Mura havia se dispersado e
até extinto. Contudo, os fatos recentes evidenciam que essa estratégia não teve êxito.
A contenda histórica resultou num sangrento genocídio que ficou registrado no
poema épico “A Muhuraida”, de Henrique João Wilkens, como a “[...] conversão e
reconciliação do gentio Mura”. O mesmo deu-se no período da Cabanagem, quando
novamente o Povo Mura foi atingido pelo prolongamento dos conflitos na calha dos rios
Amazonas e Madeira. Ao longo da ocupação sistemática da região do Centro Amazônico, o
1
Graduada em Biblioteconomia pela Universidade Federal do Amazonas (UFA) Pós-graduada em
Desenvolvimento Sustentável na Amazônia pela Faculdade Salesiana Dom Bosco. E-mail: surebelo@gmail.com
2
Economista. Doutorando em Desenvolvimento Sustentável do Trópico Úmido pelo Núcleo de Altos Estudos
Amazônico da Universidade Federal do Pará. Professor da Faculdade Salesiana Dom Bosco. E-mail:
jesse.edsa@gmail.com.
3
Manaus, a capital do Amazonas e mais: Iranduba, Careiro da Várzea, Careiro, Manaquiri, Autazes e
Manacapuru.
1
povo Mura permaneceu presente, organizados em comunidades, mas não assumindo sua
identidade étnica, ao contrário apresentando-se como caboclos. Assim, facilmente,
confundiam-se com camponeses-caboclos ribeirinhos. Entretanto, desde os anos de 1980 os
povos indígenas do Amazonas passaram a organizar-se e experimentar resgatar sua identidade
étnica. O mesmo se deu com o Povo Mura (PREZIA; HOOMAERT, 2000; GALVÃO, 2002).
Neste trabalho, verificaram-se aspectos desse movimento, considerando os
aspectos socioculturais relativos à sua organização social e econômica, vinculado ao
ecossistema em que habitam. Observou-se uma organização civil ascendente entre as
comunidades, principalmente, no setor da educação indígena. A economia e a organização
sócio-espacial assemelham-se grandemente à dos camponeses em geral, baseando-se na auto-
sustentação e numa integração parcial com os mercados e comunidades locais. Conclui-se que
o relativo sucesso tanto na persistência da presença do Povo Mura na calha do rio Madeira,
quanto na sua (re)organização civil decorre dos laços culturais que foram preservados em
função da identidade étnica.
Procura-se mostrar com esse trabalho o modo como membros da etnia Mura estão
valorizando a tradicional agricultura familiar, que se desenvolve em pequenas propriedades
rurais, onde todas as famílias em regime de mutirão são responsáveis por todo processo
produtivo. São apresentadas evidências de um processo de afirmação sociocultural e de
organização socioeconômica que envolve aspectos religiosos e econômicos presentes tanto na
gestão de determinadas organizações comunitárias quanto na organização do uso da força de
trabalho familiar e comunitária. Assim, o presente estudo propõe identificar a atividade
econômica da Aldeia Lago da Josefa, como as técnicas utilizadas no plantio das roças e
conhecer o potencial de comercialização dos produtos gerados na aldeia; simultaneamente,
discutem-se os processos socioculturais em curso, através da observação do formato e
ordenamento das suas organizações. Ao final, propõem-se conclusões parciais sobre a relação
entre essas evidências específicas e os processos mais gerais que dizem respeito às mudanças
que consolidam a auto-afirmação étnica do povo Mura.
2 Aspectos da trajetória dos Mura
Conforme Loureiro (1982), originalmente, os Mura denominavam-se buhura,
burua ou bururubus, e diziam-se oriundos do Peru, usavam e utilizavam o ipadu ou coca, que
lhes permitia serem considerados grandes canoeiros e guerreiros temidos. Contudo, na história
formal, os Mura tem uma historia marcada por registro tendenciosos e contraditórios
2
(BRANCO, 1989; CALLADA, 1999). Afirmações existentes nas crônicas setecentistas sobre
a origem dos Muras procuravam apresentá-los de modo mais hostil:
A nação Mura também tem muita especialidade entre as mais. É gente sem assento,
nem persistência, e sempre anda a corso, ora aqui, ora ali; e tem muita parte do Rio
Madeira até o Rio Purus por habitação. Não tem povoações algumas com
formalidades, mas como gente de campanha, sempre anda de levante, e
ordinariamente em guerras (DANIEL, 1975:264).
Os estudos mais recentes oferecem uma visão mais crítica e esclarecedora sobre a população
indígena conhecida como Mura, sem, contudo, distanciarem da visão tendenciosa inerente às
narrativas tradicionais. Nesse sentido Treece (1989, p. 212) oferece dados mais precisos sobre
a territorialidade Mura:
Os Mura, ou Murá, nome dado por tribos vizinhas aos índios que a si mesmos se
chamavam Muhuraen, habitavam segundo os primeiros registros a margem direita
do rio Madeira em 1714. Eram conhecidos por sua hostilidade para com a missão
jesuíta de Abacaxis, fundada acima da foz do Jamari por volta de 1723 e trasladada
depois rio abaixo (TREECE, 1989, p. 212).
Entretanto, é fácil perceber que os juízos de valor persistem na adjetivação proposta por
Treece (1989). Assim, apesar das divergências de informações, existem alguns pontos que são
comuns à grande maioria dos escritos. Entre tais pontos consensuais, está a possibilidade da
origem peruana desse grupo e a sua localização no Rio Madeira, que se constituiria como seu
território originário. Outro consenso é quanto à sua hostilidade à colonização dos seus
territórios e a criminalização sistemática dessa resistência, induzindo um processo
discriminatório contra os Mura.
Embora não fossem nômades, não há evidências de que os Mura chegaram a
construir grandes aldeamentos. Contentavam-se com abrigos de construção sumária e
praticamente habitavam suas canoas, as quais manejavam com habilidade. Bastante sóbrios
em suas necessidades, viviam basicamente da pesca, e de esparsas hortas de mandioca. Nos
combates, usavam técnicas de emboscadas e de incursões rápidas. Por não fixarem ao terreno,
as duras campanhas empreendidas pêlos portugueses, com o fim de limpar as calhas dos rios
de suas ameaças, não surtiam efeito (PREZIA; HOOMAERT, 2000; AMAZONAS, 1984).
Como conseqüência, durante os Séculos XVII e XVIII, os Mura provocaram
grandes prejuízos ao comércio, pois atacavam principalmente as embarcações que
transportavam as especiarias e drogas do sertão. Sempre foram perseguidos e discriminados
pelos coloniais, que os acusavam de piratarias nos rios. Existem indícios de que participaram
da cabanagem ao lado dos cabanos e foram responsáveis pela morte de Ambrósio Ayres, um
dos líderes mais violentos das forças oficiais. Pagaram um preço alto por esta ousadia,
calcula-se que cerca de vinte mil Mura foram mortos, acabaram por enfraquecê-los, sendo
3
que, em meados do Século XIX, já haviam perdido todo o poderio (PREZIA; HOOMAERT,
2000; LOUREIRO, 1982; CARVALHO, 1977)
Figura 01: Retrato de um indivíduo Mura.
Fonte: Museu do Índio.
Segundo Souza (1994), os Mura continuam no mesmo lugar, numa demonstração
de que nunca se renderam ou foram derrotados. Esse autor acredita que nenhum dos grandes
grupos indígenas da Amazônia envolvidos na Cabanagem foi mais penalizado que os Mura,
haja vista os esforços contínuos de dizimá-los e de expulsá-los das suas praias e lagos
tradicionais.
