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A RAINHA BRANCA
PHILIPPA GREGORY
Badana da capa:
PHILIPPA GREGORY nasceu no Quénia em 1954, mas mudou-se
com a família para Bristol, na Inglaterra, quando tinha dois anos.
Frequentou a Universidade de Sussex, onde um curso de Iniciação à
História viria a mudar a sua vida.
Até hoje já publicou livros - muitos deles bestsellers. Philippa
Gregory é doutorada em Literatura do Século XVII pela Universidade de
Edimburgo e os seus romances reflectem uma pesquisa e um pormenor
histórico meticulosos. O seu período favorito da História é a época Tudor,
sobre a qual já escreveu vários romances, alguns dos quais foram adaptados
pela BBC a dramas históricos.
Títulos da autora publicados pela Civilização Editora:
A Espia da Rainha, Janeiro 2006
Catarina de Aragão, Outubro 2006
O Amante da Rainha, Março 2007
A Herança Bolena, Novembro 2007
Duas Irmãs, Um Rei, Janeiro 2008
A Outra Rainha, Fevereiro 2009
Capa © Liane Payne
Philippa Gregory
Civilização Editora
Título original: The White Queen
Copyright © 2009 Philippa Gregory
Esta edição só pode ser vendida em Portugal e nos países lusófonos
excluindo o Brasil.
Copyright da edição portuguesa © 2009 Civilização Editora
Todos os direitos reservados
Tradução: Maria Beatriz Sequeira
Revisão
Departamento Editorial da Civilização Editora
Adaptação da capa
Civilização Editora
Créditos fotográficos
Capa © Liane Payne
Fotografia © Jeff Cottenden
Design © Depto. Arte S&S/Rafaela Romaya
Pré-impressão, impressão e acabamento
CEM Artes Gráficas, Barcelos para Civilização Editora em Fevereiro
de 2010
ISBN 978-972-26-3012-2
Depósito Legal 302433/09
Civilização Editora
Rua Alberto Aires de Gouveia, 27 4050-023 Porto Tel.: 226 050 900
naraliarii/iliTaranpriitnra.nt
Para Anthony
Eduardo III (1312-1377)
Filhos de Eduardo III - Eduardo, O Príncipe Negro
João de Gaunt, (1.º Duque de Lencastre) (1340-1399)
Edmundo, Duque de Iorque (1341-1402)
Casa de LENCASTRE
João de Gaunt, 1º duque de Lencastre casou em primeiras núpcias
com Blanche de Lencastre; deste casamento nasceu Henrique IV (1367-
1413), que casou com Maria de Bohun (1369-1394), pais de Henrique V
(1386-1422) que casou com Catarina de Valois (1401-1437), pais de
Henrique VI (1421-. Após a morte de Henrique V Catarina de Valois casou
com Owen Tudor. Deste casamento nasceu Edmundo Tudor (1430).
Henrique VI casou com Margarida de Anjou em 1430.
João de Gaunt, 1º Duque de Lencastre Casou em terceiras núpcias
com Catarina Swynford; deste casamento nasceu João de Beaufort, Conde
de Somerset (1373-1410) pai de João Beaufort, Duque de Somerset (1404-
1444), pai de Margarida de Beaufort (1444-).
Casa de IORQUE
Do casamento de Edmundo, Duque de Iorque com Isabel de Castela
nasceu Ricardo, Conde de Cambridge (1373-1415), pai de Ricardo, Duque
de Iorque (1411-) que casou com Cecília Nevil e tiveram 3 filhos: Eduardo
IV (1442-), Jorge, Duque de Clarence (1449-) e Ricardo, Duque de
Gloucester (1552-)
Os Primos em guerra
As Casas de Iorque, Lencastre e Tudor na Primavera de
1464
Batalhas das guerras entre primos
Ano Localidade Vencedor
1455 St. Alban's Iorque
1459 Ludford Bridge
Lencastre
1459 Blore Heath Lencastre
1460 Northampton
Iorque
1460 Wakefield Lencastre
1461 St. Alban's Lencastre
1461 Mortimer's Cros s
Iorque
1461 Towton Iorque
1461 Ferrybridge Iorque
1464 Hedgeley Moor
Iorque
1464 Hexham Iorque
1470 Losecote Field
Iorque
1471 Tewkesbury Iorque
1471 Barnet Iorque
Na escuridão da floresta, o jovem cavaleiro podia ouvir o
esparrinhar da fonte, muito antes de conseguir ver o ténue luar reflectido
na superfície tranquila. Preparava-se para dar um passo em frente,
ansiando por mergulhar a cabeça, absorver a frescura, quando susteve a
respiração, ao vislumbrar algo escuro, movendo-se nas profundezas da
água. Havia uma sombra esverdeada no tanque fundo da fonte, algo
semelhante a um peixe enorme, algo parecido com o corpo de alguém que
se tivesse afogado. Depois moveu-se e pôs-se de pé, e ele viu,
assustadoramente despida, uma mulher que se banhava. A pele dela, ao
erguer-se, com a água a escorrer-lhe pelo corpo, era ainda mais pálida do
que o tanque de mármore branco, o cabelo negro molhado, escuro como
uma sombra.
Ela é Melusina, a deusa da água, e pode ser encontrada em fontes e
quedas-d’água escondidas em qualquer floresta da Cristandade, mesmo
naquelas que ficam tão distantes como a Grécia. Também se banha em
fontes mouriscas. Nos países do Norte, onde os lagos estão cobertos de
gelo e este estala quando ela se levanta, conhecem-na por outro nome. Um
homem pode amá-la, se mantiver o seu segredo e a deixar sozinha quando
deseja banhar-se, e ela pode retribuir-lhe esse amor até ele quebrar a sua
palavra, como os homens sempre fazem, e ela o arrastar para as
profundezas, com a sua cauda de peixe, e transformar o sangue infiel dele
em água.
A tragédia de Melusina, seja qual for a língua que a relate,
independentemente da melodia que a cante, é que um homem prometerá
sempre mais do que pode fazer a uma mulher que não é capaz de
compreender.
PRIMAVERA DE 1464
O meu pai é Sir Ricardo Woodville, o Barão Rivers, nobre inglês,
proprietário de terras e apoiante dos legítimos Reis da Inglaterra, a linha
dos Lencastre. A minha mãe descende dos Duques da Borgonha e, assim,
possui o sangue aquoso da deusa Melusina, que fundou a casa real da
família com o seu extasiado amante ducal, e ainda pode ser encontrada, por
vezes, em momentos de grande dificuldade, gritando um aviso sobre os
telhados de castelos, quando um filho e herdeiro está a morrer e a família
condenada ao fracasso. Ou, pelo menos, é o que dizem os que acreditam
em tais coisas.
Com esta minha ascendência contraditória, terra sólida inglesa e uma
deusa da água francesa, poderia esperar-se qualquer coisa de mim: uma
feiticeira ou uma rapariga normal. Há quem diga que sou ambas as coisas.
Mas hoje, quando penteio o meu cabelo com especial cuidado e o
componho sob o meu toucado mais alto, pego nas mãos dos meus dois
filhos órfãos de pai e sigo pela estrada que leva a Northampton, daria tudo
o que sou para ser, só desta vez, simplesmente irresistível.
Tenho de atrair a atenção de um homem jovem que vai a caminho de
mais uma batalha contra um inimigo que não pode ser derrotado. Talvez
nem sequer me veja. Não é provável que ele esteja com disposição para
pedintes ou namoricos. Tenho de suscitar a compaixão dele pela minha
posição, inspirar a compaixão dele pelas minhas necessidades e ficar
gravada na memória dele o tempo suficiente para que faça algo por ambas.
E este é um homem que tem mulheres bonitas a atirarem-se a ele todas as
noites da semana, e uma centena de pretendentes para cada posição que ele
possa oferecer.
É um usurpador e um tirano, meu inimigo e filho do meu inimigo,
mas eu estou muito para além de poder ser leal a alguém que não sejam os
meus filhos e eu mesma. O meu pai cavalgou para a batalha de Towton
para combater este homem que agora se autodenomina Rei da Inglaterra,
apesar de ser pouco mais do que um fanfarrão; e nunca vi um homem tão
destroçado como o meu pai, quando regressou a casa, de Towton, o seu
braço que segura a espada a manchar o casaco de sangue, o rosto pálido,
afirmando que este rapaz é um comandante de tal ordem como nunca
vimos, e que a nossa causa está perdida, e que todos ficamos sem esperança
enquanto ele viver. Vinte mil homens foram ceifados em Towton sob as
ordens deste rapaz; nunca ninguém vira tantas mortes na Inglaterra. O meu
pai disse que havia sido uma ceifa de membros da casa de Lencastre, não
uma batalha. O Rei legítimo e a sua mulher, a Rainha Margarida de Anjou,
fugiram para a Escócia, devastados pelas mortes.
Aqueles de nós que ficaram na Inglaterra não se renderam
prontamente. As batalhas prosseguiram, para resistir a este falso rei, este
rapaz de Iorque. O meu próprio marido foi morto a comandar a nossa
cavalaria, há apenas três anos, em St. Albans. E agora fiquei viúva, e todas
as terras e fortuna a que em tempos chamei minhas foram-me tiradas pela
minha sogra, com a boa vontade do vencedor, o chefe deste rei-menino, o
grande marionetista que se sabe ser o fazedor de reis: Ricardo Neville,
Conde de Warwick, que fez deste rapaz vaidoso um rei, agora com apenas
vinte e dois anos, e que transformará a Inglaterra num Inferno para aqueles
de nós que ainda defendem a Casa de Lencastre.
Existem partidários dos Iorque em todas as grandes casas da região,
agora, e todos os negócios ou lugares rentáveis estão na posse deles. O rei-
menino deles está no trono e os seus partidários compõem agora a nova
corte. Nós, os derrotados, somos indigentes nas nossas próprias casas e
estranhos na nossa própria região, o nosso rei, um exilado, a nossa rainha,
uma estrangeira vingativa que conspira com a nossa antiga inimiga, a
França. Temos de nos conformar com o tirano de Iorque, ao mesmo tempo
que rezamos para que Deus se volte contra ele e para que o nosso rei
legítimo varra O Sul com um exército, para ainda mais uma batalha.
Entretanto, como muitas mulheres com um marido morto e um pai
derrotado, tenho de recompor a minha vida como uma manta de retalhos.
Tenho de reconquistar a minha fortuna de algum modo, ainda que me
pareça que nenhum parente ou amigo possa abrir caminho para mim.
Somos todos conhecidos como traidores. Fomos perdoados, mas não somos
amados. Nenhum de nós detém qualquer poder. Terei de ser a minha
própria advogada e apresentar o meu caso a um rapaz que respeita tão
pouco a justiça que se atreveria a reunir um exército contra o seu próprio
primo: um rei ordenado. O que é que alguém poderá dizer a um selvagem
destes, que ele possa compreender?
Os meus filhos, Tomás, que tem nove anos, e Ricardo, que tem oito,
estão vestidos com as suas melhores roupas, o cabelo húmido e alisado, os
rostos brilhantes do sabão. Aperto-lhes bem as mãos enquanto eles
permanecem de cada um dos meus lados, porque eles são verdadeiros
rapazes e atraem a sujidade como por magia. Se os largar um segundo, um
vai arranhar os sapatos e o outro rasgar as meias, ambos conseguirão ficar
com folhas no cabelo e lama nas faces, e Tomás cairá, de certeza, ao rio.
Assim, ancorados pela minha mão forte, passam o peso de uma perna para
a outra, numa agonia de tédio, e só se endireitam quando digo:
- Chiu, estou a ouvir cavalos.
A princípio, soa como o bater da chuva, e depois, passados alguns
momentos, um estrondo como trovões. O tinido do arnês e o esvoaçar dos
estandartes, o tilintar das cotas de malha e o arquejar dos cavalos, o som, o
cheiro e o bramido de uma centena de cavalos, conduzidos a grande
velocidade, é avassalador e, apesar de eu estar determinada em destacar-me
e fazer com que parem, não consigo deixar de me encolher e recuar. Como
será enfrentar estes homens a cavalgarem na batalha com as lanças
estendidas diante de si, como um muro galopante de bordões? Como é que
algum homem poderia encar-lo?
Tomás vê a cabeça loira desprotegida no meio de toda a fúria e
ruído, e, como o rapaz que é, grita:
- Urra!
E, ao ouvir o grito da sua voz de soprano, vejo a cabeça do homem
voltar-se, e ele vê-me, bem como aos rapazes, e a sua mão agarra as rédeas
e grita:
- Alto!
O cavalo dele levanta-se sobre as patas traseiras, depois de sofrer um
puxão das rédeas para que se detivesse, e toda a cavalgada se move em
círculos e sobresta-se, praguejando por aquela paragem súbita, e depois,
abruptamente, tudo fica em silêncio e a poeira ondeia em nosso redor.
O cavalo dele resfolega, abana a cabeça, mas o cavaleiro é como
uma estátua sobre a garupa alta. Está a olhar para mim e eu para ele, e está
tudo tão silencioso que consigo ouvir um tordo nos ramos de um carvalho,
por cima de mim. Como ele canta! Meu Deus, canta como se fosse um
cântico de glória, a própria alegria transformada em som. Nunca tinha
ouvido um pássaro cantar assim, como se estivesse a cantar com alegria a
felicidade.
Dou um passo em frente, ainda a segurar as mãos dos meus filhos,
abro a boca para apresentar o meu caso, mas, nesse momento, nesse
momento crucial, fico sem palavras. Pratiquei bastante. Tinha um pequeno
discurso muito bem preparado, mas agora não tenho nada. E é quase como
se não precisasse de palavras. Limito-me a olhar para ele e espero que, de
algum modo, ele compreenda tudo - o meu receio do futuro e as minhas
esperanças para estes meus rapazes, a minha falta de dinheiro e a irritante
pena do meu pai, que faz com que viver debaixo do tecto dele seja tão
insuportável para mim, a frieza da minha cama à noite, e o meu desejo de
ter outro filho, a sensação de a minha vida ter terminado. Querido Deus, só
tenho vinte e sete anos, a minha causa foi derrotada, o meu pobre marido
está morto. Terei de ser uma das muitas pobres viúvas que irão passar o
resto dos seus dias junto da lareira de outrem, tentando ser uma boa
hóspede? Nunca irei voltar a ser beijada? Nunca voltarei a sentir alegria?
Nunca mais?
E o pássaro continua a cantar como se dissesse que a alegria é fácil,
para aqueles que a desejem.
Ele faz um gesto com a mão para o homem mais velho ao seu lado e
o homem resmunga uma ordem, os soldados voltam os cavalos para fora da
estrada e dirigem-se para debaixo da sombra das árvores. Mas o rei
desmonta, com um salto, do seu grande cavalo, deixa cair as rédeas, e
caminha na minha direcção e dos meus filhos. Sou uma mulher alta, mas
dou-lhe, aproximadamente, pelo ombro, ele deve ter bastante mais de um
metro e oitenta de altura. Os meus filhos esticam o pescoço para o ver: é
um gigante para eles. Tem o cabelo louro, olhos cinzentos, um rosto
bronzeado, aberto, sorridente, cheio de encanto, agradável na sua graça.
Este é um rei como nunca vimos antes na Inglaterra: é um homem que as
pessoas amarão, assim que o virem. E os seus olhos estão cravados no meu
rosto, como se eu guardasse um segredo que ele tem de saber, como se nos
conhecêssemos desde sempre, e sinto as minhas bochechas arderem, mas
não consigo desviar os olhos dele.
Neste mundo, uma mulher modesta baixa os olhos, mantém-nos
fixos nos chinelos; um pedinte baixa-se numa vénia e estende uma mão
suplicante. Mas eu mantenho-me de pé, estou chocada comigo mesma,
olhando-o fixamente, como um camponês ignorante, e apercebo-me de que
não consigo apartar os olhos dos dele, da sua boca sorridente, do seu olhar,
que arde na minha face.
- Quem é esta? - pergunta ele, ainda olhando para mim.
- Vossa Graça, esta é a minha mãe, Lady Isabel Grey - responde
educadamente o meu filho Tomás, e retira o boné, baixando-se, apoiado
num joelho.
Ricardo, do meu outro lado, também se ajoelha e murmura, como se
não pudesse ser ouvido:
- Este é o rei? A sério? É o homem mais alto que já vi na minha vida!
Eu baixo-me numa vénia, mas não consigo desviar o olhar. Em vez
disso, cravo os olhos nele, como uma mulher poderia olhar fixamente com
olhos ardentes para um homem que adora.
- Levantai-vos - diz ele. A sua voz é baixa, para que apenas eu a
ouça. - Haveis vindo para falar comigo?
- Preciso da vossa ajuda - digo. Mal consigo formar as palavras.
Sinto-me como se a poção de amor, em que a minha mãe ensopou o lenço
que ondeia do meu toucado, estivesse a exercer efeito em mim e não nele. -
Não consigo obter as terras do meu dote, as minhas arras, agora que
enviuvei - gaguejo diante do seu interesse sorridente. - Agora sou viúva.
Não tenho do que viver.
- Viúva?
- O meu marido era Sir John Grey. Morreu em St. Albans - afirmo. É
o mesmo que confessar a minha traição e a condenação dos meus filhos. O
rei reconhecerá o nome do comandante da cavalaria do seu inimigo. Mordo
o lábio. - O pai deles cumpriu o seu dever, tal como o concebia, Vossa
Graça: foi leal ao homem que ele considerava ser o rei. Os meus filhos
estão completamente inocentes.
- Ele deixou-vos estes dois filhos? - sorri para os meus rapazes.
- A melhor parte da minha fortuna - digo. - Este é o Ricardo e este é
o Tomás Grey.
Ele acena com a cabeça na direcção dos meus filhos, que levantam
os olhos para ele como se ele fosse uma espécie de cavalo de fina raça,
demasiado grande para eles afagarem, mas uma figura a quem prestar uma
admiração temerosa, e depois olha para mim.
- Tenho sede - afirma. - A vossa casa fica perto?
- Ficaríamos muito honrados... - olho de relance para o guarda que
cavalga com ele. Devia haver mais de uma centena deles. Ele ri-se.
- Eles podem seguir viagem - decide. - Hastings - o homem mais
velho volta-se e aguarda. - Vós ides prosseguindo para Grafton. Já vos
apanho. Smollett pode ficar comigo, e Forbes. Irei dentro de
aproximadamente uma hora.
Sir Guilherme Hastings olha-me da cabeça aos pés, como se eu fosse
um pedaço de uma fita bonita que estivesse à venda. Lanço-lhe um olhar
duro em resposta, e ele tira o chapéu e faz-me uma vénia, dirige uma
saudação ao rei, grita para que os guardas voltem a montar.
- Para onde vos dirigis? - pergunta ele ao rei. O rei-menino olha para
mim.
- Vamos a casa do meu pai, o Barão Rivers, Sir Ricardo, Woodville -
afirmo orgulhosamente, ainda que saiba que o rei reconhecerá o nome de
um homem que fruía de um lugar elevado nos favores da corte dos
Lencastre, que combateu por eles, e que uma vez ouviu palavras duras dele,
pessoalmente, quando Iorque e Lencastre se encontravam prestes a
combater. Todos conhecemos o suficiente uns dos outros, mas esquecer
que em tempos todos fomos leais a Henrique VI é uma cortesia geralmente
cumprida, até estes se terem transformado em traidores.
Sir Guilherme ergue as sobrancelhas perante o sítio escolhido pelo
rei para parar.
- Então, duvido que queirais ficar muito tempo - diz ele, de modo
inconveniente, e continua a cavalgar. O chão treme quando eles passam, e
deixam-nos numa tranquilidade calorosa, à medida que a poeira vai
assentando.
- O meu pai foi perdoado e o título foi-lhe restituído digo, na
defensiva. - Vós próprio o haveis perdoado, depois de Towton.
- Recordo-me do vosso pai e da vossa mãe - afirma o rei num tom
uniforme. - Conhecia-os desde pequeno, em bons e maus tempos. Só me
surpreende que nunca me tenham apresentado a vós.
Tenho de reprimir uma risada. Este rei é famoso por ser um sedutor.
Ninguém com bom senso deixaria a filha conhecê-lo.
- Poderíeis vir por aqui? - pergunto. - É só uma breve caminhada até
à casa do meu pai.
- Quereis uma boleia, rapazes? - pergunta-lhes. As cabeças deles
erguem-se subitamente, como patinhos suplicantes. Podeis subir os dois -
afirma ele, e pega em Ricardo, e depois em Tomás, para os colocar sobre a
sela. - Agora, segurai-vos bem. Vós ao vosso irmão e vós... sois o Tomás,
não é assim?... segurai-vos à maçaneta da sela.
Enrola as rédeas em volta do braço e, a seguir, oferece-me o outro
braço, e assim caminhamos até à minha casa, pelo meio do bosque, debaixo
da sombra das árvores. Posso sentir o calor do braço dele através do tecido
golpeado da sua manga. Tenho de me refrear para não me inclinar para ele.
Olho em frente, para a casa e para a janela da minha mãe, e vejo, pelos
reduzidos movimentos atrás dos painéis de vidro com pinázios, que ela tem
estado a olhar cá para fora, e desejando precisamente que isto aconteça.
Ela está à porta de entrada quando nos aproximamos, o criado da
casa ao seu lado. Baixa-se numa vénia.
- Vossa Graça - afirma de modo agradável, como se o rei a visitasse
todos os dias. - Sois muito bem-vindo a Grafton Manor.
Um criado surge a correr e segura as rédeas do cavalo para o
conduzir para o pátio dos estábulos. Os meus filhos seguram-se para
percorrerem os últimos metros, a minha mãe recua e faz uma vénia diante
do rei, enquanto este entra no salão.
- Aceitais um copo de cerveja branda? - pergunta. - Senão, temos um
vinho muito bom, dos meus primos, da Borgonha?
- Aceito a cerveja, se não vos importais - responde ele
agradavelmente. - Cavalgar faz-me sede. Está quente, para a Primavera.
Um bom dia para vós, Lady Rivers.
A mesa alta do grande salão está posta com os melhores copos e um
jarrão com cerveja, assim como outro que contém vinho.
- Estais à espera de alguém?
Ela sorri-lhe.
- Nenhum homem no mundo conseguiria passar a cavalo pela minha
filha sem se deter - retorque ela. - Quando ela me disse que desejava expor-
vos o caso dela, tive de colocar na mesa a nossa melhor cerveja. Calculei
que fôsseis parar.
Ele ri-se do orgulho demonstrado por ela, e volta-se para sorrir para
mim.
- Na verdade, um homem que conseguisse passar por vós sem se
deter só poderia ser cego - comenta.
Preparo-me para fazer um pequeno comentário, mas, mais uma vez,
nada acontece. Os nossos olhos encontram-se, e não consigo pensar em
nada para lhe dizer. Limitamo-nos a ficar ali de pé, a olhar um para o outro
por um longo momento, até a minha mãe lhe passar um copo e dizer
baixinho:
- À vossa saúde, Vossa Graça!
Ele abana a cabeça, como se despertasse.
- E o vosso pai, está cá? - pergunta.
- Sir Ricardo foi até à propriedade ao lado, falar com os nossos
vizinhos - respondo. - Esperamos que regresse a horas de jantar.
A minha mãe pega num copo limpo, ergue-o à luz e manifesta a sua
impaciência como se este estivesse manchado.
- Com a vossa licença - diz ela, e sai. Eu e o rei ficamos a sós no
grande salão, o sol a jorrar pela enorme janela atrás da mesa comprida, a
casa em silêncio, como se todos estivessem a suster a respiração e à escuta.
Ele vai para trás da mesa e senta-se na cadeira do dono da casa.
- Por favor, sentai-vos - diz ele, e aponta para a cadeira ao seu lado.
Eu sento-me como se fosse a sua rainha, à direita dele, e deixo-o servir-me
um copo de cerveja branda. - Analisarei a vossa reivindicação das vossas
terras - diz. - Desejais ter a vossa própria casa? Não sois feliz, vivendo aqui
com a vossa mãe e o vosso pai?
- Eles são gentis comigo - digo. - Mas estou acostumada a ter a
minha própria casa, estou habituada a gerir as minhas próprias terras. E os
meus filhos não terão nada se eu não conseguir reclamar as terras do pai
deles. É a sua própria herança. Tenho de defender os meus filhos.
- Têm sido tempos difíceis - responde ele. - Mas, se eu conseguir
manter o meu trono, farei com que a Lei dos Solos volte a vigorar, de uma
costa à outra da Inglaterra, e os vossos filhos crescerão sem receio da
guerra.
Assinto com a cabeça.
- Sois leal ao Rei Henrique? - pergunta-me. - Seguis a vossa família
na qualidade de apoiantes leais da casa de Lencastre?
A nossa história não pode ser negada. Sei que se travou uma batalha
furiosa em Calais entre este rei, que na altura não passava de um jovem
filho da casa de Iorque, e o meu pai, nesse tempo, um dos grandes Lordes
de Lencastre. A minha mãe era a primeira dama da corte de Margarida de
Anjou; deve ter conhecido e protegido o belo e jovem filho da casa de
Iorque uma dúzia de vezes. Mas quem imaginaria então que o mundo
poderia virar-se do avesso e que a filha do Barão Rivers teria de suplicar a
esse mesmo rapaz para que as suas próprias terras lhe fossem devolvidas?
- A minha mãe e o meu pai foram muito importantes na corte do Rei
Henrique, mas a minha família e eu agora aceitamos o vosso reinado -
afirmo muito depressa.
Ele sorri.
- É sensato da parte de todos vós, uma vez que eu venci - responde
ele. - Aceito a vossa homenagem.
Rio-me e, imediatamente, o seu rosto torna-se mais caloroso.
- Deve terminar em breve, queira Deus - diz ele. - Henrique não tem
mais do que um punhado de castelos, na região sem lei do Norte. Pode
juntar um grupo de salteadores, como qualquer fora-da-lei, mas não
consegue reunir um exército decente. E a rainha dele não pode continuar a
trazer cá para dentro os inimigos do país para combater o seu próprio povo.
Aqueles que lutarem por mim serão recompensados, mas mesmo aqueles
que combateram contra mim verão que serei justo na vitória. E farei com
que a minha lei vigore, mesmo no Norte da Inglaterra, mesmo nas suas
fortalezas, até à própria fronteira da Escócia.
