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BARRAGEM NO NILO
CHRISTIAN JACQ
BARRAGEM NO NILO
Tradução de MARIA DO CARMO ABREU
BERTRAND EDITORA
VENDA NOVA 1995
Título Original: Barrage sur lê Nil
Autor: Christian Jacq (c) Éditions Robert Laffont, S.A., Paris, 1995
Capa de Fernando Felgueiras
Todos os direitos para a publicação desta obra em Portugal reservados por
Bertrand Editora, Lda.
Fotocomposição e montagem:
Espaço 2 Gráfico Impressão e acabamento: Gráfica Manuel Barbosa & Filhos, Lda.
Depósito Legal nº 92057/95 Acabou de imprimir-se em Setembro de 1995
ISBN: 972-25-0939
Digitalização Professor Toboaldo Júnior.
Como o flagelo não tem a medida do homem, dizemos então que é irreal, é um sonho
mau que vai passar. Mas não passa e, de sonho mau em sonho mau, quem passa são
os
homens.
ALBERT CAMUS, A Peste
1.
Lançado a toda a velocidade, o autocarro climatizado evitou por um triz um burro
que puxava uma carroça carregada com bidões enferrujados. À frente, o táxi
colectivo
onde se amontoavam cerca de quinze operários nem abrandou. Questão de orgulho,
código de honra que substitui o da estrada entre o Cairo e Assuão, única via
terrestre
ligando a capital do Egipto à grande cidade do Sul. Permanentemente cheia de
camiões sobrecarregados, com travões pouco seguros, de automóveis que, na sua
maioria,
não estavam já em estado de circular, de bicicletas, de peões, de rebanhos de
cabras, de camelos e burros explorados como máquinas, a longa via adquiria umas
vezes
aspecto de auto-estrada, outras de caminho cheio de buracos, outras ainda de
pista desprovida de macadame. Apesar de alguns raros painéis de sinalização,
votados
a um rápido desaparecimento, uma única lei: ultrapassar.
Com a testa encostada ao vidro, Hélène Doltin não estava preocupada com a
maneira de conduzir do motorista. O Egipto de Junho encantava-a; inebriava-se
com a intensidade
do sol de Verão, com a doçura dos campos das margens do Nilo, com a nobreza do
deserto, às vezes tão próximo. Para gozar bem a paisagem, a jovem francesa, tal
como
uma vintena mais de turistas, tinha preferido o carro ao avião.
O veículo abrandou ao atravessar uma aldeia, ao sul de Luxor; garotas com
vestidos cor-de-rosa e amarelos acenaram com as mãos, sorrindo. Sentados na
soleira das
suas casas, fumavam homens com o
12
olhar perdido no vácuo; envoltas em longas vestes negras, as mulheres
transportavam à cabeça cestos de plástico com frutos e legumes.
Hélène sentia-se feliz. Aos trinta e dois anos, conhecia finalmente a
felicidade, uma felicidade louca como um primeiro amor, uma felicidade que iria
viver nesta
terra solar e misteriosa; queria guardar na memória todos os segundos daquela
viagem para os oferecer ao homem que a esperava em Assuão.
O carro passou ao lado de um campo de cana-de-açúcar que as autoridades tinham
mandado cortar; os "terroristas", como lhes chamava a imprensa, escondiam-se lá
depois
de terem disparado contra os turistas. Na véspera, depois da demissão do
ministro do Interior, considerado demasiado conciliador com os muçulmanos
fanáticos, tinha
sido organizada no Cairo uma vasta operação anti-integrista no bairro popular de
Imbaba, em rebelião aberta contra o poder há já vários meses. Este recusava
qualquer
diálogo com os criminosos que matavam inocentes e tentavam destruir a nação.
Mais de doze mil soldados, apoiados por uma centena de carros blindados,
prendera os
dirigentes, todos com menos de trinta anos, e dinamitara-lhes as casas.
Enquanto as velhas masmorras de Nasser se enchiam com integristas brandindo o
Corão como arma suprema, o presidente prometia melhorar as condições de
habitação,
diminuir o desemprego e suprimir a corrupção. Mas os jovens licenciados da
célebre Universidade corânica de al-Azhar, no coração do Cairo, não lhe davam
ouvidos.
Transformados em pregadores, quinze mil tinham-se espalhado pelo país para levar
uma palavra de ordem a cada mesquita: fazer do Egipto uma "república islâmica",
à imagem do Irão ou do Sudão, e aplicar a charia, a lei muçulmana.
O motorista olhou Hélène pelo retrovisor; a beleza da jovem fascinava-o. Admirar
as europeias era um dos privilégios da sua profissão, que o irmão e o primo,
Irmãos
Muçulmanos, o aconselhavam a abandonar. Como o Corão proibia a representação da
divindade e a representação dos ídolos, transportar os turistas aos locais
arqueológicos
povoados de demónios pagãos adquiria o peso de um pecado. Mas o motorista, o
único membro da família a trabalhar naquele Verão em que os estrangeiros
rareavam, recebia
um bom ordenado e alimentava uma dezena de pessoas, entre as quais o irmão e o
primo. Portanto, os
13
dois fecharam os olhos durante mais algum tempo, até chegar o reinado dos fiéis
de Alá.
A maior parte dos viajantes tinha adormecido; apenas Hélène mantinha os olhos
bem abertos, fixos nos campos de um verde deslumbrante. O motorista tinha
abrandado
para melhor apreciar o espectáculo: um rosto redondo, quase infantil, cabelos
semilongos de um castanho arruivado, olhos negros cintilantes, um nariz
delicado, lábios
finos pintados de vermelho. Obrigar as mulheres a andar veladas, mesmo se a
tradição o exigia, era coisa que não lhe agradava.
Ao sair de uma curva inclinada, causadora de muitos despistes, meteu o pedal a
fundo. O veículo da Misr Travei, a companhia nacional de transportes, estacou de
chofre.
Hélène foi projectada para a frente, um homem de cerca de cinquenta anos caiu no
corredor central e a cabeça de outro viajante chocou com um vidro. Rebentaram os
protestos.
Lamento desculpou-se o motorista, voltando-se para trás. Uma barragem do
exército.
O carro tinha-se imobilizado a menos de cinco metros de uma barreira de arame
farpado colocada a atravessar a estrada. Uma dezena de militares, com a arma
encostada
à anca, saíram do seu torpor.
Um oficial e dois soldados, equipados com pistolas-metralhadoras, dirigiram-se
para o carro. Os uniformes castanhos eram novos e limpos; não se pareciam com os
homens
das tropas miseráveis que se amontoavam nas casernas sobreaquecidas e insalubres
e que tinham de contentar-se com um magro soldo, roupas esfarrapadas e botas
rotas.
Entre eles havia muitos integristas prontos para apoiarem uma revolução; por
isso o poder desconfiava dessas tropas. Depois do assassinato de Sadat por
fanáticos,
o estado de sítio continuava em vigor.
O oficial interrogou o motorista quanto ao destino e pediu a lista dos
passageiros. Como os atentados tinham feito diminuir de forma dramática o número
de turistas
e deixado no desemprego vários milhões de egípcios, o governo velava pela
segurança dos estrangeiros. Exército e polícia multiplicavam os controlos;
barcos de cruzeiro
e carros gozavam de uma protecção mais ou menos apertada.
O oficial dobrou a lista em quatro e meteu o papel no bolso.
Mas... eu preciso disso! protestou o motorista.
14
O primeiro soldado ergueu o cano da pistola-metralhadora, carregou no gatilho e
abateu o compatriota. O segundo, com vagar, avançou pelo corredor central
disparando
uma rajada sobre cada passageiro.
Quando os seus olhos se cruzaram com os de Hélène, ela suplicou-lhe que a
poupasse.
2.
Mark Walker não queria acreditar nos seus olhos.
Os baixos relevos do pequeno túmulo que acabava de escavar, não longe da
primeira catarata do Nilo, estavam num estado deplorável. No entanto, tendo em
conta o clima
do Alto Egipto, deveriam ter-se conservado durante vários milénios... Mas a
grande barragem de Assuão continuava a sua obra destruidora.
O americano sentia vontade de chorar.
Mark Walker, trinta e nove anos, um corpo de atleta modelado pelas competições
de meio-fundo, um rosto alongado com rugas cheias de encanto e iluminado por
dois
olhos de um verde sombrio, testa alta e voz grave, nascera no Cairo, filho de um
industrial texano doido por caça e de uma milionária de Nova Iorque apaixonada
por
egiptologia. Filho único, recusara deixar o Egipto pelo qual se apaixonara;
aluno brilhante, aprendera a decifrar os hieróglifos e pertencera, desde a
adolescência,
a equipas de pesquisadores.
Quando se preparava para festejar os dezassete anos, a infelicidade batera-lhe à
porta.
O jacto privado dos pais, que tinham ido caçar ao Canadá, despenhara-se numa
floresta coberta de neve.
Na posse de uma imensa fortuna cuja gestão entregara a especialistas, Mark
Walker aturdira-se com o trabalho, criando a sua própria fundação arqueológica
cuja finalidade
era a salvaguarda dos monumentos faraónicos, ameaçados por temíveis agressores.
Mas sem a amizade do
16
seu amigo Naguib Ghali, que se formara em Medicina, teria mergulhado na
depressão.
O instinto de luta, alimentado por um sentimento de indignação, vencera o
desgosto; Mark não tinha o direito de deixar morrer templos, túmulos, pinturas e
baixos
relevos. Tinha que vencer "o alto dique" de Assuão, essa monstruosa barragem que
condenava a mãe das civilizações ao desaparecimento.
Reparou num pequeno cofre em madeira de ébano enterrado na areia, ajoelhou-se e
desenterrou-o lentamente. Ergueu a tampa com o indicador.
No interior, uma folha de papiro enrolada; as linhas de hieróglifos tinham sido
desenhadas por uma mão muito firme.
O conteúdo do texto perturbou-o.
Assim fala o profeta Ipou-Our.
O crime estará por todo o lado,
A violência invadirá o país,
O Nilo será de sangue,
A fome impedirá a fraternidade,
As leis serão espezinhadas,
Muitos mortos serão enterrados no rio,
As águas serão o seu sepulcro,
Pois haverá um fogo maldito no coração dos homens.
De repente, o túmulo rangeu e o tecto baixo começou a rachar.
Saia depressa! gritou um dos trabalhadores.
O americano apertou o cofre de ébano de encontro ao peito e saiu do túmulo no
preciso momento em que os blocos se desmoronaram uns sobre os outros, minados
pelas
águas de infiltração.
É demais! rugiu Mark Walker. Desta vez vai ter de me ouvir!
Mark bateu à porta do gabinete de Gamai Shafir, o supervisor da
Nota: Texto autêntico, escrito por um profeta do antigo Egipto, Ipou-Our, para
anunciar as desgraças que se abateriam sobre o seu país.
17
grande barragem de Assuão, um personagem corpulento, barrigudo, com cerca de
sessenta anos, envergando uma camisa branca de mangas curtas e calças cinzentas
de excelente
corte.
Isto não pode continuar, Gamai! Você é engenheiro e sabe, tão bem como eu, que
esse raio dessa barragem é pior do que a peste!
O funcionário suspirou, olhando benevolente o interlocutor, embora este fosse o
mais acérrimo adversário da gigantesca barragem que aniquilava para sempre as
cheias
do Nilo.
Não se enerve recomendou Gamai Shafir, bonacheirão Graças à barragem, não
aumentámos a superfície das terras cultiváveis e permitimos à população viver
melhor?
Falso! Onde está o novo milhão de hectares anunciado pelos "cientistas"? A
superfície útil estagnou e receio mesmo que venha a diminuir.
Não exagere.
Ah, eu exagero? Devido à irrigação constante e a uma má utilização dos adubos e
pesticidas, de cuja nocividade a Europa começa a tomar consciência, os fellahs
empobrecem
as culturas e não compreendem porque secam os campos. Desde a construção da
grande barragem, algumas províncias, como al-Fayum, perderam quinze por cento
das terras
cultiváveis, a toalha freática sobe, a salinização esteriliza os solos que as
inundações deixaram de lavar... E ainda diz que eu exagero!
Gamai Shafir limpou a testa com o lenço de algodão e aumentou a velocidade da
ventoinha que agitava o ar quente no seu gabinete dominado pelo retrato do
presidente.
Lá fora estavam quarenta e cinco graus à sombra.
Sente-se, senhor Walker. A cólera não leva a lado nenhum.
Entreguei um relatório pormenorizado na sede da Organização Mundial de Saúde;
demonstra que, desde o desaparecimento das cheias, as doenças parasitárias se
têm desenvolvido
de maneira fulminante. Antigamente, a grande cheia afogava ratos, escorpiões e
serpentes; agora, estão em aumento constante. Além disso, vermes e parasitas
proliferam
nos canais de irrigação que o sol purificava durante a época seca, indispensável
ao equilíbrio natural.
O supervisor ergueu as mãos em sinal de impotência.
18
Aqui tem outro relatório para si, continuou Mark, poisando um volumoso dossier
sobre a secretária do funcionário. A ausência da cheia priva o vale do Nilo e o
Delta
de cento e dez milhões de metros cúbicos de aluviões; o leito do rio escava-se
pelo menos dois centímetros por ano e as margens alargam-se. A erosão lateral
faz
perder terras cultiváveis e ameaça as pontes.
A cheia era irregular; nos anos maus, condenava-nos à fome.
São a superpopulação e a demografia galopante que provocam a miséria, não a
cheia! Teria bastado, como fizeram os antigos, construir várias pequenas
barragens ao
longo do Nilo, e não oferecer o país como pastagem a um monstro. O meu relatório
demonstra igualmente que o Delta se está a afundar no Mediterrâneo; por volta de
2030, de acordo com os cálculos dos menos pessimistas, estará parcialmente
submerso. Consegue imaginar a dimensão do desastre?
Estamos conscientes do perigo e não ignoramos os seus avisos; pode ter a certeza
que tomaremos as medidas necessárias.
Juntei ao meu dossier as queixas dos pescadores do Delta, que em breve ficarão
reduzidos à inactividade e irão aumentar as fileiras dos desempregados. Por
causa
da barragem, o Nilo apenas transporta uma água pobre em substâncias nutritivas e
o peixe desaparece.
Mas pulula no lago Nasser! protestou Gamai Shafir.
Muito bem, falemos do lago! Deviam florescer aí centros turísticos e de pesca,
mas não passa de um deserto aquático cuja evaporação atinge dez milhões de
metros
cúbicos por ano em vez dos seis previstos pelos especialistas. Um quinto do
débito do Nilo desaparece, as águas do lago infiltram-se pelo fundo e formam uma
toalha
subterrânea de água que sobe a toda a velocidade; já não se encontra a mais de
dois metros por baixo de Karnak e a quatro metros por baixo da esfinge.
Irritado, o supervisor tocou uma campainha.
Apareceu um colosso núbio de rara nobreza, envergando uma galabieh azul. Poisou
um olhar glacial no funcionário.
Traz-nos chá, Soleb.
Aqui está.
Nota: Galabieh Fato tradicional dos homens, constituído por uma longa túnica de
algodão, sem gola nem cinto, de mangas compridas, que desce até aos tornozelos.
As
cores mais utilizadas são o azul, o cinzento, o castanho e o branco-sujo. (N. da
T.)
19
Aposto que está morno! Bem sabes que só gosto de chá a ferver. Gamai Shafir
provou o líquido.
Não está suficientemente quente! Desaparece, Soleb. Vou-te despedir. Já te
preveni mais de dez vezes.
O núbio eclipsou-se sem uma palavra.
Que preguiçosos... Já não há quem sirva em condições resmungou o egípcio.
Mark recomeçou.
Financio um programa da UNESCO para a salvaguarda dos monumentos egípcios em
perigo; a salinização e o salitre corroem o grés dos templos. Se não agirem
rapidamente,
Karnak vai desmoronar-se. Quanto aos túmulos do Vale dos Reis, perderão as suas
cores. Preciso do seu apoio.
É muito difícil... A minha posição impede-me de criticar a barragem. Quanto à
sua, meu caro amigo, poderia tornar-se delicada; a sua autoridade, o peso das
suas
declarações, as suas intervenções nos media internacionais começam a ferir
certas susceptibilidades.
E a profecia?
Que profecia?
A que acabo de descobrir num túmulo perto daqui. Aí tem a minha tradução, leia.