Conforme Fernandes (mimeo.):
Como conseqüências do intenso e violento contato com as frentes de expansão nos
séculos XVIII e XIX, e do desastroso direcionamento dado a questão indígena pelo
Estado brasileiro no século XX, resulta uma situação em que os Mura foram
obrigados a se submeter aos trabalhos nas fazendas como mão-de-obra semi-
escravizada, abandonando seu modo de vida tradicional. A partir dai o que houve foi
um acelerado processo de decadência física e cultural, colaborando para a
construção de um quadro de carência alimentar e difusão de bebidas alcoólicas,
causando-lhes prejuízos incalculáveis.
Esse aspecto da trajetória do Povo Mura, na visão de Fernandes produziu um “vazio
etnográfico” que foi superado com a emergência de movimentos fortalecidos pelos aspectos
étnicos na luta pela demarcação das terras indígenas – ver Figura 02 para identificar as TI
localizadas na Microrregião de Manaus.
No final da década de 80 do século passado os Mura experimentam uma
modificação na perspectiva negativa que configurava o panorama do contato.
Através de um processo que podemos chamar de “emergência étnica” conseguem
ganhar notoriedade pública, o que viabiliza seu fortalecimento cultural e político,
fato ligado à luta pela demarcação da T. I. Pantaleão que estava sendo ocupada por
não índios (FERNANDES, mimeo.)
Esse processo social culminou na fundação em 1990 do Conselho Indígena Mura (CIM)
sediado em Autazes e com a missão de assegurar os direitos constitucionais dos Muras e
fortalecer a sua autodeterminação enquanto grupo étnico. Por outro lado, ficou estabelecida
4
uma territorialidade Mura, especialmente, no Município de Autazes, constituindo a base
territorial para a organização política que se desdobra em ações de capacitação tecnológica e
educacional. Assim, pode-se tomar a luta social pelo reconhecimento das terras indígenas
como um referente sócio-histórico que impulsionou e sustentou outras formas de luta em
outros campos da existência social.
Figura 02: Terras Indígenas nos municípios do Careiro e Autazes.
Fonte: Instituto Socioambiental.
Por outro lado, constituiu-se, também, uma emergência institucional em moldes
que permitiram a inserção no modelo de sociedade civil a partir de vínculos socioculturais
referenciados na etnia enquanto elemento comum. Contudo, no campo econômico, as
distinções caminham a passos mais lentos, sendo ainda preservados modos de produção que
em muito se confundem com as populações camponesas-caboclas. Esse fato, entretanto, não
tem impedido o auto-reconhecimento da condição indígena que se deixa transparecer tanto
nos caracteres físicos como nas conversas informais sobre a procedência das famílias.
3 A Área de Estudo
A coleta de dados foi realizada na Terra Indígena Lago da Josefa, que fica a 36
km da sede do Município de Autazes, aproximadamente nas coordenadas S 03º54”; W 59º
24” e S 03º36”; W 59º00”. É uma localidade próxima a áreas urbanas dos municípios de
5
Autazes e Nova Olinda e caracterizada pela ocorrência de diversos corpos d´água como
igarapés e lagos entre os quais se destacam o Lago da Josefa e o Rio Madeira. O acesso a esse
lugar pode é possível através de ramais originários da sede do município de Autazes ou por
embarcações familiares movidas por motores de rabeta4
. Os deslocamentos, de fato,
dependendo da época do ano – estação de cheia ou seca – combinam movimentações
integradas entre igarapés e ramais.
Figura 03: Área de Estudos
Fonte: Inpe/Deter, 2006.
O grupo indígena Mura localizado na aldeia Lago da Josefa, apresenta grande
riqueza em sua fauna e flora, mantendo mais de 70% de suas terras distribuídas entre matas
virgens e capoeiras em diversos estágios. A terra indígena de maneira geral não sofreu
impactos ambientais significativos, apresentando características de preservação e uso
moderado dos solos e recursos pesqueiros. Contudo, esse território tem sofrido sérios
problemas com invasões de pescadores, caçadores e madeireiros, que apesar das políticas de
demarcação, insistem em infringir as leis ambientais e constitucionais relativas aos direitos de
exclusivo usufruto do índio, em relação às riquezas naturais.
4 Métodos e técnicas
Procurou-se mostrar com esse trabalho, o modo como os membros da etnia Mura
estão inseridos na socioeconomia rural do município de Autazes. Nesse sentido, o estudo
deteve-se nos modos tradicionais de produção agrícola familiar e comunal, que se desenvolve
4
Forma peculiar de transporte que consiste na adaptação de um motor à popa a uma canoa de madeira de modo
que ativa um longo eixo à extremidade do qual uma hélice girando, impulsiona a embarcação. Devido ao seu
preço acessível – entre R$ 1.200,00 e 700,00 – substitui o motor de popa na preferência dos ribeirinhos e otimiza
sua capacidade de deslocamento.
6
em pequenas propriedades rurais. Enfocaram-se os modos de gestão da divisão social do
trabalho evidentes através das funções específicas que foram identificadas desde um
mapeamento da atividade econômica da Aldeia Indígena do Lago da Josefa5
– doravante
apenas Aldeia. Além, desses aspectos, registraram-se as técnicas utilizadas no plantio das
roças e efetuou-se o reconhecimento do potencial de comercialização dos produtos gerados na
aldeia. Os dados coletados obedecem através de entrevistas semi-estruturadas com lideranças
Mura da aldeia, moradores antigos da aldeia, jovens e professores Mura, todos residentes na
Aldeia.
5 A sociocultura e a economia da Aldeia Indígena do Lago da Josefa
Em geral a Aldeia alinha-se com as organizações civis representantes da etnia
Mura em Autazes, a saber: a Organização dos Professores Indígenas Mura (OPIM); a
Organização dos Agentes de Saúde Indígenas Mura (OASIM); a Organização das Mulheres
Indígenas Mura (OMIM) e a Organização dos Estudantes Indígenas Mura (OEIM). Um fato
que merece registro na organização dos Mura é o interesse que têm pela melhoria da educação
escolar. A escola existente na Aldeia surgiu por iniciativa da comunidade, sendo que os
professores que lecionam atualmente nas aldeias são todos indígenas.
A partir das narrativas dos moradores mais antigos é possível reconstituir a
condição inicial da Aldeia. As casas eram construídas todas de pau roliço6
cobertas e cercadas
de palha, a maioria não era assoalhada. Quando assoalhadas, o assoalho era de Paxiúba7
, as
casas ficavam perto uma das outras, não existia rua, era só caminho que usavam para ir de
uma casa para outra. No princípio da Aldeia, os interlocutores estimaram a existência de trinta
e duas famílias, se comunicavam através do grito, assopro de mão, bater na Sapupema8
da
árvore com cassetete ou soprar buzina.
A população, nos anos da pesquisa 2005/2006, era de 375 pessoas cujas
habitações estavam localizadas de frente para os lagos e, consideravelmente, distantes das
áreas de plantio.
5
Segundo informações dos moradores mais antigos, o Lago da Josefa recebeu esse nome em virtude de uma
velha índia que se chamava Josefa, sendo uma das primeiras moradoras da Aldeia. Apesar do seu auto-
reconhecimento, a Aldeia com esse nome não consta nos levantamentos do Instituto Socioambiental
apresentados em Ricardo (1996).
6
O caule de uma árvore de pequeno porte.
7
Palmeira de 10 a 15 metros de altura, de madeira escura e fibrosa usada para cercar e assoalhar casas.
8
Raízes tabulares de árvore de grande porte.
7
Tabela 01: Distribuição da população da Aldeia em 2004.
Fonte: Dados fornecidos pela liderança da Aldeia.
Quanto ao agrupamento das residências, distinguem-se dois lugares:
a) A avenida com 40 casas, que é chamada de centro principal da Aldeia, fica
concentrado todo o movimento da população, e grande parte das casas, a padaria e o comércio
pequeno. Em seu total, a Aldeia possui uma quantidade de 46 (quarenta e seis) casas, das
quais 16 (dezesseis) são cobertas e cercadas de palha, 3 (três) são construídas de madeira com
piso em alvenaria e cercada de tábuas e cobertas de alumínio e 27 (vinte e sete) casas são
cercadas e assoalhadas de tábuas e cobertas com telhas de alumínio.