- Ides para o Norte agora? - pergunto. Bebo um gole de cerveja
branda. É a melhor que a minha mãe faz, mas tem um sabor picante; deve
ter-lhe adicionado algumas gotas de uma tintura, um filtro de amor, algo
para fazer com que o desejo cresça. Não preciso de nada. Já estou sem
fôlego.
- Precisamos de paz - afirma ele. - Paz com a França, paz com os
Escoceses, e paz de irmão para irmão, de primo para primo. Henrique tem
de render-se; a mulher dele tem de parar de trazer tropas francesas para o
nosso país para lutarem contra os ingleses. Não devíamos continuar a estar
divididos, Iorque contra Lencastre: devíamos ser todos ingleses. Não há
nada que faça adoecer mais um país do que o seu próprio povo a lutar entre
si. Destrói famílias; está a matar-nos diariamente. Isto tem de terminar, e eu
pôr-lhe-ei um fim. Vou acabar com esta guerra.
Sinto o receio sinistro que as pessoas deste país conhecem há quase
uma década:
- Tem de haver mais uma batalha?
Ele sorri.
- Tentarei mantê-la longe da vossa porta, minha dama. Mas tem de
ser travada e tem de sê-lo em breve. Perdoei o Duque de Somerset e
aceitei-o como amigo, e agora ele voltou a juntar-se a Henrique, um vira-
casaca da Casa de Lencastre, infiel, como todos os Beaufort. Os Percy
estão a sublevar o Norte contra mim. Odeiam os Neville, e a família
Neville é a minha maior aliada. Agora é como uma dança: os dançarinos
ocupam os seus lugares; têm de dar os seus passos. Irão travar uma batalha;
não pode ser evitado.
- O exército da rainha vai passar por aqui? - ainda que a minha mãe a
adorasse e tivesse sido uma das suas damas de companhia mais
importantes, devo dizer que o exército dela é uma força de terror absoluto.
Mercenários, que não se preocupam nada com o país; franceses que nos
odeiam; e os homens selvagens do Norte da Inglaterra que encaram os
nossos campos férteis e cidades prósperas apenas como não sendo úteis
para mais nada senão a pilhagem. Da última vez, ela trouxe os escoceses,
acordando que poderiam ficar com tudo o que roubassem, como
honorários. Mais valia ter contratado lobos.
- Eu detê-los-ei - diz ele simplesmente. - Irei ao encontro deles no
Norte da Inglaterra e derrotá-los-ei.
- Como podeis ter tanta certeza? - exclamo.
Ele dirige-me um sorriso, e eu sustenho a respiração.
- Porque nunca perdi nenhuma batalha - responde simplesmente. - E
nunca perderei. Sou rápido no campo, e hábil; sou corajoso e tenho sorte. O
meu exército desloca-se mais depressa do que qualquer outro; faço com
que marchem mais rápido e movo-os completamente armados. Antecipo as
intenções deles e tomo a dianteira do meu inimigo. Não perco batalhas,
tenho sorte na guerra como no amor. Nunca perdi em nenhum dos jogos.
Não vou perder contra Margarida de Anjou; vencerei.
Rio-me da confiança dele, como se não estivesse impressionada;
mas, na verdade, ele deixa-me deslumbrada. Ele termina a caneca de
cerveja e põe-se de pé.
- Obrigado pela vossa gentileza - diz.
- Já ides embora? Ides partir agora? - gaguejo.
- Ireis escrever os detalhes da vossa reivindicação para mim?
- Sim. Mas...
- Com nomes e datas e tudo o mais? A terra que alegais ser vossa e
os detalhes da vossa propriedade?
Quase agarro a manga dele para o manter junto de mim, como um
pedinte.
- Fá-lo-ei. Mas...
- Então, despeço-me de vós.
Não há nada que eu possa fazer para o deter, a não ser que a minha
mãe se tenha lembrado de fazer com que o cavalo dele fique coxo.
- Sim, Vossa Graça, e obrigada. Mas sois muito bem-vindo a ficar.
Daqui a pouco jantaremos... ou...
- Não, tenho de ir embora. O meu amigo Guilherme Hastings deve
estar à minha espera.
- É claro, é claro. Não desejo atrasar-vos...
Acompanho-o até à porta. Estou angustiada por ele partir tão
abruptamente, e, no entanto, não consigo lembrar-me de nada para o fazer
ficar. Na soleira da porta, ele volta-se e pega-me na mão. Inclina a cabeça
loira numa vénia e, de forma deliciosa, vira a minha mão. Dá um beijo na
palma e fecha os meus dedos sobre o local que beijou, como se para o
guardar em segurança. Quando se ergue, a sorrir, vejo que sabe
perfeitamente que o gesto me fez derreter e que conservarei a mão fechada
até à hora de me deitar, altura em que poderei levá-la à boca.
Baixa os olhos para o meu rosto arrebatado, para a minha mão que se
abre, contra a minha vontade, para tocar na manga dele. Então, enternece-
se.
- Eu próprio virei buscar o documento que ides elaborar, amanhã -
afirma. - É evidente. Julgastes que iria ser de outro modo? Como podeis?
Pensastes que poderia voltar-vos as costas, e não voltar? É claro que irei
voltar. Amanhã, ao meio-dia. Vejo-vos a essa hora?
De certeza que me ouve arquejar. A cor acorre ao meu rosto e as
minhas bochechas estão a escaldar.
- Sim - gaguejo. - A... manhã.
- Ao meio-dia. E ficarei para almoçar, se possível.
- Ficaremos muito honrados.
Faz-me uma vénia, volta-se e começa a caminhar pelo salão,
passando pelas portas duplas escancaradas e saindo para a luz viva do Sol.
Ponho as mãos atrás das costas e seguro-me a enorme porta de madeira,
para me apoiar. Para dizer a verdade, os meus joelhos estão demasiado
fracos para que consiga manter-me de pé.
- Ele foi embora? - pergunta a minha mãe, entrando silenciosamente
pela pequena porta lateral.
- Volta amanhã - respondo. - Vai voltar amanhã. Vem cá amanhã
para falar comigo.
Quando o Sol está a pôr-se e os meus filhos dizem as orações da
noite, cabeças loiras inclinadas sobre as mãos entrelaçadas, aos pés das
suas camas de ripas, a minha mãe conduz-me pela porta da frente da casa e
ao longo de um caminho serpenteante até ao local onde a ponte, um par de
pranchas de madeira, atravessa o rio Tove. Caminha sobre elas até ao outro
lado, o seu toucado cónico roçando nas árvores inclinadas, e faz-me sinal
para que a siga. Do outro lado, pousa a mão num enorme freixo e eu vejo
que existe um fio escuro de seda amarrado em volta da madeira de grão
áspero do tronco espesso.
- O que é isto?
- Enrolai o fio - é tudo o que ela me diz. - Enrolai o fio trinta
centímetros, todos os dias.
Ponho a mão no fio e puxo-o suavemente. Solta-se com facilidade;
há algo leve e pequeno amarrado à extremidade oposta. Nem consigo
imaginar o que poderá ser, uma vez que o fio dá voltas até à outra margem
do rio, para o meio dos juncos, em águas profundas, do outro lado.
- Magia - digo, num tom terminante. O meu pai baniu tais práticas
desta casa: a lei do país proíbe-as. Quando se prova que alguém é bruxa, a
pena aplicada é a morte, morte por afogamento através da cadeira (1), ou
estrangulamento por um ferreiro, nos cruzamentos da aldeia. Mulheres
como a minha mãe não estão autorizadas a desenvolver as suas capacidades
na Inglaterra de hoje; fomos declaradas interditas.
Nota 1: No original ’-ducking stool” - Instrumento de punição,
tortura, aplicado especificamente a mulheres, que consistia numa
cadeira/banco dependurado na extremidade de um braço móvel de madeira
montado na margem de um rio.
A mulher era amarrada à c adeira/banco e este era mergulhado
repetidas vezes na água de um rio. Esta punição era plicada por crimes de
prostituição ou bruxaria. (N. da T.). da T.)
- Magia - concorda ela, imperturbável. - Magia poderosa, para uma
boa causa. Vale bem o risco. Vinde aqui todos os dias e enrolai-o, trinta
centímetros de cada vez.
- E o que vai acontecer? - pergunto-lhe. - No fim desta vossa linha de
pesca? Que grande peixe vou apanhar?
Ela sorri para mim e põe a mão na minha bochecha.
- O que o vosso coração desejar - diz ela carinhosamente.
- Não vos criei para serdes uma viúva pobre.
Volta-se e inicia o caminho de regresso pela ponte pedonal, e eu
puxo o fio como ela me disse que fizesse, trinta centímetros, amarro-o
depressa, e vou atrás dela.
- Então, para que me haveis criado? - pergunto-lhe, enquanto
seguimos lado a lado até à casa. - Qual o meu papel? No vosso grande
plano? Num mundo em guerra, onde, ao que parece, apesar da vossa
previsão e magia, estamos presas no lado vencido?
A lua nova está a erguer-se, um pequeno crescente de Lua. Sem
pronunciar uma palavra, ambas pedimos desejos ao avistá-la; fazemos uma
reverência, e eu ouço o tilintar, quando revolteamos as moedas que temos
nos bolsos.
- Eduquei-vos para serdes o melhor que conseguirdes ser - diz ela
simplesmente. - Não sabia o que isso iria ser e continuo sem saber. Mas
não vos criei para serdes uma mulher só, que sente a falta do marido, que
luta para manter os filhos em segurança; uma mulher sozinha numa cama
fria, a sua beleza desperdiçada em terras desertas.
- Bem, Ámen - returco simplesmente, de olhos fixos no magro
crescente. - Ámen a isso. E que a lua nova me traga algo melhor.
Ao meio-dia do dia seguinte, trago o meu vestido comum e estou
sentada nos meus aposentos privados, quando a criada surge a correr para
me comunicar que o rei cavalga pela estrada que conduz à casa. Não me
permito correr até à janela para o procurar, não me consinto precipitar-me
na direcção do espelho de prata martelada do quarto da minha mãe. Pouso
o bordado, e dirijo-me à grande escadaria de madeira, para que, quando a
porta se abrir e ele entrar no salão, eu esteja a descer serenamente,
aparentando ter sido desviada dos meus afazeres domésticos para receber
um hóspede que surgiu de surpresa.
Aproximo-me dele com um sorriso, ele saúda-me com um beijo
cortês no rosto, e sinto o calor da sua pele e vejo, por entre os meus olhos
semicerrados, a suavidade do cabelo que se encaracola na nuca. O cabelo
cheira levemente a especiarias e a pele do pescoço a lavado. Quando olha
para mim, reconheço-lhe o desejo no rosto. Solta a minha mão devagar e eu
recuo com relutância. Volto-me e faço uma reverência, quando o meu pai e
os meus dois irmãos mais velhos, António e João, se aproximam para
fazerem as suas vénias.
A conversa ao jantar é afectada, como tem de ser. A minha família é
deferente para com este novo Rei da Inglaterra; mas não é possível negar
que jogámos as nossas vidas e a nossa fortuna nesta batalha contra ele, e o
meu marido não foi o único da nossa casa e família que não regressou. Mas
é assim que tem de ser numa guerra que foi denominada ”A Guerra entre
Primos”, uma vez que irmãos combatem contra irmãos e os respectivos
filhos seguem-nos para a morte. O meu pai foi perdoado, os meus irmãos
também, e agora o vencedor divide o pão com eles, como se para esquecer
que triunfou sobre eles em Calais, como se para esquecer que o meu pai
virou as costas e fugiu do seu exército, na neve ensanguentada de Towton.
O rei Eduardo é agradável. É encantador com a minha mãe e
divertido com os meus irmãos António e João, e depois com Ricardo,
Eduardo e Leonel, quando se juntam a nós, mais tarde. Três das minhas
irmãs mais novas encontram-se em casa, e jantam em silêncio, de olhos
esbugalhados de admiração, mas demasiado receosas para pronunciarem
uma palavra. A mulher de António, Isabel, está silenciosa e elegante, ao
lado da minha mãe. O rei observa o meu pai e faz-lhe perguntas sobre caça
e as terras, acerca do preço do trigo e da inabilidade da mão-de-obra. Na
altura em que começam a servir a fruta em calda e as doçarias, ele conversa
como um amigo da família, e eu posso encostar-me para trás na minha
cadeira e observá-lo.
- E, agora, vamos aos negócios - diz ele ao meu pai. - Lady Isabel
disse-me que perdeu as terras que lhe foram legadas por morte do marido.
O meu pai assente.
- Lamento incomodar-vos com este assunto, mas tentámos resolvê-lo
com Lady Ferrers e com Lorde Warwick sem resultados. Foram
confiscadas depois - pigarreia - depois de St. Albans, compreendeis. O
marido dela foi morto lá. E, agora, ela não consegue que as terras a que tem
direito pela morte dele lhe sejam devolvidas. Ainda que o marido seja
considerado um traidor, ela própria está inocente e devia, pelo menos,
receber as suas arras.
O rei vira-se para mim.
- Haveis escrito o vosso título e a reivindicação das vossas terras?
- Sim - afirmo. Entrego-lhe o papel e ele dá-lhe uma olhadela.
- Irei falar com Sir Guilherme Hastings e pedir-lhe que trate da
resolução deste assunto - diz ele simplesmente. - Ele será vosso advogado.
Parece ser tão fácil quanto isto. De uma penada, serei liberta da
minha pobreza e recuperarei a minha propriedade; os meus filhos terão uma
herança e eu deixarei de ser um fardo para a minha família. Se alguém me
pedir em casamento, irei para o matrimónio com propriedades. Já não sou
um alvo de caridade. Não terei de ficar grata por receber uma proposta.
Não terei de agradecer a um homem por se casar comigo.
- Sois muito bondoso, Senhor - afirma o meu pai num tom
agradável, e acena com a cabeça na minha direcção.
Obedientemente, levanto-me da minha cadeira e baixo-me, numa
vénia.
- Agradeço-vos - afirmo. - Isto significa tudo para mim.
- Serei um rei justo - diz ele, olhando para o meu pai. Não quereria
que nenhum inglês sofresse com a minha ascensão ao trono.
O meu pai envida esforços visíveis no sentido de silenciar a sua
resposta, de que alguns de nós já sofreram.
- Desejais mais vinho? - interrompe-o a minha mãe, muito depressa.
- Vossa Graça? Marido?
- Não, tenho de ir embora - responde o rei. - Estamos a reunir as
tropas em todo o Northamptonshire e a equipá-las.
Empurra a cadeira para trás, e todos nós - o meu pai e irmãos, a
minha mãe e irmãs e eu - nos levantamos como marionetas, para ficarmos
de pé como ele.
- Podeis mostrar-me o jardim antes de eu partir, Lady Isabel?
-
- Terei toda a honra em fazê-lo - replico.
O meu pai abre a boca para oferecer a sua companhia, mas a minha
mãe diz depressa:
- Sim, ide, Isabel - e os dois saímos da sala sem um acompanhante.
Faz calor como se fosse Verão, quando saímos do escuro do salão,
ele estende-me o braço e descemos os degraus para o jardim, de braço
dado, em silêncio. Sigo pelo caminho que contorna o jardim e
serpenteamos, observando as sebes podadas e as pedras imaculadamente
brancas; mas não vejo nada. Ele puxa a minha mão e coloca-a debaixo do
seu braço, sinto o calor do seu corpo. A lavanda está a florescer, e eu
consigo sentir o aroma, doce como a flor de laranjeira, intenso como
limões.
- Tenho pouco tempo - diz ele. - Somerset e Percy estão a unir-se
contra mim. O próprio Henrique sairá do seu castelo e conduzirá o seu
exército, se estiver nessa disposição e se puder comandá-lo. Pobre alma,
disseram-me que agora recuperou a razão, mas pode perdê-la novamente a
qualquer momento. A rainha deve estar a planear desembarcar um exército
de franceses para os apoiar e nós teremos de enfrentar o poder da França
em solo inglês.
- Rezarei por vós - digo.
- A morte está perto de todos nós - retorque ele com ar sério. - Mas é
uma companheira constante de um rei que conquista a sua coroa no campo
de batalha, e que, agora, parte mais uma vez no seu cavalo, para combater.
Detém-se e eu imito-o. Está tudo muito silencioso, à excepção de um
pássaro que canta. A expressão dele é grave.
- Posso enviar um pajem para que vos leve para junto de mim esta
noite? - pergunta ele baixinho. - Desejo-vos, Lady Isabel Grey, como nunca
desejei outra mulher antes. Vireis ter comigo? Peço-vos. não como rei, e
nem sequer como um soldado que pode morrer na batalha, mas como um
homem simples, à mulher mais bonita que já viu. Vinde ter comigo,
suplico-vos, vinde ter comigo. Poderia ser o meu último desejo. Vireis ter
comigo esta noite?
Abano a cabeça.
- Perdoai-me, Vossa Graça, mas sou uma mulher de honra.
- Posso nunca voltar a fazer-vos este pedido. Sabe Deus como
poderei nunca voltar a pedi-lo a nenhuma mulher. Não pode haver
nenhuma desonra nisto. Posso morrer na próxima semana.
- Mesmo assim.
- Não vos sentis só? - pergunta ele. Os seus lábios estão quase a tocar
a minha testa, de tal forma está próximo de mim, consigo sentir o calor da
sua respiração na minha bochecha.
- E vós não sentis nada por mim? Podeis afirmar que não me
desejais? Só uma vez? Não me desejais agora?
O mais devagar que sou capaz, permito que os meus olhos se ergam
até ao rosto dele. O meu olhar fixa-se na sua boca, depois levanto o olhar.
- Valha-me Deus, tenho de vos ter - suspira ele.
- Não posso ser vossa amante - digo simplesmente. - Preferia morrer
a desonrar o meu nome. Não posso trazer essa vergonha para a minha
família - faço uma pausa. Estou ansiosa para não ser demasiado
desincentivadora. - Independentemente do que o meu coração possa desejar
- digo, muito baixinho.
- Mas vós desejais-me? - pergunta ele infantilmente, e eu deixo-o
perceber o calor na minha face.
- Ah - digo. - Não posso dizer-vos...
Ele espera.
- Não posso dizer-vos o quanto...
Vejo, rapidamente disfarçado, o cintilar do triunfo. Ele pensa que me
vai ter.
- Então, vireis?
- Não.
- Então, tenho de partir? Tenho de deixar-vos? Não posso.
- inclina o rosto para mim e eu levanto o meu. O seu beijo é tão
suave como o roçar de uma pena na minha boca macia.
Os meus lábios entreabrem-se ligeiramente e consigo senti-lo tremer
como um cavalo preso com uma rédea curta. - Lady Isabel... Juro-o...
Tenho de...
Dou um passo atrás, nesta dança deliciosa.
- Se apenas... - digo.
- Virei amanhã - diz ele abruptamente. - À noite. Ao pôr do Sol. Ireis
ter comigo ao lugar onde vos vi pela primeira vez? Debaixo do carvalho?
Ireis encontrar-vos comigo lá? Gostaria de me despedir antes de partir para
norte. Tenho de voltar a ver-vos, Lady Isabel. Pelo menos isso. Tenho de o
fazer.
Assinto em silêncio, vejo-o rodar sobre os calcanhares e caminhar de
volta a casa. Vejo-o contornar o pátio dos estábulos e, alguns momentos
mais tarde, o seu cavalo cavalga, disparado, pela estrada abaixo, com os
dois pajens a esporearem os seus cavalos para acompanhar o ritmo. Vejo-o
sair do meu campo de visão e, depois, atravesso a pequena ponte pedonal
por cima do rio e encontro o fio enrolado no freixo. Retlectidamente,
enrolo mais uma extensão do fio e amarro-o. Em seguida, dirijo-me a casa.
Ao jantar do dia seguinte existe uma espécie de conferência familiar.
O rei enviou uma carta para dizer que o amigo, Sir Guilherme Hastings,
apoiará a minha reivindicação da minha casa e das minhas terras em
Bradgate, e que eu posso ter a certeza de que a minha fortuna me será
restituída. O meu pai fica satisfeito: mas todos os meus irmãos - António,
João, Ricardo, Eduardo e Leonel - estão unidos na desconfiança contra o
rei, com o orgulho alerta dos rapazes.
- Ele tem fama de libertino. De certeza que vai pedir para se
encontrar com ela, de certeza que a vai chamar para a corte - declara João.
- Não lhe devolveu as terras por caridade. Vai exigir o pagamento -
concorda Ricardo. - Não existe uma mulher na corte com quem ele não
tenha dormido. Porque não tentaria a sorte com Isabel?
- Um Lencastre - diz Eduardo, como se isso fosse suficiente para
garantir a nossa inimizade, e Leonel assente, com um ar sério.
É um homem difícil de rejeitar - diz António pensativamente. - É
bastante mais experiente do que João; viajou por toda a Cristandade e
estudou com grandes pensadores, e os meus pais ouvem-no sempre. - Seria
de pensar, Isabel, que vos sentiríeis comprometida. Receio que fôsseis
sentir uma obrigação em relação a ele.
Encolho os ombros.
- De forma alguma. Só posso contar comigo, mais uma vez. Pedi ao
rei justiça e recebi-a, tal como deveria ser, como qualquer suplicante
deveria receber, quando tem a razão do seu lado.
- No entanto, se ele vos chamar, não ireis para a corte afirma o meu
pai. - Este é um homem que conseguiu seduzir metade das esposas de
Londres e que agora tenta repetir a proeza com as damas da Casa de
Lencastre. Este não é um homem honrado como o abençoado Rei
Henrique.
Também não é um tolo como o abençoado Rei Henrique, penso, mas
em voz alta digo:
- É claro, Pai, o que quer que me ordeneis.
Ele olha severamente para mim, desconfiado da obediência imediata.
- Não credes que lhe deveis os vossos favores? Os vossos sorrisos?
Ou pior?
Encolho os ombros.
- Pedi-lhe a justiça de um rei, não um favor - respondo. - Não sou um
criado cujos serviços podem ser comprados, ou um camponês que pode ser
obrigado a prestar juramento a um senhor. Sou uma dama de boas famílias.
Tenho as minhas próprias lealdades e obrigações que considero e honro.
Não são propriedade dele. Não estão à disposição de nenhum homem.
A minha mãe baixa a cabeça para ocultar o seu sorriso. É filha da
Borgonha, descendente de Melusina, a deusa da água. Nunca se considerou
obrigada a fazer nada na vida; nunca conceberia que a sua filha fosse
obrigada a fazer o que quer que fosse.
O meu pai desvia o olhar dela para mim e encolhe os ombros, como
se para admitir a independência inveterada das mulheres obstinadas. Acena
com a cabeça na direcção do meu irmão João e diz:
- Vou cavalgar até à aldeia de Old Stratford. Quereis vir comigo? - e
os dois saem juntos.
- Quereis ir para a corte? Admirai-lo? Apesar de tudo? - pergunta-me
António baixinho, quando os meus outros irmãos saem da sala.
- Ele é o Rei da Inglaterra - afirmo. - É claro que irei, se ele me
convidar. Que outra coisa iria fazer?
- Talvez porque o Pai tenha acabado de dizer que não devíeis ir, e eu
vos tenha aconselhado a que não fôsseis.
Encolho os ombros.
- E eu ouvi muito bem.
- De que outra forma pode uma viúva pobre construir o seu caminho
num mundo cruel? - provoca-me ele.
- De facto.
- Seríeis uma tonta, se vos vendêsseis por um preço baixo - avisa-me
ele.
Olho-o sob as minhas pestanas.
- Não estou a pensar vender-me de modo algum - afirmo.
- Não sou um rolo de fita. Não sou uma perna de presunto. Não estou
à venda para ninguém.
Ao pôr do Sol, estou à sua espera debaixo do carvalho, escondida nas
sombras esverdeadas. Fico aliviada ao ouvir o som de apenas um cavalo na
estrada. Se ele tivesse vindo com um guarda, ter-me-ia escapulido para
casa, receando pela minha segurança. Por muito terno que ele possa ser,
nos confins do jardim do meu pai, não me esqueço de que ele é o
denominado rei do exército iorquista e que eles violam mulheres e
assassinam os seus maridos, como se fosse algo natural. Deve ter
endurecido ao ver coisas que ninguém deveria testemunhar; ele próprio
deve ter feito coisas que representam os mais negros dos pecados. Não
posso confiar nele. Por muito arrebatador que seja o seu sorriso e por muito
sinceros os seus olhos, por muito que pense nele como um rapaz projectado
para a grandeza pela sua ambição, não posse confiar nele. Estes não são
tempos para cavalheirismos; não são os tempos dos cavaleiros na floresta
negra, das belas damas em fontes iluminadas pelo luar e promessas de amor
que serão baladas, cantadas para todo o sempre.
Mas ele parece um cavaleiro numa floresta negra, quando pára o
cavalo e desmonta com um salto, num movimento descontraído.
- Viestes! - exclama ele.
- Não posso ficar muito tempo.
- Estou tão contente só por terdes vindo - ri-se de si próprio, quase
desnorteado. - Hoje parecia uma criança; não consegui dormir, a noite
passada, a pensar em vós, e todo o dia me perguntei se viríeis, e afinal
viestes!
Enrola as rédeas do cavalo no ramo de uma árvore e coloca o braço
em volta da minha cintura.
-Minha dama querida - diz-me ele ao ouvido. - Sede gentil comigo.
Tirai o vosso toucado e soltai o cabelo.
É a última coisa que pensei que me fosse pedir, e fico chocada,
consentindo imediatamente. A minha mão dirige-se logo às fitas do meu
toucado.
- Eu sei. Eu sei. Julgo que me estais a deixar louco. Tudo em que
tenho conseguido pensar o dia inteiro é em se me deixaríeis soltar o vosso
cabelo.
Em resposta, desaperto as fitas apertadas do meu alto toucado cónico
e levanto-o para o tirar. Pouso-o cuidadosamente no chão e viro-me para
ele. Gentilmente, como qualquer aia, ele pousa a mão no meu cabelo e
retira os ganchos de marfim, guardando cada um deles no bolso do seu
gibão. Consigo sentir o beijo acetinado do meu cabelo espesso, enquanto a
cascata loira que ele constitui me cai sobre o rosto. Sacudo a cabeça e atiro-
o para trás, como uma crina dourada espessa, e ouço o seu gemido de
desejo.
Gentilmente, inclina-se sobre mim, pressionando-me, de modo que
fique debaixo dele. Depois, sinto as suas mãos puxarem o meu vestido,
puxarem-no para cima, e encosto as minhas mãos ao peito dele, afastando-o
suavemente.