Gamai Shafir analisou o documento com atenção; o americano passava por ser um
egiptólogo competente.
O alto funcionário disfarçou a sua perturbação.
Isto não é importante... Um velho texto sem interesse.
Tem a certeza? No Egipto não é costume considerar levianamente as palavras dos
antigos.
Os faraós estão mortos e bem mortos.
A grande barragem é a mais terrível das ameaças que pesa sobre este país. Torna-
se necessário encontrar soluções.
Não há pressa.
E o lodo? insistiu Mark. Os peritos consideravam que o lago Nasser só ficaria
cheio daqui a cinco séculos, mas o assoreamento começa já a ser uma ameaça!
Isso não o alegra?
Em vez de utilizarem o lodo, os fabricantes de tijolos vão buscar
20
a sua matéria-prima, às terras aráveis, tão preciosas. Por causa dessa maldita
barragem, o Egipto fica cada vez mais pobre e a sua população sofre. E isso
desespera-me.
O supervisor abriu uma pasta que continha várias folhas com numerosas
assinaturas.
Tal como o senhor, receio um assoreamento muito mais rápido do que fora
previsto. Com o acordo dos meus superiores, pus um projecto em estudo. Vamos
lançar um apelo
de propostas para que especialistas sondem o fundo do lago Nasser e nos
proponham as técnicas de dragagem menos dispendiosas.
Daqui até que isso fosse levado à prática passariam com certeza vários anos, mas
era um primeiro passo.
Pensam oferecer o lodo aos fabricantes de tijolos?
É possível.
E quando encaram a criação de um canal de derivação para restabelecer a cheia,
pelo menos em parte?
Não peça demais.
Tornaremos a falar disto.
O relógio de pêndulo marcava catorze horas. Chegava ao fim o dia de trabalho do
funcionário. Mark levantou-se, pensando na sua noiva que chegaria a Assuão cerca
das dezoito horas. A essa felicidade vinha juntar-se uma primeira vitória sobre
a inércia da administração. O Verão anunciava-se radioso.
3.
Mark penetrou na zona desértica que separava a nova barragem da antiga. A
temperatura ao sol era de sessenta e seis graus. Blocos erodidos, por vezes em
equilíbrio
uns sobre os outros, uma areia ocre, postes eléctricos, arame farpado e bidões
enferrujados formavam uma paisagem angustiante.
Parou o Range Rover e desceu. O sol queimava. Mark contemplou o monstro uma vez
mais.
O seu olhar percorria a estrada que ia dar à grande barragem, ornada com um
fontanário onde nunca corria água, e foi poisar sobre a horrorosa flor de lótus
em betão
que comemorava a cooperação egipto-soviética, decisiva para a construção do Sadd
el-Aali, "o alto dique". Cerrou os punhos, controlando dificilmente a sua cólera
ao pensar que o século xx, a sua política mercantil e o desejo de poder de
Nasser e de Khrouchtchev, esse sinistro fantoche, tinham marcado o ponto de
partida para
a morte programada do Egipto.
A 9 de Janeiro de 1960, Nasser tinha provocado a explosão da primeira carga de
dinamite com vista à abertura do canal de derivação; a
14 de Maio de 1964, em companhia de Khrouchtchev, festejava o fim da primeira
etapa dos trabalhos, fazendo saltar a última rocha que obstruía o canal onde o
Nilo,
desviado do seu curso, fora obrigado a penetrar.
"Uma boa ideia, um bom exemplo e uma boa barragem", tinham usado como título
alguns jornais, com os franceses à cabeça, recusando
22
qualquer crítica que, segundo eles, visava denegrir a maravilhosa tecnologia
soviética e a soberba ascenção de um dirigente do Terceiro Mundo na cena
internacional.
A verdade é que o soviético estava pouco preocupado com o futuro do Egipto e
Nasser apenas sonhava ultrapassar os construtores da grande pirâmide. O volume
do seu
dique, quarenta e dois milhões e setecentos mil metros cúbicos, não era
dezassete vezes o do monumento de Quéops? "Nós, revolucionários afirmava Nasser
faremos melhor
do que os faraós." Que interessava a destruição da Núbia, o deslocamento de
duzentas mil pessoas e as terríveis consequências ecológicas? O Egipto
revolucionário
tinha necessidade de armas, o império soviético exportava a sua doutrina e os
seus engenheiros. Nasser, o inimigo figadal do comunismo, Nasser, que
Khrouchtchev
comparava a Hitler, tinha caído nos braços do soviético para obter "o meio
concreto de se libertar do imperialismo: a grande barragem de Assuão".
A cólera enrubesceu as faces de Mark. Como podia o mundo ter sido tão estúpido,
os governos tão fracos, os intelectuais tão cegos para se prostrarem aos pés de
Nasser
e da sua monstruosa obra?
Em 1961, o Nilo revoltara-se pela última vez. A maior cheia do século devastara
os estaleiros das obras, deixando atrás de si lagos de lama e atrasando os
trabalhos
vários meses. O gigante vindo das profundezas da África entregava à humanidade a
sua última mensagem: não impeçam o meu curso, não obstruam a artéria vital do
Egipto,
não façam secar uma fonte de milenar fecundidade. Mas os técnicos não prestavam
ouvidos à voz do rio e os políticos ainda menos; a 15 de Janeiro de 1971, quando
Nasser e Khrouchtchev já não existiam, Sadate, o egípcio, e Podgorny, o
soviético, inauguravam a enorme barragem de Assuão, "em nome do futuro".
De longe, o dragão parecia adormecido. Uma simples montanha artificial formada
por granito, areia, cascalho, lodo e lama, comprimidos e amontoados. No meio do
amontoado
de pedras, uma placa estanque mergulhava no leito do rio atravessando duzentos
metros de depósitos de aluvião. Com uma altura de cento e onze metros, uma
largura
de novecentos e oitenta metros na base e quarenta no topo e um comprimento de
três mil e seiscentos metros, a barragem resistia com o seu próprio peso à força
de
cento e cinquenta e sete mil milhões de metros
23
cúbicos do lago Nasser, quando este atingia o seu ponto de enchimento máximo.
A besta deitada, cinzenta, segura da sua força, repousava sobre uma base
cristalizada; por cima, a plataforma de areia cimentada e o amontoado de blocos
de granito
formavam um conjunto indestrutível. A morte adquiria por vezes estranhas
aparências.
Para sul, o lago Nasser, com um comprimento de quinhentos quilómetros, dos quais
cento e cinquenta no Sudão, uma largura de dez a trinta quilómetros e uma
profundidade
de noventa metros em certos pontos, surgia como uma inquietante massa de água,
devoradora de paisagens, capaz de modificar o clima. Havia cada vez mais nuvens
nos
céus de Assuão e Luxor, cujo eterno azul deslumbrara tantos viajantes; às vezes
mesmo, aguaceiros tropicais. O calor seco tornava-se húmido e cada vez menos
suportável.
As chuvas iriam arruinar os antigos templos, já atacados pela subida da toalha
freática. As obras-primas dos faraós desapareceriam por cima e por baixo. Para
dessalinizar
as terras seria preciso inundá-las de novo e fornecer-lhes o lodo fertilizador;
por isso Mark se batia pela abertura de canais de derivação que contornariam a
grande
barragem e reduziriam os seus efeitos nefastos. Embora as autoridades fizessem
orelhas moucas, continuava a organizar dossiers, a fornecer provas e a alertar a
opinião
internacional. "Utópico", diziam uns; "perigoso agitador", afirmavam outros;
"profeta", declarava um pequeno grupo de cientistas cujo peso político equivalia
a uma
pena.
Mark olhava muitas vezes velhas fotos onde se via a cheia cobrindo o vale do
Nilo. Apenas emergiam as aldeias, empoleiradas sobre colinas; os camponeses
deslocavam-se
de umas para as outras de barco. Era a estação das visitas; enquanto a terra
celebrava os seus esponsais com o precioso lodo, os humanos tinham tempo para
conversar,
o corpo do fellah descansava. Como um mar calmo, a região reflectia o céu.
Quando a água se retirava, os camponeses semeavam, confiantes na riqueza da
terra escura
que os alimentava há milhares de anos.
Era preciso ser um louco demoníaco para quebrar essa harmonia, sufocar para
sempre a corrente e aniquilar um fenómeno de fertilização único no mundo!
A vida de Mark seria curta demais para triunfar sobre a barragem, mas lançara um
movimento de ideias que nada iria interromper. Até
24
mesmo no Egipto já se erguiam algumas vozes contra o alto dique, denunciando os
seus nefastos efeitos.
Seis túneis principais, vinte e quatro túneis secundários, doze turbinas
gigantes, uma massa inamovível, o monstro tinha as armas necessárias para
desafiar os seus
detractores. Face a ele, não havia qualquer hipótese de sucesso. Mas não tinha
Mark sobrevivido a um cataclismo aquando da morte dos pais? A provação e o tempo
tinham-no
endurecido como um granito. Não se desgastaria no combate e a sua estratégia
acabaria por diminuir as forças da barragem.
A mordedura do sol arrancou-o à sua meditação; olhou o relógio. Hélène chegaria
em breve e, a seguir, casamento.
Sorriu: ele, casado! Ele, cuja paixão pelo Egipto era tão avassaladora que
apenas deixava para as mulheres um lugar muito reduzido. Apenas uma amante o
marcara:
Safinaz, uma egípcia deslumbrante, cuja fogosidade não conseguia esquecer.
Porque ceder então às exigências de uma linda francesa, especialista em meio
ambiente? O amor louco apanhara-o de surpresa; Hélène queria viver no Egipto e
partilhar
a luta do seu futuro marido. Tendo em consideração as suas competências
técnicas, seria para ele uma auxiliar preciosa.
Tantos anos depois da morte dos pais, Mark recomeçava a acreditar na felicidade.
Com o espírito perturbado pela estranha profecia cujas palavras se lhe tinham
gravado na mente, agarrou no volante e seguiu na direcção da cidade.
4.
Mark adorava Assuão,
cujo encanto resistia mal à barragem, à industrialização e às construções
modernas decalcadas dos modelos ocidentais. A porta do Grande Sul mantinha no
entanto um
certo carácter selvagem, recordação dos exploradores que partiam pelas pistas da
Núbia em busca do ouro destinado a embelezar os templos.
Neste ponto, o Nilo e o deserto casavam-se sob o azul de um céu outrora muito
puro e agora cada vez com mais frequência desfigurado por tempestades. A
catarata,
que tanto assustara os viajantes, não passava já de um caos de rochas entaladas
entre a antiga e a nova barragem. Contentando-se com alguns passeios na ilha
Elefantina,
ornada com as ruínas do templo do deus carneiro Khnoum, com deambulações pelos
jardins da ilha das Flores ou com meditação próximo dos túmulos da margem
ocidental,
de onde os antigos senhores contemplavam a sua cidade, podia manter-se a ilusão
de um Egipto intemporal e luminoso, dedicado à doçura de viver.
Mas em vinte anos, a serena cidade de Assuão, tendo passado de cinquenta mil a
cem mil habitantes, transformara-se num centro industrial submetido à tirania da
barragem.
Como por toda a parte no Egipto, a explosão demográfica destruía qualquer
esperança de uma existência melhor. A central hidroeléctrica da grande barragem,
a fábrica
de produtos químicos e o horroroso edifício de betão para turistas denominado
"New Cataract" impunham-se com sobranceria, desfigurando uma paisagem outrora
fascinante
de que o Nilo, as falésias ocre e as ilhas tinham sido os únicos amos.
26
Muitas vezes, ao fim do dia, Mark metia-se numa falua e, do meio do rio, ia
admirar o pôr do sol.
Com um brusco golpe de volante, evitou um garoto; perseguido por uma multidão de
futebolistas em miniatura, o endiabrado corria atrás de uma bola que acabara de
atirar do outro lado da rua. É melhor não sonhar quando se conduz no Egipto.
Mais lentamente, o americano penetrou no bairro comercial; ali, o principal
perigo vinha
dos jovens motociclistas cujas acrobacias terminavam muitas vezes no hospital.
Mark tinha duas surpresas para a noiva: a primeira, um enxoval oriental composto
por uma vintena de galabiehs de algodão com cores variadas, bastante agradáveis
de usar; a segunda, uma cerimónia muito privada numa igreja copta, apenas com a
presença do padre e dos seus assistentes. Nem Hélène nem ele eram cristãos, mas
descobrira
num antiquário um velho ritual de ressonâncias mágicas. O padre Boutros, um
amigo de longa data, aceitara celebrá-lo, desesperando de converter um pagão
empedernido
mas tão apaixonado pelo Egipto que Deus certamente lhe concederia o seu perdão.
Apesar das tensões cada vez mais fortes, as comunidades muçulmanas e coptas, os
cristãos
do Egipto, continuavam a coabitar como faziam há séculos; a imprensa ocidental
ampliara muito incidentes sem importância.
Mark seguiu quase a passo pela Rua Sharq el-Bandar, onde turistas japoneses
compravam especiarias e falsas patas de crocodilo. Correndo ao lado do carro, um
garoto
ofereceu-lhe um copo de chá que o condutor trocou por uma libra egípcia tão
principesca retribuição provocou a hilariedade do vendedor.
Mark parou em frente de um estabelecimento cuja porta de ferro enferrujado
estava descida, saiu do carro e bateu três pancadas ao de leve, com receio de
provocar
a derrocada da loja. Rangendo, a porta foi levantada cerca de cinquenta
centímetros. Duas mãos estenderam um pesado pacote, em troca do qual Mark
entregou um envelope.
As galabiehs estavam bem pagas. Uma vez trocados os cumprimentos da praxe, a
loja fechou novamente; só Mark podia perturbar assim a longa sesta necessária à
boa
prática da profissão
Não restava ao futuro noivo mais do que dirigir-se para a beira do
Nota Libra egípcia Um pouco menos de trezentos escudos (N da T)
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paredão, onde esperaria o carro da Misr Travei. Ele, casado! Ia-se habituando a
essa ideia, perguntando a si mesmo como conseguiria Hélène modificar os seus
hábitos
de celibatário. Sem ser maníaco, gostava do silêncio da madrugada, a ver o
nascer do sol; das discussões no café com as pessoas simples de Assuão, de Luxor
ou do
Cairo, três cidades onde tinha casa; dos seus intermináveis passeios pelo
deserto. Sabia que Hélène lutaria contra a barragem com inteligência e lucidez.
Formar
um verdadeiro casal vivendo o mesmo ideal, não era o cúmulo da felicidade?
Detectou-os a uma centena de metros da mesquita al-Rahma.
Os homens das brigadas especiais de segurança, fardados de negro, com capacete
de viseira, armados de kalachnikov e de escudos de plástico. Era impossível
recuar;
em poucos minutos, os polícias de elite tinham cercado o bairro.
Mark viu cinco jovens, vestidos à maneira ocidental, surgir por trás de um
polícia e partir-lhe a nuca com golpes de corrente de bicicleta. A resposta foi
imediata:
dois dos agressores caíram no chão com a cabeça em sangue. Uma bala perdida
atravessou o pára-brisas do Range Rover e roçou a face direita de Mark;
disparando curtas
rajadas para a direita e para a esquerda, avançaram para ele vários polícias.
Protestar a sua inocência teria sido um acto de suicídio: as forças da ordem
consideravam-no um terrorista. Do lado da mesquita ouviam-se gritos e tiroteio.
Mark
abandonou o veículo e correu a direito na direcção de uma ruela deserta; sentia
os ouvidos a zumbir.
Um adolescente brandiu o Corão e tentou barrar-lhe a passagem; investindo como
um touro, afastou-o e meteu-se por uma travessa escura. Estendidos entre os
telhados,
panos de algodão poeirentos impediam a luz de chegar às casas de dois andares.
Um polícia teimoso perseguia-o, disparando às cegas. Ao fundo da viela erguia-se
uma parede de lama seca.
Um beco sem saída.
Mark não tinha qualquer hipótese de acalmar o homem de preto; ia morrer
estupidamente, num canto sórdido de Assuão, vítima de um excesso de zelo
policial.
Voltou-se para enfrentar a morte. Botas martelavam o solo.
Uma mão forte agarrou-o pela cintura e puxou-o para o interior de
28
uma casa cuja porta se fechou. Lá fora, uma rajada perdeu-se na parede de terra
batida.