Figura 04: Vista Frontal da Aldeia.
Fonte: Sueda Rebelo, agosto/2005.
b) A margem esquerda do lago da Josefa está localizada a Colônia Terra Preta,
local no interior da área, onde moram 150 (cento e cinqüenta) famílias. Esta área denominada
por Colônia Terra Preta é destinada exclusivamente para a produção agrícola. Contudo, é
usual a ocorrência de uma grande distância entre os roçados e a residência9
.
A Aldeia recentemente teve acesso à energia elétrica o que permitiu a aquisição de
vários eletrodomésticos e novos formatos de construção, utilizando-se a alvenaria combinada
com os modos e estruturas ancestrais. Note-se tal peculiaridade na imagem abaixo onde o uso
da palha nas paredes combina-se com a alvenaria, demonstrando traços peculiares da
transição sociocultural vivenciada na Aldeia. A presença da palha se justifica pelo conforto
9
Esse distanciamento explica-se pela exploração intensa das terras próximas à residência o que implicou no seu
desgaste e na necessidade de procurar terras mais distantes enquanto as áreas iniciais tornaram-se capoeiras.
8
climático no interior do ambiente; enquanto a alvenaria assegura a robustez e o valor
econômico agregados ao imóvel.
Figura 05: Casa da Aldeia
Fonte: Sueuda Rebelo, 2005.
Segundo entrevistas com moradores antigos, o costume praticado pelos antigos
era dormir na beira do fogo deitado em cima da esteira. Dormia-se cedo para acordar cedo. A
família costumava conversar sobre os trabalhos realizados no dia e os que realizariam no dia
seguinte. Sentavam-se todos os velhos, compadres e comadres de cócoras ao redor do fogo
para contar historia, dizer versos ou trocar idéias com os parentes e vizinhos mais próximos.
Os costumes ancestrais são relembrados com certa facilidade nas entrevistas com
os mais antigos. Aqui apresentamos dois costumes que revelam uma mística e uma regra de
matrimônio: a) quando ocorria eclipse na lua, os velhos mandavam que batesse na lata, no
gambá10
, tamborinho11
, e “socasse o pilão”12
até que a lua aparecesse, pois tinham medo que a
lua não tornasse mais a sua claridade; b) esse costume praticado até os dias atuais, reza que se
a mulher Mura casar com homem de outra etnia, passa a morar com o marido fora da aldeia;
caso o homem Mura se case com mulher diferente de sua etnia, ela passa a morar com ele na
aldeia.
Cabe ressaltar, que, devido à proximidade de áreas urbanas, emergiu influência
cultural – religiosa – na aldeia, produzindo mudanças nos costumes. O que mais se destaca é a
presença de duas igrejas, uma Adventista do 7° Dia e uma Casa de Oração da Assembléia de
Deus. A Igreja do 7° Dia é dirigida por diretores Mura.. Os cultos são realizados nos dias de
sábado e domingo pela manhã e também à noite. A Casa de Oração Assembléia de Deus têm
dirigentes, tesoureiro, secretário e professores da escola bíblica dominical. Todos são Muras.
10
Espécies variadas de pequenos mamíferos roedores, identificados pelos moradores.
11
Instrumento típico de percursão.
12
Instrumento utilizado para triturar alimentos sólidos, especialmente grãos e sementes.
9
Esses aspectos socioculturais representam o grau de complexidade dos processos
vivenciados pelos Muras. Note-se como o que Fernandes chamou de “emergência étnica”
combina-se, através, nesse caso, com o avanço das igrejas evangélicas que, por sua vez,
revelam uma forte plasticidade e, assim, imiscuem-se nos processos de reconstrução da etnia
Mura. Interpelados sobre tal problemática, os Muras não vêem contradições, mas pelo
contrário, percebem nesse processo uma vantagem em termos de reconhecimento da sua
importância social frente aos “brancos”, através da sua aceitação no âmbito das congregações
evangélicas. Desse modo, sua trajetória não apresenta elementos de passividade, mas de
inserções estratégias em organizações da “sociedade civil branca” que lhes abre acessos
sociais e políticos importantes na sociedade envolvente.
A produção agrícola do povo Mura da aldeia da Josefa, baseia-se em métodos
tradicionais. Os produtos principais são o roçado de Mandioca, a cultura da Melancia e do
Feijão de metro. Em seguida, multiplicam-se os “canteiros” domésticos associados aos
pomares domésticos – chamados de também de “sítios” – nos quais se cultivam Maxixe,
Pimenta Doce e Ardosa, Jerimum, Batata Doce, Cará, Banana, Feijão, Macaxeira, Laranja,
Abacaxi, Limão, Lima, Graviola, Jaca, Cacau, Tangerina, Abiu, Manga, Jambo, Cupuaçu,
Maracujá, Caju e Ingá. O trabalho é realizado através de implementos simples como o
terçado, o machado, a enxada, a moto-serra, além do típico motor para cevar a mandioca e os
demais elementos que constituem o processo de fabricação da farinha13
.
Tabela 02: Produção agrícola da Aldeia
Fonte: Pesquisa de campo, 2005.
A Tabela 02 e as Figuras 06 e 07 apresentam alguns aspectos da economia
agrícola da Aldeia. O primeiro dado apresenta uma predominância nos investimentos em
culturas temporárias que, no caso dos roçados, canteiros e sítios e asseguram a produção para
o auto-sustento familiar e para pequenas e eventuais trocas por mercadorias industrializadas e
combustíveis. As figuras apresentam aspectos do cultivo da Mandioca e da produção de
13
A Casa de Farinha constitui-se como uma unidade de produção dotada de equipamentos característicos. Entre
tantos os mais comuns são os cochos para a cevagem dos tubérculos e depósito da massa e da farinha nas suas
diversas fases de preparo; a prensa – ou o Tipiti – para retira o excesso de água; as peneiras; a bancada e o motor
onde os tubérculos são triturados; e, finalmente, o forno onde se torra a farinha com o uso do remo de madeira
para mexer a massa. O produto final é acondicionado em sacas de 70 litros – ou 45 kg – o em paneiros de cipó
forrados com folhas de bananeira secas.
10
farinha. Os roçados são de propriedade e cultivo familiar enquanto as casas de farinha são de
uso coletivo, havendo trocas de roçados em pé e o trabalho compartilhado na casa de farinha,
onde o trabalho feminino consiste na raspagem e o masculino na torragem da farinha. Assim,
evidenciam-se a concentração dos investimentos em culturas temporárias e as formas de
emprego do trabalho, tanto na sua organização quanto na sua divisão entre os gêneros.
Figura 06: Aspecto do roçado cultivado na Aldeia
Fonte: Sueuda Rebelo, 2005.
Figura 07: Aspecto da produção de farinha na Aldeias
Fonte: Sueuda Rebelo, 2005.
Na Aldeia existem campos para criação de animais, como boi, carneiros, porcos,
patos e galinhas. No campo para criação de bovinos, encontra-se uma grande quantidade de
pés de Babaçu, que são muito aproveitados pelos moradores da aldeia. Uma parte da produção
é para o consumo dos próprios moradores da aldeia, outra parte é para ser comercializada,
pois os Mura não dependem apenas de seus produtos para sobreviverem, consomem outros
tipos de alimentos como açúcar, leite, café, arroz, feijão, macarrão, sal, óleo, sabão, fósforo e
11
outros produtos. Os produtos são vendidos a dinheiro ou por meio da troca de mercadorias
industrializadas. Alguns desses produtos são vendidos na própria aldeia para o abastecimento
do pequeno comércio que existe, a maior parte é vendida na sede do Município de Autazes e
Novo Olinda do Norte.