- Isabel - sussurra ele.
- Já vos disse que não - declaro com firmeza. - E estava a falar a
sério.
- Viestes ao meu encontro!
- Vós pedistes que o fizesse. Quereis que parta agora?
- Não! Ficai! Ficai! Não fujais, juro que não... Deixai-me só beijar-
vos mais uma vez.
O meu coração está a bater acelerada e perceptivelmente, estou tão
pronta para o seu toque que começo a pensar que poderia deitar-me com
ele, só uma vez, poderia permitir-me este prazer, só uma vez... Mas, então,
afasto-me e digo:
- Não, não, não...
- Sim - diz ele com mais veemência. - Não vos vai acontecer nada de
mal, juro-vos. Vireis para a corte. Tudo o que pedirdes. Por Deus, Isabel,
deixai-me possuir-vos, estou desesperado para vos ter. Desde que vos vi
ali...
O seu peso está sobre mim; e está a pressionar-me para baixo. Viro a
cabeça para o outro lado, mas a sua boca está no meu pescoço, no meu
peito; estou ofegante de desejo, e depois sinto, inesperadamente, uma onda
de raiva, ao aperceber-me de que ele já não está a abraçar-me, mas a forçar-
me, prendendo-me como se eu fosse uma prostituta atrás de um saco de
feno. Está a levantar o meu vestido como se eu fosse uma meretriz;
empurra o joelho entre as minhas pernas como se eu tivesse consentido, e a
minha fúria dá-me de tal modo força que o empurro novamente para trás e,
aí, no seu grosso cinto de couro, sinto o punho da sua adaga.
Ele puxou o meu vestido para cima, e debate-se com o seu justilho,
os seus calções; daqui a pouco, será demasiado tarde para me queixar.
Desembainho a sua adaga. Ao ouvir o som sibilante do metal, ele recua, de
joelhos, chocado, e, retorcendo-me, afasto-me dele e ponho-me de pé, com
a adaga fora da bainha, a lâmina cintilante e terrível sob os últimos raios de
sol.
Num instante, ele ergue-se, ziguezagueando e alerta.
- Desembainhais uma lâmina contra o vosso rei? - profere ele
encolerizado. - Sabeis o que é um acto de traição, quando o cometeis,
senhora?
- Eu desembainho uma lâmina contra mim, contra mim própria -
digo rapidamente. Levo a ponta afiada à minha garganta e vejo os olhos
dele estreitarem-se. - Juro que, se avançardes mais um passo, se avançardes
um centímetro que seja, cortarei a minha garganta diante de vós e sangrarei
até à morte, aqui, no chão em que me iríeis desonrar.
- Estais a fazer teatro!
- Não. Para mim, isto não é um jogo, Vossa Graça! Não posso ser
vossa amante. Dirigi-me a vós, inicialmente, para pedir justiça, e vim ter
convosco, esta noite, por amor, e sou uma louca em fazê-lo, suplico o vosso
perdão pela minha loucura. Mas eu também não consigo dormir, e não
consigo pensar noutra coisa que não seja em vós, e também eu não era
capaz de deixar de me interrogar vezes sem conta se viríeis. Mas, mesmo
assim... mesmo assim, não devíeis...
- Poderia retirar-vos essa adaga a qualquer momento - ameaça ele.
- Esqueceis que tenho cinco irmãos. Brinco com espadas e adagas
desde criança. Cortarei a garganta antes de conseguirdes chegar junto de
mim.
- Nunca o faríeis. Sois uma mulher com apenas a coragem de uma
mulher.
- Experimentai. Experimentai. Não conheceis a minha coragem.
Podeis vir a lamentar o que vier a acontecer.
Ele hesita por um segundo, o seu coração a latejar, numa mistura
perigosa de génio e desejo, e depois recompõe-se, levanta as mãos num
gesto de rendição, e recua um passo.
- Vencestes, senhora. E podeis ficar com a adaga, como um saque de
vitória. Tomai... - desafivela a bainha e atira-a ao chão. - Ficai também com
a maldita bainha, porque não ficais?
As pedras preciosas e o ouro esmaltado cintilam na penumbra.
Nunca apartando os meus olhos dele, ajoelho-me e pego na bainha.
- Acompanhar-vos-ei até casa - diz ele. - Levar-vos-ei em segurança
até à vossa porta.
Abano a cabeça.
- Não, não posso ser vista convosco. Ninguém pode saber que nos
encontrámos em segredo. Eu seria humilhada.
Por um instante, penso que ele irá discutir comigo, mas ele baixa a
cabeça.
- Então, segui à minha frente - diz ele. - E eu irei atrás de vós como
um pajem, como vosso criado, até vos ver chegar cm segurança ao vosso
portão. Podeis alegrar-vos com o vosso triunfo, por me terdes a seguir-vos
como um cão. Uma vez que me tratais como um louco, servir-vos-ei como
um louco; e podereis desfrutar.
Não há nada a dizer para acalmar a sua raiva, por isso, assinto e
volto-me para começar a caminhar diante dele, tal como ele me disse que
fizesse. Seguimos em silêncio. Consigo ouvir o rumor da sua capa atrás de
mim. Quando chegamos ao fim do bosque e podemos ser avistados a partir
da casa, detenho-me e viro-me para ele.
- A partir daqui estarei em segurança - afirmo. - Tenho de suplicar-
vos que me perdoeis pela minha loucura.
- Tenho de suplicar-vos que me perdoeis por ter usado a força - diz
ele num tom constrangido. - Talvez eu esteja demasiado acostumado a
conseguir o que quero. Mas devo dizer, nunca me rejeitaram apontando-me
uma faca. Neste caso, a minha própria faca.
Volto-a ao contrário e estendo-lhe o punho.
- Aceitai-a de volta, Vossa Graça.
Ele abana a cabeça.
- Ficai com ela como recordação minha. Será o meu único presente
para vós. Um presente de despedida.
- Não voltarei a ver-vos?
- Nunca - diz ele simplesmente e, fazendo uma ligeira vénia, afasta-
se.
- Vossa Graça! - chamo, e ele volta-se e pára. - Não quero que
partais aborrecido comigo - digo debilmente. - Espero que possais perdoar-
me.
- Haveis feito de mim um tonto - diz ele, numa voz gelada. - Podeis
congratular-vos por serdes a primeira mulher a fazê-lo. Mas sereis a última.
E nunca voltareis a fazer de mim um tonto.
Baixo-me numa vénia, ouço-o voltar-se e o som da sua capa a bater
nos arbustos de cada um dos lados do caminho. Espero até deixar de o
ouvir e depois ergo-me para me dirigir a casa.
Existe uma parte de mim, da jovem mulher que sou, que deseja
correr lá para dentro, lançar-me sobre a minha cama e chorar até
adormecer. Mas não é o que faço. Não sou uma das minhas irmãs, de riso e
lágrima fácil. São raparigas a quem as coisas acontecem, e que sofrem com
elas. Mas eu considero-me um pouco mais do que uma rapariga tonta. Sou
a filha da deusa da água. Sou uma mulher a quem corre água nas veias e
com o poder na sua linhagem. Sou uma mulher que faz com que as coisas
aconteçam, e ainda não fui derrotada. Não fui derrotada por um rapaz com
uma coroa recém-conquistada, e nenhum homem voltará a afastar-se de
mim com a certeza de que não voltará.
Por isso, não vou logo para casa. Sigo pelo caminho da fonte pedonal
que atravessa o rio, até ao lugar onde o freixo está rodeado pelo fio da
minha mãe, enrolo mais o fio e aperto-o com firmeza, e só então caminho
em direcção a casa, cismando, à luz do ténue luar.
Então, espero. Todas as noites, durante vinte e duas, desço até ao rio
e puxo o fio como uma pescadora. Um dia sinto repuxar, e a linha fica
esticada, quando o objecto na sua extremidade, seja lá o que for, se liberta
dos juncos na margem da água. Puxo suavemente, como se estivesse a
recolher um peixe capturado, sinto o fio soltar-se e ouço um pequeno
chape, enquanto algo pequeno, mas pesado, cai mais fundo, se revira na
corrente, e depois fica imóvel entre os seixos do leito do rio.
Caminho para casa. A minha mãe está à minha espera junto do lago
das carpas, olhando para baixo, para o seu próprio reflexo invertido na
água, prata no cinzento do escurecer. A sua imagem parece um longo peixe
prateado agitando-se no lago, ou uma mulher a nadar. O céu por trás dela
está coberto de nuvens, como penas brancas sobre seda clara. A lua está a
erguer-se, uma Lua em quarto minguante, agora. A água está alta esta
noite, transpondo o pequeno molhe. Quando chego perto dela e olho para
dentro da água, seria de pensar que ambas nos estávamos a erguer das
águas, como os espíritos do lago.
- Fazei-lo todas as noites? - pergunta-me ela. - Puxais a linha?
- Sim.
- Óptimo. Isso é bom. Ele enviou-vos alguma lembrança? Alguma
mensagem?
- Não estou à espera de nada. Ele disse que não queria voltar a ver-
me.
Ela suspira.
- Está bem.
Caminhamos de volta a casa.
- Dizem que ele está a reunir as suas forças em Northampton _ diz
ela. - O Rei Henrique está a concentrar as suas em Northumberland e irá
marchar para sul, para Londres. A rainha irá ao seu encontro com um
exército francês que desembarcará em Hull. Se o Rei Henrique vencer, não
importará o que Eduardo diz ou pensa, porque estará morto, e o rei legítimo
será reposto.
A minha mão move-se apressadamente para agarrar a manga dela,
numa contradição imediata. Veloz como uma víbora que se prepara para
atacar, a minha mãe agarra os meus dedos.
- O que é isto? Nãosuportais ouvir falar da derrota dele? _ Não o
digais. Não o digais.
- Não digo o quê?
- Não suporto pensar que ele vai ser derrotado. Não suporto pensar
nele morto. Ele pediu-me que me deitasse com ele, como um soldado que
enfrenta a morte.
Ela dá uma sonora gargalhada.
- É claro que pediu. Que homem que vai partir para a guerra alguma
vez resistiu à oportunidade de tirar daí o maior partido?
- Bem, eu recusei. E, se ele não voltar, lamentarei essa recusa para o
resto da vida. Já estou arrependida. Irei sentir-me arrependida para sempre.
- Porquê o arrependimento? - provoca-me ela. - De uma maneira ou
de outra, as vossas terras ser-vos-ão devolvidas.
Ou as recuperais por ordem do Rei Eduardo, ou ele morre e o Rei
Henrique será rei e restituir-vos-á as vossas terras. Ele é o nosso rei, da
legítima Casa de Lencastre. Seria de pensar que lhe desejávamos a vitória,
e a morte ao usurpador Eduardo.
- Não o digais - repito. - Não lhe desejeis mal.
- Não importa o que eu digo, parai e pensai - aconselha-me
severamente. - Sois uma rapariga da Casa de Lencastre. Só podereis
apaixonar-vos pelo herdeiro da Casa de Iorque se ele for o rei vitorioso e se
tiverdes algo a lucrar com esse amor. São dias difíceis, estes que vivemos.
A morte é nossa companheira, nossa parente. Não vale a pena pensar, não
lhe podeis resistir. Ireis descobrir que ela está por perto. Levou o vosso
marido; ouvi: levará o vosso pai, os vossos irmãos e os vossos filhos.
Estendo as duas mãos para a interromper.
- Chiu, chiu. Pareceis Melusina a avisar a sua casa da morte dos
homens.
- Estou a avisar-vos - diz ela num tom sinistro. - Vós transformais-
me em Melusina, quando andais por aí a sorrir como se a vida fosse fácil,
pensando que podeis namoriscar com um usurpador. Não haveis nascido
em tempos tranquilos. Vivereis a vossa vida num país dividido. Tereis de
construir o vosso caminho por entre o sangue, e conhecereis a perda.
- Não vislumbrais nada de bom para mim? - pergunto, entre dentes
cerrados. - Não prevedes, como uma mãe amorosa, nada de bom para a
vossa filha? Não vale a pena amaldiçoardes-me, porque eu já estou quase a
chorar.
Ela detém-se, e o rosto duro da vidente dissolve-se no calor da mãe a
quem amo.
- Creio que o tereis, se é isso que desejais - diz ela.
- Mais do que à própria vida.
Ela ri-se de mim, mas o seu sorriso é carinhoso.
- Ah, não o digais, filha. Nada neste mundo é mais importante do que
a vida. Tendes um longo caminho a percorrer e muitas lições a aprender, se
não o sabeis.
Encolho os ombros e pego-lhe no braço e, caminhando com passo
certo, dirigimo-nos para casa.
- Quando a batalha estiver terminada, seja quem for que vença, as
vossas irmãs têm de ir para a corte - diz a minha mãe. Está sempre a fazer
planos. - Podem ficar em casa dos Bourchier, ou dos Vaughn. Já deviam ter
ido, há vários meses, mas não suportava a ideia de elas estarem longe de
casa, com o país nesta sublevação, sem nunca saber o que poderia
acontecer a seguir, e nunca conseguir receber notícias. Mas, quando esta
batalha tiver acabado, talvez a vida volte a ser o que era, apenas sob o
reinado da Casa de Iorque, em vez do da Casa de Lencastre, e as meninas
podem ir para casa dos nossos primos, para receberem uma educação.
- Sim.
- E, em breve, o vosso filho Tomás terá idade suficiente para sair de
casa. Devia viver com os parentes; tem de aprender a ser um cavalheiro.
- Não - digo com uma ênfase súbita que a faz virar-se e ficar a olhar
para mim.
- Qual é o problema?
- Quero manter os meus filhos junto de mim - afirmo. - Os meus
filhos não podem ser afastados de mim.
- Necessitarão de uma educação adequada; terão de servir na casa de
um lorde. O vosso pai encontrará alguém, os padrinhos deles poderiam...
- Não - repito. - Não, Mãe, não. Não consigo pôr essa hipótese. Eles
não vão sair de casa.
- Filha? - vira o meu rosto para o luar para me conseguir ver mais
claramente. - Nem parece vosso, este capricho repentino e sem motivo. E
todas as mães do mundo têm de deixar os filhos saírem de casa para
aprenderem a ser homens.
- Os meus filhos não vão ser levados para longe de mim - consigo
ouvir a minha voz tremer. - Tenho medo... Tenho medo por eles. Receio...
Receio por eles. Nem sequer sei o quê. Mas não posso deixar os meus
filhos partirem para casa de estranhos.
Ela coloca o braço caloroso em volta da minha cintura.
- Bem, isso é bastante natural - diz carinhosamente. - Perdestes o
vosso marido; é natural que queirais manter os vossos filhos em segurança.
Mas, um dia, eles vão ter de partir, sabeis.
Não cedo à pressão suave que ela exerce sobre mim.
- É mais do que um capricho - digo. - É mais como...
- É uma Visão? - pergunta ela, num tom de voz muito baixo. -
Tendes conhecimento de algo que lhes pode acontecer? Haveis tido uma
Visão, Isabel?
Abano a cabeça e as lágrimas começam a brotar.
- Não sei, não sei. Não posso dizer. Mas a ideia de os afastarem de
mim, e de serem estranhos a cuidar deles, de eu acordar durante a noite e de
saber que não estão sob o mesmo tecto que eu, de despertar de manhã e de
não ouvir as vozes deles, a ideia de eles estarem num quarto estranho,
servidos por estranhos, não me podendo ver... Não consigo suportá-la. Nem
sequer a ideia consigo suportar.
Ela envolve-me com os braços.
- Calma - diz ela. - Calma. Não tendes de pensar nisso. Falarei com o
vosso pai. Eles não precisam de partir, até vós sentirdes que aceitais a
situação - pega-me na mão. - Bem, estais gelada - afirma ela, surpreendida.
Toca no meu rosto com uma certeza súbita. - Não se trata de um capricho,
quando estais simultaneamente fria e quente, debaixo do luar. Isto é uma
Visão. Minha querida, haveis sido avisada de que os vossos filhos correm
perigo.
Abano a cabeça.
- Não sei. Não posso ter a certeza. Só sei que ninguém nunca me
deveria tirar os meus filhos. Nunca os deixarei partir.
Ela concorda com a cabeça.
- Muito bem. Convencestes-me, pelo menos. Haveis visto um
qualquer perigo para os vossos filhos, se eles forem levados para longe de
vós. Assim seja. Não choreis. Mantereis os vossos filhos perto de vós e nós
mantê-los-emos em segurança.
Então, espero. Ele disse-me claramente que nunca voltaria a vê-lo,
por isso, não espero por nada, sabendo muito bem que estou à espera de
nada. Mas, de algum modo, não consigo deixar de estar à espera. Sonho
com ele: sonhos apaixonados, de dsejo ardente, que me despertam a meio
da noite, enrolada lençol, a transpirar de desejo. O meu pai pergunta-me
porque não como. António abana a cabeça na minha direcção simulando o
seu pesar.
A minha mãe dardeja-me com olhos brilhantes e diz:
- Ela está bem. Ela vai comer.
As minhas irmãs sussurram, para me perguntar se estou a jejuar pelo
rei bonito, e eu digo severamente:
- Não me servia de nada.
E, então, espero.
Espero mais sete noites e sete dias, como uma donzela numa torre de
um conto de fadas, como Melusina banhando-se na fonte, no meio da
floresta, esperando que um cavaleiro surdisse, a cavalo, por caminhos não
trilhados, e a amasse. Todas as noites puxo um pouco mais o laço de fio até
que, ao oitavo dia, ouço um reduzido tilintar de metal a bater na pedra, olho
para a água e vejo um clarão dourado. Inclino-me para o retirar. É um anel
de ouro, belo e simples. Um lado é liso, mas o outro tem quatro
extremidades forjadas, como se fossem as extremidades de uma coroa.
Ponho-o na palma da minha mão, onde ele deixou o seu beijo, e parece um
diadema em miniatura. Enfio-o no dedo da minha mão direita - não estou a
atrair a infelicidade ao colocá-lo no meu dedo do anel de noivado - e serve-
me perfeitamente e fica-me bem. Retiro-o com um encolher de ombros,
como se não fosse de ouro forjado borgonhês da mais alta qualidade. Meto-
o no bolso, e dirijo-me a casa com ele guardado em segurança.
E, ali - sem aviso -, ali está um cavalo à porta e um cavaleiro em
cima dele, um estandarte sobre a sua cabeça, a rosa branca da Casa de
Iorque desfraldada à brisa. O meu pai está diante da porta da entrada, que
se encontra aberta, a ler uma carta. Ouço-o dizer:
- Dizei a Sua Graça que terei toda a honra. Estarei lá depois de
amanhã.
O homem faz uma vénia em cima da sela, lança-me uma saudação
casual, espora o cavalo e parte.
- O que é que se passa? - pergunto, subindo as escadas.
- Uma convocação - diz o meu pai com um ar severo. - Todos temos
de partir outra vez para a guerra.
- Vós não! - digo com medo. - Vós não, Pai. Outra vez, não.
- Não. O rei ordena-me que indique dez homens de Grafton e cinco
de Stony Stratford. Preparados e equipados para marcharem sob as suas
ordens contra o rei da Casa de Lencastre. Temos de mudar de lado. Ao que
parece, o jantar que lhe oferecemos saiu-nos caro.
- E quem vai liderá-los? - tenho tanto medo de que ele diga os meus
irmãos: - Não é o António? Nem o João?
- Eles têm de servir sob as ordens de Sir Guilherme Hastings - afirma
ele. - Ele irá integrá-los nas tropas treinadas.
Hesito.
- Ele disse mais alguma coisa?
- Isto é uma convocatória - replica o meu pai num tom irritado. - Não
é um convite para o pequeno-almoço do primeiro de Maio. É claro que ele
não disse nada, excepto que passariam por cá, de manhã, depois de
amanhã, e que os homens têm de estar prontos para se alinharem nessa
altura.
Roda sobre os calcanhares e entra em casa, deixando-me com o anel
de ouro, em forma de coroa, pontiagudo, no bolso.
A minha mãe sugere, ao pequeno-almoço, que as minhas irmãs e eu,
e os dois primos que estão hospedados em nossa casa, poderíamos gostar
de ver o exército passar, e os nossos homens partirem para a guerra.
- Não consigo imaginar porquê - retorque o meu pai, irritado. - Seria
de pensar que já havíeis visto homens suficientes! partirem para a guerra.
- Fica bem manifestarmos o nosso apoio - diz ela em voz baixa. - Se
ele vencer, será melhor para nós se ele pensar que enviámos os homens
voluntariamente. Se ele perder, ninguém vai lembrar-se de que assistimos à
passagem dele, e podemos negá-lo.
- Sou eu que lhes vou pagar, não sou? Vou armá-los com o que
tenho? As armas que me restam da última vez que saí para combater, e que,
por sinal, foi contra ele? Vou juntá-las, vou enviá-las e comprar botas para
os que não têm nenhumas. Seria de pensar que estava a demonstrar o meu
apoio!
- Então, temos de fazê-lo de boa vontade - diz a minha mãe.
Ele concorda com a cabeça. Sempre cedeu perante a minha mãe,
neste tipo de questões. Ela era uma Duquesa, casada com o nobre Duque de
Bedford, quando o meu pai não era mais do que o escudeiro do marido
dela. Ela é filha do Conde de Saint-Pol, da família real da Borgonha, e é
uma cortesã sem igual.
- Gostaria que viésseis connosco - prossegue ela. - E talvez
pudéssemos encontrar uma bolsa com ouro, na sala do tesouro, para Sua
Graça.
- Uma bolsa com ouro! Uma bolsa com ouro! Para fazer guerra
contra o Rei Henrique? Agora somos Iorquistas?
Ela espera até a revolta dele acalmar.
- Para mostrarmos a nossa lealdade - diz ela. - Se ele derrotar o Rei
Henrique e voltar a Londres vitorioso, então, será a sua corte e os seus
favores reais que serão a origem de toda a riqueza e de todas as
oportunidades. Será ele quem distribuirá as terras e quem terá a
responsabilidade das nomeações para os cargos, será também ele quem
autorizará os casamentos. E nós temos uma família numerosa, com muitas
raparigas, Sir Ricardo.
Por um momento, todas ficamos paralisadas e de cabeças baixas,
prevendo uma das explosões atroadoras do meu pai. Depois, com
relutância, ele ri-se.
- Deus vos abençoe, minha oradora fascinante - diz. - Tendes razão,
como tendes sempre. Farei o que dizeis, apesar de ser contra os meus
princípios, e podeis dizer às meninas que usem rosas brancas, se
conseguirem encontrar alguma nesta altura.
Ela inclina-se para ele e dá-lhe um beijo na bochecha.
- As roseiras-bravas estão em botão nas sebes - diz ela. Não é tão
bom como se estivessem completamente floridas, mas ele perceberá a
nossa intenção, e é só isso que importa.
É claro que durante o resto do dia as minhas irmãs e primas estão
frenéticas, experimentando roupas, lavando o cabelo, trocando fitas e
ensaiando as suas reverências. A mulher de António, Isabel, e duas das
nossas damas de companhia mais calmas dizem que não irão, mas todas as
minhas irmãs estão fora de si, de entusiasmo. O rei e a maior parte dos
lordes da sua corte irão passar por aqui. Que oportunidade para causar boa
impressão aos homens que irão ser os novos senhores deste país! Se
vencerem.
- O que ides vestir? - pergunta-me Margarida, vendo-me distante do
entusiasmo.
- Usarei o meu vestido cinzento e o meu véu cinzento.
- Esse não é o vosso melhor vestido; é apenas o que vestis aos
domingos. Porque não pondes o azul?
Encolho os ombros.
- Vou porque a Mãe quer que vamos - afirmo. - Não espero que
ninguém olhe duas vezes para nós - retiro o vestido do armário e sacudo-o.
Tem um corte ajustado ao corpo com meia cauda atrás. Combino-o com um
cinto cinzento, um pouco descaído sobre a minha cintura. Não digo nada a
Margarida, mas sei que me favorece mais do que o meu vestido azul.
- Depois de o rei ter vindo pessoalmente jantar, convidado por vós? -
exclama ela. - Porque não olharia duas vezes para vós? Da primeira vez,
olhou bastante. Ele deve gostar de vós: devolveu-vos as vossas terras; veio
cá jantar. Passeou no jardim convosco. Porque não viria cá a casa outra
vez? Porque não vos haveria de favorecer?
- Porque, entre essa altura e agora, eu consegui o que queria, mas ele
não - digo cruamente, atirando o vestido para o lado. - E, ao que parece, ele
não é um rei tão generoso como os das baladas. O preço pela gentileza dele
era elevado, demasiado elevado para mim.
- Nunca quis possuir-vos? - murmura ela, horrorizada.
- Exactamente.
- Oh, meu Deus, Isabel. O que dissestes? O que fizestes?
- Disse que não. Mas não foi fácil.
Ela fica deliciosamente escandalizada.
- Ele tentou forçar-vos?
- Não muito. Não importa - balbucio. - E não é que eu fosse mais
importante para ele do que uma rapariga que estava na beira da estrada.
- Talvez não devêsseis vir amanhã - sugere ela. - Se ele vos ofendeu.
Podeis dizer à Mãe que estais doente. Eu digo-lhe, desejardes.
- Oh, eu vou - digo, como se, de qualquer forma, me fosse
indiferente.
De manhã, já não tenho tanta coragem. Uma noite sem dormir, o
pedaço de pão e a carne de vaca ao pequeno-almoço não contribuem para
melhorar o meu aspecto. Estou pálida como mármore e, ainda que
Margarida esfregue ocre vermelho nos meus lábios, não perco o ar abatido,
uma beleza espectral. Entre as minhas irmãs e primas belamente vestidas,
eu, com o meu vestido e o meu toucado cinzentos, destaco-me como uma
noviça num convento. Mas, quando a minha mãe me vê, assente, agradada.
- Pareceis uma dama - diz ela. - Não como algumas raparigas
camponesas enfeitadas com as suas melhores vestes para irem a uma feira.