A mão largou Mark.
Soleb! Mas como...
O núbio falou com voz calma.
Temos de nos despachar; pelos corredores interiores e pelos telhados sairemos do
bairro. Levo-o para minha casa.
O antigo criado do supervisor da alta barragem vivia num bloco de betão na saída
sul da cidade. Ele e Mark tinham fugido na sua moto, cujo motor ameaçava
entregar
a alma ao criador em cada aceleração.
Com majestade, Soleb deitou o chá na chávena do seu hóspede.
Nunca mais o perdi de vista desde que saiu do gabinete de Gamal Shafir.
Porquê?
Porque o seu principal inimigo é a barragem e também é o meu. Os minúsculos dois
compartimentos de paredes nuas estavam cheios
de recordações da sua terra, de uma Núbia desaparecida sob as águas; tapetes
coloridos, jóias de prata, vasos de terracota, ferraduras, mãos protectoras de
marfim
enfeitadas com pérolas azuis.
Leia, ordenou Soleb, entregando a Mark um artigo de jornal amarelecido, quase a
desfazer-se.
Um empreendimento como a construção da grande barragem apresenta vantagens e
inconvenientes. Por exemplo, a formação do lago Nasser provocou o deslocamento
da população
núbia, o que é sempre doloroso. No entanto, as pessoas deslocadas foram
instaladas em modernos aglomerados populacionais, mais confortáveis do que as
aldeias tradicionais
onde viviam.
São estas as mentiras que os ocidentais espalharam, enquanto os núbios são
amontoados em casas mortas. A electricidade, os campos desportivos, o hospital,
o reservatório
da água, as ruas que se cruzam estupidamente em ângulo recto... Nós não
queríamos esse falso progresso. Nós sabíamos alimentar-nos, cuidar de nós,
educar os nossos
filhos com os nossos métodos; vivíamos numa terra antiga que amávamos
29
e que nos amava. Os meus pais morreram de desgosto antes de serem expulsos da
sua aldeia; eu, escolhi ficar aqui, à porta da Núbia, para poder contemplar
todos os
dias a minha terra desaparecida. Alojaram-me então nesta prisão e tornaram-me
escravo de um funcionário preguiçoso, inchado com o seu poder. Nunca mais
tornarei
a ver a fachada da minha casa, ornada com desenhos de flores e aves; nunca mais
voltarei à minha terra.
Salvou-me a vida, Soleb.
Porque luta contra a barragem e está em perigo. Senti que ele o ameaçava e
decidi protegê-lo.
Ainda perturbado, Mark olhou o relógio.
O que aconteceu na cidade? Tenho que ir receber a minha noiva.
Esta manhã, dois islamistas mataram o padre Boutros na sua igreja. A reacção da
polícia foi brutal: assaltou a mesquita al-Rahma onde se reuniam os integristas.
Quando estes tentaram resistir, as forças da ordem dispararam ao acaso.
Mortos?
Cerca de cinquenta, e muitos feridos.
Pode levar-ma de volta a Assuão?
Se a minha moto estiver de acordo... Mas antes, prometa-me destruir a barragem.
É impossível. Mas juro-lhe lutar até ao meu último alento para reduzir os seus
efeitos. A minha noiva auxiliar-me-á.
A resposta pareceu satisfazer o núbio. A moto acedeu a pegar.
5.
As forças da ordem abandonavam o bairro comercial; em redor da mesquita
integrista, um cordão de polícia impedia o acesso. Um cortejo de ambulâncias com
sirenes
estridentes terminava a evacuação dos mortos e feridos.
O Range Rover estava intacto; numerosos habitantes do bairro conheciam bem o
carro de Mark e não passaria pela cabeça de nenhum roubá-lo. Ao arrancar, pensou
no
padre Boutros; como era possível ser-se suficientemente cobarde para abater um
velho inofensivo, que passara a sua vida a tratar dos pobres? O padre fazia
questão
de celebrar um ritual caído no esquecimento; Mark já não poderia oferecer esse
presente a Hélène.
Na avenida do paredão tudo parecia calmo; Soleb seguia-o a boa distância. Aqui e
além, havia grupos de pessoas; comentava-se o massacre.
O sol do fim da tarde tornou-se suave; ergueu-se o vento do Norte, trazendo um
pouco de fresco. Assuão saía pouco a pouco do seu torpor, como acontecia todos
os
dias àquela hora. As sirenes das ambulâncias tinham-se calado.
Um incidente desta gravidade ensanguentava pela primeira vez a cidade do Sul;
consciente do poderio crescente do fanatismo muçulmano, Mark confiava na
tolerância
natural dos egípcios para evitar uma guerra religiosa entre islamistas e
cristãos e impedir o acesso ao poder dos loucos de Alá. Mas a epidemia alastrava
e a violenta
reacção da polícia
32
podia vir a provocar outras violências. Aborrecido, apressou o passo; estava já
com um quarto de hora de atraso.
Às dezoito e vinte, chegou ao local onde o carro da Misr Travei devia deixar os
passageiros.
Ninguém, a não ser um empregado da companhia sentado na beira do passeio.
O carro vindo de Luxor?
Ah, senhor Walker! Está atrasado.
Muito?
Bem vê, com estes problemas todos...
Não há nada de concreto?
Se o motorista tiver tido uma avaria, telefona.
A menos que o telefone não esteja também avariado.
Maalech, "c'estcomme ca". Não lhe resta senão esperar.
Mark comprou duas Coca-Colas a um vendedor ambulante e ofereceu uma ao empregado
da Misr Travei. Soleb tinha desaparecido; devia observar sem ser visto. Em
matéria
de magia, os núbios passavam por ser mestres desde a Antiguidade; até os
especialistas dos faraós os receavam. Talvez Mark tivesse encontrado mesmo um
feiticeiro.
Na sua guerra contra a barragem, não deixaria de ser um auxiliar precioso.
Passou uma hora. Mark sugeriu ao empregado que se fosse informar à sede. Ele
afastou-se em passo lento. Regressou passados uns vinte minutos com um ar
embaraçado.
Parece que houve um acidente.
Grave?
Não, um problema mecânico.
Farão a reparação ainda esta tarde?
Não sei mais nada.
Mark dirigiu-se aos escritórios da Misr Travei, cujo responsável estava ausente.
Os empregados aconselharam-no a dirigir-se ao comissariado central. A polícia,
que
controlava os deslocamentos dos veículos de turismo, teria provavelmente outras
informações.
A sede da polícia de Assuão encontrava-se em efervescência; estavam a ser
interrogados jovens suspeitos de integrismo. Mark foi muito mal recebido por um
oficial
da brigada especial. Levantando a voz, exigiu explicações sobre o acidente de
que parecia ter sido vítima o carro
33
Luxor-Assuão. O interlocutor pediu-lhe que esperasse num pequeno gabinete com a
tinta verde toda estalada. Uma mesa cambada, duas cadeiras de madeira do tempo
da
ocupação inglesa e um armário metálico constituíam um mobiliário sinistro.
Caíra a noite quando um fulaninho nervoso entrou no gabinete com um dossier na
mão.
O que deseja, senhor Walker?
Ter notícias concretas do carro Luxor-Assuão.
Por que razão?
Porque a minha noiva vem lá.
O homem sentou-se, poisou o dossier sobre a mesa e começou a brincar com um
clips.
Sou o comissário encarregado desse caso. Como se chama a sua noiva?
Hélène Doltin. Porque falou em "caso"?
Bem... Na sequência de um lamentável acidente, o carro foi atrasado.
Visto que se ocupa do "caso", diga-me quando chegarão os passageiros a Assuão.
O comissário atirou o clips torcido para o chão e começou a martirizar outro.
Há complicações.
Que complicações?
Para ser franco consigo, não se trata de um acidente vulgar.
Explique-se.
O carro foi atacado por terroristas. Mark engoliu em seco.
Há... vítimas?
Esses islamistas são fanáticos; não hesitam em disparar sobre pessoas inocentes
e desarmadas. O motorista foi morto.
E os passageiros?
A emboscada foi bem preparada. Mark ergueu-se, com as pernas a tremer.
A minha noiva...
Acalme-se, as forças da ordem intervieram sem demora.
Onde está ela?
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Por exigências do inquérito, nós...
Quero vê-la.
Um pouco de paciência.
Não me faça perder nem mais um segundo, comissário.
Como queira.
Bateu palmas e chamou um polícia uniformizado.
Este homem vai conduzi-lo ao anexo do hospital; por causa dos incidentes desta
tarde, as enfermarias estão a abarrotar.
Chão manchado, paredes esboroadas, pintura esverdeada a cair, luz amortecida,
odor acre, o anexo do hospital de Assuão dava vontade de fugir.
Mark dirigiu-se a um médico barbudo que preenchia papeladas administrativas.
Quero ver Hélène Doltin.
Que doença?
Está a brincar comigo? O médico ergueu a cabeça.
Não admito que me falem nesse tom.
Despache-se, doutor, ou eu não respondo por mim.
A raiva que o médico viu no olhar de Mark incitou-o à conciliação. Abriu a
gaveta central da secretária e tirou de lá uma lista. O indicador direito
percorreu uma
coluna de nomes.
Hélène Doltin... Aqui está. Não tem visitas.
Porquê?
Está em observação.
Aqui, nesta pocilga?
Não lhe admito!
Não tem o direito de a reter. Quero vê-la imediatamente.
O médico fez estalar os dedos. Um enfermeiro, com a bata cheia de manchas
acastanhadas, guiou Mark até um compartimento sobreaquecido com uma pequena
janela com
grades. Encostada à parede, uma cama com rodas sobre a qual tinha sido atirado
um cobertor nojento.
Onde está ela?
Com uma mão indolente, o enfermeiro apontou a cama. Rígido, Mark aproximou-se e
puxou lentamente o cobertor.
35
Hélène tinha o rosto e o peito ensanguentados; crivada de balas, estava quase
irreconhecível. Da sua beleza e da sua juventude apenas restava um cadáver
despedaçado.
Mark gritou como se o coração lhe rebentasse.
6.
No lugar do pequeno comissário nervoso estava instalada uma caricatura de
sempre-em-pé oriental. O homem não devia pesar menos de cento e vinte quilos;
tinha a barriga
entalada de encontro ao rebordo da secretária, o triplo queixo suportava um
rosto gordo de bochechas penduradas e os dedos grossos brincavam com um
elástico.
Logo que entrara pelo comissariado dentro, Mark fora ladeado por dois polícias e
imediatamente conduzido ao gordo personagem.
Que a paz seja consigo, bem como a misericórdia de Deus e as suas bênçãos,
senhor Walker. Sou o substituto de Assuão, encarregado do caso do carro; um
drama terrível,
na verdade. Mas não é no Verão que os crimes aumentam sempre? Os insectos
mutiplicam-se, os gabinetes administrativos estão sufocantes, os funcionários
esperam novas
nomeações... E estes islamistas tornam-nos a vida impossível! Já viu a grossura
deste dossier?
O substituto girou na cadeira, agarrou numa pasta empoleirada no topo do armário
metálico e colocou-o em frente de Mark.
São os processos dos delitos cometidos na região nos últimos quinze dias. Que
miséria! Como havemos de combatê-los? Os nossos meios são demasiado limitados,
mas
actuamos de forma determinada, com a força da lei.
A minha noiva morreu. Foi assassinada. O sempre-em-pé baixou os olhos.
Uma tragédia... Não escapou nenhum passageiro às balas dos islamistas.
38
Esses homens são mais ferozes do que animais selvagens; hão-de ser presos,
condenados e enforcados, pode ter a certeza.
Mark sofria demais para chorar; cada partícula do seu corpo doía como se lhe
tivessem batido durante horas.
Identificou os assassinos?
O inquérito avança. Posso garantir-lhe que o processo desse terrível drama está
perfeitamente em ordem; eu próprio redigi os autos.
Os gordos dedos amarrotaram com um certo prazer algumas folhas de papel de má
qualidade.
Onde aconteceu?
Depois de atravessarem uma aldeiazinha, a meio caminho entre Luxor e Assuão.
Testemunhas?
Não.
Nesse caso, como pode o inquérito avançar? A pergunta surpreendeu o substituto.
Conte com a eficácia dos meus serviços.
É imbatível na redacção de intermináveis relatórios que se acumulam sobre pilhas
de outros relatórios, mas quem procura os culpados?
A dor perturba-o, senhor Walker. Se um processo de assassínio deve comportar
várias dezenas de páginas é para prestar homenagem a uma existência humana; a
justiça
testemunha-lhe assim o seu respeito.
Por outras palavras, nunca identificará os assassinos de Hélène.
Uma das forças dos terroristas não reside em serem impossíveis de capturar?
Não me contentarei com essa resposta.
Compreendo o seu desgosto, mas recomendo-lhe que se mantenha dentro do campo da
legalidade e trave qualquer iniciativa que possa vir a cair sob a minha alçada.
É
uma pessoa muito activa, senhor Walker. Criticar a grande barragem com tanta
fúria não será condenável? As autoridades acabarão por aborrecer-se com a sua
atitude
negativa.
Pode dar-me as coisas da minha noiva?
Infelizmente, é impossível. Se fossem casados... Quando o inquérito terminar,
enviaremos todos os objectos pessoais para a família,
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em França. No entanto, por compaixão, consinto numa coisa. A vítima tinha uns
documentos apertados ao peito quando o terrorista a abateu. Reflexo estranho,
não acha?
A menos que os tenha considerado como um bem precioso. Os originais fazem parte
das peças do dossier, mas supus que lhe interessariam fotocópias.
O substituto estendeu três folhas a Mark.
Desenhos abstractos, com curvas e linhas em todos os sentidos. Uma espécie de
delírio geométrico.
O que representa isto, na sua opinião?
Não faço a mínima ideia.
Espero que não me oculte nada; seria indesculpável. A sua noiva nunca evocara os
seus talentos de desenhadora?
Perante mim, não.
Pense bem.
Mark concentrou-se, mas o enigma permanecia total.
Se se lembrar de alguma coisa, contacte-me; entretanto, deixe a polícia e a
justiça actuarem. Acredite que o trabalho será bem feito. E aceite as minhas
sinceras
condolências.
Mark dobrou as fotocópias, agarrando-se a esses pobres papéis, última recordação
de Hélène.
Ergueu-se, muito rígido, avançou para a porta do gabinete, abriu-a e voltou-se.
Hei-de encontrar os assassinos da minha noiva, sejam eles quem forem, e matá-
los-ei.
A porta bateu com uma violência inaudita, fazendo estremecer o substituto. Com o
dossier debaixo do braço, passou para o compartimento do lado onde um homem de
uns
cinquenta anos, muito elegante no seu fato azul de paletó, fumava um Dunhill
mentolado enfiado numa boquilha de ouro.
Ouviu bem? interrogou o substituto.
Não perdi uma palavra dessa interessante conversa.
Está satisfeito?
Senhor substituto, pode ter a certeza da sua promoção.
O Nilo morria por causa da grande barragem. Em breve não passaria de um imenso
esgoto onde apodreceria a memória de séculos gloriosos
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e de um passado destruído, no decurso do qual o homem soubera aliar-se com o
deus-rio. Sentado na margem, Mark não saboreava a doçura de uma noite de Verão
iluminada
pela lua cheia. Os projectores iluminavam os túmulos da margem ocidental,
envolvendo-os numa luz dourada.
Suicidar-se afogando-se no Nilo não seria um belo fim para um adversário do alto
dique? Os antigos pretendiam que os seres puros que morriam afogados no Nilo iam
directamente para o Paraíso. Mark não tinha a ideia de ter espalhado o mal em
seu redor; não seria o melhor caminho para ir juntar-se a Hélène, sem a qual a
vida
deixava de ter sentido?
Uma mão poisou no seu ombro e impediu-o de se erguer.
Nada de loucuras disse Soleb, sentando-se ao lado de Mark.
Será loucura morrer quando se perdeu tudo?
Eu também perdi tudo Mas nós os dois temos um combate a travar.
Já não tenho forças.
Porque ainda não sabe tudo sobre a morte da sua noiva. Intrigado, Mark voltou-se
para o núbio.
Que queres dizer?
Com quem falou lá na Polícia?
Com um comissário e com o substituto de Assuão.
O que lhe disseram?
Que fanáticos muçulmanos atacaram o carro e mataram os passageiros, sem
esquecerem o motorista. Pretendem fazer um inquérito, mas não passará de um
montão de papelada
inútil.