O trabalho é desenvolvido de forma individual e coletiva, trabalham juntos
ajudando uma as outras até todos concluírem seus trabalhos. Para o plantio do roçado é feito
todo um planejamento, os velhos, adultos, jovens, adolescentes e crianças, todos participam, o
qual é chamado de ajuri. Os idosos cortam as manivas14
, os adultos e os jovens cavam a terra
com a enxada, as mulheres plantam as manivas e os espalhadores são os adolescentes e as
crianças. Duas ou três pessoas são escolhidas para encher água e preparar o chibé puranga15
para os trabalhadores. São escolhidas três mulheres para ficar em casa e preparar o almoço
para as pessoas que estão no trabalho. Esse tipo de ajuri de plantio de roça é realizado
geralmente no período de agosto a dezembro. Foram observados que o cultivo depende
basicamente do trabalho braçal, com implementos manuais simples.
Figura 08: Família retornando de um dia de trabalho na roça.
Fonte: Sueda Rebelo, 2005.
Os meios de transporte adequam-se às necessidades dos moradores e às mudanças
no ecossistema. Os meios de transportes terrestres utilizados na Aldeia são a bicicleta, o
caminhão, o ônibus e a caçamba, para os deslocamentos através dos ramais e estradas. Os
transportes fluviais mais usados são a canoa movida pelo motor-rabeta16
, a voadeira17
e os
barcos de recreio18
. Na época da cheia os transportes mais utilizados são os fluviais, através de
14
Partes do caule da Mandioca a partir das quais se desenvolvem os novos pés.
15
Farinha de Mandioca misturada com água.
16
Esse conjunto é formado por uma pequena canoa de madeira com até 10 m de cumprimento ao qual se adapta
na popa um pequeno motor de 5 ou 6 hp à gasolina.
17
Barco de alumínio com 10 ou 12 m de cumprimento movido por motor de popa.
18
Embarcações de médio e grande porte que fazem os deslocamentos de pessoas e cargas em rotas regulares.
12
canoa, motores rabetas e barco de recreio. Na época da seca são os terrestres, através de
caminhões, ônibus, bicicletas e cavalos.
Figura 09: Aspecto de um pequeno porto familiar e sua canoa.
Fonte: Sueda Rebelo, 2005.
Os dados apresentados neste tópico evidenciam o caráter similar, em termos
socioculturais e econômicos, da vida na Aldeia ao modo de vida tipicamente camponês. Essa
similaridade, no entanto, encontrou seu limite no momento em que emergiu a luta social pelo
resgate da identidade étnica. Desde então, não obstante a permanência das similitudes
econômicas, emergiu um movimento de articulação política com a finalidade de estabelecer
diferenciais nas atividades econômicas e, também, visando ao controle das instituições
educativas e religiosas. Tem-se, portanto, evidências de mudanças que se pode tratar como
inovações institucionais que indicam uma mudança cultural evolucionária orientada por
fatores socioculturais cujas implicações tendem nos níveis econômicos e organizacionais do
povo Mura de Autazes.
5 Considerações Finais
Em princípio, na visão contemporânea, os Mura eram vistos e reconhecidos como
grandes vilões da região do Rio Madeira; indivíduos vagabundos que moravam nas canoas e
assaltavam tanto embarcações quanto as plantações dos povos “civilizados”. Esses conceitos
foram difundidos na sociedade amazonense ao longo da sua formação sócio-histórica,
reproduzindo uma imagem preconceituosa de um povo que lutou bravamente pela sua
sobrevivência e tornou-se ícone da resistência radical contra a colonização européia na região
do Rio Madeira e adjacências. Foram os Muras que mais se destacaram, nas narrativas
13
históricas, entre os grupos tribais, pelo fato de evitar contato com a civilização branca e
rechaçar qualquer tentativa de invasão de seus territórios.
Essa resistência ao colono nasceu de uma profunda aversão a limitações da
liberdade, tais como os resgates, os descimentos, os aldeamentos e o trabalho das missões
religiosas. Uma das estratégias de negar essa resistência foi associar a imagem e a memória
dos resistentes ao conceito de criminoso motivado pela pura e simples selvageria, deixando-se
de registrar a riqueza cultural dessa etnia. Contudo, os fatos inerentes à emergência étnica dos
Muras revelam que, após anos de discriminação, essa resistência não se esgotou e foi
suficiente um movimento sócio-histórico articulado em torno da consolidação da sua
territorialidade para que essa resistência se propagasse em outros níveis da existência
sociocultural e econômica.
A presente pesquisa constatou, através do estudo de caso da Aldeia, que o povo
Mura possui um modo de viver semelhante aos dos caboclos amazônicos, vivendo
essencialmente da produção agropecuária em escala familiar. Contudo, há distinções
presentes nos usos e costumes associados à organização sócio-política da vida comunitária,
especialmente no tocante aos aspectos religiosos e econômicos. Essas especificidades devem-
se às heranças culturais que demarcam a etnicidade e identidade cultural Mura e, atualmente,
são referentes da sua emergência étnica, um modo de diferenciação e auto-afirmação.
Vale ressaltar que os resultados do presente estudo são parciais e específicos,
permanecendo a necessidade de ampliar os estudos etnográficos através de modelos que
integrem aspectos socioculturais e econômicos com a finalidade de se reunirem mais dados
relativos às diversas aldeias. Esse exercício deve permitir que sejam elaboradas informações
mais próximas da realidade do povo Mura em Autazes de modo que se possam propor
generalizações consistentes. Entretanto, esse processo deve considerar a diversidade de
trajetórias e inovações institucionais que vêm ocorrendo no processo de emergência étnica e
que diferenciam a trajetória dessa etnia das demais e, simultaneamente, seguem os padrões
comuns à todas as etnias.
Referências
AMAZONAS, Lourenço da Silva Araújo e. Dicionário topográfico, histórico, descrito do
Alto Amazonas. Manaus: Grafima, 1984.
BRANCO, Samuel Murgel. O desafio amazônico. São Paulo: Moderna, 1989.
CALLADA. Manuel. Uma introdução a história do Amazonas. Manaus: Objetivo, 1999.
CARVALHO, João Renor F. de. As guerras justas e os autos de devassa contra os índios
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14
DANIEL, João. Tesouro descoberto no rio Amazonas. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional,
1975.
GALVÃO, Eduardo Enéas Gustavo. Munduruku. Revista Brasil Indígena. Brasília, DF, ano
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FERNANDES, Márcio. A etinicidade Mura. Mimeo.
KROEMER, Gunter. Cuxiuara, o Purus dos indígenas. São Paulo: Loyola. 1985.
LOUREIRO, Antonio. Amazônia:1000 anos. Manaus: 1982.
PREZIA, Benedito, HOOMAERT, Eduardo. Brasil indígena: 500 anos de resistência. São
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RICARDO, Carlos Alberto (ed.). Povos indígenas do Brasil: 1991 – 1995. São Paulo:
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SOUZA, Márcio. Breve história da Amazônia. São Paulo: Marco Zero, 1994.
TREECE, David H. Introdução crítica à Muhraida. Anais da Biblioteca Nacional. Rio de
Janeiro, v.109, p. 205-275, 1989.