Como repreensão, aquele comentário não surte efeito. As raparigas
estão tão encantadas por lhes ser permitido comparecer na convocação que
não se importam nada de serem repreendidas por estarem exageradamente
ornamentadas. Descemos juntas a estrada em direcção a Grafton e vemos
diante de nós, ao lado da estrada nacional, um grupo errante de homens
armados com bordões, um ou dois com mocas: os recrutas do meu Pai. Deu
a todos uma divisa com uma rosa branca e relembrou-lhes que, agora,
devem lutar pela Casa de Iorque. Costumavam ser soldados de infantaria da
Casa de Lencastre; têm de recordar-se de que, agora, são vira-casacas. É
claro, é-lhes indiferente a mudança de lealdade. Combatem conforme ele
lhes ordenou, porque ele é o senhorio deles, o proprietário dos campos que
eles trabalham, das suas casas, de quase tudo o que vêem à sua volta. É
dele o moinho onde moem o milho, a taberna onde bebem paga-lhe renda.
Alguns deles nunca passaram além das terras que lhe pertencem. Quase não
conseguem imaginar um mundo no qual ”escudeiro” não signifique,
simplesmente, Sir Ricardo Woodville, ou o filho, que se lhe seguirá.
Quando ele era partidário da Casa de Lencastre, eles também eram. Depois,
foi-lhe concedido o título Rivers, mas eles continuaram a ser dele e ele
deles. Agora manda-os combater pela Casa de Iorque e eles farão o seu
melhor, como sempre. Foi-lhes prometido que seriam remunerados por
combaterem, e que as suas viúvas e Filhos seriam amparados, no caso de
eles perderem a vida. É tudo o que precisam de saber. Isso não faz deles um
exército inspirado, mas eles levantam a voz, numa saudação rude ao meu
pai, e retiram os chapéus com sorrisos apreciadores pelas minhas irmãs e
por mim, e as suas mulheres e os seus filhos inclinam-se em vénias, quando
nos dirigimos a eles.
As trombetas começam a tocar repentinamente e todas as cabeças se
voltam na direcção do ruído. Contornando a esquina, num trote regular,
surgem as cores e os trombeteiros do rei, atrás deles, os arautos, atrás deles,
os alabardeiros da casa real, e, no meio de todo aquele bramido e de
estandartes ondulantes, está ele.
Por um momento, sinto que vou desmaiar, mas a mão da minha mãe
mantém-se firme sob o meu braço, e eu acalmo-me. Ele levanta a mão,
dando sinal para que parem, e a cavalgada detém-se. Atrás dos primeiros
cavalos e cavaleiros, está um longo séquito de homens armados; atrás
deles, outros novos recrutas, com um ar acanhado, como os nossos homens,
e depois uma comitiva de carroças com alimentos, mantimentos, armas,
uma enorme carreta puxada por quatro cavalos de tiro maciços, e uma fila
de póneis e mulheres, acompanhantes da campanha e seres errantes. É
como uma pequena cidade em movimento; uma pequena cidade mortífera,
que se desloca para fazer o mal.
O Rei Eduardo toma balanço para desmontar do seu cavalo, e dirige-
se ao meu pai, que se baixa numa vénia:
- Foi tudo o que conseguimos reunir, lamento, Vossa Graça. Mas
juraram servir-vos - afirma o meu pai. - E isto, para ajudar a vossa causa.
A minha mãe dá um passo em frente e oferece a bolsa com ouro. O
Rei Eduardo pega nela e avalia o peso na sua mão e, em seguida, beija-a
cordialmente em ambas as bochechas.
- Sois generosos - diz. - E eu não esquecerei o vosso apoio.
Os olhos dele deslocam-se dela para mim, para o lugar onde estou
com as minhas irmãs, e todas fazemos uma reverência ao mesmo tempo.
Quando me levanto, ele continua a olhar para mim, e há um momento em
que todo o ruído do exército, dos cavalos e dos homens a alinharem-se se
transforma em silêncio, e é como se só existíssemos eu e ele, sozinhos, no
mundo inteiro. Sem pensar no que estou a fazer, como se ele me tivesse
chamado sem proferir uma palavra, dou um passo na sua direcção, e depois
mais um, até ter ultrapassado o meu pai e a minha mãe, e estar cara a cara
com ele, tão perto que ele poderia beijar-me, se o desejasse.
- Não consigo dormir - diz ele, tão baixo que só eu o consigo ouvir. -
Não consigo dormir. Não consigo dormir. Não consigo dormir.
- Nem eu.
- Vós também não?
- Não.
- De verdade?
- Sim.
Ele dá um profundo suspiro, como se estivesse aliviado.
- Então, é amor?
- Suponho que sim.
- Não consigo comer.
- Não.
- Não consigo pensar noutra coisa que não seja em vós. Não posso
continuar nem um segundo assim; não consigo cavalgar para a batalha
deste modo. Sou tão tonto como um rapazinho. Estou louco por vós, como
um rapazinho. Não consigo ficar sem vós; não ficarei sem vós. Seja o que
for que me custe.
Consigo sentir a cor do meu rosto intensificar-se, bem como o calor
nas minhas faces, e, pela primeira vez em dias, consigo sentir-me rir.
- Não consigo pensar em nada excepto em vós - murmuro. - Nada.
Pensei que estava doente.
O anel em forma de coroa pesa-me no bolso, o meu toucado
arrepanha-me o cabelo; mas estou ali sem me aperceber de nada, não vendo
nada para além dele, não sentindo nada senão o seu hálito morno na minha
cara e o odor do seu cavalo, da pele da sua sela, bem como o seu cheiro:
especiarias, água de rosas. suor.
- Estou louco por vós - diz ele.
Sinto o meu sorriso abrir-se nos meus lábios, quando, por fim, olho
para o seu rosto.
- E eu por vós - digo em voz baixa. - De verdade.
- Bem, então, casai comigo.
- O quê?
- Casai comigo. Não há mais nada a fazer.
Dou um risinho nervoso.
- Estais a brincar comigo.
- Estou a falar a sério. Penso que vou morrer se não vos tiver.
Quereis casar comigo?
- Sim - murmuro.
- Amanhã, de manhã, chegarei a cavalo, bem cedo. Casai comigo,
amanhã, de manhã, na vossa pequena capela. Trarei o meu capelão, vós
trazeis testemunhas. Escolhei alguém em quem possais confiar. Terá de
permanecer em segredo durante algum tempo. Quereis fazê-lo?
- Sim.
Pela primeira vez, ele sorri, um sorriso caloroso que se espalha pelo
seu rosto claro e largo.
- Valha-me Deus, poderia tomar-vos nos meus braços, neste preciso
momento - diz ele.
- Amanhã - sussurro.
- Às nove da manhã - diz ele. Ele volta-se para o meu pai.
- Podemos oferecer-vos refrescos? - pergunta o meu pai,; olhando do
meu rosto enrubescido para o rei sorridente.
- Não, mas amanhã jantarei convosco, se for possível - diz ele. -
Estarei a caçar aqui perto, e espero passar um bom dia - faz uma vénia à
minha mãe e a mim, lança uma saudação às minhas irmãs e primas e,
ganhando balanço, monta na sela. - Alinhar - diz ele para os homens. - É
uma marcha curta, uma boa causa e um jantar, quando paramos. Sede leais
para comigo e eu serei um bom senhor para vós. Nunca perdi uma batalha,
e vós estareis seguros comigo. Levar-vos-ei a um excelente saque e trar-
vos-ei em segurança de volta a casa.
São precisamente as palavras certas a dizer-lhes. E, por uma vez,
ficam com um ar mais alegre e dirigem-se, arrastando os pés, para o fim da
linha, as minhas irmãs acenam com as suas rosas em botão, os trombeteiros
fazem-se ouvir, e todo o exército avança novamente. Ele faz-me um sinal
com a cabeça sem sorrir, e eu ergo a mão, numa despedida.
- Amanhã - murmuro quando ele passa por mim.
Tenho dúvidas em relação a ele, mesmo quando dou ordem ao pajem
da minha mãe para despertar de manhã e dirigir-se à capela, pronto para
cantar um salmo. Tenho dúvidas em relação a ele, mesmo quando vou ter
com a minha mãe e lhe digo que o Rei da Inglaterra, em pessoa, me disse
que deseja casar comigo em segredo e lhe pergunto se pode vir comigo e
ser minha testemunha, e que traga a sua dama de companhia, Catarina.
Tenho dúvidas em relação a ele, quando, com o meu melhor vestido azul,
fico ali, no ar frio da manhã da pequena capela. Tenho dúvidas em relação
a ele até ao preciso momento em que ouço os seus passos apressados
avançarem pela curta nave lateral, até sentir o seu braço em volta da minha
cintura e o seu beijo na minha boca, e ouvi-lo dizer ao padre:
- Casai-nos, Padre. Estou com pressa.
O rapaz canta o seu salmo e o padre pronuncia as palavras. Faço o
meu juramento e ele o seu. Indistintamente, vejo o rosto encantado da
minha mãe e as cores da janela de vidro fosco projectarem um arco-íris aos
nossos pés, no chão de pedra da capela.
Então, o padre pergunta:
- E a aliança?
E o rei responde:
- Uma aliança! Sou um palerma! Esqueci-me! Não tenho uma
aliança para vós - vira-se para a minha mãe. - Vossa senhoria, podeis
emprestar-me um anel?
- Oh, mas eu tenho um - digo, quase surpreendida comigo mesma. -
Tenho um aqui - do bolso, tiro o anel que retirei tão lenta e pacientemente
da água, o anel em forma da coroa da Inglaterra, que veio com a magia
marinha para realizar os desejos do meu coração, e o próprio Rei da
Inglaterra mete-mo no dedo, como aliança de casamento. E eu sou mulher
dele.
E Rainha da Inglaterra - ou, pelo menos, a Rainha da Inglaterra da
Casa de Iorque.
O braço dele está bastante apertado em volta da minha cintura e o
rapaz canta a ordem, depois, o rei vira-se para a minha mãe e pergunta:
- Vossa senhoria? Para onde posso levar a minha noiva?
A minha mãe sorri e dá-lhe uma chave.
- Há uma cabana de caça junto ao rio - volta-se para mim. - A
Cabana do Rio. Pedi que a preparassem para vós.
Ele assente com a cabeça, arrasta-me para fora da pequena capela e
pega em mim para me pôr em cima do seu cavalo de caça. Monta atrás de
mim e sinto os seus braços apertarem-se em meu redor, quando ele toma as
rédeas. Seguimos a passo ao longo da margem do rio e, quando me encosto
para trás, posso sentir o coração dele bater. Conseguimos avistar a pequena
cabana por entre as árvores e há uma onda de fumo a sair da chaminé. Ele
balança-se para desmontar do cavalo e ergue-me para que eu desça, leva o
animal para os estábulos, nas traseiras da casa, enquanto eu abro a porta. É
um lugar simples, com a lareira acesa, um jarro de cerveja de casamento e
duas canecas sobre a mesa de madeira, dois bancos preparados para
comermos o pão, o queijo e a carne, e uma grande cama de madeira, feita
com os melhores lençóis de linho. A divisão escurece, quando ele passa a
porta da entrada, baixando-se para passar sob as vigas do tecto.
- Vossa Graça... - começo a dizer e depois corrijo-me. Meu senhor.
Marido.
- Esposa - diz ele, com uma satisfação tranquila. - Vamos para a
cama.
O sol da manhã, que estava tão luminoso, ao incidir nas traves e no
tecto revestido a água de cal, quando fomos para cama, está a tornar o local
dourado, ao final da tarde, altur em que ele me diz:
- Agradeço à Nossa Senhora dos Céus por o vosso pai me ter
convidado para jantar. Sinto-me fraco por causa da fome. Estou a morrer de
fome. Deixai-me sair da cama, sua bruxa
- Ofereci-vos pão e queijo, há duas horas - relembro-lhe -, mas vós
não me deixastes fazer os três passos até à mesa, para os ir buscar para vós.
- Estava ocupado - diz ele, e puxa-me novamente para junto do seu
ombro despido. Com o seu cheiro e o toque da sua pele, sinto o meu
desejo por ele crescer novamente e movemo-nos juntos. Quando nos
deitamos de costas, a divisão está rosada com a luz do pôr do Sol, e ele sai
da cama.
- Tenho de me lavar - diz. - Quereis que vos traga um jarro de água
do pátio?
A cabeça dele roça no tecto; o corpo é perfeito. Observo-o da cabeça
aos pés com satisfação, como um corretor de cavalos olha para um belo
garanhão. É alto e magro, os seus músculos são duros, e o peito largo, os
ombros fortes. Sorri para mim e o meu coração palpita por ele.
- Estais com ar de quem tem vontade de me devorar - diz.
- E tenho - respondo. - Não consigo imaginar como vou conseguir
saciar o meu desejo por vós. Creio que vou ter de vos manter prisioneiro
aqui e de vos comer em pequenas costeletas, dia após dia...
- Se eu vos fizesse prisioneira, devorar-vos-ia de um ávido trago - ri-
se ele. - Mas vós não sairíeis enquanto não estivésseis grávida.
- Oh! - o pensamento mais encantador invade-me agora. Oh, irei dar-
vos filhos e eles irão ser príncipes.
- Ireis ser a mãe do Rei da Inglaterra, e a mãe da Casa de Iorque, que
governará para sempre, se Deus assim o quiser.
- Ámen - digo devotamente, e não sinto nenhuma sombra, nenhum
tremor, nem qualquer sensação de intranquilidade. Que Deus vos envie de
volta a casa, para junto de mim, em segurança.
- Eu venço sempre - diz ele na sua confiança suprema. - Ficai feliz,
Isabel. Não ireis perder-me no campo de batalha.
- E irei ser rainha - digo novamente. Pela primeira vez, compreendo,
compreendo verdadeiramente que, se ele regressar a casa da batalha como
rei legítimo, é porque Henrique estará morto; então, este jovem será o
inquestionável Rei da Inglaterra - e eu serei a primeira dama do país.
Depois do jantar, ele despede-se do meu pai e prepara-se para partir
para Northampton. O seu pajem veio aos estábulos e deu de comer e de
beber aos cavalos, deixando-os, em seguida, prontos, à porta.
- Voltarei amanhã à noite - diz ele. - Tenho de ver os meus homens e
de reunir o meu exército, o dia todo. Mas virei ter convosco, ao final do
dia.
- Vinde ter à cabana de caça - murmuro. - E terei lá jantar para vós,
como uma boa esposa.
- Amanhã à noite - promete ele. Depois, volta-se para o meu pai e a
minha mãe e agradece-lhes pela hospitalidade, agradece as vénias deles
com um aceno de cabeça, e sai.
- Sua Graça é muito atencioso convosco - comenta o meu pai. - Não
permitais que isso vos dê a volta à cabeça.
- A Isabel é a mulher mais bonita da Inglaterra - responde docemente
a minha mãe. - E ele aprecia um rosto bonito; mas ela conhece bem os seus
deveres.
E depois, tenho de continuar a esperar. Ao longo da noite, depois de
jogar às cartas com os meus filhos e de os ouvir dizer as suas orações e
preparar-se para dormir. Ao longo de toda a noite, e, apesar de estar
exausta e deliciosamente dorida, não consigo dormir. Durante todo o dia
seguinte, quando caminho e falo, é como se estivesse num sonho, à espera
que chegue a noite, o momento em que a sua cabeça espreite pela porta e
ele entre na pequena divisão, me envolva com os braços e diga:
- Esposa, vamos para a cama.
Passam três noites, nesta bruma de prazer, até à última manhã, em
que ele me diz:
- Tenho de ir, meu amor, e ver-vos-ei quando tudo estiver terminado
- é como se alguém me tivesse atirado água gelada para a cara, fico
sobressaltada e digo:
- Ides partir para a guerra?
- Já tenho o meu exército reunido, e os meus espiõel comunicaram-
me que Henrique recebeu ordens da mulher para se encontrar com ela na
costa leste, com as tropas dela. Partirei imediatamente e trá-lo-ei para a
batalha e, em seguida, marcharei ao encontro dela, assim que ela
desembarcar.
Agarro a sua camisa, quando ele a veste.
- Não ides partir já?
- Hoje - diz ele, afastando-me gentilmente, e continuando a vestir-se.
- Mas eu não suporto estar sem vós.
- Não. Mas ides suportar. Agora ouvi.
Este é um homem diferente do jovem amante arrebatado da nossa
lua-de-mel de três noites. Não tenho pensado em mais nada, a não ser no
nosso prazer; mas ele tem estado a fazer planos. É um rei que está a
defender o seu reino. Espero para ouvir as ordens que ele me vai dar.
- Se vencer, e eu irei vencer, voltarei para junto de vós e, logo que
possível, anunciaremos o nosso casamento. Haverá muitos a quem essa
ideia desagradará, mas está consumado, tudo o que podem fazer é aceitá-lo.
Assinto. Sei que o seu grande conselheiro, Lorde Warwick, está a
planear o seu casamento com uma princesa francesa, e Lorde Warwick está
habituado a dar ordens ao meu jovem marido.
- Se a sorte me for contrária e eu morrer, então, vós não direis nada
acerca deste casamento e destes dias - ergue a mão para silenciar a minha
objecção. - Nada. Não teríeis nada a ganhar por ser a viúva de um impostor
falecido, cuja cabeça será espetada nos portões de Iorque. Seria a vossa
ruína. Tanto quanto todos sabem, sois filha de uma família que é leal à
Casa de Lencastre. Deveis permanecer desse modo. Ireis recordar-vos de
mim nas vossas preces, espero. Mas será um segredo entre mim, vós e
Deus. E de certeza que dois de nós Manteremos o silêncio, porque um de
nós é Deus e o outro estará morto.
- A minha mãe sabe...
- A vossa mãe sabe que a melhor forma de vos manter em segurança
será silenciar o pajem e a dama de companhia. E já está preparada para
isso, ela compreende, e eu dei-lhe dinheiro.
Engulo um soluço.
- Muito bem.
E gostaria que vos casásseis de novo. Escolhei um bom homem, um
que vos ame e que tome conta dos vossos filhos, e sede feliz. Eu gostaria
que fôsseis feliz.
Inclino a cabeça num tormento emudecido.
”Mas, se tiverdes um rapaz, é completamente diferente. O meu filho
irá ser o herdeiro ao trono. Será o herdeiro da Casa de Iorque. Tereis de o
manter em segurança. Podereis ter de o manter escondido, até ter idade
suficiente para reivindicar os seus direitos. Pode viver sob um nome falso;
pode viver com gente pobre. Não sejais perfidamente orgulhosa. Escondei-
o num lugar seguro, até ele ter idade e força suficientes para reclamar a sua
herança. Ricardo e Jorge, os meus irmãos, serão os seus tios e guardiães.
Podeis confiar neles para proteger qualquer filho meu. Pode acontecer que
Henrique e o filho morram cedo e, então, o vosso filho será o único
herdeiro do trono da Inglaterra. Não conto com a mulher da Casa de
Lencastre, Margarida Beaufort. O meu filho deverá receber trono. É meu
desejo que ele fique com o trono, se conseguir conquistá-lo, ou se Ricardo
e Jorge puderem conquistá-lo para ele. Compreendeis? Tendes de esconder
o meu filho na Flandres e de o manter em segurança, por mim. Ele poderá
ser o próximo rei da Casa de Iorque.
- Sim - respondo simplesmente. Apercebo-me de que o meu
sofrimento e o meu temor por ele já não são um assunto privado. Se
gerámos um filho, nestas longas noites de amor, então ele não é apenas um
filho do amor, é um herdeiro do trono, um pretendente, um novo jogador na
antiga e mortífera rivalidade que existe entre as Casas de Iorque e de
Lencastre.
- Isto está a ser difícil para vós - diz ele, vendo o meu rosto pálido. -
A minha intenção é que nunca aconteça. Mas não vos esqueçais, o vosso
refúgio é a Flandres, se tiverdes de esconder o meu filho num lugar seguro.
E a vossa mãe tem dinheiro e sabe aonde se dirigir.
- Não esquecerei - digo. - Voltai para mim.
Ele ri-se. Não é um riso forçado; é o riso de um homem feliz,
confiante na sua sorte e nas suas capacidades.
- Voltarei - diz ele. - Confiai em mim. Casastes com um homem que
vai morrer no seu leito, de preferência depois de ter feito amor com a
mulher mais bonita da Inglaterra.
Estende os braços e eu aproximo-me e sinto o calor do seu abraço.
- Certificai-vos de que o fazeis - digo. - E eu assegurar-me-ei de que
a mais bonita mulher da Inglaterra, aos vossos olhos, seja sempre eu.
Beija-me, mas bruscamente, como se a sua mente já estivesse em
qualquer outra parte, e aparta-se da minha mão que o agarra. Já se afastou
de mim, muito antes de baixar a cabeça para passar na porta, e vejo que o
pajem já lhe trouxe o cavalo até à porta e está pronto para partir.
Corro para o exterior para lhe dizer adeus e ele já está em cima da
sela. O seu cavalo está a dançar no mesmo lugar; é um enorme animal cor
de avelã, forte e possante. Arqueia o pescoço e tenta recuar, lutando contra
as rédeas mantidas curtas por Eduardo. O Rei da Inglaterra ergue-se contra
o sol, no seu gigantesco cavalo de guerra, e, por um momento, também eu
acredito que ele é invencível.
- Que Deus vos acompanhe, boa sorte! - grito, e ele saúda-me e
esporeia o cavalo, partindo, o legítimo Rei da Inglaterra, para combater o
outro legítimo Rei da Inglaterra, pelo próprio reino.
Fico ali, com a mão levantada, num gesto de adeus, até deixar de ver
o seu estandarte com a rosa branca de Iorque, que segue à sua frente, até
deixar de ouvir o bater dos cascos do seu cavalo, até ele estar longe de
mim; e então, para meu horror, o meu irmão António, que tem estado a ver
tudo isto, sabe Deus há quanto tempo, sai de debaixo da sombra das árvores
e caminha em direcção a mim.
- Sua pega! - diz ele.
Fico a olhar para ele como se não compreendesse o significado da
palavra.
- Sois uma pega. Envergonhastes a nossa casa e o vosso nome, bem
como o nome do vosso pobre marido falecido, que morreu a combater
aquele usurpador. Deus vos perdoe, Isabel. Vou imediatamente contar tudo
ao meu pai, e ele irá mandar-vos para um convento, se não vos estrangular
antes.
- Não! - dou um passo em frente e agarro-lhe o braço, mas ele
sacode-me.
- Não me toqueis, sua puta! Julgais que quero ter as vossas mãos
sobre mim depois de terem andado por todo o corpo dele?
- António, isto não é o que pensais!
- Os meus olhos estão a enganar-me? - dispara ele brutalmente. - Isto
é um feitiço? Sois Melusina? Uma bela deusa que se banha nos bosques e
aquele que acabou de partir um cavaleiro que jurou servir-vos? Isto agora é
Camelot? Um amor honrado? Trata-se de poesia e não da sarjeta?
- É honrado! - sou levada a responder.
- Não conheceis o significado dessa palavra. Sois uma puta, e ele vai
entregar-vos a Sir Guilherme Hastings, quando voltarem a passar por aqui,
como faz com todas as suas pegas.
- Ele ama-me!
- Como diz a todas.
- Ama. E vai voltar para mim...
- Como promete sempre.
Furiosa, lanço o punho na sua direcção e ele baixa-se, escapando a
um murro no rosto. Depois vê o cintilar do ouro no meu dedo e quase se ri.
- Ele deu-vos isso? Um anel? Devo ficar impressionado com um
símbolo de amor?
- Não é um símbolo de amor, é uma aliança de casamento. Uma
aliança apropriada oferecida no casamento. Estamos casados - faço o meu
anúncio em triunfo, mas fico imediatamente desapontada.
- Valha-me Deus, ele enganou-vos - diz ele, angustiado. Abraça-me e
aperta-me a cabeça junto ao peito. - Minha pobre irmã, minha pobre tonta.
Debato-me para me soltar.
- Deixai-me, não sou tonta de ninguém. O que dizeis?
Ele olha para mim com pena, mas a sua boca contorce-se num
sorriso amargo.
- Peixai-me adivinhar, foi um casamento secreto, numa capela
privada? Nenhum dos amigos e cortesãos dele esteve presente? Não podeis
dizer nada a Lorde Warwick? Tendes de o manter em segredo? Tendes de
negar, se vos perguntarem?
- Sim. Mas...
- Não estais casada, Isabel. Haveis sido enganada. Foi uma cerimónia
simulada que não tem qualquer valor aos olhos de Deus nem dos homens.
Enganou-vos com um anel falso e um padre simulado, para conseguir
levar-vos para a cama.
- Não.
- Este é o homem que espera ser Rei da Inglaterra. Tem de casar com
uma princesa. Não vai casar com uma qualquer viúva indigente, que
encontrou na beira da estrada, a pedir-lhe que lhe devolvesse o seu dote. Se
ele alguma vez casar com uma mulher inglesa, será com uma das grandes
damas da corte dos Lencastre, provavelmente a filha de Warwick, Isabel.
Não vai casar com uma rapariga cujo pai lutou contra ele. É mais provável
que case com uma grande princesa da Europa, uma infanta da Espanha, ou
uma dauphine da França. Ele tem de casar de modo a obter uma posição
mais segura no trono, de forma a fazer alianças. Não vai casar com um
rosto bonito, por amor. Lorde Warwick nunca o permitiria. E ele não é
assim tão louco, ao ponto de ir contra os seus Próprios interesses.
- Ele não tem de fazer o que Lorde Warwick quer! Ele é o rei.
- Ele é uma marioneta de Warwick - afirma cruelmente o meu irmão.
- Lorde Warwick decidiu apoiá-lo, tal como o pai de Warwick apoiou o pai
de Eduardo. Sem o apoio de Warwick, nem o vosso amante nem o pai dele
poderiam ter feito nada da sua reivindicação ao trono. Warwick é o fazedor
de reis, e transformou o vosso amante em Rei da Inglaterra. Podeis estar
certa de que também irá inventar uma rainha. Será ele a escolher com quem
Eduardo casará, e Eduardo casará com a pessoa que ele decidir.
Estou tão estupefacta que fico sem palavras.
- Mas ele não o fez. Não pode fazê-lo. Eduardo casou-se comigo.
- Não foi. Houve testemunhas.
- Quem?
- A nossa Mãe, por exemplo - digo casualmente.
- A nossa mãe?
- Foi testemunha, juntamente com Catarina, a sua dama de
companhia.
- E o Pai sabe? Ele esteve lá?
Abano a cabeça.
- Aí tendes, então - diz ele. - Quem são as vossas muitas
testemunhas?
- A Mãe, Catarina, o padre e um menino do coro - digo.
- Que padre?