E se eles mentissem?
Mark agarrou-se a uma rocha como se estivesse a perder o pé.
Circula um rumor na cidade continuou Soleb. O atentado não teve testemunhas
directas mas os aldeões viram os agressores partir para o Norte. Em geral, uma
vez realizadas
as suas façanhas, os terroristas escondem-se num campo de cana-de-açúcar ou
dispersam-se nos arredores de uma cidade. Aqueles, subiram para um camião
novinho em
folha e fizeram-se à estrada sem serem incomodados. Não eram fanáticos, mas sim
militares pertencentes a um corpo de elite estacionado no Cairo.
41
Mark julgou que o núbio delirava. Obrigou-o a repetir a sua versão dos factos,
encaixando cada palavra como um soco.
Isso é insensato, Soleb, completamente insensato!
Eu tenho a certeza de que lhe mentiram.
Com a cabeça em fogo, Mark permaneceu em silêncio durante longos minutos; o
núbio respeitou a sua meditação.
Vou ao Cairo. Se esse rumor tiver algum fundamento, só lá o conseguirei saber.
Quer tenham sido integristas, imãs, soldados ou generais que assassinaram
Hélène,
hei-de dar cabo deles. Juro-o ao Nilo.
A barragem e eu esperaremos por si.
7.
Chovia em Aix-la-Chapelle.
Enregelados, os turistas refugiavam-se nos cafés da velha cidade para beber café
e cerveja; a Primavera fora uma desgraça, o Verão começava mal, mas a Alemanha,
apesar da crise económica, preparava-se para ser a dona da Europa. O futuro
Santo Império romano-germânico retomava forma, embora um banqueiro substituísse
o imperador.
Mohamed Bokar gostava dos banqueiros alemães. A maioria dos financeiros estava
persuadida de que a maior parte dos países árabes se tornariam, mais cedo ou
mais
tarde, repúblicas islamistas e que era necessário encorajar os dirigentes da sua
laia a derrubar os regimes corruptos.
Cognominado "o emir afegão", Mohamed Bokar era o chefe oculto dos islamistas
egípcios. Com cinquenta e cinco anos, alto, um pouco curvado, nariz proeminente,
testa
baixa, lábios finos, mãos esguias, voz rouca, fizera estudos de Sociologia em
Londres, Paris e Nova Iorque. Marxista convicto, lutara no Afeganistão contra os
russos;
fora lá que descobrira as virtudes do fundamentalismo muçulmano e aprendera o
manejo de explosivos.
A cave da mesquita Bilal abrigava um centro de estudos islâmicos que as
autoridades alemãs toleravam; Mohamed Bokar preparava-se para viver ali a sua
hora de glória.
Finalmente, depois de tantos anos de luta, ia dispor de meios de acção que
sempre lhe tinham faltado. Ainda era preciso, no entanto, ultrapassar um
delicado obstáculo:
uma
44
reunião secreta com os seus irmãos, no decurso da qual tinha de impor o seu
ponto de vista de forma definitiva. Nervoso, passeava de um lado para outro na
sala climatizada
cujos únicos ornamentos eram os versículos do Corão apelando à guerra santa e um
retrato do ayatollah Khomeyni.
Perto da porta encontrava-se Kaboul, também ele um "afegão", o fiel companheiro
de Mohamed Bokar. Baixo, gordo, barbudo, com cabeça em forma de ovo, nascido num
bairro miserável do Cairo, ao mínimo sinal obedecia às ordens do seu senhor, que
considerava um grande imã, um verdadeiro chefe espiritual de quem nenhuma ordem
devia ser discutida. Por muito inculto que fosse, não faltavam a Kaboul dons
para as finanças; encarregava-se portanto das contas da célula revolucionária
dirigida
por Bokar. Além disso, Kaboul gostava de matar; o desencadear da violência
exercia sobre ele uma fascinação de que nunca se saciava. Bokar não tinha tido
qualquer
dificuldade em convencê-lo de que a felicidade do povo passava pela eliminação
física dos seus adversários.
Bokar e Kaboul tinham estado na origem da maior parte dos atentados cometidos no
Egipto contra o exército, a polícia, os coplas e os turistas, quer participando
neles de forma directa, quer mandando-os levar a cabo. Bokar mantinha-se na
sombra, Kaboul atacava. O primeiro era tão frio e distante quanto o segundo
apaixonado
e barulhento; formavam um duo perfeito, protegendo-se um ao outro.
Mohamed Bokar olhou o relógio; os Irmãos estavam atrasados. Viriam ou anulariam
o encontro no último momento, devido a ordens recebidas de Damasco ou de Teerão?
Bokar sentiu-se mais sossegado quando o representante dos Gamaat Islamiyya, as
"associações islâmicas" do Egipto, franqueou a porta. Os dois homens abraçaram-
se
longamente. Os Gamaat, reunindo um grande número de estudantes, tinham nascido
por volta dos anos 70 para lutar contra o marxismo e os nasserianos; mas a paz
estabelecida
em 1978 com Israel modificara a orientação do movimento, agora embrenhado no
caminho da islamização radical da sociedade egípcia.
A seguir ao representante dos Gamaat, chegou o de El Djihad, "a guerra santa",
amigo e confidente do célebre cheique cego Ornar Abder Rahman, exilado em Nova
Iorque
desde 1990; o santo homem tinha ordenado
45
o assassínio de Sadate e era considerado por alguns investigadores americanos
como o "cérebro" do mortífero atentado contra o World Trade Center. Adversário
convicto
do turismo no Egipto, que considerava como "um pecado indiscutível e uma grande
ofensa", o cheique conseguira um visto para os Estados Unidos aquando da sua
estadia
entre os integristas sudaneses. "Erro administrativo", segundo a embaixada
americana. Transformado no meigo esposo de uma negra islamista americana,
expedia de Nova
Iorque cassetes apelando à destruição do regime ímpio do Cairo. Preso durante
algum tempo, afirmava a sua inocência e passava por um mártir. Como explicava o
seu
confidente, "o cheique Ornar não se refugiou num país árabe, porque eles são
capazes de todas as cobardias. Entre os cristãos, tem a certeza de que não
haverá problemas".
Os Gamaat Islamiyya e El Djihad lutavam de mãos dadas, em perfeita harmonia.
Tinham há muito ultrapassado a velha associação dos Irmãos Muçulmanos, cujo
delegado
lhes caiu no entanto nos braços, depois de ter jurado que o seu movimento,
embora afirmando o contrário, estava pronto a entrar na luta armada. Na hora da
grande
reconciliação e da unidade revolucionária, cada um devia mostrar a sua boa
vontade.
Os representantes do Irão e do Sudão chegaram juntos e cumprimentaram Mohamed
Bokar; quanto ao emissário da milícia do Hezbollah, que era treinada no Líbano
na companhia
dos palestinianos extremistas, louvou a coragem e a competência do chefe oculto
da revolução egípcia.
Este último não podia sonhar com melhor atmosfera e encorajamentos mais
cordiais; mas faltava o principal convidado, quem realmente decidiria.
Sentaram-se, no entanto, em torno da mesa; foram servidas bebidas, entre as
quais uísque e conhaque. Estava frio e a regra da lei islâmica, proibindo o
consumo de
álcool, aplicava-se sobretudo ao povo ignorante.
Quando as discussões já estavam animadas, apareceu finalmente o negociador vindo
da Arábia Saudita, vestindo uma djellaba branca e com a cabeça coberta por um
turbante
à moda antiga. Kaboul, com deferência, revistou como os outros o homem que
detinha a chave do financiamento da acção terrorista. Grande aliada dos Estados
Unidos,
a
46
Arábia Saudita não condenava os atentados em nome do Islão e recusara-se a
assinar, juntamente com a Tunísia, Marrocos e Argélia, um projecto de sanção
moral em
relação aos estados que apoiavam o terrorismo. Os Sauditas, cujo país era um dos
mais sectários e intolerantes do planeta, conseguiam assumir a posição de
moderados
inofensivos aos olhos dos ocidentais, cuja ingenuidade os fazia sorrir.
O diplomata sentou-se com vagar e pediu um "sumo de laranja", nome de código
para um bourbon bem servido.
Sinto-me feliz por encontrar tantos irmãos empenhados na grandeza do Islão;
todos juntos, pela graça de Alá todo poderoso e misericordioso, construiremos um
mundo
melhor.
A Arábia Saudita, cuja fama tinha sido um pouco prejudicada devido ao apoio dado
aos infiéis durante a guerra do Golfo, procurava redourar o seu brasão junto dos
fundamentalistas.
No Afeganistão, Mohamed Bokar perdera o gosto pelas longas conversas
diplomáticas e os discursos arrebicados; entrou a direito na questão.
Na segunda surata do Corão está escrito: Combatei no caminho de Alá aqueles que
vos combatem, matai-os. É esta a "recompensa" dos infiéis.
Os participantes na reunião secreta concordaram com o chefe. Estejam bem
conscientes de que o mundo é partilhado entre dois: dar al-Islam, a casa do
Islão de um
lado; Darb al-Harb, a casa da guerra do outro, isto é, os territórios infiéis
que é necessário converter, por bem ou à força. A guerra santa deve estender-se
a toda
a humanidade: é essa a vontade do Profeta, é essa a nossa missão.
É o que temos tentado observou o iraniano. Considerem a Europa: hoje ela
transforma-se em terra do Islão. Onde estamos reunidos senão na Alemanha? Todos
os dias,
em França, na Inglaterra e noutros países, as conversões são cada vez mais
numerosas. Este continente será conquistado pela persuasão, a infiltração e o
próprio
jogo da democracia. Os intelectuais serão para nós um auxílio precioso; graças a
uma boa utilização dos direitos do homem e dos media, acabaremos por ganhar sem
luta e transformaremos as igrejas em mesquitas.
Não se passa o mesmo em toda a parte objectou Mohamed Bokar. No tempo das suas
mais belas conquistas, o Islão não se
Nota: Tradução para francês de Régis Blachère, Paris, Maisonneuve et Larose,
1966, p. 56. (N. do A.)
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contentou com a
paciência e sempre atacou primeiro. Os nossos pais exterminaram os cristãos, os
zoroastrianos e os mazdianos, nós apoderámo-nos de grande quantidade de terras
para
aí difundirmos a verdadeira fé. É preciso impor por toda a parte a lei corânica
e reunir a umma, a comunidade dos crentes.
Sem esquecer o Egipto precisou o iraniano.
O presidente e os ministros são ímpios; o povo odeia-os. O Egipto está pronto
para se transformar numa república islâmica de que nos poderemos orgulhar. Os
meus
amigos e eu somos a vanguarda da conquista!
O que vos falta para triunfarem? interrogou o diplomata saudita.
Dinheiro. Tenho de financiar a nossa acção, comprar armas e acalmar alguns
militares demasiado inquietos.
A voz rouca de Mohamed Bokar ressoara no meio de um silêncio absoluto; todos os
olhares convergiram para o saudita.
Este bebeu um gole de "sumo de laranja" e poisou o copo delicadamente.
O domínio internacional é um labirinto em que muitos se perdem; é por isso que é
necessário avançar com passos prudentes. No que diz respeito à transformação do
Egipto, devemos obter o acordo, mais que não seja tácito, dos nossos amigos
americanos. A partida não está ganha de antemão, mas tenho esperanças. Do ponto
de vista
do Islão, em contrapartida, a situação é mais clara. Os projectos do nosso bem-
amado Irmão Mohamed satisfazem-nos, pelo que nos mostraremos generosos e lhe
damos
a nossa confiança.
Enquanto Mohamed Bokar permanecia impassível com um ligeiro sorriso nos lábios,
Kaboul bateu palmas e gritou: "Alá é o maior!"
Desenvolveremos a nossa acção a partir do Sudão informou o chefe terrorista.
A fronteira com o Egipto não é vigiada constantemente? inquietou-se o iraniano.
Isso não é problema.
O sudanês estava delirante. Do seu país em ruínas, minado pela fome e pela
miséria, partiria a cruzada islâmica que reconduziria o Egipto, esse odiado
vizinho, ao
rebanho do deus exterminador.
8.
O avião proveniente de Luxor aterrou no Cairo com uma hora e dez de atraso.
Mark, esgotado, tinha dormitado durante o trajecto. À saída do aeroporto
esperava-o um
espectáculo incrível: milhares de fiéis tinham invadido a rua, cobrindo-a com
tapetes mais ou menos gastos, e faziam as suas orações voltados para Meca. Os
bustos
curvavam-se cadenciadamente, a fronte tocava o chão, e uma maré de traseiros,
cobertos de calças ou de galabiehs, expunham-se aos raios do sol ardente das
onze horas
da manhã.
Sexta-feira, o dia em que todo o muçulmano devia honrar Alá de forma
ostensiva... Encerrado no seu desgosto e nas suas interrogações, Mark tinha-se
esquecido disso.
Embora o dinheiro saudita tivesse permitido a construção de quarenta mil
mesquitas no Egipto durante os últimos dez anos, a população tinha ainda falta
de lugares
santos e via-se obrigada a ocupar a rua. À hora da oração era impossível
circular; os que não tinham conseguido entrar numa mesquita amontoavam-se em seu
redor.
Havia cada vez mais mulheres veladas nas ruas do Cairo; durante quanto tempo
mais aceitariam a presença de raparigas indecentes, com o rosto e as pernas
descobertas,
ousando pavonear-se com saias curtas? As estudantes eram as mais fanáticas; em
breve, nenhuma das suas condiscípulas seria autorizada a penetrar num local
universitário
sem o vestuário imposto pela lei corânica. Quem se lembrava do aviso do advogado
Kasim Amin, morto em 1908: "O véu é a forma mais vil de escravidão para a
mulher"!
50
Mark contornou um amontoado de fiéis e procurou o táxi que tinha chamado pelo
telefone; Naguib Ghali nunca lhe faltava quando ele vinha ao Cairo. Mas com
aquela
multidão... Quando a oração terminou, um homem ergueu a mão e agitou-a. Naguib!
Mark abriu passagem até ao Peugeot de seis lugares, sempre muito bem cuidado: em
torno do volante, feltro vermelho; sobre os assentos, uma cobertura felpuda;
preso
ao retrovisor, uma mola para papéis em ouro proveniente da pilhagem do palácio
de Koubbèh, pertencente a Farouk.
O americano subiu para o assento da frente e os dois homens cumprimentaram-se
efusivamente.
Como vais, Naguib?
O meu quinto filho está com sarampo e o hospital recusou-se a aumentar-me. À
parte isso, vai tudo bem.
Com quarenta e cinco anos, robusto e maciço, Naguib Ghali já tinha cabelos
brancos. Como médico, ganhava pouco mais de sessenta libras por mês e não
conseguia providenciar
às necessidades da sua família; assim, trabalhava como motorista de táxi a meio
tempo. Durante a noite, ganhava três vezes mais do que no hospital. Uns pequenos
óculos redondos davam a Naguib um ar respeitável; como conhecia bem o Cairo, não
lhe faltavam clientes importantes.
Estás com o rosto muito vincado, Mark.
Ouviste falar do atentado contra um carro de turistas, entre Luxor e Assuão?
Mais um golpe sujo dos integristas.
Entre as vítimas estava a minha noiva.
Naguib Ghali encostou o carro junto a um passeio semidestruído. Incrédulo,
contemplou o amigo de infância.
Tu ias-te casar?
Hélène era uma mulher extraordinária.
Para te conseguir seduzir tinha mesmo que o ser. Então tu amava-la?
Teríamos sido felizes.
Não sei o que te hei-de dizer...
Quero vingá-la, Naguib.
Não será fácil, mas compreendo-te. Agiria da mesma maneira no teu lugar.
51
Aceitas ajudar-me?
Se souber do mínimo pormenor serás imediatamente informado. Onde queres ir?
À avenida do paredão. Tenho que encontrar-me com um amigo influente.
Posso passar em casa primeiro? É só para deixar um embrulho.
Claro!
Sabes a que escapei quando era novo? A três anos de serviço militar! Um erro
administrativo... Enquanto tentava demonstrá-lo, apodrecia numa caserna.
Felizmente,
isentam os que conhecem o Corão de cor, pois são considerados como detentores de
títulos universitários. Usei o meu título de médico e consegui recitar uma boa
parte
da primeira surata. O examinador libertou-me; Alá protegeu-me.