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  • 1. ASPECTOS ÉTNICOS E SOCIOCULTURAIS DO POVO MURA NA MICRORREGIÃO DE MANAUS (AM) Sueuda Rebelo Cavalcante1 Jesse Rodrigues dos Santos2 Resumo O presente texto resulta de breves reflexões sobre a sociocultura e a economia de uma Aldeia Mura localizada no Município de Autazes. O objetivo do trabalho é reunir evidências que possam estar relacionadas à “emergência étnica” dos Muras. Após a revisão de partes da escassa literatura que trata de temas relacionados aos Muras, realizaram-se incursões ao campo, especificamente, na Aldeia do Lago da Josefa. Naquele lugar observou-se, através de entrevistas e da permanência no lugar, a organização sócio-política da Aldeia e suas práticas econômicas. Os resultados mostraram que há distinções marcantes no que diz respeito à organização sócio-política, mas, quanto às práticas econômicas há grandes similiaridades com os caboclos interioranos. Conclui-se que são necessários esforços para ampliar os estudos a fim de coletar dados sobre as demais aldeias a fim de se produzirem informações que possibilitem uma compreensão mais genérica sobre os processos de mudança sociocultural e econômica vivenciados pelos Muras de Autazes. Palavras-Chave: Muras; Autazes; Socioeconomia; Mudança sociocultural. 1 Introdução A microrregião de Manaus é composta por sete municípios3 . Apesar de a presença indígena ser freqüente nos municípios de Careiro e de Autazes, é neste ultimo que se concentram diversas comunidades camponesas constituídas por elementos da etnia Mura. Essas comunidades compõem o Povo Mura presente na microrregião de Manaus, cuja história está associada à severa resistência contra o colonizador português que ocupou a Amazônia desde o século XVII. Essa resistência implicou num grande esforço histórico para a criminalização dessa resistência e, ainda, para afirmar que o povo Mura havia se dispersado e até extinto. Contudo, os fatos recentes evidenciam que essa estratégia não teve êxito. A contenda histórica resultou num sangrento genocídio que ficou registrado no poema épico “A Muhuraida”, de Henrique João Wilkens, como a “[...] conversão e reconciliação do gentio Mura”. O mesmo deu-se no período da Cabanagem, quando novamente o Povo Mura foi atingido pelo prolongamento dos conflitos na calha dos rios Amazonas e Madeira. Ao longo da ocupação sistemática da região do Centro Amazônico, o 1 Graduada em Biblioteconomia pela Universidade Federal do Amazonas (UFA) Pós-graduada em Desenvolvimento Sustentável na Amazônia pela Faculdade Salesiana Dom Bosco. E-mail: surebelo@gmail.com 2 Economista. Doutorando em Desenvolvimento Sustentável do Trópico Úmido pelo Núcleo de Altos Estudos Amazônico da Universidade Federal do Pará. Professor da Faculdade Salesiana Dom Bosco. E-mail: jesse.edsa@gmail.com. 3 Manaus, a capital do Amazonas e mais: Iranduba, Careiro da Várzea, Careiro, Manaquiri, Autazes e Manacapuru. 1
  • 2. povo Mura permaneceu presente, organizados em comunidades, mas não assumindo sua identidade étnica, ao contrário apresentando-se como caboclos. Assim, facilmente, confundiam-se com camponeses-caboclos ribeirinhos. Entretanto, desde os anos de 1980 os povos indígenas do Amazonas passaram a organizar-se e experimentar resgatar sua identidade étnica. O mesmo se deu com o Povo Mura (PREZIA; HOOMAERT, 2000; GALVÃO, 2002). Neste trabalho, verificaram-se aspectos desse movimento, considerando os aspectos socioculturais relativos à sua organização social e econômica, vinculado ao ecossistema em que habitam. Observou-se uma organização civil ascendente entre as comunidades, principalmente, no setor da educação indígena. A economia e a organização sócio-espacial assemelham-se grandemente à dos camponeses em geral, baseando-se na auto- sustentação e numa integração parcial com os mercados e comunidades locais. Conclui-se que o relativo sucesso tanto na persistência da presença do Povo Mura na calha do rio Madeira, quanto na sua (re)organização civil decorre dos laços culturais que foram preservados em função da identidade étnica. Procura-se mostrar com esse trabalho o modo como membros da etnia Mura estão valorizando a tradicional agricultura familiar, que se desenvolve em pequenas propriedades rurais, onde todas as famílias em regime de mutirão são responsáveis por todo processo produtivo. São apresentadas evidências de um processo de afirmação sociocultural e de organização socioeconômica que envolve aspectos religiosos e econômicos presentes tanto na gestão de determinadas organizações comunitárias quanto na organização do uso da força de trabalho familiar e comunitária. Assim, o presente estudo propõe identificar a atividade econômica da Aldeia Lago da Josefa, como as técnicas utilizadas no plantio das roças e conhecer o potencial de comercialização dos produtos gerados na aldeia; simultaneamente, discutem-se os processos socioculturais em curso, através da observação do formato e ordenamento das suas organizações. Ao final, propõem-se conclusões parciais sobre a relação entre essas evidências específicas e os processos mais gerais que dizem respeito às mudanças que consolidam a auto-afirmação étnica do povo Mura. 2 Aspectos da trajetória dos Mura Conforme Loureiro (1982), originalmente, os Mura denominavam-se buhura, burua ou bururubus, e diziam-se oriundos do Peru, usavam e utilizavam o ipadu ou coca, que lhes permitia serem considerados grandes canoeiros e guerreiros temidos. Contudo, na história formal, os Mura tem uma historia marcada por registro tendenciosos e contraditórios 2
  • 3. (BRANCO, 1989; CALLADA, 1999). Afirmações existentes nas crônicas setecentistas sobre a origem dos Muras procuravam apresentá-los de modo mais hostil: A nação Mura também tem muita especialidade entre as mais. É gente sem assento, nem persistência, e sempre anda a corso, ora aqui, ora ali; e tem muita parte do Rio Madeira até o Rio Purus por habitação. Não tem povoações algumas com formalidades, mas como gente de campanha, sempre anda de levante, e ordinariamente em guerras (DANIEL, 1975:264). Os estudos mais recentes oferecem uma visão mais crítica e esclarecedora sobre a população indígena conhecida como Mura, sem, contudo, distanciarem da visão tendenciosa inerente às narrativas tradicionais. Nesse sentido Treece (1989, p. 212) oferece dados mais precisos sobre a territorialidade Mura: Os Mura, ou Murá, nome dado por tribos vizinhas aos índios que a si mesmos se chamavam Muhuraen, habitavam segundo os primeiros registros a margem direita do rio Madeira em 1714. Eram conhecidos por sua hostilidade para com a missão jesuíta de Abacaxis, fundada acima da foz do Jamari por volta de 1723 e trasladada depois rio abaixo (TREECE, 1989, p. 212). Entretanto, é fácil perceber que os juízos de valor persistem na adjetivação proposta por Treece (1989). Assim, apesar das divergências de informações, existem alguns pontos que são comuns à grande maioria dos escritos. Entre tais pontos consensuais, está a possibilidade da origem peruana desse grupo e a sua localização no Rio Madeira, que se constituiria como seu território originário. Outro consenso é quanto à sua hostilidade à colonização dos seus territórios e a criminalização sistemática dessa resistência, induzindo um processo discriminatório contra os Mura. Embora não fossem nômades, não há evidências de que os Mura chegaram a construir grandes aldeamentos. Contentavam-se com abrigos de construção sumária e praticamente habitavam suas canoas, as quais manejavam com habilidade. Bastante sóbrios em suas necessidades, viviam basicamente da pesca, e de esparsas hortas de mandioca. Nos combates, usavam técnicas de emboscadas e de incursões rápidas. Por não fixarem ao terreno, as duras campanhas empreendidas pêlos portugueses, com o fim de limpar as calhas dos rios de suas ameaças, não surtiam efeito (PREZIA; HOOMAERT, 2000; AMAZONAS, 1984). Como conseqüência, durante os Séculos XVII e XVIII, os Mura provocaram grandes prejuízos ao comércio, pois atacavam principalmente as embarcações que transportavam as especiarias e drogas do sertão. Sempre foram perseguidos e discriminados pelos coloniais, que os acusavam de piratarias nos rios. Existem indícios de que participaram da cabanagem ao lado dos cabanos e foram responsáveis pela morte de Ambrósio Ayres, um dos líderes mais violentos das forças oficiais. Pagaram um preço alto por esta ousadia, calcula-se que cerca de vinte mil Mura foram mortos, acabaram por enfraquecê-los, sendo 3