- Um que não conheço. O rei ordenou-lhe que viesse.
Ele encolhe os ombros.
- Se é que era padre. É mais provável que fosse um louco, ou actor,
fingindo por favor. Mesmo que seja um padre ordenado, o rei ainda pode
negar que o casamento tenha sido válido e será a palavra de três mulheres e
de um rapaz contra a do Rei da Inglaterra. É o suficiente para vos mandar
deter, com base numa acusação qualquer e para vos manter presas por cerca
de um ano, até ele casar com uma princesa da sua escolha. Fez-vos, a vós e
à Mãe, passar por idiotas.
- Juro-vos que ele me ama.
- Talvez ele ame - admite ele. - Como talvez ame cada uma das
mulheres com quem se deitou, e há centenas delas. Mas e quando a batalha
estiver terminada e ele voltar para casa, vir outra menina bonita na beira da
estrada? Esquecer-vos-á numa semana.
Esfrego a bochecha com a mão e apercebo-me de que tenho a face
lavada em lágrimas.
- Vou contar à Mãe o que me haveis dito - afirmo debilmente. É a
ameaça que lhe fazia na nossa infância -, na altura, não o assustava.
- Vamos os dois falar com ela. Não vai ficar feliz, quando se
aperceber de que foi enganada, ao ponto de empurrar a filha para a desonra.
Caminhamos em silêncio pelo meio dos bosques e atravessamos a
ponte pedonal. Quando passamos pelo enorme freixo, olho de relance para
o tronco. O fio enrolado desapareceu; nãohá provas de que a magia alguma
vez lá tenha estado. As águas do rio, de onde retirei o meu anel, fecharam-
se. Não há provas de que a magia alguma vez tenha funcionado. Não há
sequer provas de que exista algo como magia. Tudo o que tenho é um anel
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  • 1.
  • 2. A RAINHA BRANCA PHILIPPA GREGORY Badana da capa: PHILIPPA GREGORY nasceu no Quénia em 1954, mas mudou-se com a família para Bristol, na Inglaterra, quando tinha dois anos. Frequentou a Universidade de Sussex, onde um curso de Iniciação à História viria a mudar a sua vida. Até hoje já publicou livros - muitos deles bestsellers. Philippa Gregory é doutorada em Literatura do Século XVII pela Universidade de Edimburgo e os seus romances reflectem uma pesquisa e um pormenor histórico meticulosos. O seu período favorito da História é a época Tudor, sobre a qual já escreveu vários romances, alguns dos quais foram adaptados pela BBC a dramas históricos. Títulos da autora publicados pela Civilização Editora: A Espia da Rainha, Janeiro 2006 Catarina de Aragão, Outubro 2006 O Amante da Rainha, Março 2007 A Herança Bolena, Novembro 2007 Duas Irmãs, Um Rei, Janeiro 2008 A Outra Rainha, Fevereiro 2009
  • 3. Capa © Liane Payne Philippa Gregory Civilização Editora Título original: The White Queen Copyright © 2009 Philippa Gregory Esta edição só pode ser vendida em Portugal e nos países lusófonos excluindo o Brasil. Copyright da edição portuguesa © 2009 Civilização Editora Todos os direitos reservados Tradução: Maria Beatriz Sequeira Revisão Departamento Editorial da Civilização Editora Adaptação da capa Civilização Editora Créditos fotográficos Capa © Liane Payne Fotografia © Jeff Cottenden Design © Depto. Arte S&S/Rafaela Romaya Pré-impressão, impressão e acabamento CEM Artes Gráficas, Barcelos para Civilização Editora em Fevereiro de 2010 ISBN 978-972-26-3012-2 Depósito Legal 302433/09 Civilização Editora Rua Alberto Aires de Gouveia, 27 4050-023 Porto Tel.: 226 050 900 naraliarii/iliTaranpriitnra.nt Para Anthony
  • 4. Eduardo III (1312-1377) Filhos de Eduardo III - Eduardo, O Príncipe Negro João de Gaunt, (1.º Duque de Lencastre) (1340-1399) Edmundo, Duque de Iorque (1341-1402) Casa de LENCASTRE João de Gaunt, 1º duque de Lencastre casou em primeiras núpcias com Blanche de Lencastre; deste casamento nasceu Henrique IV (1367- 1413), que casou com Maria de Bohun (1369-1394), pais de Henrique V (1386-1422) que casou com Catarina de Valois (1401-1437), pais de Henrique VI (1421-. Após a morte de Henrique V Catarina de Valois casou com Owen Tudor. Deste casamento nasceu Edmundo Tudor (1430). Henrique VI casou com Margarida de Anjou em 1430. João de Gaunt, 1º Duque de Lencastre Casou em terceiras núpcias com Catarina Swynford; deste casamento nasceu João de Beaufort, Conde de Somerset (1373-1410) pai de João Beaufort, Duque de Somerset (1404- 1444), pai de Margarida de Beaufort (1444-). Casa de IORQUE Do casamento de Edmundo, Duque de Iorque com Isabel de Castela nasceu Ricardo, Conde de Cambridge (1373-1415), pai de Ricardo, Duque de Iorque (1411-) que casou com Cecília Nevil e tiveram 3 filhos: Eduardo IV (1442-), Jorge, Duque de Clarence (1449-) e Ricardo, Duque de Gloucester (1552-)
  • 5. Os Primos em guerra As Casas de Iorque, Lencastre e Tudor na Primavera de 1464 Batalhas das guerras entre primos Ano Localidade Vencedor 1455 St. Alban's Iorque 1459 Ludford Bridge Lencastre 1459 Blore Heath Lencastre 1460 Northampton Iorque 1460 Wakefield Lencastre 1461 St. Alban's Lencastre 1461 Mortimer's Cros s Iorque 1461 Towton Iorque 1461 Ferrybridge Iorque 1464 Hedgeley Moor Iorque 1464 Hexham Iorque 1470 Losecote Field Iorque 1471 Tewkesbury Iorque 1471 Barnet Iorque Na escuridão da floresta, o jovem cavaleiro podia ouvir o esparrinhar da fonte, muito antes de conseguir ver o ténue luar reflectido na superfície tranquila. Preparava-se para dar um passo em frente, ansiando por mergulhar a cabeça, absorver a frescura, quando susteve a respiração, ao vislumbrar algo escuro, movendo-se nas profundezas da água. Havia uma sombra esverdeada no tanque fundo da fonte, algo semelhante a um peixe enorme, algo parecido com o corpo de alguém que se tivesse afogado. Depois moveu-se e pôs-se de pé, e ele viu, assustadoramente despida, uma mulher que se banhava. A pele dela, ao erguer-se, com a água a escorrer-lhe pelo corpo, era ainda mais pálida do que o tanque de mármore branco, o cabelo negro molhado, escuro como uma sombra.
  • 6. Ela é Melusina, a deusa da água, e pode ser encontrada em fontes e quedas-d’água escondidas em qualquer floresta da Cristandade, mesmo naquelas que ficam tão distantes como a Grécia. Também se banha em fontes mouriscas. Nos países do Norte, onde os lagos estão cobertos de gelo e este estala quando ela se levanta, conhecem-na por outro nome. Um homem pode amá-la, se mantiver o seu segredo e a deixar sozinha quando deseja banhar-se, e ela pode retribuir-lhe esse amor até ele quebrar a sua palavra, como os homens sempre fazem, e ela o arrastar para as profundezas, com a sua cauda de peixe, e transformar o sangue infiel dele em água. A tragédia de Melusina, seja qual for a língua que a relate, independentemente da melodia que a cante, é que um homem prometerá sempre mais do que pode fazer a uma mulher que não é capaz de compreender.
  • 7. PRIMAVERA DE 1464 O meu pai é Sir Ricardo Woodville, o Barão Rivers, nobre inglês, proprietário de terras e apoiante dos legítimos Reis da Inglaterra, a linha dos Lencastre. A minha mãe descende dos Duques da Borgonha e, assim, possui o sangue aquoso da deusa Melusina, que fundou a casa real da família com o seu extasiado amante ducal, e ainda pode ser encontrada, por vezes, em momentos de grande dificuldade, gritando um aviso sobre os telhados de castelos, quando um filho e herdeiro está a morrer e a família condenada ao fracasso. Ou, pelo menos, é o que dizem os que acreditam em tais coisas. Com esta minha ascendência contraditória, terra sólida inglesa e uma deusa da água francesa, poderia esperar-se qualquer coisa de mim: uma feiticeira ou uma rapariga normal. Há quem diga que sou ambas as coisas. Mas hoje, quando penteio o meu cabelo com especial cuidado e o componho sob o meu toucado mais alto, pego nas mãos dos meus dois filhos órfãos de pai e sigo pela estrada que leva a Northampton, daria tudo o que sou para ser, só desta vez, simplesmente irresistível. Tenho de atrair a atenção de um homem jovem que vai a caminho de mais uma batalha contra um inimigo que não pode ser derrotado. Talvez nem sequer me veja. Não é provável que ele esteja com disposição para pedintes ou namoricos. Tenho de suscitar a compaixão dele pela minha posição, inspirar a compaixão dele pelas minhas necessidades e ficar gravada na memória dele o tempo suficiente para que faça algo por ambas. E este é um homem que tem mulheres bonitas a atirarem-se a ele todas as noites da semana, e uma centena de pretendentes para cada posição que ele possa oferecer. É um usurpador e um tirano, meu inimigo e filho do meu inimigo, mas eu estou muito para além de poder ser leal a alguém que não sejam os meus filhos e eu mesma. O meu pai cavalgou para a batalha de Towton para combater este homem que agora se autodenomina Rei da Inglaterra, apesar de ser pouco mais do que um fanfarrão; e nunca vi um homem tão destroçado como o meu pai, quando regressou a casa, de Towton, o seu braço que segura a espada a manchar o casaco de sangue, o rosto pálido, afirmando que este rapaz é um comandante de tal ordem como nunca
  • 8. vimos, e que a nossa causa está perdida, e que todos ficamos sem esperança enquanto ele viver. Vinte mil homens foram ceifados em Towton sob as ordens deste rapaz; nunca ninguém vira tantas mortes na Inglaterra. O meu pai disse que havia sido uma ceifa de membros da casa de Lencastre, não uma batalha. O Rei legítimo e a sua mulher, a Rainha Margarida de Anjou, fugiram para a Escócia, devastados pelas mortes. Aqueles de nós que ficaram na Inglaterra não se renderam prontamente. As batalhas prosseguiram, para resistir a este falso rei, este rapaz de Iorque. O meu próprio marido foi morto a comandar a nossa cavalaria, há apenas três anos, em St. Albans. E agora fiquei viúva, e todas as terras e fortuna a que em tempos chamei minhas foram-me tiradas pela minha sogra, com a boa vontade do vencedor, o chefe deste rei-menino, o grande marionetista que se sabe ser o fazedor de reis: Ricardo Neville, Conde de Warwick, que fez deste rapaz vaidoso um rei, agora com apenas vinte e dois anos, e que transformará a Inglaterra num Inferno para aqueles de nós que ainda defendem a Casa de Lencastre. Existem partidários dos Iorque em todas as grandes casas da região, agora, e todos os negócios ou lugares rentáveis estão na posse deles. O rei- menino deles está no trono e os seus partidários compõem agora a nova corte. Nós, os derrotados, somos indigentes nas nossas próprias casas e estranhos na nossa própria região, o nosso rei, um exilado, a nossa rainha, uma estrangeira vingativa que conspira com a nossa antiga inimiga, a França. Temos de nos conformar com o tirano de Iorque, ao mesmo tempo que rezamos para que Deus se volte contra ele e para que o nosso rei legítimo varra O Sul com um exército, para ainda mais uma batalha. Entretanto, como muitas mulheres com um marido morto e um pai derrotado, tenho de recompor a minha vida como uma manta de retalhos. Tenho de reconquistar a minha fortuna de algum modo, ainda que me pareça que nenhum parente ou amigo possa abrir caminho para mim. Somos todos conhecidos como traidores. Fomos perdoados, mas não somos amados. Nenhum de nós detém qualquer poder. Terei de ser a minha própria advogada e apresentar o meu caso a um rapaz que respeita tão pouco a justiça que se atreveria a reunir um exército contra o seu próprio primo: um rei ordenado. O que é que alguém poderá dizer a um selvagem destes, que ele possa compreender? Os meus filhos, Tomás, que tem nove anos, e Ricardo, que tem oito, estão vestidos com as suas melhores roupas, o cabelo húmido e alisado, os rostos brilhantes do sabão. Aperto-lhes bem as mãos enquanto eles permanecem de cada um dos meus lados, porque eles são verdadeiros rapazes e atraem a sujidade como por magia. Se os largar um segundo, um vai arranhar os sapatos e o outro rasgar as meias, ambos conseguirão ficar com folhas no cabelo e lama nas faces, e Tomás cairá, de certeza, ao rio. Assim, ancorados pela minha mão forte, passam o peso de uma perna para
  • 9. a outra, numa agonia de tédio, e só se endireitam quando digo: - Chiu, estou a ouvir cavalos. A princípio, soa como o bater da chuva, e depois, passados alguns momentos, um estrondo como trovões. O tinido do arnês e o esvoaçar dos estandartes, o tilintar das cotas de malha e o arquejar dos cavalos, o som, o cheiro e o bramido de uma centena de cavalos, conduzidos a grande velocidade, é avassalador e, apesar de eu estar determinada em destacar-me e fazer com que parem, não consigo deixar de me encolher e recuar. Como será enfrentar estes homens a cavalgarem na batalha com as lanças estendidas diante de si, como um muro galopante de bordões? Como é que algum homem poderia encar-lo? Tomás vê a cabeça loira desprotegida no meio de toda a fúria e ruído, e, como o rapaz que é, grita: - Urra! E, ao ouvir o grito da sua voz de soprano, vejo a cabeça do homem voltar-se, e ele vê-me, bem como aos rapazes, e a sua mão agarra as rédeas e grita: - Alto! O cavalo dele levanta-se sobre as patas traseiras, depois de sofrer um puxão das rédeas para que se detivesse, e toda a cavalgada se move em círculos e sobresta-se, praguejando por aquela paragem súbita, e depois, abruptamente, tudo fica em silêncio e a poeira ondeia em nosso redor. O cavalo dele resfolega, abana a cabeça, mas o cavaleiro é como uma estátua sobre a garupa alta. Está a olhar para mim e eu para ele, e está tudo tão silencioso que consigo ouvir um tordo nos ramos de um carvalho, por cima de mim. Como ele canta! Meu Deus, canta como se fosse um cântico de glória, a própria alegria transformada em som. Nunca tinha ouvido um pássaro cantar assim, como se estivesse a cantar com alegria a felicidade. Dou um passo em frente, ainda a segurar as mãos dos meus filhos, abro a boca para apresentar o meu caso, mas, nesse momento, nesse momento crucial, fico sem palavras. Pratiquei bastante. Tinha um pequeno discurso muito bem preparado, mas agora não tenho nada. E é quase como se não precisasse de palavras. Limito-me a olhar para ele e espero que, de algum modo, ele compreenda tudo - o meu receio do futuro e as minhas esperanças para estes meus rapazes, a minha falta de dinheiro e a irritante pena do meu pai, que faz com que viver debaixo do tecto dele seja tão insuportável para mim, a frieza da minha cama à noite, e o meu desejo de ter outro filho, a sensação de a minha vida ter terminado. Querido Deus, só tenho vinte e sete anos, a minha causa foi derrotada, o meu pobre marido está morto. Terei de ser uma das muitas pobres viúvas que irão passar o resto dos seus dias junto da lareira de outrem, tentando ser uma boa hóspede? Nunca irei voltar a ser beijada? Nunca voltarei a sentir alegria?
  • 10. Nunca mais? E o pássaro continua a cantar como se dissesse que a alegria é fácil, para aqueles que a desejem. Ele faz um gesto com a mão para o homem mais velho ao seu lado e o homem resmunga uma ordem, os soldados voltam os cavalos para fora da estrada e dirigem-se para debaixo da sombra das árvores. Mas o rei desmonta, com um salto, do seu grande cavalo, deixa cair as rédeas, e caminha na minha direcção e dos meus filhos. Sou uma mulher alta, mas dou-lhe, aproximadamente, pelo ombro, ele deve ter bastante mais de um metro e oitenta de altura. Os meus filhos esticam o pescoço para o ver: é um gigante para eles. Tem o cabelo louro, olhos cinzentos, um rosto bronzeado, aberto, sorridente, cheio de encanto, agradável na sua graça. Este é um rei como nunca vimos antes na Inglaterra: é um homem que as pessoas amarão, assim que o virem. E os seus olhos estão cravados no meu rosto, como se eu guardasse um segredo que ele tem de saber, como se nos conhecêssemos desde sempre, e sinto as minhas bochechas arderem, mas não consigo desviar os olhos dele. Neste mundo, uma mulher modesta baixa os olhos, mantém-nos fixos nos chinelos; um pedinte baixa-se numa vénia e estende uma mão suplicante. Mas eu mantenho-me de pé, estou chocada comigo mesma, olhando-o fixamente, como um camponês ignorante, e apercebo-me de que não consigo apartar os olhos dos dele, da sua boca sorridente, do seu olhar, que arde na minha face. - Quem é esta? - pergunta ele, ainda olhando para mim. - Vossa Graça, esta é a minha mãe, Lady Isabel Grey - responde educadamente o meu filho Tomás, e retira o boné, baixando-se, apoiado num joelho. Ricardo, do meu outro lado, também se ajoelha e murmura, como se não pudesse ser ouvido: - Este é o rei? A sério? É o homem mais alto que já vi na minha vida! Eu baixo-me numa vénia, mas não consigo desviar o olhar. Em vez disso, cravo os olhos nele, como uma mulher poderia olhar fixamente com olhos ardentes para um homem que adora. - Levantai-vos - diz ele. A sua voz é baixa, para que apenas eu a ouça. - Haveis vindo para falar comigo? - Preciso da vossa ajuda - digo. Mal consigo formar as palavras. Sinto-me como se a poção de amor, em que a minha mãe ensopou o lenço que ondeia do meu toucado, estivesse a exercer efeito em mim e não nele. - Não consigo obter as terras do meu dote, as minhas arras, agora que enviuvei - gaguejo diante do seu interesse sorridente. - Agora sou viúva. Não tenho do que viver. - Viúva? - O meu marido era Sir John Grey. Morreu em St. Albans - afirmo. É
  • 11. o mesmo que confessar a minha traição e a condenação dos meus filhos. O rei reconhecerá o nome do comandante da cavalaria do seu inimigo. Mordo o lábio. - O pai deles cumpriu o seu dever, tal como o concebia, Vossa Graça: foi leal ao homem que ele considerava ser o rei. Os meus filhos estão completamente inocentes. - Ele deixou-vos estes dois filhos? - sorri para os meus rapazes. - A melhor parte da minha fortuna - digo. - Este é o Ricardo e este é o Tomás Grey. Ele acena com a cabeça na direcção dos meus filhos, que levantam os olhos para ele como se ele fosse uma espécie de cavalo de fina raça, demasiado grande para eles afagarem, mas uma figura a quem prestar uma admiração temerosa, e depois olha para mim. - Tenho sede - afirma. - A vossa casa fica perto? - Ficaríamos muito honrados... - olho de relance para o guarda que cavalga com ele. Devia haver mais de uma centena deles. Ele ri-se. - Eles podem seguir viagem - decide. - Hastings - o homem mais velho volta-se e aguarda. - Vós ides prosseguindo para Grafton. Já vos apanho. Smollett pode ficar comigo, e Forbes. Irei dentro de aproximadamente uma hora. Sir Guilherme Hastings olha-me da cabeça aos pés, como se eu fosse um pedaço de uma fita bonita que estivesse à venda. Lanço-lhe um olhar duro em resposta, e ele tira o chapéu e faz-me uma vénia, dirige uma saudação ao rei, grita para que os guardas voltem a montar. - Para onde vos dirigis? - pergunta ele ao rei. O rei-menino olha para mim. - Vamos a casa do meu pai, o Barão Rivers, Sir Ricardo, Woodville - afirmo orgulhosamente, ainda que saiba que o rei reconhecerá o nome de um homem que fruía de um lugar elevado nos favores da corte dos Lencastre, que combateu por eles, e que uma vez ouviu palavras duras dele, pessoalmente, quando Iorque e Lencastre se encontravam prestes a combater. Todos conhecemos o suficiente uns dos outros, mas esquecer que em tempos todos fomos leais a Henrique VI é uma cortesia geralmente cumprida, até estes se terem transformado em traidores. Sir Guilherme ergue as sobrancelhas perante o sítio escolhido pelo rei para parar. - Então, duvido que queirais ficar muito tempo - diz ele, de modo inconveniente, e continua a cavalgar. O chão treme quando eles passam, e deixam-nos numa tranquilidade calorosa, à medida que a poeira vai assentando. - O meu pai foi perdoado e o título foi-lhe restituído digo, na defensiva. - Vós próprio o haveis perdoado, depois de Towton. - Recordo-me do vosso pai e da vossa mãe - afirma o rei num tom uniforme. - Conhecia-os desde pequeno, em bons e maus tempos. Só me
  • 12. surpreende que nunca me tenham apresentado a vós. Tenho de reprimir uma risada. Este rei é famoso por ser um sedutor. Ninguém com bom senso deixaria a filha conhecê-lo. - Poderíeis vir por aqui? - pergunto. - É só uma breve caminhada até à casa do meu pai. - Quereis uma boleia, rapazes? - pergunta-lhes. As cabeças deles erguem-se subitamente, como patinhos suplicantes. Podeis subir os dois - afirma ele, e pega em Ricardo, e depois em Tomás, para os colocar sobre a sela. - Agora, segurai-vos bem. Vós ao vosso irmão e vós... sois o Tomás, não é assim?... segurai-vos à maçaneta da sela. Enrola as rédeas em volta do braço e, a seguir, oferece-me o outro braço, e assim caminhamos até à minha casa, pelo meio do bosque, debaixo da sombra das árvores. Posso sentir o calor do braço dele através do tecido golpeado da sua manga. Tenho de me refrear para não me inclinar para ele. Olho em frente, para a casa e para a janela da minha mãe, e vejo, pelos reduzidos movimentos atrás dos painéis de vidro com pinázios, que ela tem estado a olhar cá para fora, e desejando precisamente que isto aconteça. Ela está à porta de entrada quando nos aproximamos, o criado da casa ao seu lado. Baixa-se numa vénia. - Vossa Graça - afirma de modo agradável, como se o rei a visitasse todos os dias. - Sois muito bem-vindo a Grafton Manor. Um criado surge a correr e segura as rédeas do cavalo para o conduzir para o pátio dos estábulos. Os meus filhos seguram-se para percorrerem os últimos metros, a minha mãe recua e faz uma vénia diante do rei, enquanto este entra no salão. - Aceitais um copo de cerveja branda? - pergunta. - Senão, temos um vinho muito bom, dos meus primos, da Borgonha? - Aceito a cerveja, se não vos importais - responde ele agradavelmente. - Cavalgar faz-me sede. Está quente, para a Primavera. Um bom dia para vós, Lady Rivers. A mesa alta do grande salão está posta com os melhores copos e um jarrão com cerveja, assim como outro que contém vinho. - Estais à espera de alguém? Ela sorri-lhe. - Nenhum homem no mundo conseguiria passar a cavalo pela minha filha sem se deter - retorque ela. - Quando ela me disse que desejava expor- vos o caso dela, tive de colocar na mesa a nossa melhor cerveja. Calculei que fôsseis parar. Ele ri-se do orgulho demonstrado por ela, e volta-se para sorrir para mim. - Na verdade, um homem que conseguisse passar por vós sem se deter só poderia ser cego - comenta. Preparo-me para fazer um pequeno comentário, mas, mais uma vez,
  • 13. nada acontece. Os nossos olhos encontram-se, e não consigo pensar em nada para lhe dizer. Limitamo-nos a ficar ali de pé, a olhar um para o outro por um longo momento, até a minha mãe lhe passar um copo e dizer baixinho: - À vossa saúde, Vossa Graça! Ele abana a cabeça, como se despertasse. - E o vosso pai, está cá? - pergunta. - Sir Ricardo foi até à propriedade ao lado, falar com os nossos vizinhos - respondo. - Esperamos que regresse a horas de jantar. A minha mãe pega num copo limpo, ergue-o à luz e manifesta a sua impaciência como se este estivesse manchado. - Com a vossa licença - diz ela, e sai. Eu e o rei ficamos a sós no grande salão, o sol a jorrar pela enorme janela atrás da mesa comprida, a casa em silêncio, como se todos estivessem a suster a respiração e à escuta. Ele vai para trás da mesa e senta-se na cadeira do dono da casa. - Por favor, sentai-vos - diz ele, e aponta para a cadeira ao seu lado. Eu sento-me como se fosse a sua rainha, à direita dele, e deixo-o servir-me um copo de cerveja branda. - Analisarei a vossa reivindicação das vossas terras - diz. - Desejais ter a vossa própria casa? Não sois feliz, vivendo aqui com a vossa mãe e o vosso pai? - Eles são gentis comigo - digo. - Mas estou acostumada a ter a minha própria casa, estou habituada a gerir as minhas próprias terras. E os meus filhos não terão nada se eu não conseguir reclamar as terras do pai deles. É a sua própria herança. Tenho de defender os meus filhos. - Têm sido tempos difíceis - responde ele. - Mas, se eu conseguir manter o meu trono, farei com que a Lei dos Solos volte a vigorar, de uma costa à outra da Inglaterra, e os vossos filhos crescerão sem receio da guerra. Assinto com a cabeça. - Sois leal ao Rei Henrique? - pergunta-me. - Seguis a vossa família na qualidade de apoiantes leais da casa de Lencastre? A nossa história não pode ser negada. Sei que se travou uma batalha furiosa em Calais entre este rei, que na altura não passava de um jovem filho da casa de Iorque, e o meu pai, nesse tempo, um dos grandes Lordes de Lencastre. A minha mãe era a primeira dama da corte de Margarida de Anjou; deve ter conhecido e protegido o belo e jovem filho da casa de Iorque uma dúzia de vezes. Mas quem imaginaria então que o mundo poderia virar-se do avesso e que a filha do Barão Rivers teria de suplicar a esse mesmo rapaz para que as suas próprias terras lhe fossem devolvidas? - A minha mãe e o meu pai foram muito importantes na corte do Rei Henrique, mas a minha família e eu agora aceitamos o vosso reinado - afirmo muito depressa. Ele sorri.