O táxi mergulhou num trânsito de loucos, cujas regras apenas os cairotas
conheciam: semáforos vermelhos para decoração, sentidos únicos facultativos,
polícias com
apitos inoperantes, disputas permanentes entre veículos e peões. Viadutos e
periféricos suspensos não conseguiam desengarrafar a capital que, todos os anos,
contava
com quinze por cento de automóveis a mais, cujas buzinas funcionavam dia e
noite. Ninguém se queixava, porque não havia qualquer hipótese de sobrevivência
para quem
quisesse encontrar o seu lugar a não ser no Cairo; dos serviços administrativos
às grandes empresas, passando pelas diversões, tudo estava no Cairo e muito
pouco
no resto do país. A cidade gigante, com pelo menos doze milhões de habitantes,
atraía os provincianos como um íman. Insaciável, o grande Cairo estendia-se sem
cessar,
devorando todos os dias preciosas terras cultiváveis para as transformar em
sinistros arrabaldes.
O táxi enfiou-se por uma ruela onde os peões, os burros, um bando de patos e um
camelo disputavam o espaço aos automóveis, quase encostados uns aos outros; um
quiosque
de jornais, vendedores de cigarros, transístores, legumes e bolos ocupavam os
passeios. Odores fortes, em que se misturavam poeira, gasolina, especiarias,
fritos,
urina, água de rosas e jasmim, agrediam as narinas; o fuel com elevado teor em
enxofre, utilizado por milhões de automóveis, contribuía para colocar o Cairo na
lista
das cidades mais poluídas do mundo. Nove veículos em cada dez produziam uma
elevada taxa de monóxido de carbono, a
52
que se juntavam emissões de ácido sulfúrico e nítrico e fumos não filtrados das
fábricas de produtos químicos. Uma nuvem ameaçadora pairava permanentemente
sobre
a cidade; todos os meses, uma centena de toneladas de chumbo, de silício e de
enxofre poluía cada quilómetro quadrado do imenso aglomerado, a contas com as
doenças
respiratórias e as alergias.
Que restava do sonho inglês, das suas vivendas luxuosas, dos seus relvados bem
regados, das suas caleches e burros numerados, dos seus agentes com uniformes
mais
elegantes do que os da Europa, da sua tentativa para domesticar o Oriente,
instalando ali a mais requintada arte de viver? O Cairo moderno tinha-se
sobreposto definitivamente,
enferrujado os gradeamentos de ferro forjado e corroído os mais belos edifícios
até os reduzir ao estado de pardieiros.
Naguib Ghali parou numa rua miserável do bairro de Bassatine, onde a maior parte
das casas não tinham água nem electricidade. Num apartamento a cair aos bocados,
com dois compartimentos apenas, vivia com a mulher e os seus sete filhos. Devido
às leis promulgadas por Nasser, era proibido aos proprietários aumentar as
rendas,
fixas para sempre; isso fazia com que recusassem fazer a manutenção de bens
estéreis e os locatários também não procediam a qualquer reparação.
A cada nova visita, Mark verificava que o Cairo estava mais degradado. Como
podia a cidade "triunfante", como lhe tinham chamado os conquistadores árabes,
resistir
a uma população que duplicara em vinte anos e não cessava de aumentar a um ritmo
perfeitamente louco? Havia anualmente quatro vezes mais nascimentos, cerca de
quatrocentos
mil, do que mortes, sem falar do afluxo permanente de camponeses, que vinham
procurar na capital uma existência mais simples. No fim do século, vinte milhões
de
cairotas e setenta e cinco milhões de egípcios amontoar-se-iam num território
comparável ao dos Países Baixos, ocupado por quinze milhões de habitantes. No
bairro
de Bab e-Sbaria, viviam já cento e vinte e sete mil habitantes por quilómetro
quadrado.
Arruinadas, "as casas da morte certa" desabavam, a rede de esgotos agonizava, os
fios eléctricos apodreciam e até os edifícios modernos se desmoronavam porque os
seus alicerces, previstos para quatro andares, suportavam dificilmente um
aumento de mais cinco, realizado sem autorização.
53
Mark sentiu uma vertigem; Naguib notou.
Não estás bem?
Não é nada.
Há quanto tempo não comes?
Não sei.
Não te mexas daqui; vou deixar o meu embrulho e volto já. O motorista de táxi
ofereceu ao seu passageiro uma bola com favas
quentes e cebola cozida.
Se dás de comer aos teus clientes, o preço da corrida vai duplicar.
Come e cala-te.
Depois do recente tremor de terra, algumas ruas tinham sido interditas e assim
ficariam até que um decreto administrativo, devidamente assinado por
responsáveis
que era difícil encontrar, as reabrisse à circulação. Uma das barreiras,
guardada por um polícia, não incomodou Naguib, que apertou a mão à sentinela,
lhe pediu
para levantar a barreira e meteu por um dos seus atalhos preferidos.
Estás a ver este montão de entulho, Mark? Tem uns trinta anos mas rendeu
bastante dinheiro aos meus colegas. Explicavam aos turistas que o tremor de
terra tinha
começado aqui e que se podiam ouvir os pedidos de socorro das pessoas
soterradas; por uma boa maquia, os palermas tinham direito a uns minutos apenas
de espectáculo,
porque a polícia proibia qualquer permanência naquele lugar devido aos perigos
de desabamento.
De cinquenta mil altifalantes brotou de súbito uma voz tonitruante e agressiva;
surpreendido, Naguib largou o volante e evitou à justa uma mulher velada, com um
cesto de tâmaras à cabeça.
Não é ainda a hora da oração espantou-se ele.
Cinco vezes por dia, uma abominável cacofonia invadia o Cairo, cobrindo o ruído
dos motores e das buzinas. A modernidade tinha relegado para o esquecimento a
voz
melodiosa dos muezzins, substituída por gravações em altos berros. Que ditador
teria podido sonhar com um melhor doutrinamento quotidiano das massas? Havia
mesmo
uma estação de rádio difundindo ininterruptamente a leitura do Corão.
Mark aguçou o ouvido; o orador estava excitadíssimo.
Não precisamos de hospitais berrava ele não precisamos
54
de médicos, não precisamos de medicamentos pois estamos na morgue, no meio dos
mortos, porque um regime ímpio nos impede de aplicar a lei corânica! Revoltemo-
nos!
Naguib Ghali assegurou-se de que um exemplar do Corão estava bem em evidência no
banco de trás do táxi.
Quem é este fulano? perguntou Mark.
Um homem do Afeganistão chamado Kaboul. Há uma semana que ele debita esse género
de mensagem a qualquer momento do dia. Como as mesquitas o toleram, a polícia
não
intervém.
A voz de Kaboul inflamou-se:
Que o Islão combata os ídolos! Quando o verdadeiro Islão estiver no poder, pela
vontade de Alá todo poderoso e misericordioso, destruiremos o mais horrível de
todos
eles, a grande esfinge de Gizé, essa criatura diabólica que atrai os infiéis!
A seguir sobreveio o silêncio, brutal e pesado.
O povo não está de acordo com estas pessoas declarou Naguib mas tem medo delas.
São capazes do pior. Olha a tua noiva.. Não te metas com eles, são demasiado
poderosos.
Jurei vingá-la. Se me recusares a tua ajuda, compreenderei sem problemas; não
tens as mesmas razões que eu para correr riscos.
Conduzir-te-ei onde quiseres; como as minhas orelhas andam por todo o lado, ser-
te-ão úteis.
Não esqueças que és pai de sete crianças.
Cerca de vinte metros à sua frente, uma montra voou em estilhaços. Armados com
barras de ferro, integristas castigavam os comerciantes que se tinham esquecido
de
fechar a loja durante o breve discurso de Kaboul.
Naguib meteu a marcha-atrás e acelerou a fundo; bateu numa carroça, atirou ao
chão um garoto demasiado lento a afastar-se, mas não abrandou. O comando atacava
agora
um adelo, culpado de expor saias indecentes roubadas a turistas.
Como um condutor de rali, Naguib deu meia-volta e arrancou a direito, sempre em
frente, sem se importar com os obstáculos. Durante cinco minutos não descerrou
os
dentes. Quando viu pessoas a andar de maneira normal e a olhar as montras,
descontraiu-se.
Tivemos sorte; aqueles tipos são drogados. Teriam dado cabo de
55
nós.
Estás quase a chegar; liga-me para o hospital ou para um dos cafés onde costumo
parar. Facilmente entrarão em contacto comigo.
Antes de sair do carro, Mark bateu na mão aberta de Naguib. A avenida do
paredão, um bairro elegante do Cairo, exibia uma tranquilidade perfeita.
9.
Quem não conhecesse do Cairo senão a avenida do paredão da margem direita, o seu
aspecto moderno e ocidental, poderia julgar que a cidade estava decididamente
orientada
para o século xxi, com os seus edifícios de escritórios, hotéis de luxo, vias de
circulação com diversas faixas nos dois sentidos, ladeadas de árvores. Ali
estavam
instaladas as sedes de vários ministérios, depois da expropriação de antigas
mansões onde decorrera a existência dourada de ricos estrangeiros.
Em frente da branca vivenda de Farag Moustakbel havia uma tamargueira em flor e
dois polícias de guarda. Industrial e jornalista, muçulmano convicto, lutava com
todas as suas energias contra os integristas e os fanáticos que acusava de
corromperem o Islão. Para Farag Moustakbel, a sua religião devia exaltar a
tolerância:
"a guerra santa" não podia passar de uma reacção normal de defesa de um país ou
de um grupo ameaçado de desaparecimento e nunca ser uma doutrina guerreira
aplicável
a todo o planeta. Em quase todos os editoriais fustigava os fundamentalistas e
recusava a instauração de uma república islâmica que fizesse reinar o terror
como
no Irão ou no Sudão.
O seu último artigo tinha causado grande agitação nas mesquitas; evocava um dos
episódios da conquista árabe do Egipto, quando Ornar se apoderara da biblioteca
de
Alexandria. Que fazer daqueles milhares de volumes? "Queimá-los", respondera
Ornar: ou diziam a mesma coisa que o Corão, e eram inúteis; ou diziam o
contrário, e
eram prejudiciais.
Moustakbel condenava esse Islão; amava um Egipto colorido, onde
58
se misturassem muçulmanos e coptas, onde os turistas vindos do mundo inteiro
circulassem livremente, onde uma mulher velada e uma rapariga vestida à maneira
ocidental
vivessem lado a lado sem animosidade. O americano mostrou os seus papéis de
identificação aos polícias. Um deles foi prevenir o criado de Farag Moustakbel,
que fez
entrar o visitante num salão mobilado em estilo Luís XV, com imitações
fabricadas no Cairo profusamente douradas.
Mark!... Que alegria rever-te!
Moustakbel era de estatura mediana, corpulento, quase calvo e de sorriso fácil;
aos quarenta e sete anos, ostentava uma energia extraordinária, comia muito e
dormia
pouco. Celibatário, consagrava-se à sua empresa de obras públicas e aos seus
artigos. Óculos de espessas lentes ocultavam-lhe boa parte do rosto.
Farag conhecia Mark desde o nascimento; ensinara-o a descobrir o Egipto.
Farag...
O que aconteceu? Pareces perturbado.
Hélène morreu.
Não é verdade...
Terroristas massacraram-na e desfiguraram-na com uma pistola metralhadora.
Mark caiu nos braços de Farag e juntos choraram. Quando a crise de lágrimas se
acalmou, o egípcio encheu dois copos com aguardente de framboesa que lhe fora
oferecida
por um cliente francês. Beberam em silêncio, com os olhos fixos no chão.
A polícia protege-te, Farag?
Depende dos dias; ou seja, é inútil. O nosso governo erra ao pactuar com os
integristas; a sua atitude é suicidária. Por agora, considera a minha vida
preciosa...
Mas porque hei-de importunar-te com esses pormenores num momento destes.
Só tu me podes ajudar.
Como?
Quero identificar os assassinos.
Não vai ser fácil, mas vou tentar obter o máximo de informações
Talvez não tenham sido os islamistas a atacar o carro onde Hélène seguia.
59
Farag franziu o sobrolho.
Então, quem?
Soldados de elite.
Onde foste buscar essa hipótese?
Corre o boato.
Inverosímil, mas não há fumo sem fogo.
Qual é a tua ideia?
Os comandos egípcios que combateram os russos no Afeganistão aprenderam lá a ser
astutos. Que queres mais digno de confiança para os turistas do que militares
encarregados
da sua protecção?
A imprensa ficou silenciosa.
Falou de uma agressão integrista e de alguns turistas gravemente feridos, sem
referir os nomes. É por isso que eu ignorava que Hélène... Mas nenhum jornalista
se
atreverá a escrever que os terroristas se disfarçaram de forças de segurança!
Podes imaginar o pânico que uma informação dessas ia provocar?
Preciso de uma confirmação. Farag reflectiu.
Hás-de tê-la; amanhã de manhã vais visitar um dos meus amigos que é capaz de te
esclarecer. Se a minha hipótese for correcta, ficarás com um princípio de pista.
Vou escrever uma carta de apresentação.
Irei até ao fim.
Conheço-te; e se eu te pedisse para me ajudares?
Conheces de antemão a minha resposta. O industrial ergueu-se e olhou pela
janela.
Os islamistas procuram apoderar-se das editoras e da imprensa; praticam já uma
censura subreptícia, proibindo as publicações que os incomodam, mas esperam
conseguir
muito mais. E dizer que o nosso prémio Nobel da Literatura, Naguib Mahfouz, que
escapou aos oitenta e dois anos a um ignóbil atentado integrista, ousa escrever
que
"a corrente islamista é a única que tem princípios e ideias que podem ser postas
em prática"! Por causa dos intelectuais e dos teóricos, corremos para o abismo.
Cego, incompetente e corrupto, o estado deixou os integristas ocuparem-se da
vida quotidiana das pessoas e convencê-las de que a aplicação da lei corânica
suavizaria
a sua miséria. Engenheiros, físicos, dentistas, farmacêuticos e advogados são
actualmente controlados
60
pelos Irmãos Muçulmanos e pelos seus aliados. Repetem constantemente a mesma
fórmula: "O Islão é a solução". Que loucura! Mas os extremistas infiltraram-se
nos partidos
políticos, nas associações culturais, nos organismos de saúde e nos movimentos
de assistência. Oferecem aos jovens roupas e livros de propaganda; defendendo a
separação
absoluta dos sexos, recusam a contracepção, um veneno vindo do Ocidente para
enfraquecer o Islão. Mas um nascimento a cada vinte e cinco segundos é a
epidemia que
vai matar o Egipto! Por causa da inflacção demográfica, nenhuma política
económica poderá pôr cobro à miséria e ao desemprego. O salário dos
funcionários, por si
só, representa um quinto do orçamento nacional, ao mesmo tempo que os serviços
administrativos se revelam ineficazes! Tenho medo, Mark; tenho medo pelo meu
país.
Esqueces a barragem. Farag Moustakbel sorriu.
A sua ameaça é mais distante, não achas?
Mas igualmente inquietante.
Tem calma, porque eu fiz chegar os teus dossiers aos ministérios correspondentes
e encarrego-me de verificar que não fiquem esquecidos. Antes de conseguir a
abertura
de um canal de derivação, o caminho ainda vai ser longo.
O auxílio de Hélène teria sido determinante.
Por ela, tens de continuar a lutar.
Não falaste de um serviço que eu te poderia prestar?
A situação é mais grave do que a maior parte dos egípcios e dos observadores
estrangeiros imaginam. A alavanca do governo é o dinheiro, como é óbvio; embora
se apresentem
como os grandes adversários da corrupção, os islamistas controlam numerosos
bancos e fundos de poupança clandestinos, onde se acumulam capitais
consideráveis. Se
conseguir demonstrar que os extremistas são, simultaneamente, corrompidos e
corruptores, a sua influência diminuirá e o povo acordará. Há um técnico que me
pode
apoiar, um especialista financeiro que vem dos Estados Unidos; gostaria que o
fosses buscar ao aeroporto. O meu rosto é um pouco conhecido demais.
Combinado.