  • 4. que, em meados do Século XIX, já haviam perdido todo o poderio (PREZIA; HOOMAERT, 2000; LOUREIRO, 1982; CARVALHO, 1977) Figura 01: Retrato de um indivíduo Mura. Fonte: Museu do Índio. Segundo Souza (1994), os Mura continuam no mesmo lugar, numa demonstração de que nunca se renderam ou foram derrotados. Esse autor acredita que nenhum dos grandes grupos indígenas da Amazônia envolvidos na Cabanagem foi mais penalizado que os Mura, haja vista os esforços contínuos de dizimá-los e de expulsá-los das suas praias e lagos tradicionais. Conforme Fernandes (mimeo.): Como conseqüências do intenso e violento contato com as frentes de expansão nos séculos XVIII e XIX, e do desastroso direcionamento dado a questão indígena pelo Estado brasileiro no século XX, resulta uma situação em que os Mura foram obrigados a se submeter aos trabalhos nas fazendas como mão-de-obra semi- escravizada, abandonando seu modo de vida tradicional. A partir dai o que houve foi um acelerado processo de decadência física e cultural, colaborando para a construção de um quadro de carência alimentar e difusão de bebidas alcoólicas, causando-lhes prejuízos incalculáveis. Esse aspecto da trajetória do Povo Mura, na visão de Fernandes produziu um “vazio etnográfico” que foi superado com a emergência de movimentos fortalecidos pelos aspectos étnicos na luta pela demarcação das terras indígenas – ver Figura 02 para identificar as TI localizadas na Microrregião de Manaus. No final da década de 80 do século passado os Mura experimentam uma modificação na perspectiva negativa que configurava o panorama do contato. Através de um processo que podemos chamar de “emergência étnica” conseguem ganhar notoriedade pública, o que viabiliza seu fortalecimento cultural e político, fato ligado à luta pela demarcação da T. I. Pantaleão que estava sendo ocupada por não índios (FERNANDES, mimeo.) Esse processo social culminou na fundação em 1990 do Conselho Indígena Mura (CIM) sediado em Autazes e com a missão de assegurar os direitos constitucionais dos Muras e fortalecer a sua autodeterminação enquanto grupo étnico. Por outro lado, ficou estabelecida 4
  • 5. uma territorialidade Mura, especialmente, no Município de Autazes, constituindo a base territorial para a organização política que se desdobra em ações de capacitação tecnológica e educacional. Assim, pode-se tomar a luta social pelo reconhecimento das terras indígenas como um referente sócio-histórico que impulsionou e sustentou outras formas de luta em outros campos da existência social. Figura 02: Terras Indígenas nos municípios do Careiro e Autazes. Fonte: Instituto Socioambiental. Por outro lado, constituiu-se, também, uma emergência institucional em moldes que permitiram a inserção no modelo de sociedade civil a partir de vínculos socioculturais referenciados na etnia enquanto elemento comum. Contudo, no campo econômico, as distinções caminham a passos mais lentos, sendo ainda preservados modos de produção que em muito se confundem com as populações camponesas-caboclas. Esse fato, entretanto, não tem impedido o auto-reconhecimento da condição indígena que se deixa transparecer tanto nos caracteres físicos como nas conversas informais sobre a procedência das famílias. 3 A Área de Estudo A coleta de dados foi realizada na Terra Indígena Lago da Josefa, que fica a 36 km da sede do Município de Autazes, aproximadamente nas coordenadas S 03º54”; W 59º 24” e S 03º36”; W 59º00”. É uma localidade próxima a áreas urbanas dos municípios de 5
  • 6. Autazes e Nova Olinda e caracterizada pela ocorrência de diversos corpos d´água como igarapés e lagos entre os quais se destacam o Lago da Josefa e o Rio Madeira. O acesso a esse lugar pode é possível através de ramais originários da sede do município de Autazes ou por embarcações familiares movidas por motores de rabeta4 . Os deslocamentos, de fato, dependendo da época do ano – estação de cheia ou seca – combinam movimentações integradas entre igarapés e ramais. Figura 03: Área de Estudos Fonte: Inpe/Deter, 2006. O grupo indígena Mura localizado na aldeia Lago da Josefa, apresenta grande riqueza em sua fauna e flora, mantendo mais de 70% de suas terras distribuídas entre matas virgens e capoeiras em diversos estágios. A terra indígena de maneira geral não sofreu impactos ambientais significativos, apresentando características de preservação e uso moderado dos solos e recursos pesqueiros. Contudo, esse território tem sofrido sérios problemas com invasões de pescadores, caçadores e madeireiros, que apesar das políticas de demarcação, insistem em infringir as leis ambientais e constitucionais relativas aos direitos de exclusivo usufruto do índio, em relação às riquezas naturais. 4 Métodos e técnicas Procurou-se mostrar com esse trabalho, o modo como os membros da etnia Mura estão inseridos na socioeconomia rural do município de Autazes. Nesse sentido, o estudo deteve-se nos modos tradicionais de produção agrícola familiar e comunal, que se desenvolve 4 Forma peculiar de transporte que consiste na adaptação de um motor à popa a uma canoa de madeira de modo que ativa um longo eixo à extremidade do qual uma hélice girando, impulsiona a embarcação. Devido ao seu preço acessível – entre R$ 1.200,00 e 700,00 – substitui o motor de popa na preferência dos ribeirinhos e otimiza sua capacidade de deslocamento. 6
  • 7. em pequenas propriedades rurais. Enfocaram-se os modos de gestão da divisão social do trabalho evidentes através das funções específicas que foram identificadas desde um mapeamento da atividade econômica da Aldeia Indígena do Lago da Josefa5 – doravante apenas Aldeia. Além, desses aspectos, registraram-se as técnicas utilizadas no plantio das roças e efetuou-se o reconhecimento do potencial de comercialização dos produtos gerados na aldeia. Os dados coletados obedecem através de entrevistas semi-estruturadas com lideranças Mura da aldeia, moradores antigos da aldeia, jovens e professores Mura, todos residentes na Aldeia. 5 A sociocultura e a economia da Aldeia Indígena do Lago da Josefa Em geral a Aldeia alinha-se com as organizações civis representantes da etnia Mura em Autazes, a saber: a Organização dos Professores Indígenas Mura (OPIM); a Organização dos Agentes de Saúde Indígenas Mura (OASIM); a Organização das Mulheres Indígenas Mura (OMIM) e a Organização dos Estudantes Indígenas Mura (OEIM). Um fato que merece registro na organização dos Mura é o interesse que têm pela melhoria da educação escolar. A escola existente na Aldeia surgiu por iniciativa da comunidade, sendo que os professores que lecionam atualmente nas aldeias são todos indígenas. A partir das narrativas dos moradores mais antigos é possível reconstituir a condição inicial da Aldeia. As casas eram construídas todas de pau roliço6 cobertas e cercadas de palha, a maioria não era assoalhada. Quando assoalhadas, o assoalho era de Paxiúba7 , as casas ficavam perto uma das outras, não existia rua, era só caminho que usavam para ir de uma casa para outra. No princípio da Aldeia, os interlocutores estimaram a existência de trinta e duas famílias, se comunicavam através do grito, assopro de mão, bater na Sapupema8 da árvore com cassetete ou soprar buzina. A população, nos anos da pesquisa 2005/2006, era de 375 pessoas cujas habitações estavam localizadas de frente para os lagos e, consideravelmente, distantes das áreas de plantio. 5 Segundo informações dos moradores mais antigos, o Lago da Josefa recebeu esse nome em virtude de uma velha índia que se chamava Josefa, sendo uma das primeiras moradoras da Aldeia. Apesar do seu auto- reconhecimento, a Aldeia com esse nome não consta nos levantamentos do Instituto Socioambiental apresentados em Ricardo (1996). 6 O caule de uma árvore de pequeno porte. 7 Palmeira de 10 a 15 metros de altura, de madeira escura e fibrosa usada para cercar e assoalhar casas. 8 Raízes tabulares de árvore de grande porte. 7