  • 14. - É sensato da parte de todos vós, uma vez que eu venci - responde ele. - Aceito a vossa homenagem. Rio-me e, imediatamente, o seu rosto torna-se mais caloroso. - Deve terminar em breve, queira Deus - diz ele. - Henrique não tem mais do que um punhado de castelos, na região sem lei do Norte. Pode juntar um grupo de salteadores, como qualquer fora-da-lei, mas não consegue reunir um exército decente. E a rainha dele não pode continuar a trazer cá para dentro os inimigos do país para combater o seu próprio povo. Aqueles que lutarem por mim serão recompensados, mas mesmo aqueles que combateram contra mim verão que serei justo na vitória. E farei com que a minha lei vigore, mesmo no Norte da Inglaterra, mesmo nas suas fortalezas, até à própria fronteira da Escócia. - Ides para o Norte agora? - pergunto. Bebo um gole de cerveja branda. É a melhor que a minha mãe faz, mas tem um sabor picante; deve ter-lhe adicionado algumas gotas de uma tintura, um filtro de amor, algo para fazer com que o desejo cresça. Não preciso de nada. Já estou sem fôlego. - Precisamos de paz - afirma ele. - Paz com a França, paz com os Escoceses, e paz de irmão para irmão, de primo para primo. Henrique tem de render-se; a mulher dele tem de parar de trazer tropas francesas para o nosso país para lutarem contra os ingleses. Não devíamos continuar a estar divididos, Iorque contra Lencastre: devíamos ser todos ingleses. Não há nada que faça adoecer mais um país do que o seu próprio povo a lutar entre si. Destrói famílias; está a matar-nos diariamente. Isto tem de terminar, e eu pôr-lhe-ei um fim. Vou acabar com esta guerra. Sinto o receio sinistro que as pessoas deste país conhecem há quase uma década: - Tem de haver mais uma batalha? Ele sorri. - Tentarei mantê-la longe da vossa porta, minha dama. Mas tem de ser travada e tem de sê-lo em breve. Perdoei o Duque de Somerset e aceitei-o como amigo, e agora ele voltou a juntar-se a Henrique, um vira- casaca da Casa de Lencastre, infiel, como todos os Beaufort. Os Percy estão a sublevar o Norte contra mim. Odeiam os Neville, e a família Neville é a minha maior aliada. Agora é como uma dança: os dançarinos ocupam os seus lugares; têm de dar os seus passos. Irão travar uma batalha; não pode ser evitado. - O exército da rainha vai passar por aqui? - ainda que a minha mãe a adorasse e tivesse sido uma das suas damas de companhia mais importantes, devo dizer que o exército dela é uma força de terror absoluto. Mercenários, que não se preocupam nada com o país; franceses que nos odeiam; e os homens selvagens do Norte da Inglaterra que encaram os nossos campos férteis e cidades prósperas apenas como não sendo úteis
  • 15. para mais nada senão a pilhagem. Da última vez, ela trouxe os escoceses, acordando que poderiam ficar com tudo o que roubassem, como honorários. Mais valia ter contratado lobos. - Eu detê-los-ei - diz ele simplesmente. - Irei ao encontro deles no Norte da Inglaterra e derrotá-los-ei. - Como podeis ter tanta certeza? - exclamo. Ele dirige-me um sorriso, e eu sustenho a respiração. - Porque nunca perdi nenhuma batalha - responde simplesmente. - E nunca perderei. Sou rápido no campo, e hábil; sou corajoso e tenho sorte. O meu exército desloca-se mais depressa do que qualquer outro; faço com que marchem mais rápido e movo-os completamente armados. Antecipo as intenções deles e tomo a dianteira do meu inimigo. Não perco batalhas, tenho sorte na guerra como no amor. Nunca perdi em nenhum dos jogos. Não vou perder contra Margarida de Anjou; vencerei. Rio-me da confiança dele, como se não estivesse impressionada; mas, na verdade, ele deixa-me deslumbrada. Ele termina a caneca de cerveja e põe-se de pé. - Obrigado pela vossa gentileza - diz. - Já ides embora? Ides partir agora? - gaguejo. - Ireis escrever os detalhes da vossa reivindicação para mim? - Sim. Mas... - Com nomes e datas e tudo o mais? A terra que alegais ser vossa e os detalhes da vossa propriedade? Quase agarro a manga dele para o manter junto de mim, como um pedinte. - Fá-lo-ei. Mas... - Então, despeço-me de vós. Não há nada que eu possa fazer para o deter, a não ser que a minha mãe se tenha lembrado de fazer com que o cavalo dele fique coxo. - Sim, Vossa Graça, e obrigada. Mas sois muito bem-vindo a ficar. Daqui a pouco jantaremos... ou... - Não, tenho de ir embora. O meu amigo Guilherme Hastings deve estar à minha espera. - É claro, é claro. Não desejo atrasar-vos... Acompanho-o até à porta. Estou angustiada por ele partir tão abruptamente, e, no entanto, não consigo lembrar-me de nada para o fazer ficar. Na soleira da porta, ele volta-se e pega-me na mão. Inclina a cabeça loira numa vénia e, de forma deliciosa, vira a minha mão. Dá um beijo na palma e fecha os meus dedos sobre o local que beijou, como se para o guardar em segurança. Quando se ergue, a sorrir, vejo que sabe perfeitamente que o gesto me fez derreter e que conservarei a mão fechada até à hora de me deitar, altura em que poderei levá-la à boca.
  • 16. Baixa os olhos para o meu rosto arrebatado, para a minha mão que se abre, contra a minha vontade, para tocar na manga dele. Então, enternece- se. - Eu próprio virei buscar o documento que ides elaborar, amanhã - afirma. - É evidente. Julgastes que iria ser de outro modo? Como podeis? Pensastes que poderia voltar-vos as costas, e não voltar? É claro que irei voltar. Amanhã, ao meio-dia. Vejo-vos a essa hora? De certeza que me ouve arquejar. A cor acorre ao meu rosto e as minhas bochechas estão a escaldar. - Sim - gaguejo. - A... manhã. - Ao meio-dia. E ficarei para almoçar, se possível. - Ficaremos muito honrados. Faz-me uma vénia, volta-se e começa a caminhar pelo salão, passando pelas portas duplas escancaradas e saindo para a luz viva do Sol. Ponho as mãos atrás das costas e seguro-me a enorme porta de madeira, para me apoiar. Para dizer a verdade, os meus joelhos estão demasiado fracos para que consiga manter-me de pé. - Ele foi embora? - pergunta a minha mãe, entrando silenciosamente pela pequena porta lateral. - Volta amanhã - respondo. - Vai voltar amanhã. Vem cá amanhã para falar comigo. Quando o Sol está a pôr-se e os meus filhos dizem as orações da noite, cabeças loiras inclinadas sobre as mãos entrelaçadas, aos pés das suas camas de ripas, a minha mãe conduz-me pela porta da frente da casa e ao longo de um caminho serpenteante até ao local onde a ponte, um par de pranchas de madeira, atravessa o rio Tove. Caminha sobre elas até ao outro lado, o seu toucado cónico roçando nas árvores inclinadas, e faz-me sinal para que a siga. Do outro lado, pousa a mão num enorme freixo e eu vejo que existe um fio escuro de seda amarrado em volta da madeira de grão áspero do tronco espesso. - O que é isto? - Enrolai o fio - é tudo o que ela me diz. - Enrolai o fio trinta centímetros, todos os dias. Ponho a mão no fio e puxo-o suavemente. Solta-se com facilidade; há algo leve e pequeno amarrado à extremidade oposta. Nem consigo imaginar o que poderá ser, uma vez que o fio dá voltas até à outra margem do rio, para o meio dos juncos, em águas profundas, do outro lado. - Magia - digo, num tom terminante. O meu pai baniu tais práticas desta casa: a lei do país proíbe-as. Quando se prova que alguém é bruxa, a pena aplicada é a morte, morte por afogamento através da cadeira (1), ou estrangulamento por um ferreiro, nos cruzamentos da aldeia. Mulheres como a minha mãe não estão autorizadas a desenvolver as suas capacidades na Inglaterra de hoje; fomos declaradas interditas.
  • 17. Nota 1: No original ’-ducking stool” - Instrumento de punição, tortura, aplicado especificamente a mulheres, que consistia numa cadeira/banco dependurado na extremidade de um braço móvel de madeira montado na margem de um rio. A mulher era amarrada à c adeira/banco e este era mergulhado repetidas vezes na água de um rio. Esta punição era plicada por crimes de prostituição ou bruxaria. (N. da T.). da T.) - Magia - concorda ela, imperturbável. - Magia poderosa, para uma boa causa. Vale bem o risco. Vinde aqui todos os dias e enrolai-o, trinta centímetros de cada vez. - E o que vai acontecer? - pergunto-lhe. - No fim desta vossa linha de pesca? Que grande peixe vou apanhar? Ela sorri para mim e põe a mão na minha bochecha. - O que o vosso coração desejar - diz ela carinhosamente. - Não vos criei para serdes uma viúva pobre. Volta-se e inicia o caminho de regresso pela ponte pedonal, e eu puxo o fio como ela me disse que fizesse, trinta centímetros, amarro-o depressa, e vou atrás dela. - Então, para que me haveis criado? - pergunto-lhe, enquanto seguimos lado a lado até à casa. - Qual o meu papel? No vosso grande plano? Num mundo em guerra, onde, ao que parece, apesar da vossa previsão e magia, estamos presas no lado vencido? A lua nova está a erguer-se, um pequeno crescente de Lua. Sem pronunciar uma palavra, ambas pedimos desejos ao avistá-la; fazemos uma reverência, e eu ouço o tilintar, quando revolteamos as moedas que temos nos bolsos. - Eduquei-vos para serdes o melhor que conseguirdes ser - diz ela simplesmente. - Não sabia o que isso iria ser e continuo sem saber. Mas não vos criei para serdes uma mulher só, que sente a falta do marido, que luta para manter os filhos em segurança; uma mulher sozinha numa cama fria, a sua beleza desperdiçada em terras desertas. - Bem, Ámen - returco simplesmente, de olhos fixos no magro crescente. - Ámen a isso. E que a lua nova me traga algo melhor. Ao meio-dia do dia seguinte, trago o meu vestido comum e estou sentada nos meus aposentos privados, quando a criada surge a correr para me comunicar que o rei cavalga pela estrada que conduz à casa. Não me permito correr até à janela para o procurar, não me consinto precipitar-me na direcção do espelho de prata martelada do quarto da minha mãe. Pouso o bordado, e dirijo-me à grande escadaria de madeira, para que, quando a porta se abrir e ele entrar no salão, eu esteja a descer serenamente, aparentando ter sido desviada dos meus afazeres domésticos para receber um hóspede que surgiu de surpresa.
  • 18. Aproximo-me dele com um sorriso, ele saúda-me com um beijo cortês no rosto, e sinto o calor da sua pele e vejo, por entre os meus olhos semicerrados, a suavidade do cabelo que se encaracola na nuca. O cabelo cheira levemente a especiarias e a pele do pescoço a lavado. Quando olha para mim, reconheço-lhe o desejo no rosto. Solta a minha mão devagar e eu recuo com relutância. Volto-me e faço uma reverência, quando o meu pai e os meus dois irmãos mais velhos, António e João, se aproximam para fazerem as suas vénias. A conversa ao jantar é afectada, como tem de ser. A minha família é deferente para com este novo Rei da Inglaterra; mas não é possível negar que jogámos as nossas vidas e a nossa fortuna nesta batalha contra ele, e o meu marido não foi o único da nossa casa e família que não regressou. Mas é assim que tem de ser numa guerra que foi denominada ”A Guerra entre Primos”, uma vez que irmãos combatem contra irmãos e os respectivos filhos seguem-nos para a morte. O meu pai foi perdoado, os meus irmãos também, e agora o vencedor divide o pão com eles, como se para esquecer que triunfou sobre eles em Calais, como se para esquecer que o meu pai virou as costas e fugiu do seu exército, na neve ensanguentada de Towton. O rei Eduardo é agradável. É encantador com a minha mãe e divertido com os meus irmãos António e João, e depois com Ricardo, Eduardo e Leonel, quando se juntam a nós, mais tarde. Três das minhas irmãs mais novas encontram-se em casa, e jantam em silêncio, de olhos esbugalhados de admiração, mas demasiado receosas para pronunciarem uma palavra. A mulher de António, Isabel, está silenciosa e elegante, ao lado da minha mãe. O rei observa o meu pai e faz-lhe perguntas sobre caça e as terras, acerca do preço do trigo e da inabilidade da mão-de-obra. Na altura em que começam a servir a fruta em calda e as doçarias, ele conversa como um amigo da família, e eu posso encostar-me para trás na minha cadeira e observá-lo. - E, agora, vamos aos negócios - diz ele ao meu pai. - Lady Isabel disse-me que perdeu as terras que lhe foram legadas por morte do marido. O meu pai assente. - Lamento incomodar-vos com este assunto, mas tentámos resolvê-lo com Lady Ferrers e com Lorde Warwick sem resultados. Foram confiscadas depois - pigarreia - depois de St. Albans, compreendeis. O marido dela foi morto lá. E, agora, ela não consegue que as terras a que tem direito pela morte dele lhe sejam devolvidas. Ainda que o marido seja considerado um traidor, ela própria está inocente e devia, pelo menos, receber as suas arras. O rei vira-se para mim. - Haveis escrito o vosso título e a reivindicação das vossas terras? - Sim - afirmo. Entrego-lhe o papel e ele dá-lhe uma olhadela. - Irei falar com Sir Guilherme Hastings e pedir-lhe que trate da
  • 19. resolução deste assunto - diz ele simplesmente. - Ele será vosso advogado. Parece ser tão fácil quanto isto. De uma penada, serei liberta da minha pobreza e recuperarei a minha propriedade; os meus filhos terão uma herança e eu deixarei de ser um fardo para a minha família. Se alguém me pedir em casamento, irei para o matrimónio com propriedades. Já não sou um alvo de caridade. Não terei de ficar grata por receber uma proposta. Não terei de agradecer a um homem por se casar comigo. - Sois muito bondoso, Senhor - afirma o meu pai num tom agradável, e acena com a cabeça na minha direcção. Obedientemente, levanto-me da minha cadeira e baixo-me, numa vénia. - Agradeço-vos - afirmo. - Isto significa tudo para mim. - Serei um rei justo - diz ele, olhando para o meu pai. Não quereria que nenhum inglês sofresse com a minha ascensão ao trono. O meu pai envida esforços visíveis no sentido de silenciar a sua resposta, de que alguns de nós já sofreram. - Desejais mais vinho? - interrompe-o a minha mãe, muito depressa. - Vossa Graça? Marido? - Não, tenho de ir embora - responde o rei. - Estamos a reunir as tropas em todo o Northamptonshire e a equipá-las. Empurra a cadeira para trás, e todos nós - o meu pai e irmãos, a minha mãe e irmãs e eu - nos levantamos como marionetas, para ficarmos de pé como ele. - Podeis mostrar-me o jardim antes de eu partir, Lady Isabel? - - Terei toda a honra em fazê-lo - replico. O meu pai abre a boca para oferecer a sua companhia, mas a minha mãe diz depressa: - Sim, ide, Isabel - e os dois saímos da sala sem um acompanhante. Faz calor como se fosse Verão, quando saímos do escuro do salão, ele estende-me o braço e descemos os degraus para o jardim, de braço dado, em silêncio. Sigo pelo caminho que contorna o jardim e serpenteamos, observando as sebes podadas e as pedras imaculadamente brancas; mas não vejo nada. Ele puxa a minha mão e coloca-a debaixo do seu braço, sinto o calor do seu corpo. A lavanda está a florescer, e eu consigo sentir o aroma, doce como a flor de laranjeira, intenso como limões. - Tenho pouco tempo - diz ele. - Somerset e Percy estão a unir-se contra mim. O próprio Henrique sairá do seu castelo e conduzirá o seu exército, se estiver nessa disposição e se puder comandá-lo. Pobre alma, disseram-me que agora recuperou a razão, mas pode perdê-la novamente a qualquer momento. A rainha deve estar a planear desembarcar um exército de franceses para os apoiar e nós teremos de enfrentar o poder da França
  • 20. em solo inglês. - Rezarei por vós - digo. - A morte está perto de todos nós - retorque ele com ar sério. - Mas é uma companheira constante de um rei que conquista a sua coroa no campo de batalha, e que, agora, parte mais uma vez no seu cavalo, para combater. Detém-se e eu imito-o. Está tudo muito silencioso, à excepção de um pássaro que canta. A expressão dele é grave. - Posso enviar um pajem para que vos leve para junto de mim esta noite? - pergunta ele baixinho. - Desejo-vos, Lady Isabel Grey, como nunca desejei outra mulher antes. Vireis ter comigo? Peço-vos. não como rei, e nem sequer como um soldado que pode morrer na batalha, mas como um homem simples, à mulher mais bonita que já viu. Vinde ter comigo, suplico-vos, vinde ter comigo. Poderia ser o meu último desejo. Vireis ter comigo esta noite? Abano a cabeça. - Perdoai-me, Vossa Graça, mas sou uma mulher de honra. - Posso nunca voltar a fazer-vos este pedido. Sabe Deus como poderei nunca voltar a pedi-lo a nenhuma mulher. Não pode haver nenhuma desonra nisto. Posso morrer na próxima semana. - Mesmo assim. - Não vos sentis só? - pergunta ele. Os seus lábios estão quase a tocar a minha testa, de tal forma está próximo de mim, consigo sentir o calor da sua respiração na minha bochecha. - E vós não sentis nada por mim? Podeis afirmar que não me desejais? Só uma vez? Não me desejais agora? O mais devagar que sou capaz, permito que os meus olhos se ergam até ao rosto dele. O meu olhar fixa-se na sua boca, depois levanto o olhar. - Valha-me Deus, tenho de vos ter - suspira ele. - Não posso ser vossa amante - digo simplesmente. - Preferia morrer a desonrar o meu nome. Não posso trazer essa vergonha para a minha família - faço uma pausa. Estou ansiosa para não ser demasiado desincentivadora. - Independentemente do que o meu coração possa desejar - digo, muito baixinho. - Mas vós desejais-me? - pergunta ele infantilmente, e eu deixo-o perceber o calor na minha face. - Ah - digo. - Não posso dizer-vos... Ele espera. - Não posso dizer-vos o quanto... Vejo, rapidamente disfarçado, o cintilar do triunfo. Ele pensa que me vai ter. - Então, vireis? - Não. - Então, tenho de partir? Tenho de deixar-vos? Não posso.
  • 21. - inclina o rosto para mim e eu levanto o meu. O seu beijo é tão suave como o roçar de uma pena na minha boca macia. Os meus lábios entreabrem-se ligeiramente e consigo senti-lo tremer como um cavalo preso com uma rédea curta. - Lady Isabel... Juro-o... Tenho de... Dou um passo atrás, nesta dança deliciosa. - Se apenas... - digo. - Virei amanhã - diz ele abruptamente. - À noite. Ao pôr do Sol. Ireis ter comigo ao lugar onde vos vi pela primeira vez? Debaixo do carvalho? Ireis encontrar-vos comigo lá? Gostaria de me despedir antes de partir para norte. Tenho de voltar a ver-vos, Lady Isabel. Pelo menos isso. Tenho de o fazer. Assinto em silêncio, vejo-o rodar sobre os calcanhares e caminhar de volta a casa. Vejo-o contornar o pátio dos estábulos e, alguns momentos mais tarde, o seu cavalo cavalga, disparado, pela estrada abaixo, com os dois pajens a esporearem os seus cavalos para acompanhar o ritmo. Vejo-o sair do meu campo de visão e, depois, atravesso a pequena ponte pedonal por cima do rio e encontro o fio enrolado no freixo. Retlectidamente, enrolo mais uma extensão do fio e amarro-o. Em seguida, dirijo-me a casa. Ao jantar do dia seguinte existe uma espécie de conferência familiar. O rei enviou uma carta para dizer que o amigo, Sir Guilherme Hastings, apoiará a minha reivindicação da minha casa e das minhas terras em Bradgate, e que eu posso ter a certeza de que a minha fortuna me será restituída. O meu pai fica satisfeito: mas todos os meus irmãos - António, João, Ricardo, Eduardo e Leonel - estão unidos na desconfiança contra o rei, com o orgulho alerta dos rapazes. - Ele tem fama de libertino. De certeza que vai pedir para se encontrar com ela, de certeza que a vai chamar para a corte - declara João. - Não lhe devolveu as terras por caridade. Vai exigir o pagamento - concorda Ricardo. - Não existe uma mulher na corte com quem ele não tenha dormido. Porque não tentaria a sorte com Isabel? - Um Lencastre - diz Eduardo, como se isso fosse suficiente para garantir a nossa inimizade, e Leonel assente, com um ar sério. É um homem difícil de rejeitar - diz António pensativamente. - É bastante mais experiente do que João; viajou por toda a Cristandade e estudou com grandes pensadores, e os meus pais ouvem-no sempre. - Seria de pensar, Isabel, que vos sentiríeis comprometida. Receio que fôsseis sentir uma obrigação em relação a ele. Encolho os ombros. - De forma alguma. Só posso contar comigo, mais uma vez. Pedi ao rei justiça e recebi-a, tal como deveria ser, como qualquer suplicante deveria receber, quando tem a razão do seu lado.
  • 22. - No entanto, se ele vos chamar, não ireis para a corte afirma o meu pai. - Este é um homem que conseguiu seduzir metade das esposas de Londres e que agora tenta repetir a proeza com as damas da Casa de Lencastre. Este não é um homem honrado como o abençoado Rei Henrique. Também não é um tolo como o abençoado Rei Henrique, penso, mas em voz alta digo: - É claro, Pai, o que quer que me ordeneis. Ele olha severamente para mim, desconfiado da obediência imediata. - Não credes que lhe deveis os vossos favores? Os vossos sorrisos? Ou pior? Encolho os ombros. - Pedi-lhe a justiça de um rei, não um favor - respondo. - Não sou um criado cujos serviços podem ser comprados, ou um camponês que pode ser obrigado a prestar juramento a um senhor. Sou uma dama de boas famílias. Tenho as minhas próprias lealdades e obrigações que considero e honro. Não são propriedade dele. Não estão à disposição de nenhum homem. A minha mãe baixa a cabeça para ocultar o seu sorriso. É filha da Borgonha, descendente de Melusina, a deusa da água. Nunca se considerou obrigada a fazer nada na vida; nunca conceberia que a sua filha fosse obrigada a fazer o que quer que fosse. O meu pai desvia o olhar dela para mim e encolhe os ombros, como se para admitir a independência inveterada das mulheres obstinadas. Acena com a cabeça na direcção do meu irmão João e diz: - Vou cavalgar até à aldeia de Old Stratford. Quereis vir comigo? - e os dois saem juntos. - Quereis ir para a corte? Admirai-lo? Apesar de tudo? - pergunta-me António baixinho, quando os meus outros irmãos saem da sala. - Ele é o Rei da Inglaterra - afirmo. - É claro que irei, se ele me convidar. Que outra coisa iria fazer? - Talvez porque o Pai tenha acabado de dizer que não devíeis ir, e eu vos tenha aconselhado a que não fôsseis. Encolho os ombros. - E eu ouvi muito bem. - De que outra forma pode uma viúva pobre construir o seu caminho num mundo cruel? - provoca-me ele. - De facto. - Seríeis uma tonta, se vos vendêsseis por um preço baixo - avisa-me ele. Olho-o sob as minhas pestanas. - Não estou a pensar vender-me de modo algum - afirmo. - Não sou um rolo de fita. Não sou uma perna de presunto. Não estou à venda para ninguém.
  • 23. Ao pôr do Sol, estou à sua espera debaixo do carvalho, escondida nas sombras esverdeadas. Fico aliviada ao ouvir o som de apenas um cavalo na estrada. Se ele tivesse vindo com um guarda, ter-me-ia escapulido para casa, receando pela minha segurança. Por muito terno que ele possa ser, nos confins do jardim do meu pai, não me esqueço de que ele é o denominado rei do exército iorquista e que eles violam mulheres e assassinam os seus maridos, como se fosse algo natural. Deve ter endurecido ao ver coisas que ninguém deveria testemunhar; ele próprio deve ter feito coisas que representam os mais negros dos pecados. Não posso confiar nele. Por muito arrebatador que seja o seu sorriso e por muito sinceros os seus olhos, por muito que pense nele como um rapaz projectado para a grandeza pela sua ambição, não posse confiar nele. Estes não são tempos para cavalheirismos; não são os tempos dos cavaleiros na floresta negra, das belas damas em fontes iluminadas pelo luar e promessas de amor que serão baladas, cantadas para todo o sempre. Mas ele parece um cavaleiro numa floresta negra, quando pára o cavalo e desmonta com um salto, num movimento descontraído. - Viestes! - exclama ele. - Não posso ficar muito tempo. - Estou tão contente só por terdes vindo - ri-se de si próprio, quase desnorteado. - Hoje parecia uma criança; não consegui dormir, a noite passada, a pensar em vós, e todo o dia me perguntei se viríeis, e afinal viestes! Enrola as rédeas do cavalo no ramo de uma árvore e coloca o braço em volta da minha cintura. -Minha dama querida - diz-me ele ao ouvido. - Sede gentil comigo. Tirai o vosso toucado e soltai o cabelo. É a última coisa que pensei que me fosse pedir, e fico chocada, consentindo imediatamente. A minha mão dirige-se logo às fitas do meu toucado. - Eu sei. Eu sei. Julgo que me estais a deixar louco. Tudo em que tenho conseguido pensar o dia inteiro é em se me deixaríeis soltar o vosso cabelo. Em resposta, desaperto as fitas apertadas do meu alto toucado cónico e levanto-o para o tirar. Pouso-o cuidadosamente no chão e viro-me para ele. Gentilmente, como qualquer aia, ele pousa a mão no meu cabelo e retira os ganchos de marfim, guardando cada um deles no bolso do seu gibão. Consigo sentir o beijo acetinado do meu cabelo espesso, enquanto a cascata loira que ele constitui me cai sobre o rosto. Sacudo a cabeça e atiro- o para trás, como uma crina dourada espessa, e ouço o seu gemido de desejo. Gentilmente, inclina-se sobre mim, pressionando-me, de modo que fique debaixo dele. Depois, sinto as suas mãos puxarem o meu vestido,
  • 24. puxarem-no para cima, e encosto as minhas mãos ao peito dele, afastando-o suavemente. - Isabel - sussurra ele. - Já vos disse que não - declaro com firmeza. - E estava a falar a sério. - Viestes ao meu encontro! - Vós pedistes que o fizesse. Quereis que parta agora? - Não! Ficai! Ficai! Não fujais, juro que não... Deixai-me só beijar- vos mais uma vez. O meu coração está a bater acelerada e perceptivelmente, estou tão pronta para o seu toque que começo a pensar que poderia deitar-me com ele, só uma vez, poderia permitir-me este prazer, só uma vez... Mas, então, afasto-me e digo: - Não, não, não... - Sim - diz ele com mais veemência. - Não vos vai acontecer nada de mal, juro-vos. Vireis para a corte. Tudo o que pedirdes. Por Deus, Isabel, deixai-me possuir-vos, estou desesperado para vos ter. Desde que vos vi ali... O seu peso está sobre mim; e está a pressionar-me para baixo. Viro a cabeça para o outro lado, mas a sua boca está no meu pescoço, no meu peito; estou ofegante de desejo, e depois sinto, inesperadamente, uma onda de raiva, ao aperceber-me de que ele já não está a abraçar-me, mas a forçar- me, prendendo-me como se eu fosse uma prostituta atrás de um saco de feno. Está a levantar o meu vestido como se eu fosse uma meretriz; empurra o joelho entre as minhas pernas como se eu tivesse consentido, e a minha fúria dá-me de tal modo força que o empurro novamente para trás e, aí, no seu grosso cinto de couro, sinto o punho da sua adaga. Ele puxou o meu vestido para cima, e debate-se com o seu justilho, os seus calções; daqui a pouco, será demasiado tarde para me queixar. Desembainho a sua adaga. Ao ouvir o som sibilante do metal, ele recua, de joelhos, chocado, e, retorcendo-me, afasto-me dele e ponho-me de pé, com a adaga fora da bainha, a lâmina cintilante e terrível sob os últimos raios de sol. Num instante, ele ergue-se, ziguezagueando e alerta. - Desembainhais uma lâmina contra o vosso rei? - profere ele encolerizado. - Sabeis o que é um acto de traição, quando o cometeis, senhora? - Eu desembainho uma lâmina contra mim, contra mim própria - digo rapidamente. Levo a ponta afiada à minha garganta e vejo os olhos dele estreitarem-se. - Juro que, se avançardes mais um passo, se avançardes um centímetro que seja, cortarei a minha garganta diante de vós e sangrarei até à morte, aqui, no chão em que me iríeis desonrar. - Estais a fazer teatro!