Mark sentia grande dificuldade em se concentrar; o rosto de Hélène
61
dançava em frente dos seus olhos. Dominava-o o mesmo sentimento que depois da
morte dos pais, mas mais intenso e mais angustiante por causa do sentimento de
revolta
contra os cobardes que não tinham hesitado em abater uma mulher desarmada, a
mulher que ele amava. Cada segundo fortificava mais o seu desejo de vingança; o
tempo,
em vez de o atenuar, reforçava-o.
Devias tomar um calmante e dormir aqui.
Prefiro vaguear ao acaso, procurar aturdir-me. As ruas do Cairo serão as
melhores drogas.
10.
Mark vagueara até ao anoitecer, deixando-se guiar pelos seus passos. Numa ruela
tinha saciado a fome com almôndegas de favas com ervas aromáticas e bebido um
chá
escaldante. Indiferente ao calor que anestesiava muitos cairotas, teimara em
perseguir a fugidia imagem de Hélène ao longo do Nilo, convencendo-se de que ela
ainda
estava viva. Por momentos, julgou que o pesadelo se dissipava, que ela se
ocultava atrás do sol, caminhava a seu lado, tão próxima, tão terna. Mas apenas
existiam
as buzinas, a poeira, o cheiro simultaneamente doce e pestilento da enorme
cidade que devorava o país e os seus habitantes.
O desespero queimava-o como gelo; ao mesmo tempo que lhe corroía a alma,
alimentava uma vontade indomável de saber a verdade e estrangular os que tinham
morto Hélène.
Graças a Farag, seguiria a sua pista.
Antes de cair a noite, os altifalantes berraram o apelo à oração; depois, as
cores do poente apagaram a fealdade da grande urbe e realçaram a beleza do rio.
Mark
pensou num texto de El Kadi el-Fadel, o primeiro autor árabe que tinha lido: "O
Nilo projecta sobre a terra uma luz ondulante; a sua corrente vai espalhar a
abundância
nas planícies, formando ao longo das margens campos verdejantes e recobrindo a
terra do Egipto com as suas benesses. Correndo ao longo do país, cria um
firmamento
cujas estrelas são as aldeias."
Por causa da grande barragem, esse firmamento desfazer-se-ia numa terra queimada
de adubo que o rio não viria mais fecundar. Desamparados,
64
os velhos esperavam em vão a subida das águas; os citadinos tinham saudades das
festas da cheia, aliança entre o povo do Egipto e o seu rio.
Sem Hélène, teria a força necessária para lutar contra o monstro gigantesco cuja
forma evocava o rictus de um demónio satisfeito por estrangular o Nilo? Dizia-se
que era impossível contemplar o deus-rio sem sentir um perfume de eternidade;
mas as suas águas, cada vez menos vivas, não eram testemunha da morte inevitável
do
país dos faraós?
A circulação intensificou-se; nas pontes e nas margens, as pessoas reuniam-se
para comer qualquer coisa, discutir e saborear o fresco. Mark regressara ao
bairro
de Dokki, povoado de enormes edifícios e de torres erigidas num dos terrenos
mais caros da capital: iluminada, a torre do Cairo, com uma altura de cento e
oitenta
e cinco metros, pretendia assemelhar-se a uma flor de lótus, mas os cairotas
comparavam-na mais a um falo bizarro, cujo elevador estava muitas vezes
avariado.
Uma garota envergando um vestido cor de laranja propôs-lhe a compra de um colar
de flores de jasmim. Hélène adorava esse perfume; comprou-lho e notou que se
encontrava
próximo de um edifício que conhecia bem.
Depois de todas aquelas horas a vaguear em silêncio, sentiu desejo de falar. Sem
dúvida esbarraria com uma porta fechada, mas tentou a sua sorte.
O prédio, com cerca de dez anos, começava a degradar-se; no Cairo, manutenção e
reparação eram um milagre. Mark subiu pela escada até ao terceiro andar e tocou
à
porta.
Ela abriu.
Mark!
Continuas tão bela como sempre, Safinaz. Permite que te ofereça este colar de
flores.
Julguei que tínhamos acabado definitivamente.
É verdade, mas...
Entra depressa.
Uma mulher só recebendo em sua casa um homem que não pertencia à sua família e
que, para mais, era um infiel, podia vir a ter graves aborrecimentos. Safinaz
fechou
a porta sem ruído.
Mark contemplou-a; aceitara o jasmim.
65
Os cabelos negros de comprimento médio, tocando nos ombros, o rosto oval, olhos
de gazela de um negro fascinante, nariz fino e direito, lábios sensuais, era
magnífica,
tão deslumbrante como o pode ser uma jovem egípcia que cuide do seu corpo. O
baton rosado e uns brincos prateados em forma de papiros davam uma nota de
doçura ao
rosto orgulhoso.
Safinaz estudara Economia em Inglaterra e nos Estados Unidos, onde tinha
família, e depois fora nomeada professora na Universidade do Cairo. Era a mais
jovem professora
de nível superior e defendia ferozmente a sua independência; não estar casada
aos vinte e seis anos arriscava-se a fazê-la perder o lugar.
Mark encontrara-a durante um concerto na Ópera do Cairo; a atracção entre ambos
fora imediata. Tornaram-se amantes nessa mesma noite, conscientes de que a
aventura
não teria futuro. Desde que Mark decidira casar, explicara-lhe a situação sem
nada ocultar; Safinaz apreciara a sua franqueza.
Qual a razão desta visita inesperada? Pensava nunca mais te ver.
- A minha noiva morreu.
Safinaz permaneceu impassível.
Um acidente?
Um assassinato.
Aqui, no Cairo?
Terroristas, na estrada entre Luxor e Assuão.
Amava-la realmente?
Amava.
A jovem afastou-se, elegante e altiva.
Se te incomodo, vou-me embora.
Ninguém pode partilhar a tua dor.
Apenas quero falar. Dela, de ti, da barragem.
Continuas esse combate insensato?
Nos ministérios lêem os meus relatórios.
Ela encolheu os ombros.
Esperas que o Egipto destrua a grande barragem?
Conto conseguir a construção de um canal de desvio, a fim de restabelecer a
cheia, pelo menos em parte.
És um homem do passado.
66
Que importa, se é para o bem do país?
Suponho que queres beber?
Dantes tinhas um excelente Porto.
Safinaz serviu-lhe um vintage que até o mais exigente britânico teria apreciado.
O que esperavas, ao vir aqui?
Ver-te.
Ela desapareceu.
A fadiga abateu-se sobre Mark; com as pernas moles e os músculos a doer, deixou-
se cair num sofá de cabedal e fechou os olhos. Naquela sala acolhedora, mobilada
com gosto, gozava o seu primeiro momento de descontracção depois do drama. O seu
espírito vagueava num paraíso impossível onde Hélène, de pé à proa de uma falua,
deixava os cabelos voar ao vento. Agarrava-a pela cintura e beijava-a no
pescoço, embriagando-se de sol.
Um deslizar arrancou-o ao seu sonho; abriu os olhos.
A dois metros dele, Safinaz acabava de tirar o vestido. Nua, espalhou sobre o
púbis de jade uma pasta obtida com uma mistura, feita em lume brando, de açúcar
e sumo
de limão. Com uma mão segura, depilava-se com soberana graça.
Nunca ele assistira a espectáculo tão erótico, em que o mínimo gesto atiçava o
desejo. Safinaz desnudava a sua nudez, oferecia a sua intimidade secreta
retirando
os últimos véus.
Mark levantou-se.
Espera ordenou ela.
A jovem pintou os pés com henné, a alfena do Egipto, cujas folhas eram reduzidas
a pó para se obter um vermelho alaranjado, e maquiIhou as pestanas e as
sobrancelhas
com um pincel molhado em khôl, antimónio misturado com plantas carbonizadas, que
dava um negro profundo.
Agora estou doce e bela.
Hélène dançava em frente dos seus olhos, mas Safinaz enfeitiçava-o; os rostos
das duas mulheres sobrepunham-se. Mark, como que embriagado, avançou. Ela
segurou-lhe
na mão e atraiu-o para si. Não era o perfume de Hélène; no momento em que ele
recuou, a jovem cuspiu-lhe na cara e empurrou-o para trás.
67
Porco! Estás de luto e querias foder-me... Uma árabe ainda te excita? Olha bem
para mim porque nunca mais verás uma nua em frente de ti, como uma escrava
dócil.
Mark julgou estar a ter uma alucinação.
Que se passa contigo, Safinaz?
Não compreendeste?
Envergou um vestido comprido que lhe tocava nos tornozelos, cobriu a cabeça e o
rosto com o neqab, um véu pesado que apenas tinha duas fendas para os olhos, e
enfiou
luvas negras para não haver nenhum contacto directo com um homem.
Compreendi finalmente que o Islão é a solução declarou. Desde que fiz a primeira
peregrinação a Meca descobri a minha verdadeira identidade, a de uma muçulmana.
A lei corânica é perfeita, pois é um dom de Alá. Pretender reformá-la é obra de
demónios que abateremos uns a seguir aos outros, quer sejam políticos, soldados
ou
polícias! Se possuímos o livro de Deus, por que havemos de ir procurar noutro
lado e confundirmo-nos com democracia, comunismo ou liberalismo? Só há um poder:
o
de Alá. Nós, os muçulmanos fiéis, imporemos a sua lei ao Egipto e ao mundo.
Enlouqueceste?
Achas que falo como uma louca? O Islão é a solução, eis a verdade absoluta e
definitiva.
Utilizas palavras que não me agradam; lembras-te que a "solução final" era o
objectivo do nazismo?
Os teus discursos são ultrapassados, meu pobre Mark. Amanhã reinará a charia, a
lei corânica. Expulsaremos os turistas e os estrangeiros, exterminaremos os
coplas,
fecharemos os bancos ímpios, proibiremos o álcool, restabeleceremos os castigos
corporais e manteremos a ordem instituída pelo Profeta. Se queres sobreviver,
dirige-te
à mesquita al-Azhar com duas testemunhas e proclama cinco vezes: "Declaro que
não há senão um Deus e que Maomé é o seu profeta." O teu nome ficará inscrito
num registo,
passarás a ser muçulmano e entrarás na via da redenção.
Vais aceitar, como boa muçulmana integrista, ser privada da tua profissão e
ficar reclusa dentro de uma casa para tomares conta de um bando de crianças? Não
esqueças
que a lei corânica exige a lapidação da mulher infiel.
68
Safinaz sorriu, triunfante.
Caso-me depois de amanhã, ao cair da noite, na cidade dos mortos; vem ver, se te
atreves!
11.
Mark tinha passado a noite num café iluminado a néon. Ao lado dele, um velho
cairota fumava sem interrupção um narguilé oscilante. Pelas cinco horas da
manhã, a
cidade começou a despertar; merceeiros, ebanistas e alfaiates começavam a
trabalhar já fatigados. Os estabelecimentos abriram e as discussões começaram.
Um engraxador
desdentado devolveu o brilho aos sapatos de Mark e um barbeiro tornou o seu
rosto de novo apresentável. Na rua passavam burros pelados puxando carroças
sobrecarregadas
com cebolas, mulheres com grandes bolas à cabeça, funcionários envergando
saarianas e exibindo as pastas, jovens de jeans, integristas barbudos com
galabieh branca.
Enquanto bebia um café muito forte com um gosto infecto, Mark leu um jornal que
exaltava a firmeza do governo face ao terrorismo islâmico. Não continuava o
Egipto
a ser o país mais seguro do Médio Oriente?
Com o passar dos minutos, a multidão foi-se tornando cada vez mais densa, como
se a monstruosa cidade se divertisse a ver as suas presas correr em todas as
direcções.
Na praça el-Tahrir, a "praça da Libertação", a estação de autocarros era, como
habitualmente, palco de um engarrafamento de carros de turismo e autocarros
apinhados,
dos quais se penduravam verdadeiros cachos humanos. Apenas um cairota muito
habituado descobria o destino de cada um. No meio de um concerto ininterrupto de
buzinas
e de rangidos de pneus, táxis brancos e pretos, carros a cair aos pedaços e
Mercedes abriam caminho avançando sobre os peões que arriscavam a vida para
atravessar.
O Metro,
70
construído pelos franceses, apesar do seu êxito e da limpeza devida a uma
impressionante presença policial, não tinha diminuído a intensidade do trânsito.
A praça da Libertação, onde um jardim e um espaço verde tentavam sobreviver,
devia o seu nome à destruição das casernas inglesas que ocupavam a zona antes da
revolução
de Nasser. O museu egípcio, o mais rico do mundo em obras-primas da época
faraónica, conseguira sobreviver enquanto esperava para ser deslocado. Mas o
bloco de imóveis
de estilo soviético para o qual se dirigiam todos os dias milhares de egípcios
era o mogamah, a cidade administrativa onde trabalhava um exército de
funcionários,
detentores de carimbos sem os quais um documento não tinha qualquer valor.
As filas de espera eram intermináveis, os funcionários competentes eram
inexistentes, faltavam coisas indispensáveis. A simples descoberta do gabinete
certo exigia
uma paciência infinita, tanto mais que muitos dossiers se perdiam ou ficavam em
estudo durante meses, anos mesmo.
O americano entrou no edifício do mogamah às seis horas. Apesar das equipas de
limpeza, o local continuava a ser cinzento e poeirento. Em frente de cada porta,
em
cada canto, havia um funcionário encarregado de informar as pessoas que iam
chegando. A maior parte deles dava indicações erradas.
Os elevadores estavam avariados. Mark meteu-se por uma escada de degraus gastos;
uma maré humana subia e outra descia. Graças ao plano fornecido por Farag,
descobriu
em menos de vinte minutos o reduto onde o secretário de um alto funcionário
desaparecia entre pilhas de papeladas escritas à mão. Com o rosto crispado e os
olhos
sonolentos, escrevia um relatório sobre a lentidão do seu serviço, de que os
seus subordinados eram os únicos responsáveis.
O americano cumprimentou-o com deferência e entregou-lhe uma mensagem dirigida
ao seu superior, acompanhada de vinte libras egípcias. Tendo em consideração os
baixos
salários, nenhum dossier avançava sem uma contribuição financeira. Considerando
correcta a do candidato, o funcionário abandonou o seu relatório e prometeu
fazer
o que lhe fosse possível.
O mogamah era o lugar do Cairo onde se verificavam mais suicídios; apanhados nas
armadilhas da burocracia, envolvidos em atrasos
71
que se iam somando uns aos outros, incapazes de compreender por que razão o
justificativo aceite ontem já hoje não era válido, alguns estoiravam, como os
humildes
operários, idosos e cansados, que consideravam ter direito a uma reforma
miserável mas que nunca conseguiam o famoso carimbo.
De acordo com uma lei que datava da época de Nasser, qualquer licenciado da
Universidade tinha direito a um lugar de funcionário, o que fazia com que as
fileiras
já a abarrotar da administração egípcia se enchessem mais e mais de ano para
ano. Esses funcionários formavam contingentes mal pagos, incompetentes, venais e
insatisfeitos,
tão numerosos que alguns nem sequer dispunham de uma cadeira nem de uma mesa.
Ter um gabinete, mesmo minúsculo e degradado, mesmo partilhado com numerosos
colegas,
era um verdadeiro privilégio. De duas em duas horas, uma nova equipa vinha
ocupar o lugar da anterior; esta rotação permitia a cada um trabalhar pouco e
mal, para
grande prejuízo da população.
Passou uma hora e Mark começou a inquietar-se. Dentro em pouco, um novo arranha-
papéis instalar-se-ia no lugar do secretário, a carta de Farag perder-se-ia e
teria
de recomeçar tudo no dia seguinte, tornando a partir do zero.
O homem regressou, quase sorridente.
Tem sorte! O vice-ministro aceita recebê-lo. Siga o guarda do andar. Mark fez
deslizar algumas notas para a mão do seu guia para que ele
não o conduzisse a outro lugar qualquer. Sábia precaução, porque o percurso era
tão complicado que o próprio vice-ministro se devia perder. O gabinete do alto
funcionário
era imenso, quase luxuoso, com tapetes espampanantes, mobília inglesa de boa
qualidade, um batalhão de telefones de diversas cores, duas televisões, vídeo,
fax e
computadores. Um homem de estatura média, apagado, com cerca de sessenta anos,
envergando um fato cinzento, deu as boas vindas ao seu visitante e convidou-o a
sentar-se
numa poltrona, a respeitosa distância. De que ministério dependia e qual era
realmente o seu posto? Não valia a pena tentar descobrir. Pela simples
observação do
gabinete podia ser avaliada a importância que tinha.