  • 8. Tabela 01: Distribuição da população da Aldeia em 2004. Fonte: Dados fornecidos pela liderança da Aldeia. Quanto ao agrupamento das residências, distinguem-se dois lugares: a) A avenida com 40 casas, que é chamada de centro principal da Aldeia, fica concentrado todo o movimento da população, e grande parte das casas, a padaria e o comércio pequeno. Em seu total, a Aldeia possui uma quantidade de 46 (quarenta e seis) casas, das quais 16 (dezesseis) são cobertas e cercadas de palha, 3 (três) são construídas de madeira com piso em alvenaria e cercada de tábuas e cobertas de alumínio e 27 (vinte e sete) casas são cercadas e assoalhadas de tábuas e cobertas com telhas de alumínio. Figura 04: Vista Frontal da Aldeia. Fonte: Sueda Rebelo, agosto/2005. b) A margem esquerda do lago da Josefa está localizada a Colônia Terra Preta, local no interior da área, onde moram 150 (cento e cinqüenta) famílias. Esta área denominada por Colônia Terra Preta é destinada exclusivamente para a produção agrícola. Contudo, é usual a ocorrência de uma grande distância entre os roçados e a residência9 . A Aldeia recentemente teve acesso à energia elétrica o que permitiu a aquisição de vários eletrodomésticos e novos formatos de construção, utilizando-se a alvenaria combinada com os modos e estruturas ancestrais. Note-se tal peculiaridade na imagem abaixo onde o uso da palha nas paredes combina-se com a alvenaria, demonstrando traços peculiares da transição sociocultural vivenciada na Aldeia. A presença da palha se justifica pelo conforto 9 Esse distanciamento explica-se pela exploração intensa das terras próximas à residência o que implicou no seu desgaste e na necessidade de procurar terras mais distantes enquanto as áreas iniciais tornaram-se capoeiras. 8
  • 9. climático no interior do ambiente; enquanto a alvenaria assegura a robustez e o valor econômico agregados ao imóvel. Figura 05: Casa da Aldeia Fonte: Sueuda Rebelo, 2005. Segundo entrevistas com moradores antigos, o costume praticado pelos antigos era dormir na beira do fogo deitado em cima da esteira. Dormia-se cedo para acordar cedo. A família costumava conversar sobre os trabalhos realizados no dia e os que realizariam no dia seguinte. Sentavam-se todos os velhos, compadres e comadres de cócoras ao redor do fogo para contar historia, dizer versos ou trocar idéias com os parentes e vizinhos mais próximos. Os costumes ancestrais são relembrados com certa facilidade nas entrevistas com os mais antigos. Aqui apresentamos dois costumes que revelam uma mística e uma regra de matrimônio: a) quando ocorria eclipse na lua, os velhos mandavam que batesse na lata, no gambá10 , tamborinho11 , e “socasse o pilão”12 até que a lua aparecesse, pois tinham medo que a lua não tornasse mais a sua claridade; b) esse costume praticado até os dias atuais, reza que se a mulher Mura casar com homem de outra etnia, passa a morar com o marido fora da aldeia; caso o homem Mura se case com mulher diferente de sua etnia, ela passa a morar com ele na aldeia. Cabe ressaltar, que, devido à proximidade de áreas urbanas, emergiu influência cultural – religiosa – na aldeia, produzindo mudanças nos costumes. O que mais se destaca é a presença de duas igrejas, uma Adventista do 7° Dia e uma Casa de Oração da Assembléia de Deus. A Igreja do 7° Dia é dirigida por diretores Mura.. Os cultos são realizados nos dias de sábado e domingo pela manhã e também à noite. A Casa de Oração Assembléia de Deus têm dirigentes, tesoureiro, secretário e professores da escola bíblica dominical. Todos são Muras. 10 Espécies variadas de pequenos mamíferos roedores, identificados pelos moradores. 11 Instrumento típico de percursão. 12 Instrumento utilizado para triturar alimentos sólidos, especialmente grãos e sementes. 9
  • 10. Esses aspectos socioculturais representam o grau de complexidade dos processos vivenciados pelos Muras. Note-se como o que Fernandes chamou de “emergência étnica” combina-se, através, nesse caso, com o avanço das igrejas evangélicas que, por sua vez, revelam uma forte plasticidade e, assim, imiscuem-se nos processos de reconstrução da etnia Mura. Interpelados sobre tal problemática, os Muras não vêem contradições, mas pelo contrário, percebem nesse processo uma vantagem em termos de reconhecimento da sua importância social frente aos “brancos”, através da sua aceitação no âmbito das congregações evangélicas. Desse modo, sua trajetória não apresenta elementos de passividade, mas de inserções estratégias em organizações da “sociedade civil branca” que lhes abre acessos sociais e políticos importantes na sociedade envolvente. A produção agrícola do povo Mura da aldeia da Josefa, baseia-se em métodos tradicionais. Os produtos principais são o roçado de Mandioca, a cultura da Melancia e do Feijão de metro. Em seguida, multiplicam-se os “canteiros” domésticos associados aos pomares domésticos – chamados de também de “sítios” – nos quais se cultivam Maxixe, Pimenta Doce e Ardosa, Jerimum, Batata Doce, Cará, Banana, Feijão, Macaxeira, Laranja, Abacaxi, Limão, Lima, Graviola, Jaca, Cacau, Tangerina, Abiu, Manga, Jambo, Cupuaçu, Maracujá, Caju e Ingá. O trabalho é realizado através de implementos simples como o terçado, o machado, a enxada, a moto-serra, além do típico motor para cevar a mandioca e os demais elementos que constituem o processo de fabricação da farinha13 . Tabela 02: Produção agrícola da Aldeia Fonte: Pesquisa de campo, 2005. A Tabela 02 e as Figuras 06 e 07 apresentam alguns aspectos da economia agrícola da Aldeia. O primeiro dado apresenta uma predominância nos investimentos em culturas temporárias que, no caso dos roçados, canteiros e sítios e asseguram a produção para o auto-sustento familiar e para pequenas e eventuais trocas por mercadorias industrializadas e combustíveis. As figuras apresentam aspectos do cultivo da Mandioca e da produção de 13 A Casa de Farinha constitui-se como uma unidade de produção dotada de equipamentos característicos. Entre tantos os mais comuns são os cochos para a cevagem dos tubérculos e depósito da massa e da farinha nas suas diversas fases de preparo; a prensa – ou o Tipiti – para retira o excesso de água; as peneiras; a bancada e o motor onde os tubérculos são triturados; e, finalmente, o forno onde se torra a farinha com o uso do remo de madeira para mexer a massa. O produto final é acondicionado em sacas de 70 litros – ou 45 kg – o em paneiros de cipó forrados com folhas de bananeira secas. 10
  • 11. farinha. Os roçados são de propriedade e cultivo familiar enquanto as casas de farinha são de uso coletivo, havendo trocas de roçados em pé e o trabalho compartilhado na casa de farinha, onde o trabalho feminino consiste na raspagem e o masculino na torragem da farinha. Assim, evidenciam-se a concentração dos investimentos em culturas temporárias e as formas de emprego do trabalho, tanto na sua organização quanto na sua divisão entre os gêneros. Figura 06: Aspecto do roçado cultivado na Aldeia Fonte: Sueuda Rebelo, 2005. Figura 07: Aspecto da produção de farinha na Aldeias Fonte: Sueuda Rebelo, 2005. Na Aldeia existem campos para criação de animais, como boi, carneiros, porcos, patos e galinhas. No campo para criação de bovinos, encontra-se uma grande quantidade de pés de Babaçu, que são muito aproveitados pelos moradores da aldeia. Uma parte da produção é para o consumo dos próprios moradores da aldeia, outra parte é para ser comercializada, pois os Mura não dependem apenas de seus produtos para sobreviverem, consomem outros tipos de alimentos como açúcar, leite, café, arroz, feijão, macarrão, sal, óleo, sabão, fósforo e 11