  • 25. - Não. Para mim, isto não é um jogo, Vossa Graça! Não posso ser vossa amante. Dirigi-me a vós, inicialmente, para pedir justiça, e vim ter convosco, esta noite, por amor, e sou uma louca em fazê-lo, suplico o vosso perdão pela minha loucura. Mas eu também não consigo dormir, e não consigo pensar noutra coisa que não seja em vós, e também eu não era capaz de deixar de me interrogar vezes sem conta se viríeis. Mas, mesmo assim... mesmo assim, não devíeis... - Poderia retirar-vos essa adaga a qualquer momento - ameaça ele. - Esqueceis que tenho cinco irmãos. Brinco com espadas e adagas desde criança. Cortarei a garganta antes de conseguirdes chegar junto de mim. - Nunca o faríeis. Sois uma mulher com apenas a coragem de uma mulher. - Experimentai. Experimentai. Não conheceis a minha coragem. Podeis vir a lamentar o que vier a acontecer. Ele hesita por um segundo, o seu coração a latejar, numa mistura perigosa de génio e desejo, e depois recompõe-se, levanta as mãos num gesto de rendição, e recua um passo. - Vencestes, senhora. E podeis ficar com a adaga, como um saque de vitória. Tomai... - desafivela a bainha e atira-a ao chão. - Ficai também com a maldita bainha, porque não ficais? As pedras preciosas e o ouro esmaltado cintilam na penumbra. Nunca apartando os meus olhos dele, ajoelho-me e pego na bainha. - Acompanhar-vos-ei até casa - diz ele. - Levar-vos-ei em segurança até à vossa porta. Abano a cabeça. - Não, não posso ser vista convosco. Ninguém pode saber que nos encontrámos em segredo. Eu seria humilhada. Por um instante, penso que ele irá discutir comigo, mas ele baixa a cabeça. - Então, segui à minha frente - diz ele. - E eu irei atrás de vós como um pajem, como vosso criado, até vos ver chegar cm segurança ao vosso portão. Podeis alegrar-vos com o vosso triunfo, por me terdes a seguir-vos como um cão. Uma vez que me tratais como um louco, servir-vos-ei como um louco; e podereis desfrutar. Não há nada a dizer para acalmar a sua raiva, por isso, assinto e volto-me para começar a caminhar diante dele, tal como ele me disse que fizesse. Seguimos em silêncio. Consigo ouvir o rumor da sua capa atrás de mim. Quando chegamos ao fim do bosque e podemos ser avistados a partir da casa, detenho-me e viro-me para ele. - A partir daqui estarei em segurança - afirmo. - Tenho de suplicar- vos que me perdoeis pela minha loucura. - Tenho de suplicar-vos que me perdoeis por ter usado a força - diz
  • 26. ele num tom constrangido. - Talvez eu esteja demasiado acostumado a conseguir o que quero. Mas devo dizer, nunca me rejeitaram apontando-me uma faca. Neste caso, a minha própria faca. Volto-a ao contrário e estendo-lhe o punho. - Aceitai-a de volta, Vossa Graça. Ele abana a cabeça. - Ficai com ela como recordação minha. Será o meu único presente para vós. Um presente de despedida. - Não voltarei a ver-vos? - Nunca - diz ele simplesmente e, fazendo uma ligeira vénia, afasta- se. - Vossa Graça! - chamo, e ele volta-se e pára. - Não quero que partais aborrecido comigo - digo debilmente. - Espero que possais perdoar- me. - Haveis feito de mim um tonto - diz ele, numa voz gelada. - Podeis congratular-vos por serdes a primeira mulher a fazê-lo. Mas sereis a última. E nunca voltareis a fazer de mim um tonto. Baixo-me numa vénia, ouço-o voltar-se e o som da sua capa a bater nos arbustos de cada um dos lados do caminho. Espero até deixar de o ouvir e depois ergo-me para me dirigir a casa. Existe uma parte de mim, da jovem mulher que sou, que deseja correr lá para dentro, lançar-me sobre a minha cama e chorar até adormecer. Mas não é o que faço. Não sou uma das minhas irmãs, de riso e lágrima fácil. São raparigas a quem as coisas acontecem, e que sofrem com elas. Mas eu considero-me um pouco mais do que uma rapariga tonta. Sou a filha da deusa da água. Sou uma mulher a quem corre água nas veias e com o poder na sua linhagem. Sou uma mulher que faz com que as coisas aconteçam, e ainda não fui derrotada. Não fui derrotada por um rapaz com uma coroa recém-conquistada, e nenhum homem voltará a afastar-se de mim com a certeza de que não voltará. Por isso, não vou logo para casa. Sigo pelo caminho da fonte pedonal que atravessa o rio, até ao lugar onde o freixo está rodeado pelo fio da minha mãe, enrolo mais o fio e aperto-o com firmeza, e só então caminho em direcção a casa, cismando, à luz do ténue luar. Então, espero. Todas as noites, durante vinte e duas, desço até ao rio e puxo o fio como uma pescadora. Um dia sinto repuxar, e a linha fica esticada, quando o objecto na sua extremidade, seja lá o que for, se liberta dos juncos na margem da água. Puxo suavemente, como se estivesse a recolher um peixe capturado, sinto o fio soltar-se e ouço um pequeno chape, enquanto algo pequeno, mas pesado, cai mais fundo, se revira na corrente, e depois fica imóvel entre os seixos do leito do rio. Caminho para casa. A minha mãe está à minha espera junto do lago das carpas, olhando para baixo, para o seu próprio reflexo invertido na
  • 27. água, prata no cinzento do escurecer. A sua imagem parece um longo peixe prateado agitando-se no lago, ou uma mulher a nadar. O céu por trás dela está coberto de nuvens, como penas brancas sobre seda clara. A lua está a erguer-se, uma Lua em quarto minguante, agora. A água está alta esta noite, transpondo o pequeno molhe. Quando chego perto dela e olho para dentro da água, seria de pensar que ambas nos estávamos a erguer das águas, como os espíritos do lago. - Fazei-lo todas as noites? - pergunta-me ela. - Puxais a linha? - Sim. - Óptimo. Isso é bom. Ele enviou-vos alguma lembrança? Alguma mensagem? - Não estou à espera de nada. Ele disse que não queria voltar a ver- me. Ela suspira. - Está bem. Caminhamos de volta a casa. - Dizem que ele está a reunir as suas forças em Northampton _ diz ela. - O Rei Henrique está a concentrar as suas em Northumberland e irá marchar para sul, para Londres. A rainha irá ao seu encontro com um exército francês que desembarcará em Hull. Se o Rei Henrique vencer, não importará o que Eduardo diz ou pensa, porque estará morto, e o rei legítimo será reposto. A minha mão move-se apressadamente para agarrar a manga dela, numa contradição imediata. Veloz como uma víbora que se prepara para atacar, a minha mãe agarra os meus dedos. - O que é isto? Nãosuportais ouvir falar da derrota dele? _ Não o digais. Não o digais. - Não digo o quê? - Não suporto pensar que ele vai ser derrotado. Não suporto pensar nele morto. Ele pediu-me que me deitasse com ele, como um soldado que enfrenta a morte. Ela dá uma sonora gargalhada. - É claro que pediu. Que homem que vai partir para a guerra alguma vez resistiu à oportunidade de tirar daí o maior partido? - Bem, eu recusei. E, se ele não voltar, lamentarei essa recusa para o resto da vida. Já estou arrependida. Irei sentir-me arrependida para sempre. - Porquê o arrependimento? - provoca-me ela. - De uma maneira ou de outra, as vossas terras ser-vos-ão devolvidas. Ou as recuperais por ordem do Rei Eduardo, ou ele morre e o Rei Henrique será rei e restituir-vos-á as vossas terras. Ele é o nosso rei, da legítima Casa de Lencastre. Seria de pensar que lhe desejávamos a vitória, e a morte ao usurpador Eduardo. - Não o digais - repito. - Não lhe desejeis mal.
  • 28. - Não importa o que eu digo, parai e pensai - aconselha-me severamente. - Sois uma rapariga da Casa de Lencastre. Só podereis apaixonar-vos pelo herdeiro da Casa de Iorque se ele for o rei vitorioso e se tiverdes algo a lucrar com esse amor. São dias difíceis, estes que vivemos. A morte é nossa companheira, nossa parente. Não vale a pena pensar, não lhe podeis resistir. Ireis descobrir que ela está por perto. Levou o vosso marido; ouvi: levará o vosso pai, os vossos irmãos e os vossos filhos. Estendo as duas mãos para a interromper. - Chiu, chiu. Pareceis Melusina a avisar a sua casa da morte dos homens. - Estou a avisar-vos - diz ela num tom sinistro. - Vós transformais- me em Melusina, quando andais por aí a sorrir como se a vida fosse fácil, pensando que podeis namoriscar com um usurpador. Não haveis nascido em tempos tranquilos. Vivereis a vossa vida num país dividido. Tereis de construir o vosso caminho por entre o sangue, e conhecereis a perda. - Não vislumbrais nada de bom para mim? - pergunto, entre dentes cerrados. - Não prevedes, como uma mãe amorosa, nada de bom para a vossa filha? Não vale a pena amaldiçoardes-me, porque eu já estou quase a chorar. Ela detém-se, e o rosto duro da vidente dissolve-se no calor da mãe a quem amo. - Creio que o tereis, se é isso que desejais - diz ela. - Mais do que à própria vida. Ela ri-se de mim, mas o seu sorriso é carinhoso. - Ah, não o digais, filha. Nada neste mundo é mais importante do que a vida. Tendes um longo caminho a percorrer e muitas lições a aprender, se não o sabeis. Encolho os ombros e pego-lhe no braço e, caminhando com passo certo, dirigimo-nos para casa. - Quando a batalha estiver terminada, seja quem for que vença, as vossas irmãs têm de ir para a corte - diz a minha mãe. Está sempre a fazer planos. - Podem ficar em casa dos Bourchier, ou dos Vaughn. Já deviam ter ido, há vários meses, mas não suportava a ideia de elas estarem longe de casa, com o país nesta sublevação, sem nunca saber o que poderia acontecer a seguir, e nunca conseguir receber notícias. Mas, quando esta batalha tiver acabado, talvez a vida volte a ser o que era, apenas sob o reinado da Casa de Iorque, em vez do da Casa de Lencastre, e as meninas podem ir para casa dos nossos primos, para receberem uma educação. - Sim. - E, em breve, o vosso filho Tomás terá idade suficiente para sair de casa. Devia viver com os parentes; tem de aprender a ser um cavalheiro. - Não - digo com uma ênfase súbita que a faz virar-se e ficar a olhar para mim.
  • 29. - Qual é o problema? - Quero manter os meus filhos junto de mim - afirmo. - Os meus filhos não podem ser afastados de mim. - Necessitarão de uma educação adequada; terão de servir na casa de um lorde. O vosso pai encontrará alguém, os padrinhos deles poderiam... - Não - repito. - Não, Mãe, não. Não consigo pôr essa hipótese. Eles não vão sair de casa. - Filha? - vira o meu rosto para o luar para me conseguir ver mais claramente. - Nem parece vosso, este capricho repentino e sem motivo. E todas as mães do mundo têm de deixar os filhos saírem de casa para aprenderem a ser homens. - Os meus filhos não vão ser levados para longe de mim - consigo ouvir a minha voz tremer. - Tenho medo... Tenho medo por eles. Receio... Receio por eles. Nem sequer sei o quê. Mas não posso deixar os meus filhos partirem para casa de estranhos. Ela coloca o braço caloroso em volta da minha cintura. - Bem, isso é bastante natural - diz carinhosamente. - Perdestes o vosso marido; é natural que queirais manter os vossos filhos em segurança. Mas, um dia, eles vão ter de partir, sabeis. Não cedo à pressão suave que ela exerce sobre mim. - É mais do que um capricho - digo. - É mais como... - É uma Visão? - pergunta ela, num tom de voz muito baixo. - Tendes conhecimento de algo que lhes pode acontecer? Haveis tido uma Visão, Isabel? Abano a cabeça e as lágrimas começam a brotar. - Não sei, não sei. Não posso dizer. Mas a ideia de os afastarem de mim, e de serem estranhos a cuidar deles, de eu acordar durante a noite e de saber que não estão sob o mesmo tecto que eu, de despertar de manhã e de não ouvir as vozes deles, a ideia de eles estarem num quarto estranho, servidos por estranhos, não me podendo ver... Não consigo suportá-la. Nem sequer a ideia consigo suportar. Ela envolve-me com os braços. - Calma - diz ela. - Calma. Não tendes de pensar nisso. Falarei com o vosso pai. Eles não precisam de partir, até vós sentirdes que aceitais a situação - pega-me na mão. - Bem, estais gelada - afirma ela, surpreendida. Toca no meu rosto com uma certeza súbita. - Não se trata de um capricho, quando estais simultaneamente fria e quente, debaixo do luar. Isto é uma Visão. Minha querida, haveis sido avisada de que os vossos filhos correm perigo. Abano a cabeça. - Não sei. Não posso ter a certeza. Só sei que ninguém nunca me deveria tirar os meus filhos. Nunca os deixarei partir. Ela concorda com a cabeça.
  • 30. - Muito bem. Convencestes-me, pelo menos. Haveis visto um qualquer perigo para os vossos filhos, se eles forem levados para longe de vós. Assim seja. Não choreis. Mantereis os vossos filhos perto de vós e nós mantê-los-emos em segurança. Então, espero. Ele disse-me claramente que nunca voltaria a vê-lo, por isso, não espero por nada, sabendo muito bem que estou à espera de nada. Mas, de algum modo, não consigo deixar de estar à espera. Sonho com ele: sonhos apaixonados, de dsejo ardente, que me despertam a meio da noite, enrolada lençol, a transpirar de desejo. O meu pai pergunta-me porque não como. António abana a cabeça na minha direcção simulando o seu pesar. A minha mãe dardeja-me com olhos brilhantes e diz: - Ela está bem. Ela vai comer. As minhas irmãs sussurram, para me perguntar se estou a jejuar pelo rei bonito, e eu digo severamente: - Não me servia de nada. E, então, espero. Espero mais sete noites e sete dias, como uma donzela numa torre de um conto de fadas, como Melusina banhando-se na fonte, no meio da floresta, esperando que um cavaleiro surdisse, a cavalo, por caminhos não trilhados, e a amasse. Todas as noites puxo um pouco mais o laço de fio até que, ao oitavo dia, ouço um reduzido tilintar de metal a bater na pedra, olho para a água e vejo um clarão dourado. Inclino-me para o retirar. É um anel de ouro, belo e simples. Um lado é liso, mas o outro tem quatro extremidades forjadas, como se fossem as extremidades de uma coroa. Ponho-o na palma da minha mão, onde ele deixou o seu beijo, e parece um diadema em miniatura. Enfio-o no dedo da minha mão direita - não estou a atrair a infelicidade ao colocá-lo no meu dedo do anel de noivado - e serve- me perfeitamente e fica-me bem. Retiro-o com um encolher de ombros, como se não fosse de ouro forjado borgonhês da mais alta qualidade. Meto- o no bolso, e dirijo-me a casa com ele guardado em segurança. E, ali - sem aviso -, ali está um cavalo à porta e um cavaleiro em cima dele, um estandarte sobre a sua cabeça, a rosa branca da Casa de Iorque desfraldada à brisa. O meu pai está diante da porta da entrada, que se encontra aberta, a ler uma carta. Ouço-o dizer: - Dizei a Sua Graça que terei toda a honra. Estarei lá depois de amanhã. O homem faz uma vénia em cima da sela, lança-me uma saudação casual, espora o cavalo e parte. - O que é que se passa? - pergunto, subindo as escadas. - Uma convocação - diz o meu pai com um ar severo. - Todos temos de partir outra vez para a guerra. - Vós não! - digo com medo. - Vós não, Pai. Outra vez, não.
  • 31. - Não. O rei ordena-me que indique dez homens de Grafton e cinco de Stony Stratford. Preparados e equipados para marcharem sob as suas ordens contra o rei da Casa de Lencastre. Temos de mudar de lado. Ao que parece, o jantar que lhe oferecemos saiu-nos caro. - E quem vai liderá-los? - tenho tanto medo de que ele diga os meus irmãos: - Não é o António? Nem o João? - Eles têm de servir sob as ordens de Sir Guilherme Hastings - afirma ele. - Ele irá integrá-los nas tropas treinadas. Hesito. - Ele disse mais alguma coisa? - Isto é uma convocatória - replica o meu pai num tom irritado. - Não é um convite para o pequeno-almoço do primeiro de Maio. É claro que ele não disse nada, excepto que passariam por cá, de manhã, depois de amanhã, e que os homens têm de estar prontos para se alinharem nessa altura. Roda sobre os calcanhares e entra em casa, deixando-me com o anel de ouro, em forma de coroa, pontiagudo, no bolso. A minha mãe sugere, ao pequeno-almoço, que as minhas irmãs e eu, e os dois primos que estão hospedados em nossa casa, poderíamos gostar de ver o exército passar, e os nossos homens partirem para a guerra. - Não consigo imaginar porquê - retorque o meu pai, irritado. - Seria de pensar que já havíeis visto homens suficientes! partirem para a guerra. - Fica bem manifestarmos o nosso apoio - diz ela em voz baixa. - Se ele vencer, será melhor para nós se ele pensar que enviámos os homens voluntariamente. Se ele perder, ninguém vai lembrar-se de que assistimos à passagem dele, e podemos negá-lo. - Sou eu que lhes vou pagar, não sou? Vou armá-los com o que tenho? As armas que me restam da última vez que saí para combater, e que, por sinal, foi contra ele? Vou juntá-las, vou enviá-las e comprar botas para os que não têm nenhumas. Seria de pensar que estava a demonstrar o meu apoio! - Então, temos de fazê-lo de boa vontade - diz a minha mãe. Ele concorda com a cabeça. Sempre cedeu perante a minha mãe, neste tipo de questões. Ela era uma Duquesa, casada com o nobre Duque de Bedford, quando o meu pai não era mais do que o escudeiro do marido dela. Ela é filha do Conde de Saint-Pol, da família real da Borgonha, e é uma cortesã sem igual. - Gostaria que viésseis connosco - prossegue ela. - E talvez pudéssemos encontrar uma bolsa com ouro, na sala do tesouro, para Sua Graça. - Uma bolsa com ouro! Uma bolsa com ouro! Para fazer guerra contra o Rei Henrique? Agora somos Iorquistas? Ela espera até a revolta dele acalmar.
  • 32. - Para mostrarmos a nossa lealdade - diz ela. - Se ele derrotar o Rei Henrique e voltar a Londres vitorioso, então, será a sua corte e os seus favores reais que serão a origem de toda a riqueza e de todas as oportunidades. Será ele quem distribuirá as terras e quem terá a responsabilidade das nomeações para os cargos, será também ele quem autorizará os casamentos. E nós temos uma família numerosa, com muitas raparigas, Sir Ricardo. Por um momento, todas ficamos paralisadas e de cabeças baixas, prevendo uma das explosões atroadoras do meu pai. Depois, com relutância, ele ri-se. - Deus vos abençoe, minha oradora fascinante - diz. - Tendes razão, como tendes sempre. Farei o que dizeis, apesar de ser contra os meus princípios, e podeis dizer às meninas que usem rosas brancas, se conseguirem encontrar alguma nesta altura. Ela inclina-se para ele e dá-lhe um beijo na bochecha. - As roseiras-bravas estão em botão nas sebes - diz ela. Não é tão bom como se estivessem completamente floridas, mas ele perceberá a nossa intenção, e é só isso que importa. É claro que durante o resto do dia as minhas irmãs e primas estão frenéticas, experimentando roupas, lavando o cabelo, trocando fitas e ensaiando as suas reverências. A mulher de António, Isabel, e duas das nossas damas de companhia mais calmas dizem que não irão, mas todas as minhas irmãs estão fora de si, de entusiasmo. O rei e a maior parte dos lordes da sua corte irão passar por aqui. Que oportunidade para causar boa impressão aos homens que irão ser os novos senhores deste país! Se vencerem. - O que ides vestir? - pergunta-me Margarida, vendo-me distante do entusiasmo. - Usarei o meu vestido cinzento e o meu véu cinzento. - Esse não é o vosso melhor vestido; é apenas o que vestis aos domingos. Porque não pondes o azul? Encolho os ombros. - Vou porque a Mãe quer que vamos - afirmo. - Não espero que ninguém olhe duas vezes para nós - retiro o vestido do armário e sacudo-o. Tem um corte ajustado ao corpo com meia cauda atrás. Combino-o com um cinto cinzento, um pouco descaído sobre a minha cintura. Não digo nada a Margarida, mas sei que me favorece mais do que o meu vestido azul. - Depois de o rei ter vindo pessoalmente jantar, convidado por vós? - exclama ela. - Porque não olharia duas vezes para vós? Da primeira vez, olhou bastante. Ele deve gostar de vós: devolveu-vos as vossas terras; veio cá jantar. Passeou no jardim convosco. Porque não viria cá a casa outra vez? Porque não vos haveria de favorecer? - Porque, entre essa altura e agora, eu consegui o que queria, mas ele
  • 33. não - digo cruamente, atirando o vestido para o lado. - E, ao que parece, ele não é um rei tão generoso como os das baladas. O preço pela gentileza dele era elevado, demasiado elevado para mim. - Nunca quis possuir-vos? - murmura ela, horrorizada. - Exactamente. - Oh, meu Deus, Isabel. O que dissestes? O que fizestes? - Disse que não. Mas não foi fácil. Ela fica deliciosamente escandalizada. - Ele tentou forçar-vos? - Não muito. Não importa - balbucio. - E não é que eu fosse mais importante para ele do que uma rapariga que estava na beira da estrada. - Talvez não devêsseis vir amanhã - sugere ela. - Se ele vos ofendeu. Podeis dizer à Mãe que estais doente. Eu digo-lhe, desejardes. - Oh, eu vou - digo, como se, de qualquer forma, me fosse indiferente. De manhã, já não tenho tanta coragem. Uma noite sem dormir, o pedaço de pão e a carne de vaca ao pequeno-almoço não contribuem para melhorar o meu aspecto. Estou pálida como mármore e, ainda que Margarida esfregue ocre vermelho nos meus lábios, não perco o ar abatido, uma beleza espectral. Entre as minhas irmãs e primas belamente vestidas, eu, com o meu vestido e o meu toucado cinzentos, destaco-me como uma noviça num convento. Mas, quando a minha mãe me vê, assente, agradada. - Pareceis uma dama - diz ela. - Não como algumas raparigas camponesas enfeitadas com as suas melhores vestes para irem a uma feira. Como repreensão, aquele comentário não surte efeito. As raparigas estão tão encantadas por lhes ser permitido comparecer na convocação que não se importam nada de serem repreendidas por estarem exageradamente ornamentadas. Descemos juntas a estrada em direcção a Grafton e vemos diante de nós, ao lado da estrada nacional, um grupo errante de homens armados com bordões, um ou dois com mocas: os recrutas do meu Pai. Deu a todos uma divisa com uma rosa branca e relembrou-lhes que, agora, devem lutar pela Casa de Iorque. Costumavam ser soldados de infantaria da Casa de Lencastre; têm de recordar-se de que, agora, são vira-casacas. É claro, é-lhes indiferente a mudança de lealdade. Combatem conforme ele lhes ordenou, porque ele é o senhorio deles, o proprietário dos campos que eles trabalham, das suas casas, de quase tudo o que vêem à sua volta. É dele o moinho onde moem o milho, a taberna onde bebem paga-lhe renda. Alguns deles nunca passaram além das terras que lhe pertencem. Quase não conseguem imaginar um mundo no qual ”escudeiro” não signifique, simplesmente, Sir Ricardo Woodville, ou o filho, que se lhe seguirá. Quando ele era partidário da Casa de Lencastre, eles também eram. Depois, foi-lhe concedido o título Rivers, mas eles continuaram a ser dele e ele deles. Agora manda-os combater pela Casa de Iorque e eles farão o seu
  • 34. melhor, como sempre. Foi-lhes prometido que seriam remunerados por combaterem, e que as suas viúvas e Filhos seriam amparados, no caso de eles perderem a vida. É tudo o que precisam de saber. Isso não faz deles um exército inspirado, mas eles levantam a voz, numa saudação rude ao meu pai, e retiram os chapéus com sorrisos apreciadores pelas minhas irmãs e por mim, e as suas mulheres e os seus filhos inclinam-se em vénias, quando nos dirigimos a eles. As trombetas começam a tocar repentinamente e todas as cabeças se voltam na direcção do ruído. Contornando a esquina, num trote regular, surgem as cores e os trombeteiros do rei, atrás deles, os arautos, atrás deles, os alabardeiros da casa real, e, no meio de todo aquele bramido e de estandartes ondulantes, está ele. Por um momento, sinto que vou desmaiar, mas a mão da minha mãe mantém-se firme sob o meu braço, e eu acalmo-me. Ele levanta a mão, dando sinal para que parem, e a cavalgada detém-se. Atrás dos primeiros cavalos e cavaleiros, está um longo séquito de homens armados; atrás deles, outros novos recrutas, com um ar acanhado, como os nossos homens, e depois uma comitiva de carroças com alimentos, mantimentos, armas, uma enorme carreta puxada por quatro cavalos de tiro maciços, e uma fila de póneis e mulheres, acompanhantes da campanha e seres errantes. É como uma pequena cidade em movimento; uma pequena cidade mortífera, que se desloca para fazer o mal. O Rei Eduardo toma balanço para desmontar do seu cavalo, e dirige- se ao meu pai, que se baixa numa vénia: - Foi tudo o que conseguimos reunir, lamento, Vossa Graça. Mas juraram servir-vos - afirma o meu pai. - E isto, para ajudar a vossa causa. A minha mãe dá um passo em frente e oferece a bolsa com ouro. O Rei Eduardo pega nela e avalia o peso na sua mão e, em seguida, beija-a cordialmente em ambas as bochechas. - Sois generosos - diz. - E eu não esquecerei o vosso apoio. Os olhos dele deslocam-se dela para mim, para o lugar onde estou com as minhas irmãs, e todas fazemos uma reverência ao mesmo tempo. Quando me levanto, ele continua a olhar para mim, e há um momento em que todo o ruído do exército, dos cavalos e dos homens a alinharem-se se transforma em silêncio, e é como se só existíssemos eu e ele, sozinhos, no mundo inteiro. Sem pensar no que estou a fazer, como se ele me tivesse chamado sem proferir uma palavra, dou um passo na sua direcção, e depois mais um, até ter ultrapassado o meu pai e a minha mãe, e estar cara a cara com ele, tão perto que ele poderia beijar-me, se o desejasse. - Não consigo dormir - diz ele, tão baixo que só eu o consigo ouvir. - Não consigo dormir. Não consigo dormir. Não consigo dormir. - Nem eu. - Vós também não?