Ouvi falar de si, senhor Walker. Parece que não é um ardente defensor da nossa
grande barragem.
72
A minha posição é estritamente científica, Excelência. Considero o Egipto como a
minha verdadeira pátria, desejo a sua felicidade e a dos seus habitantes; ora,
essa
barragem conduz à ruína e à infelicidade.
Uma posição bem definitiva! No entanto, o meu amigo Farag aprecia-o muito;
suponho que partilha as suas ideias, não?
O seu combate merece todo o meu respeito.
O alto funcionário tocou uma campainha e um criado trouxe dois cafés sem açúcar.
Foi afectado por um cruel luto.
A minha noiva foi assassinada.
Permita-me que lhe apresente as minhas condolências.
Agradeço muito a sua atenção.
O que espera de mim?
O substituto de Assuão afirma que os assassinos são terroristas fanáticos, mas o
rumor que corre é que se trataria de soldados de uma unidade de elite.
O vice-ministro pôs os óculos de tartaruga e contemplou as mãos unidas.
Dado que me ocupo dos problemas de segurança, senhor Walker, posso afirmar-lhe
que os rumores são muitas vezes enganosos.
Foi por isso que vim procurar a verdade junto de Vossa Excelência.
Essa atitude honra-me muito, mas quem, a não ser Deus, é detentor da verdade?
Por vezes o homem recebe uma parcela.
Conhecê-la ressuscitaria a sua noiva?
Deixar esse crime impune matá-la-ia uma segunda vez.
Quem lhe fala de semelhante injustiça? Pode ter a certeza de que a polícia está
a fazer o seu inquérito.
Quem matou a minha noiva?
O vice-ministro evitava o olhar de Mark, concentrando-se no seu corta-papéis,
numa pilha de dossiers ou no fax que debitava uma mensagem. O telefone tocou,
atendeu
e pediu que não o incomodassem nos próximos dez minutos.
O Egipto atravessa um período difícil, durante o qual é conveniente não atear o
incêndio que nos ameaça. Suponha que os media locais, logo seguidos pelos media
internacionais,
revelam que os islamistas
73
se disfarçaram de soldados de elite para atacar um carro de turistas e
assassinar os seus ocupantes... Pode imaginar as consequências disso? Portanto,
Farag não
se enganara.
Tem nomes, Excelência?
Não o vão surpreender: a Djihad, os Gamaat Islamiyya e os Irmãos Muçulmanos,
associados no crime, são cada vez mais perigosos. É por isso que, nas actuais
circunstâncias,
o nosso dever é manter silêncio.
O que eu queria dizer era: nomes concretos?
Não peça demais, senhor Walker; obteve a verdade que pretendia. Visto que ama o
Egipto, saiba calar-se. A condução do inquérito pertence à polícia; os
assassinos
serão presos e condenados.
O tom, que se tornara cortante, marcava o fim da entrevista. Mark agradeceu ao
vice-ministro e cumprimentou-o ao sair.
Logo que ele saiu do gabinete, uma porta acolchoada abriu-se por trás do alto
funcionário.
Entrou um personagem elegante que fumava um Dunhill mentolado numa boquilha de
ouro.
Excelente declarou.
Como verificou, meu caro amigo, este americano não vai desistir. Devo continuar
a...
Estou muito satisfeito com a sua cooperação; esqueça-o.
As ruas do Cairo eram percorridas por um vento violento, arrastando areia do
deserto; quando sopravam algumas rajadas, ultrapassando os cem quilómetros por
hora,
o céu escurecia, tingido de um vermelho escuro. "Mais uma consequência da
barragem", pensou Mark; geralmente, aquele género de flagelo só surgia na
Primavera. A
tempestade sobrepunha-se aos gritos dos vendedores ambulantes: "Os meus bagos de
uva são ovos de rola", portanto, grandes e de primeira qualidade, ou "As minhas
favas estão cobertas de orvalho", isto é, muito frescas. Até os táxis
abrandavam.
O americano não teve que percorrer grande distância para chegar a um edifício
opulento, próximo da Praça el-Tahrir. Ali residiam os oficiais superiores. Em
frente
da entrada, um banco quadrado, coberto com um tecido verde e impecável; o
baouab, o guarda, desertara do seu posto.
74
Mark entrou.
Quem é o senhor?
A voz vinha da esquerda. Mark voltou-se e viu o baouab deitado por baixo da
escada.
Ahmed! Tens medo do vento?
O guarda ergueu-se sem pressa. Tão velho que já nem tinha idade, envergando uma
galabieh castanha, cabeça coberta com um turbante de um branco imaculado e o
rosto
sulcado por inúmeras rugas, abraçou Mark.
A misericórdia de Alá seja contigo, meu irmão.
Sabes da Hélène?
Sei.
Ahmed, o decano dos baouabs do Cairo, nunca abandonava o seu banco e o seu
cubículo da escada; recebia confidências, discutia, prestava pequenos serviços e
dava
tantas informações preciosas que se tornara uma verdadeira instituição. Cláxons,
gritos dos vendedores, ruído dos motores, apelos à oração, nada perturbava a sua
serenidade. A maior parte do tempo, parecia dormitar; em determinadas
circunstâncias, fingia ser surdo. Rico, mantinha duas mulheres e doze filhos;
poderia passar
junto deles uma reforma feliz mas, embora repetisse todos os dias que ia deixar
de trabalhar, permanecia fiel ao seu edifício.
No entanto, os jornais não divulgaram o nome das vítimas.
Se nos limitássemos aos jornais, o que saberíamos da vida e da morte? Vamos
sentar-nos; na minha idade, é difícil estar de pé.
Sentaram-se no banco interior, de onde se observava a escada, o elevador e a
entrada do edifício sem ser visto.
Ias-te casar, não é verdade?
A mão pesada do baouab poisou no ombro de Mark.
Que Deus venha em teu auxílio e acalme a tua dor.
O que consta dos assassinos?
Preferia não falar disso.
Segundo o meu próprio inquérito, eram islamistas disfarçados de soldados de
elite.
Conduziste mal o teu inquérito, mas pára por aí.
Porquê, Ahmed?
Este assunto cheira mal, muito mal.
75
Quero vingar Hélène.
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Profecia antiga sobre o Egipto

  • 1. BARRAGEM NO NILO CHRISTIAN JACQ BARRAGEM NO NILO Tradução de MARIA DO CARMO ABREU BERTRAND EDITORA VENDA NOVA 1995 Título Original: Barrage sur lê Nil Autor: Christian Jacq (c) Éditions Robert Laffont, S.A., Paris, 1995 Capa de Fernando Felgueiras Todos os direitos para a publicação desta obra em Portugal reservados por Bertrand Editora, Lda. Fotocomposição e montagem: Espaço 2 Gráfico Impressão e acabamento: Gráfica Manuel Barbosa & Filhos, Lda. Depósito Legal nº 92057/95 Acabou de imprimir-se em Setembro de 1995 ISBN: 972-25-0939 Digitalização Professor Toboaldo Júnior. Como o flagelo não tem a medida do homem, dizemos então que é irreal, é um sonho mau que vai passar. Mas não passa e, de sonho mau em sonho mau, quem passa são os homens. ALBERT CAMUS, A Peste 1. Lançado a toda a velocidade, o autocarro climatizado evitou por um triz um burro que puxava uma carroça carregada com bidões enferrujados. À frente, o táxi colectivo onde se amontoavam cerca de quinze operários nem abrandou. Questão de orgulho, código de honra que substitui o da estrada entre o Cairo e Assuão, única via terrestre ligando a capital do Egipto à grande cidade do Sul. Permanentemente cheia de camiões sobrecarregados, com travões pouco seguros, de automóveis que, na sua maioria, não estavam já em estado de circular, de bicicletas, de peões, de rebanhos de cabras, de camelos e burros explorados como máquinas, a longa via adquiria umas vezes aspecto de auto-estrada, outras de caminho cheio de buracos, outras ainda de pista desprovida de macadame. Apesar de alguns raros painéis de sinalização, votados a um rápido desaparecimento, uma única lei: ultrapassar. Com a testa encostada ao vidro, Hélène Doltin não estava preocupada com a maneira de conduzir do motorista. O Egipto de Junho encantava-a; inebriava-se com a intensidade do sol de Verão, com a doçura dos campos das margens do Nilo, com a nobreza do deserto, às vezes tão próximo. Para gozar bem a paisagem, a jovem francesa, tal como uma vintena mais de turistas, tinha preferido o carro ao avião. O veículo abrandou ao atravessar uma aldeia, ao sul de Luxor; garotas com vestidos cor-de-rosa e amarelos acenaram com as mãos, sorrindo. Sentados na
  • 2. soleira das suas casas, fumavam homens com o 12 olhar perdido no vácuo; envoltas em longas vestes negras, as mulheres transportavam à cabeça cestos de plástico com frutos e legumes. Hélène sentia-se feliz. Aos trinta e dois anos, conhecia finalmente a felicidade, uma felicidade louca como um primeiro amor, uma felicidade que iria viver nesta terra solar e misteriosa; queria guardar na memória todos os segundos daquela viagem para os oferecer ao homem que a esperava em Assuão. O carro passou ao lado de um campo de cana-de-açúcar que as autoridades tinham mandado cortar; os "terroristas", como lhes chamava a imprensa, escondiam-se lá depois de terem disparado contra os turistas. Na véspera, depois da demissão do ministro do Interior, considerado demasiado conciliador com os muçulmanos fanáticos, tinha sido organizada no Cairo uma vasta operação anti-integrista no bairro popular de Imbaba, em rebelião aberta contra o poder há já vários meses. Este recusava qualquer diálogo com os criminosos que matavam inocentes e tentavam destruir a nação. Mais de doze mil soldados, apoiados por uma centena de carros blindados, prendera os dirigentes, todos com menos de trinta anos, e dinamitara-lhes as casas. Enquanto as velhas masmorras de Nasser se enchiam com integristas brandindo o Corão como arma suprema, o presidente prometia melhorar as condições de habitação, diminuir o desemprego e suprimir a corrupção. Mas os jovens licenciados da célebre Universidade corânica de al-Azhar, no coração do Cairo, não lhe davam ouvidos. Transformados em pregadores, quinze mil tinham-se espalhado pelo país para levar uma palavra de ordem a cada mesquita: fazer do Egipto uma "república islâmica", à imagem do Irão ou do Sudão, e aplicar a charia, a lei muçulmana. O motorista olhou Hélène pelo retrovisor; a beleza da jovem fascinava-o. Admirar as europeias era um dos privilégios da sua profissão, que o irmão e o primo, Irmãos Muçulmanos, o aconselhavam a abandonar. Como o Corão proibia a representação da divindade e a representação dos ídolos, transportar os turistas aos locais arqueológicos povoados de demónios pagãos adquiria o peso de um pecado. Mas o motorista, o único membro da família a trabalhar naquele Verão em que os estrangeiros rareavam, recebia um bom ordenado e alimentava uma dezena de pessoas, entre as quais o irmão e o primo. Portanto, os 13 dois fecharam os olhos durante mais algum tempo, até chegar o reinado dos fiéis de Alá. A maior parte dos viajantes tinha adormecido; apenas Hélène mantinha os olhos bem abertos, fixos nos campos de um verde deslumbrante. O motorista tinha abrandado para melhor apreciar o espectáculo: um rosto redondo, quase infantil, cabelos semilongos de um castanho arruivado, olhos negros cintilantes, um nariz delicado, lábios finos pintados de vermelho. Obrigar as mulheres a andar veladas, mesmo se a tradição o exigia, era coisa que não lhe agradava. Ao sair de uma curva inclinada, causadora de muitos despistes, meteu o pedal a fundo. O veículo da Misr Travei, a companhia nacional de transportes, estacou de
  • 3. chofre. Hélène foi projectada para a frente, um homem de cerca de cinquenta anos caiu no corredor central e a cabeça de outro viajante chocou com um vidro. Rebentaram os protestos. Lamento desculpou-se o motorista, voltando-se para trás. Uma barragem do exército. O carro tinha-se imobilizado a menos de cinco metros de uma barreira de arame farpado colocada a atravessar a estrada. Uma dezena de militares, com a arma encostada à anca, saíram do seu torpor. Um oficial e dois soldados, equipados com pistolas-metralhadoras, dirigiram-se para o carro. Os uniformes castanhos eram novos e limpos; não se pareciam com os homens das tropas miseráveis que se amontoavam nas casernas sobreaquecidas e insalubres e que tinham de contentar-se com um magro soldo, roupas esfarrapadas e botas rotas. Entre eles havia muitos integristas prontos para apoiarem uma revolução; por isso o poder desconfiava dessas tropas. Depois do assassinato de Sadat por fanáticos, o estado de sítio continuava em vigor. O oficial interrogou o motorista quanto ao destino e pediu a lista dos passageiros. Como os atentados tinham feito diminuir de forma dramática o número de turistas e deixado no desemprego vários milhões de egípcios, o governo velava pela segurança dos estrangeiros. Exército e polícia multiplicavam os controlos; barcos de cruzeiro e carros gozavam de uma protecção mais ou menos apertada. O oficial dobrou a lista em quatro e meteu o papel no bolso. Mas... eu preciso disso! protestou o motorista. 14 O primeiro soldado ergueu o cano da pistola-metralhadora, carregou no gatilho e abateu o compatriota. O segundo, com vagar, avançou pelo corredor central disparando uma rajada sobre cada passageiro. Quando os seus olhos se cruzaram com os de Hélène, ela suplicou-lhe que a poupasse. 2. Mark Walker não queria acreditar nos seus olhos. Os baixos relevos do pequeno túmulo que acabava de escavar, não longe da primeira catarata do Nilo, estavam num estado deplorável. No entanto, tendo em conta o clima do Alto Egipto, deveriam ter-se conservado durante vários milénios... Mas a grande barragem de Assuão continuava a sua obra destruidora. O americano sentia vontade de chorar. Mark Walker, trinta e nove anos, um corpo de atleta modelado pelas competições de meio-fundo, um rosto alongado com rugas cheias de encanto e iluminado por dois olhos de um verde sombrio, testa alta e voz grave, nascera no Cairo, filho de um industrial texano doido por caça e de uma milionária de Nova Iorque apaixonada por
  • 4. egiptologia. Filho único, recusara deixar o Egipto pelo qual se apaixonara; aluno brilhante, aprendera a decifrar os hieróglifos e pertencera, desde a adolescência, a equipas de pesquisadores. Quando se preparava para festejar os dezassete anos, a infelicidade batera-lhe à porta. O jacto privado dos pais, que tinham ido caçar ao Canadá, despenhara-se numa floresta coberta de neve. Na posse de uma imensa fortuna cuja gestão entregara a especialistas, Mark Walker aturdira-se com o trabalho, criando a sua própria fundação arqueológica cuja finalidade era a salvaguarda dos monumentos faraónicos, ameaçados por temíveis agressores. Mas sem a amizade do 16 seu amigo Naguib Ghali, que se formara em Medicina, teria mergulhado na depressão. O instinto de luta, alimentado por um sentimento de indignação, vencera o desgosto; Mark não tinha o direito de deixar morrer templos, túmulos, pinturas e baixos relevos. Tinha que vencer "o alto dique" de Assuão, essa monstruosa barragem que condenava a mãe das civilizações ao desaparecimento. Reparou num pequeno cofre em madeira de ébano enterrado na areia, ajoelhou-se e desenterrou-o lentamente. Ergueu a tampa com o indicador. No interior, uma folha de papiro enrolada; as linhas de hieróglifos tinham sido desenhadas por uma mão muito firme. O conteúdo do texto perturbou-o. Assim fala o profeta Ipou-Our. O crime estará por todo o lado, A violência invadirá o país, O Nilo será de sangue, A fome impedirá a fraternidade, As leis serão espezinhadas, Muitos mortos serão enterrados no rio, As águas serão o seu sepulcro, Pois haverá um fogo maldito no coração dos homens. De repente, o túmulo rangeu e o tecto baixo começou a rachar. Saia depressa! gritou um dos trabalhadores. O americano apertou o cofre de ébano de encontro ao peito e saiu do túmulo no preciso momento em que os blocos se desmoronaram uns sobre os outros, minados pelas águas de infiltração. É demais! rugiu Mark Walker. Desta vez vai ter de me ouvir!