  • 12. outros produtos. Os produtos são vendidos a dinheiro ou por meio da troca de mercadorias industrializadas. Alguns desses produtos são vendidos na própria aldeia para o abastecimento do pequeno comércio que existe, a maior parte é vendida na sede do Município de Autazes e Novo Olinda do Norte. O trabalho é desenvolvido de forma individual e coletiva, trabalham juntos ajudando uma as outras até todos concluírem seus trabalhos. Para o plantio do roçado é feito todo um planejamento, os velhos, adultos, jovens, adolescentes e crianças, todos participam, o qual é chamado de ajuri. Os idosos cortam as manivas14 , os adultos e os jovens cavam a terra com a enxada, as mulheres plantam as manivas e os espalhadores são os adolescentes e as crianças. Duas ou três pessoas são escolhidas para encher água e preparar o chibé puranga15 para os trabalhadores. São escolhidas três mulheres para ficar em casa e preparar o almoço para as pessoas que estão no trabalho. Esse tipo de ajuri de plantio de roça é realizado geralmente no período de agosto a dezembro. Foram observados que o cultivo depende basicamente do trabalho braçal, com implementos manuais simples. Figura 08: Família retornando de um dia de trabalho na roça. Fonte: Sueda Rebelo, 2005. Os meios de transporte adequam-se às necessidades dos moradores e às mudanças no ecossistema. Os meios de transportes terrestres utilizados na Aldeia são a bicicleta, o caminhão, o ônibus e a caçamba, para os deslocamentos através dos ramais e estradas. Os transportes fluviais mais usados são a canoa movida pelo motor-rabeta16 , a voadeira17 e os barcos de recreio18 . Na época da cheia os transportes mais utilizados são os fluviais, através de 14 Partes do caule da Mandioca a partir das quais se desenvolvem os novos pés. 15 Farinha de Mandioca misturada com água. 16 Esse conjunto é formado por uma pequena canoa de madeira com até 10 m de cumprimento ao qual se adapta na popa um pequeno motor de 5 ou 6 hp à gasolina. 17 Barco de alumínio com 10 ou 12 m de cumprimento movido por motor de popa. 18 Embarcações de médio e grande porte que fazem os deslocamentos de pessoas e cargas em rotas regulares. 12
  • 13. canoa, motores rabetas e barco de recreio. Na época da seca são os terrestres, através de caminhões, ônibus, bicicletas e cavalos. Figura 09: Aspecto de um pequeno porto familiar e sua canoa. Fonte: Sueda Rebelo, 2005. Os dados apresentados neste tópico evidenciam o caráter similar, em termos socioculturais e econômicos, da vida na Aldeia ao modo de vida tipicamente camponês. Essa similaridade, no entanto, encontrou seu limite no momento em que emergiu a luta social pelo resgate da identidade étnica. Desde então, não obstante a permanência das similitudes econômicas, emergiu um movimento de articulação política com a finalidade de estabelecer diferenciais nas atividades econômicas e, também, visando ao controle das instituições educativas e religiosas. Tem-se, portanto, evidências de mudanças que se pode tratar como inovações institucionais que indicam uma mudança cultural evolucionária orientada por fatores socioculturais cujas implicações tendem nos níveis econômicos e organizacionais do povo Mura de Autazes. 5 Considerações Finais Em princípio, na visão contemporânea, os Mura eram vistos e reconhecidos como grandes vilões da região do Rio Madeira; indivíduos vagabundos que moravam nas canoas e assaltavam tanto embarcações quanto as plantações dos povos “civilizados”. Esses conceitos foram difundidos na sociedade amazonense ao longo da sua formação sócio-histórica, reproduzindo uma imagem preconceituosa de um povo que lutou bravamente pela sua sobrevivência e tornou-se ícone da resistência radical contra a colonização européia na região do Rio Madeira e adjacências. Foram os Muras que mais se destacaram, nas narrativas 13
  • 14. históricas, entre os grupos tribais, pelo fato de evitar contato com a civilização branca e rechaçar qualquer tentativa de invasão de seus territórios. Essa resistência ao colono nasceu de uma profunda aversão a limitações da liberdade, tais como os resgates, os descimentos, os aldeamentos e o trabalho das missões religiosas. Uma das estratégias de negar essa resistência foi associar a imagem e a memória dos resistentes ao conceito de criminoso motivado pela pura e simples selvageria, deixando-se de registrar a riqueza cultural dessa etnia. Contudo, os fatos inerentes à emergência étnica dos Muras revelam que, após anos de discriminação, essa resistência não se esgotou e foi suficiente um movimento sócio-histórico articulado em torno da consolidação da sua territorialidade para que essa resistência se propagasse em outros níveis da existência sociocultural e econômica. A presente pesquisa constatou, através do estudo de caso da Aldeia, que o povo Mura possui um modo de viver semelhante aos dos caboclos amazônicos, vivendo essencialmente da produção agropecuária em escala familiar. Contudo, há distinções presentes nos usos e costumes associados à organização sócio-política da vida comunitária, especialmente no tocante aos aspectos religiosos e econômicos. Essas especificidades devem- se às heranças culturais que demarcam a etnicidade e identidade cultural Mura e, atualmente, são referentes da sua emergência étnica, um modo de diferenciação e auto-afirmação. Vale ressaltar que os resultados do presente estudo são parciais e específicos, permanecendo a necessidade de ampliar os estudos etnográficos através de modelos que integrem aspectos socioculturais e econômicos com a finalidade de se reunirem mais dados relativos às diversas aldeias. Esse exercício deve permitir que sejam elaboradas informações mais próximas da realidade do povo Mura em Autazes de modo que se possam propor generalizações consistentes. Entretanto, esse processo deve considerar a diversidade de trajetórias e inovações institucionais que vêm ocorrendo no processo de emergência étnica e que diferenciam a trajetória dessa etnia das demais e, simultaneamente, seguem os padrões comuns à todas as etnias. Referências AMAZONAS, Lourenço da Silva Araújo e. Dicionário topográfico, histórico, descrito do Alto Amazonas. Manaus: Grafima, 1984. BRANCO, Samuel Murgel. O desafio amazônico. São Paulo: Moderna, 1989. CALLADA. Manuel. Uma introdução a história do Amazonas. Manaus: Objetivo, 1999. CARVALHO, João Renor F. de. As guerras justas e os autos de devassa contra os índios da Amazônia no período colonial. São Paulo: Ética, 1977. 14
  • 15. DANIEL, João. Tesouro descoberto no rio Amazonas. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, 1975. GALVÃO, Eduardo Enéas Gustavo. Munduruku. Revista Brasil Indígena. Brasília, DF, ano 2, n. 9, p. 1-9, mar/abr, 2002. FERNANDES, Márcio. A etinicidade Mura. Mimeo. KROEMER, Gunter. Cuxiuara, o Purus dos indígenas. São Paulo: Loyola. 1985. LOUREIRO, Antonio. Amazônia:1000 anos. Manaus: 1982. PREZIA, Benedito, HOOMAERT, Eduardo. Brasil indígena: 500 anos de resistência. São Paulo: FTD, 2000. RICARDO, Carlos Alberto (ed.). Povos indígenas do Brasil: 1991 – 1995. São Paulo: Instituto Socioambiental, 1996. SOUZA, Márcio. Breve história da Amazônia. São Paulo: Marco Zero, 1994. TREECE, David H. Introdução crítica à Muhraida. Anais da Biblioteca Nacional. Rio de Janeiro, v.109, p. 205-275, 1989. Sites consultados www.socioambiental.org.br 15