  • 35. - Não. - De verdade? - Sim. Ele dá um profundo suspiro, como se estivesse aliviado. - Então, é amor? - Suponho que sim. - Não consigo comer. - Não. - Não consigo pensar noutra coisa que não seja em vós. Não posso continuar nem um segundo assim; não consigo cavalgar para a batalha deste modo. Sou tão tonto como um rapazinho. Estou louco por vós, como um rapazinho. Não consigo ficar sem vós; não ficarei sem vós. Seja o que for que me custe. Consigo sentir a cor do meu rosto intensificar-se, bem como o calor nas minhas faces, e, pela primeira vez em dias, consigo sentir-me rir. - Não consigo pensar em nada excepto em vós - murmuro. - Nada. Pensei que estava doente. O anel em forma de coroa pesa-me no bolso, o meu toucado arrepanha-me o cabelo; mas estou ali sem me aperceber de nada, não vendo nada para além dele, não sentindo nada senão o seu hálito morno na minha cara e o odor do seu cavalo, da pele da sua sela, bem como o seu cheiro: especiarias, água de rosas. suor. - Estou louco por vós - diz ele. Sinto o meu sorriso abrir-se nos meus lábios, quando, por fim, olho para o seu rosto. - E eu por vós - digo em voz baixa. - De verdade. - Bem, então, casai comigo. - O quê? - Casai comigo. Não há mais nada a fazer. Dou um risinho nervoso. - Estais a brincar comigo. - Estou a falar a sério. Penso que vou morrer se não vos tiver. Quereis casar comigo? - Sim - murmuro. - Amanhã, de manhã, chegarei a cavalo, bem cedo. Casai comigo, amanhã, de manhã, na vossa pequena capela. Trarei o meu capelão, vós trazeis testemunhas. Escolhei alguém em quem possais confiar. Terá de permanecer em segredo durante algum tempo. Quereis fazê-lo? - Sim. Pela primeira vez, ele sorri, um sorriso caloroso que se espalha pelo seu rosto claro e largo. - Valha-me Deus, poderia tomar-vos nos meus braços, neste preciso momento - diz ele.
  • 36. - Amanhã - sussurro. - Às nove da manhã - diz ele. Ele volta-se para o meu pai. - Podemos oferecer-vos refrescos? - pergunta o meu pai,; olhando do meu rosto enrubescido para o rei sorridente. - Não, mas amanhã jantarei convosco, se for possível - diz ele. - Estarei a caçar aqui perto, e espero passar um bom dia - faz uma vénia à minha mãe e a mim, lança uma saudação às minhas irmãs e primas e, ganhando balanço, monta na sela. - Alinhar - diz ele para os homens. - É uma marcha curta, uma boa causa e um jantar, quando paramos. Sede leais para comigo e eu serei um bom senhor para vós. Nunca perdi uma batalha, e vós estareis seguros comigo. Levar-vos-ei a um excelente saque e trar- vos-ei em segurança de volta a casa. São precisamente as palavras certas a dizer-lhes. E, por uma vez, ficam com um ar mais alegre e dirigem-se, arrastando os pés, para o fim da linha, as minhas irmãs acenam com as suas rosas em botão, os trombeteiros fazem-se ouvir, e todo o exército avança novamente. Ele faz-me um sinal com a cabeça sem sorrir, e eu ergo a mão, numa despedida. - Amanhã - murmuro quando ele passa por mim. Tenho dúvidas em relação a ele, mesmo quando dou ordem ao pajem da minha mãe para despertar de manhã e dirigir-se à capela, pronto para cantar um salmo. Tenho dúvidas em relação a ele, mesmo quando vou ter com a minha mãe e lhe digo que o Rei da Inglaterra, em pessoa, me disse que deseja casar comigo em segredo e lhe pergunto se pode vir comigo e ser minha testemunha, e que traga a sua dama de companhia, Catarina. Tenho dúvidas em relação a ele, quando, com o meu melhor vestido azul, fico ali, no ar frio da manhã da pequena capela. Tenho dúvidas em relação a ele até ao preciso momento em que ouço os seus passos apressados avançarem pela curta nave lateral, até sentir o seu braço em volta da minha cintura e o seu beijo na minha boca, e ouvi-lo dizer ao padre: - Casai-nos, Padre. Estou com pressa. O rapaz canta o seu salmo e o padre pronuncia as palavras. Faço o meu juramento e ele o seu. Indistintamente, vejo o rosto encantado da minha mãe e as cores da janela de vidro fosco projectarem um arco-íris aos nossos pés, no chão de pedra da capela. Então, o padre pergunta: - E a aliança? E o rei responde: - Uma aliança! Sou um palerma! Esqueci-me! Não tenho uma aliança para vós - vira-se para a minha mãe. - Vossa senhoria, podeis emprestar-me um anel? - Oh, mas eu tenho um - digo, quase surpreendida comigo mesma. - Tenho um aqui - do bolso, tiro o anel que retirei tão lenta e pacientemente da água, o anel em forma da coroa da Inglaterra, que veio com a magia
  • 37. marinha para realizar os desejos do meu coração, e o próprio Rei da Inglaterra mete-mo no dedo, como aliança de casamento. E eu sou mulher dele. E Rainha da Inglaterra - ou, pelo menos, a Rainha da Inglaterra da Casa de Iorque. O braço dele está bastante apertado em volta da minha cintura e o rapaz canta a ordem, depois, o rei vira-se para a minha mãe e pergunta: - Vossa senhoria? Para onde posso levar a minha noiva? A minha mãe sorri e dá-lhe uma chave. - Há uma cabana de caça junto ao rio - volta-se para mim. - A Cabana do Rio. Pedi que a preparassem para vós. Ele assente com a cabeça, arrasta-me para fora da pequena capela e pega em mim para me pôr em cima do seu cavalo de caça. Monta atrás de mim e sinto os seus braços apertarem-se em meu redor, quando ele toma as rédeas. Seguimos a passo ao longo da margem do rio e, quando me encosto para trás, posso sentir o coração dele bater. Conseguimos avistar a pequena cabana por entre as árvores e há uma onda de fumo a sair da chaminé. Ele balança-se para desmontar do cavalo e ergue-me para que eu desça, leva o animal para os estábulos, nas traseiras da casa, enquanto eu abro a porta. É um lugar simples, com a lareira acesa, um jarro de cerveja de casamento e duas canecas sobre a mesa de madeira, dois bancos preparados para comermos o pão, o queijo e a carne, e uma grande cama de madeira, feita com os melhores lençóis de linho. A divisão escurece, quando ele passa a porta da entrada, baixando-se para passar sob as vigas do tecto. - Vossa Graça... - começo a dizer e depois corrijo-me. Meu senhor. Marido. - Esposa - diz ele, com uma satisfação tranquila. - Vamos para a cama. O sol da manhã, que estava tão luminoso, ao incidir nas traves e no tecto revestido a água de cal, quando fomos para cama, está a tornar o local dourado, ao final da tarde, altur em que ele me diz: - Agradeço à Nossa Senhora dos Céus por o vosso pai me ter convidado para jantar. Sinto-me fraco por causa da fome. Estou a morrer de fome. Deixai-me sair da cama, sua bruxa - Ofereci-vos pão e queijo, há duas horas - relembro-lhe -, mas vós não me deixastes fazer os três passos até à mesa, para os ir buscar para vós. - Estava ocupado - diz ele, e puxa-me novamente para junto do seu ombro despido. Com o seu cheiro e o toque da sua pele, sinto o meu desejo por ele crescer novamente e movemo-nos juntos. Quando nos deitamos de costas, a divisão está rosada com a luz do pôr do Sol, e ele sai da cama. - Tenho de me lavar - diz. - Quereis que vos traga um jarro de água
  • 38. do pátio? A cabeça dele roça no tecto; o corpo é perfeito. Observo-o da cabeça aos pés com satisfação, como um corretor de cavalos olha para um belo garanhão. É alto e magro, os seus músculos são duros, e o peito largo, os ombros fortes. Sorri para mim e o meu coração palpita por ele. - Estais com ar de quem tem vontade de me devorar - diz. - E tenho - respondo. - Não consigo imaginar como vou conseguir saciar o meu desejo por vós. Creio que vou ter de vos manter prisioneiro aqui e de vos comer em pequenas costeletas, dia após dia... - Se eu vos fizesse prisioneira, devorar-vos-ia de um ávido trago - ri- se ele. - Mas vós não sairíeis enquanto não estivésseis grávida. - Oh! - o pensamento mais encantador invade-me agora. Oh, irei dar- vos filhos e eles irão ser príncipes. - Ireis ser a mãe do Rei da Inglaterra, e a mãe da Casa de Iorque, que governará para sempre, se Deus assim o quiser. - Ámen - digo devotamente, e não sinto nenhuma sombra, nenhum tremor, nem qualquer sensação de intranquilidade. Que Deus vos envie de volta a casa, para junto de mim, em segurança. - Eu venço sempre - diz ele na sua confiança suprema. - Ficai feliz, Isabel. Não ireis perder-me no campo de batalha. - E irei ser rainha - digo novamente. Pela primeira vez, compreendo, compreendo verdadeiramente que, se ele regressar a casa da batalha como rei legítimo, é porque Henrique estará morto; então, este jovem será o inquestionável Rei da Inglaterra - e eu serei a primeira dama do país. Depois do jantar, ele despede-se do meu pai e prepara-se para partir para Northampton. O seu pajem veio aos estábulos e deu de comer e de beber aos cavalos, deixando-os, em seguida, prontos, à porta. - Voltarei amanhã à noite - diz ele. - Tenho de ver os meus homens e de reunir o meu exército, o dia todo. Mas virei ter convosco, ao final do dia. - Vinde ter à cabana de caça - murmuro. - E terei lá jantar para vós, como uma boa esposa. - Amanhã à noite - promete ele. Depois, volta-se para o meu pai e a minha mãe e agradece-lhes pela hospitalidade, agradece as vénias deles com um aceno de cabeça, e sai. - Sua Graça é muito atencioso convosco - comenta o meu pai. - Não permitais que isso vos dê a volta à cabeça. - A Isabel é a mulher mais bonita da Inglaterra - responde docemente a minha mãe. - E ele aprecia um rosto bonito; mas ela conhece bem os seus deveres. E depois, tenho de continuar a esperar. Ao longo da noite, depois de jogar às cartas com os meus filhos e de os ouvir dizer as suas orações e
  • 39. preparar-se para dormir. Ao longo de toda a noite, e, apesar de estar exausta e deliciosamente dorida, não consigo dormir. Durante todo o dia seguinte, quando caminho e falo, é como se estivesse num sonho, à espera que chegue a noite, o momento em que a sua cabeça espreite pela porta e ele entre na pequena divisão, me envolva com os braços e diga: - Esposa, vamos para a cama. Passam três noites, nesta bruma de prazer, até à última manhã, em que ele me diz: - Tenho de ir, meu amor, e ver-vos-ei quando tudo estiver terminado - é como se alguém me tivesse atirado água gelada para a cara, fico sobressaltada e digo: - Ides partir para a guerra? - Já tenho o meu exército reunido, e os meus espiõel comunicaram- me que Henrique recebeu ordens da mulher para se encontrar com ela na costa leste, com as tropas dela. Partirei imediatamente e trá-lo-ei para a batalha e, em seguida, marcharei ao encontro dela, assim que ela desembarcar. Agarro a sua camisa, quando ele a veste. - Não ides partir já? - Hoje - diz ele, afastando-me gentilmente, e continuando a vestir-se. - Mas eu não suporto estar sem vós. - Não. Mas ides suportar. Agora ouvi. Este é um homem diferente do jovem amante arrebatado da nossa lua-de-mel de três noites. Não tenho pensado em mais nada, a não ser no nosso prazer; mas ele tem estado a fazer planos. É um rei que está a defender o seu reino. Espero para ouvir as ordens que ele me vai dar. - Se vencer, e eu irei vencer, voltarei para junto de vós e, logo que possível, anunciaremos o nosso casamento. Haverá muitos a quem essa ideia desagradará, mas está consumado, tudo o que podem fazer é aceitá-lo. Assinto. Sei que o seu grande conselheiro, Lorde Warwick, está a planear o seu casamento com uma princesa francesa, e Lorde Warwick está habituado a dar ordens ao meu jovem marido. - Se a sorte me for contrária e eu morrer, então, vós não direis nada acerca deste casamento e destes dias - ergue a mão para silenciar a minha objecção. - Nada. Não teríeis nada a ganhar por ser a viúva de um impostor falecido, cuja cabeça será espetada nos portões de Iorque. Seria a vossa ruína. Tanto quanto todos sabem, sois filha de uma família que é leal à Casa de Lencastre. Deveis permanecer desse modo. Ireis recordar-vos de mim nas vossas preces, espero. Mas será um segredo entre mim, vós e Deus. E de certeza que dois de nós Manteremos o silêncio, porque um de nós é Deus e o outro estará morto. - A minha mãe sabe... - A vossa mãe sabe que a melhor forma de vos manter em segurança
  • 40. será silenciar o pajem e a dama de companhia. E já está preparada para isso, ela compreende, e eu dei-lhe dinheiro. Engulo um soluço. - Muito bem. E gostaria que vos casásseis de novo. Escolhei um bom homem, um que vos ame e que tome conta dos vossos filhos, e sede feliz. Eu gostaria que fôsseis feliz. Inclino a cabeça num tormento emudecido. ”Mas, se tiverdes um rapaz, é completamente diferente. O meu filho irá ser o herdeiro ao trono. Será o herdeiro da Casa de Iorque. Tereis de o manter em segurança. Podereis ter de o manter escondido, até ter idade suficiente para reivindicar os seus direitos. Pode viver sob um nome falso; pode viver com gente pobre. Não sejais perfidamente orgulhosa. Escondei- o num lugar seguro, até ele ter idade e força suficientes para reclamar a sua herança. Ricardo e Jorge, os meus irmãos, serão os seus tios e guardiães. Podeis confiar neles para proteger qualquer filho meu. Pode acontecer que Henrique e o filho morram cedo e, então, o vosso filho será o único herdeiro do trono da Inglaterra. Não conto com a mulher da Casa de Lencastre, Margarida Beaufort. O meu filho deverá receber trono. É meu desejo que ele fique com o trono, se conseguir conquistá-lo, ou se Ricardo e Jorge puderem conquistá-lo para ele. Compreendeis? Tendes de esconder o meu filho na Flandres e de o manter em segurança, por mim. Ele poderá ser o próximo rei da Casa de Iorque. - Sim - respondo simplesmente. Apercebo-me de que o meu sofrimento e o meu temor por ele já não são um assunto privado. Se gerámos um filho, nestas longas noites de amor, então ele não é apenas um filho do amor, é um herdeiro do trono, um pretendente, um novo jogador na antiga e mortífera rivalidade que existe entre as Casas de Iorque e de Lencastre. - Isto está a ser difícil para vós - diz ele, vendo o meu rosto pálido. - A minha intenção é que nunca aconteça. Mas não vos esqueçais, o vosso refúgio é a Flandres, se tiverdes de esconder o meu filho num lugar seguro. E a vossa mãe tem dinheiro e sabe aonde se dirigir. - Não esquecerei - digo. - Voltai para mim. Ele ri-se. Não é um riso forçado; é o riso de um homem feliz, confiante na sua sorte e nas suas capacidades. - Voltarei - diz ele. - Confiai em mim. Casastes com um homem que vai morrer no seu leito, de preferência depois de ter feito amor com a mulher mais bonita da Inglaterra. Estende os braços e eu aproximo-me e sinto o calor do seu abraço. - Certificai-vos de que o fazeis - digo. - E eu assegurar-me-ei de que
  • 41. a mais bonita mulher da Inglaterra, aos vossos olhos, seja sempre eu. Beija-me, mas bruscamente, como se a sua mente já estivesse em qualquer outra parte, e aparta-se da minha mão que o agarra. Já se afastou de mim, muito antes de baixar a cabeça para passar na porta, e vejo que o pajem já lhe trouxe o cavalo até à porta e está pronto para partir. Corro para o exterior para lhe dizer adeus e ele já está em cima da sela. O seu cavalo está a dançar no mesmo lugar; é um enorme animal cor de avelã, forte e possante. Arqueia o pescoço e tenta recuar, lutando contra as rédeas mantidas curtas por Eduardo. O Rei da Inglaterra ergue-se contra o sol, no seu gigantesco cavalo de guerra, e, por um momento, também eu acredito que ele é invencível. - Que Deus vos acompanhe, boa sorte! - grito, e ele saúda-me e esporeia o cavalo, partindo, o legítimo Rei da Inglaterra, para combater o outro legítimo Rei da Inglaterra, pelo próprio reino. Fico ali, com a mão levantada, num gesto de adeus, até deixar de ver o seu estandarte com a rosa branca de Iorque, que segue à sua frente, até deixar de ouvir o bater dos cascos do seu cavalo, até ele estar longe de mim; e então, para meu horror, o meu irmão António, que tem estado a ver tudo isto, sabe Deus há quanto tempo, sai de debaixo da sombra das árvores e caminha em direcção a mim. - Sua pega! - diz ele. Fico a olhar para ele como se não compreendesse o significado da palavra. - Sois uma pega. Envergonhastes a nossa casa e o vosso nome, bem como o nome do vosso pobre marido falecido, que morreu a combater aquele usurpador. Deus vos perdoe, Isabel. Vou imediatamente contar tudo ao meu pai, e ele irá mandar-vos para um convento, se não vos estrangular antes. - Não! - dou um passo em frente e agarro-lhe o braço, mas ele sacode-me. - Não me toqueis, sua puta! Julgais que quero ter as vossas mãos sobre mim depois de terem andado por todo o corpo dele? - António, isto não é o que pensais! - Os meus olhos estão a enganar-me? - dispara ele brutalmente. - Isto é um feitiço? Sois Melusina? Uma bela deusa que se banha nos bosques e aquele que acabou de partir um cavaleiro que jurou servir-vos? Isto agora é Camelot? Um amor honrado? Trata-se de poesia e não da sarjeta? - É honrado! - sou levada a responder. - Não conheceis o significado dessa palavra. Sois uma puta, e ele vai entregar-vos a Sir Guilherme Hastings, quando voltarem a passar por aqui, como faz com todas as suas pegas. - Ele ama-me! - Como diz a todas.
  • 42. - Ama. E vai voltar para mim... - Como promete sempre. Furiosa, lanço o punho na sua direcção e ele baixa-se, escapando a um murro no rosto. Depois vê o cintilar do ouro no meu dedo e quase se ri. - Ele deu-vos isso? Um anel? Devo ficar impressionado com um símbolo de amor? - Não é um símbolo de amor, é uma aliança de casamento. Uma aliança apropriada oferecida no casamento. Estamos casados - faço o meu anúncio em triunfo, mas fico imediatamente desapontada. - Valha-me Deus, ele enganou-vos - diz ele, angustiado. Abraça-me e aperta-me a cabeça junto ao peito. - Minha pobre irmã, minha pobre tonta. Debato-me para me soltar. - Deixai-me, não sou tonta de ninguém. O que dizeis? Ele olha para mim com pena, mas a sua boca contorce-se num sorriso amargo. - Peixai-me adivinhar, foi um casamento secreto, numa capela privada? Nenhum dos amigos e cortesãos dele esteve presente? Não podeis dizer nada a Lorde Warwick? Tendes de o manter em segredo? Tendes de negar, se vos perguntarem? - Sim. Mas... - Não estais casada, Isabel. Haveis sido enganada. Foi uma cerimónia simulada que não tem qualquer valor aos olhos de Deus nem dos homens. Enganou-vos com um anel falso e um padre simulado, para conseguir levar-vos para a cama. - Não. - Este é o homem que espera ser Rei da Inglaterra. Tem de casar com uma princesa. Não vai casar com uma qualquer viúva indigente, que encontrou na beira da estrada, a pedir-lhe que lhe devolvesse o seu dote. Se ele alguma vez casar com uma mulher inglesa, será com uma das grandes damas da corte dos Lencastre, provavelmente a filha de Warwick, Isabel. Não vai casar com uma rapariga cujo pai lutou contra ele. É mais provável que case com uma grande princesa da Europa, uma infanta da Espanha, ou uma dauphine da França. Ele tem de casar de modo a obter uma posição mais segura no trono, de forma a fazer alianças. Não vai casar com um rosto bonito, por amor. Lorde Warwick nunca o permitiria. E ele não é assim tão louco, ao ponto de ir contra os seus Próprios interesses. - Ele não tem de fazer o que Lorde Warwick quer! Ele é o rei. - Ele é uma marioneta de Warwick - afirma cruelmente o meu irmão. - Lorde Warwick decidiu apoiá-lo, tal como o pai de Warwick apoiou o pai de Eduardo. Sem o apoio de Warwick, nem o vosso amante nem o pai dele poderiam ter feito nada da sua reivindicação ao trono. Warwick é o fazedor de reis, e transformou o vosso amante em Rei da Inglaterra. Podeis estar certa de que também irá inventar uma rainha. Será ele a escolher com quem
  • 43. Eduardo casará, e Eduardo casará com a pessoa que ele decidir. Estou tão estupefacta que fico sem palavras. - Mas ele não o fez. Não pode fazê-lo. Eduardo casou-se comigo. - Não foi. Houve testemunhas. - Quem? - A nossa Mãe, por exemplo - digo casualmente. - A nossa mãe? - Foi testemunha, juntamente com Catarina, a sua dama de companhia. - E o Pai sabe? Ele esteve lá? Abano a cabeça. - Aí tendes, então - diz ele. - Quem são as vossas muitas testemunhas? - A Mãe, Catarina, o padre e um menino do coro - digo. - Que padre? - Um que não conheço. O rei ordenou-lhe que viesse. Ele encolhe os ombros. - Se é que era padre. É mais provável que fosse um louco, ou actor, fingindo por favor. Mesmo que seja um padre ordenado, o rei ainda pode negar que o casamento tenha sido válido e será a palavra de três mulheres e de um rapaz contra a do Rei da Inglaterra. É o suficiente para vos mandar deter, com base numa acusação qualquer e para vos manter presas por cerca de um ano, até ele casar com uma princesa da sua escolha. Fez-vos, a vós e à Mãe, passar por idiotas. - Juro-vos que ele me ama. - Talvez ele ame - admite ele. - Como talvez ame cada uma das mulheres com quem se deitou, e há centenas delas. Mas e quando a batalha estiver terminada e ele voltar para casa, vir outra menina bonita na beira da estrada? Esquecer-vos-á numa semana. Esfrego a bochecha com a mão e apercebo-me de que tenho a face lavada em lágrimas. - Vou contar à Mãe o que me haveis dito - afirmo debilmente. É a ameaça que lhe fazia na nossa infância -, na altura, não o assustava. - Vamos os dois falar com ela. Não vai ficar feliz, quando se aperceber de que foi enganada, ao ponto de empurrar a filha para a desonra. Caminhamos em silêncio pelo meio dos bosques e atravessamos a ponte pedonal. Quando passamos pelo enorme freixo, olho de relance para o tronco. O fio enrolado desapareceu; nãohá provas de que a magia alguma vez lá tenha estado. As águas do rio, de onde retirei o meu anel, fecharam- se. Não há provas de que a magia alguma vez tenha funcionado. Não há sequer provas de que exista algo como magia. Tudo o que tenho é um anel