  • 5. Mark bateu à porta do gabinete de Gamai Shafir, o supervisor da Nota: Texto autêntico, escrito por um profeta do antigo Egipto, Ipou-Our, para anunciar as desgraças que se abateriam sobre o seu país. 17 grande barragem de Assuão, um personagem corpulento, barrigudo, com cerca de sessenta anos, envergando uma camisa branca de mangas curtas e calças cinzentas de excelente corte. Isto não pode continuar, Gamai! Você é engenheiro e sabe, tão bem como eu, que esse raio dessa barragem é pior do que a peste! O funcionário suspirou, olhando benevolente o interlocutor, embora este fosse o mais acérrimo adversário da gigantesca barragem que aniquilava para sempre as cheias do Nilo. Não se enerve recomendou Gamai Shafir, bonacheirão Graças à barragem, não aumentámos a superfície das terras cultiváveis e permitimos à população viver melhor? Falso! Onde está o novo milhão de hectares anunciado pelos "cientistas"? A superfície útil estagnou e receio mesmo que venha a diminuir. Não exagere. Ah, eu exagero? Devido à irrigação constante e a uma má utilização dos adubos e pesticidas, de cuja nocividade a Europa começa a tomar consciência, os fellahs empobrecem as culturas e não compreendem porque secam os campos. Desde a construção da grande barragem, algumas províncias, como al-Fayum, perderam quinze por cento das terras cultiváveis, a toalha freática sobe, a salinização esteriliza os solos que as inundações deixaram de lavar... E ainda diz que eu exagero! Gamai Shafir limpou a testa com o lenço de algodão e aumentou a velocidade da ventoinha que agitava o ar quente no seu gabinete dominado pelo retrato do presidente. Lá fora estavam quarenta e cinco graus à sombra. Sente-se, senhor Walker. A cólera não leva a lado nenhum. Entreguei um relatório pormenorizado na sede da Organização Mundial de Saúde; demonstra que, desde o desaparecimento das cheias, as doenças parasitárias se têm desenvolvido de maneira fulminante. Antigamente, a grande cheia afogava ratos, escorpiões e serpentes; agora, estão em aumento constante. Além disso, vermes e parasitas proliferam nos canais de irrigação que o sol purificava durante a época seca, indispensável ao equilíbrio natural. O supervisor ergueu as mãos em sinal de impotência. 18 Aqui tem outro relatório para si, continuou Mark, poisando um volumoso dossier sobre a secretária do funcionário. A ausência da cheia priva o vale do Nilo e o Delta de cento e dez milhões de metros cúbicos de aluviões; o leito do rio escava-se pelo menos dois centímetros por ano e as margens alargam-se. A erosão lateral faz perder terras cultiváveis e ameaça as pontes.
  • 6. A cheia era irregular; nos anos maus, condenava-nos à fome. São a superpopulação e a demografia galopante que provocam a miséria, não a cheia! Teria bastado, como fizeram os antigos, construir várias pequenas barragens ao longo do Nilo, e não oferecer o país como pastagem a um monstro. O meu relatório demonstra igualmente que o Delta se está a afundar no Mediterrâneo; por volta de 2030, de acordo com os cálculos dos menos pessimistas, estará parcialmente submerso. Consegue imaginar a dimensão do desastre? Estamos conscientes do perigo e não ignoramos os seus avisos; pode ter a certeza que tomaremos as medidas necessárias. Juntei ao meu dossier as queixas dos pescadores do Delta, que em breve ficarão reduzidos à inactividade e irão aumentar as fileiras dos desempregados. Por causa da barragem, o Nilo apenas transporta uma água pobre em substâncias nutritivas e o peixe desaparece. Mas pulula no lago Nasser! protestou Gamai Shafir. Muito bem, falemos do lago! Deviam florescer aí centros turísticos e de pesca, mas não passa de um deserto aquático cuja evaporação atinge dez milhões de metros cúbicos por ano em vez dos seis previstos pelos especialistas. Um quinto do débito do Nilo desaparece, as águas do lago infiltram-se pelo fundo e formam uma toalha subterrânea de água que sobe a toda a velocidade; já não se encontra a mais de dois metros por baixo de Karnak e a quatro metros por baixo da esfinge. Irritado, o supervisor tocou uma campainha. Apareceu um colosso núbio de rara nobreza, envergando uma galabieh azul. Poisou um olhar glacial no funcionário. Traz-nos chá, Soleb. Aqui está. Nota: Galabieh Fato tradicional dos homens, constituído por uma longa túnica de algodão, sem gola nem cinto, de mangas compridas, que desce até aos tornozelos. As cores mais utilizadas são o azul, o cinzento, o castanho e o branco-sujo. (N. da T.) 19 Aposto que está morno! Bem sabes que só gosto de chá a ferver. Gamai Shafir provou o líquido. Não está suficientemente quente! Desaparece, Soleb. Vou-te despedir. Já te preveni mais de dez vezes. O núbio eclipsou-se sem uma palavra. Que preguiçosos... Já não há quem sirva em condições resmungou o egípcio. Mark recomeçou. Financio um programa da UNESCO para a salvaguarda dos monumentos egípcios em perigo; a salinização e o salitre corroem o grés dos templos. Se não agirem rapidamente, Karnak vai desmoronar-se. Quanto aos túmulos do Vale dos Reis, perderão as suas cores. Preciso do seu apoio.
  • 7. É muito difícil... A minha posição impede-me de criticar a barragem. Quanto à sua, meu caro amigo, poderia tornar-se delicada; a sua autoridade, o peso das suas declarações, as suas intervenções nos media internacionais começam a ferir certas susceptibilidades. E a profecia? Que profecia? A que acabo de descobrir num túmulo perto daqui. Aí tem a minha tradução, leia. Gamai Shafir analisou o documento com atenção; o americano passava por ser um egiptólogo competente. O alto funcionário disfarçou a sua perturbação. Isto não é importante... Um velho texto sem interesse. Tem a certeza? No Egipto não é costume considerar levianamente as palavras dos antigos. Os faraós estão mortos e bem mortos. A grande barragem é a mais terrível das ameaças que pesa sobre este país. Torna- se necessário encontrar soluções. Não há pressa. E o lodo? insistiu Mark. Os peritos consideravam que o lago Nasser só ficaria cheio daqui a cinco séculos, mas o assoreamento começa já a ser uma ameaça! Isso não o alegra? Em vez de utilizarem o lodo, os fabricantes de tijolos vão buscar 20 a sua matéria-prima, às terras aráveis, tão preciosas. Por causa dessa maldita barragem, o Egipto fica cada vez mais pobre e a sua população sofre. E isso desespera-me. O supervisor abriu uma pasta que continha várias folhas com numerosas assinaturas. Tal como o senhor, receio um assoreamento muito mais rápido do que fora previsto. Com o acordo dos meus superiores, pus um projecto em estudo. Vamos lançar um apelo de propostas para que especialistas sondem o fundo do lago Nasser e nos proponham as técnicas de dragagem menos dispendiosas. Daqui até que isso fosse levado à prática passariam com certeza vários anos, mas era um primeiro passo. Pensam oferecer o lodo aos fabricantes de tijolos? É possível. E quando encaram a criação de um canal de derivação para restabelecer a cheia, pelo menos em parte? Não peça demais. Tornaremos a falar disto.
  • 8. O relógio de pêndulo marcava catorze horas. Chegava ao fim o dia de trabalho do funcionário. Mark levantou-se, pensando na sua noiva que chegaria a Assuão cerca das dezoito horas. A essa felicidade vinha juntar-se uma primeira vitória sobre a inércia da administração. O Verão anunciava-se radioso. 3. Mark penetrou na zona desértica que separava a nova barragem da antiga. A temperatura ao sol era de sessenta e seis graus. Blocos erodidos, por vezes em equilíbrio uns sobre os outros, uma areia ocre, postes eléctricos, arame farpado e bidões enferrujados formavam uma paisagem angustiante. Parou o Range Rover e desceu. O sol queimava. Mark contemplou o monstro uma vez mais. O seu olhar percorria a estrada que ia dar à grande barragem, ornada com um fontanário onde nunca corria água, e foi poisar sobre a horrorosa flor de lótus em betão que comemorava a cooperação egipto-soviética, decisiva para a construção do Sadd el-Aali, "o alto dique". Cerrou os punhos, controlando dificilmente a sua cólera ao pensar que o século xx, a sua política mercantil e o desejo de poder de Nasser e de Khrouchtchev, esse sinistro fantoche, tinham marcado o ponto de partida para a morte programada do Egipto. A 9 de Janeiro de 1960, Nasser tinha provocado a explosão da primeira carga de dinamite com vista à abertura do canal de derivação; a 14 de Maio de 1964, em companhia de Khrouchtchev, festejava o fim da primeira etapa dos trabalhos, fazendo saltar a última rocha que obstruía o canal onde o Nilo, desviado do seu curso, fora obrigado a penetrar. "Uma boa ideia, um bom exemplo e uma boa barragem", tinham usado como título alguns jornais, com os franceses à cabeça, recusando 22 qualquer crítica que, segundo eles, visava denegrir a maravilhosa tecnologia soviética e a soberba ascenção de um dirigente do Terceiro Mundo na cena internacional. A verdade é que o soviético estava pouco preocupado com o futuro do Egipto e Nasser apenas sonhava ultrapassar os construtores da grande pirâmide. O volume do seu dique, quarenta e dois milhões e setecentos mil metros cúbicos, não era dezassete vezes o do monumento de Quéops? "Nós, revolucionários afirmava Nasser faremos melhor do que os faraós." Que interessava a destruição da Núbia, o deslocamento de duzentas mil pessoas e as terríveis consequências ecológicas? O Egipto revolucionário tinha necessidade de armas, o império soviético exportava a sua doutrina e os seus engenheiros. Nasser, o inimigo figadal do comunismo, Nasser, que Khrouchtchev comparava a Hitler, tinha caído nos braços do soviético para obter "o meio concreto de se libertar do imperialismo: a grande barragem de Assuão". A cólera enrubesceu as faces de Mark. Como podia o mundo ter sido tão estúpido, os governos tão fracos, os intelectuais tão cegos para se prostrarem aos pés de Nasser e da sua monstruosa obra? Em 1961, o Nilo revoltara-se pela última vez. A maior cheia do século devastara os estaleiros das obras, deixando atrás de si lagos de lama e atrasando os
  • 9. trabalhos vários meses. O gigante vindo das profundezas da África entregava à humanidade a sua última mensagem: não impeçam o meu curso, não obstruam a artéria vital do Egipto, não façam secar uma fonte de milenar fecundidade. Mas os técnicos não prestavam ouvidos à voz do rio e os políticos ainda menos; a 15 de Janeiro de 1971, quando Nasser e Khrouchtchev já não existiam, Sadate, o egípcio, e Podgorny, o soviético, inauguravam a enorme barragem de Assuão, "em nome do futuro". De longe, o dragão parecia adormecido. Uma simples montanha artificial formada por granito, areia, cascalho, lodo e lama, comprimidos e amontoados. No meio do amontoado de pedras, uma placa estanque mergulhava no leito do rio atravessando duzentos metros de depósitos de aluvião. Com uma altura de cento e onze metros, uma largura de novecentos e oitenta metros na base e quarenta no topo e um comprimento de três mil e seiscentos metros, a barragem resistia com o seu próprio peso à força de cento e cinquenta e sete mil milhões de metros 23 cúbicos do lago Nasser, quando este atingia o seu ponto de enchimento máximo. A besta deitada, cinzenta, segura da sua força, repousava sobre uma base cristalizada; por cima, a plataforma de areia cimentada e o amontoado de blocos de granito formavam um conjunto indestrutível. A morte adquiria por vezes estranhas aparências. Para sul, o lago Nasser, com um comprimento de quinhentos quilómetros, dos quais cento e cinquenta no Sudão, uma largura de dez a trinta quilómetros e uma profundidade de noventa metros em certos pontos, surgia como uma inquietante massa de água, devoradora de paisagens, capaz de modificar o clima. Havia cada vez mais nuvens nos céus de Assuão e Luxor, cujo eterno azul deslumbrara tantos viajantes; às vezes mesmo, aguaceiros tropicais. O calor seco tornava-se húmido e cada vez menos suportável. As chuvas iriam arruinar os antigos templos, já atacados pela subida da toalha freática. As obras-primas dos faraós desapareceriam por cima e por baixo. Para dessalinizar as terras seria preciso inundá-las de novo e fornecer-lhes o lodo fertilizador; por isso Mark se batia pela abertura de canais de derivação que contornariam a grande barragem e reduziriam os seus efeitos nefastos. Embora as autoridades fizessem orelhas moucas, continuava a organizar dossiers, a fornecer provas e a alertar a opinião internacional. "Utópico", diziam uns; "perigoso agitador", afirmavam outros; "profeta", declarava um pequeno grupo de cientistas cujo peso político equivalia a uma pena. Mark olhava muitas vezes velhas fotos onde se via a cheia cobrindo o vale do Nilo. Apenas emergiam as aldeias, empoleiradas sobre colinas; os camponeses deslocavam-se de umas para as outras de barco. Era a estação das visitas; enquanto a terra celebrava os seus esponsais com o precioso lodo, os humanos tinham tempo para conversar, o corpo do fellah descansava. Como um mar calmo, a região reflectia o céu. Quando a água se retirava, os camponeses semeavam, confiantes na riqueza da terra escura
  • 10. que os alimentava há milhares de anos. Era preciso ser um louco demoníaco para quebrar essa harmonia, sufocar para sempre a corrente e aniquilar um fenómeno de fertilização único no mundo! A vida de Mark seria curta demais para triunfar sobre a barragem, mas lançara um movimento de ideias que nada iria interromper. Até 24 mesmo no Egipto já se erguiam algumas vozes contra o alto dique, denunciando os seus nefastos efeitos. Seis túneis principais, vinte e quatro túneis secundários, doze turbinas gigantes, uma massa inamovível, o monstro tinha as armas necessárias para desafiar os seus detractores. Face a ele, não havia qualquer hipótese de sucesso. Mas não tinha Mark sobrevivido a um cataclismo aquando da morte dos pais? A provação e o tempo tinham-no endurecido como um granito. Não se desgastaria no combate e a sua estratégia acabaria por diminuir as forças da barragem. A mordedura do sol arrancou-o à sua meditação; olhou o relógio. Hélène chegaria em breve e, a seguir, casamento. Sorriu: ele, casado! Ele, cuja paixão pelo Egipto era tão avassaladora que apenas deixava para as mulheres um lugar muito reduzido. Apenas uma amante o marcara: Safinaz, uma egípcia deslumbrante, cuja fogosidade não conseguia esquecer. Porque ceder então às exigências de uma linda francesa, especialista em meio ambiente? O amor louco apanhara-o de surpresa; Hélène queria viver no Egipto e partilhar a luta do seu futuro marido. Tendo em consideração as suas competências técnicas, seria para ele uma auxiliar preciosa. Tantos anos depois da morte dos pais, Mark recomeçava a acreditar na felicidade. Com o espírito perturbado pela estranha profecia cujas palavras se lhe tinham gravado na mente, agarrou no volante e seguiu na direcção da cidade. 4. Mark adorava Assuão, cujo encanto resistia mal à barragem, à industrialização e às construções modernas decalcadas dos modelos ocidentais. A porta do Grande Sul mantinha no entanto um certo carácter selvagem, recordação dos exploradores que partiam pelas pistas da Núbia em busca do ouro destinado a embelezar os templos. Neste ponto, o Nilo e o deserto casavam-se sob o azul de um céu outrora muito puro e agora cada vez com mais frequência desfigurado por tempestades. A catarata, que tanto assustara os viajantes, não passava já de um caos de rochas entaladas entre a antiga e a nova barragem. Contentando-se com alguns passeios na ilha Elefantina, ornada com as ruínas do templo do deus carneiro Khnoum, com deambulações pelos jardins da ilha das Flores ou com meditação próximo dos túmulos da margem ocidental, de onde os antigos senhores contemplavam a sua cidade, podia manter-se a ilusão de um Egipto intemporal e luminoso, dedicado à doçura de viver. Mas em vinte anos, a serena cidade de Assuão, tendo passado de cinquenta mil a cem mil habitantes, transformara-se num centro industrial submetido à tirania da barragem. Como por toda a parte no Egipto, a explosão demográfica destruía qualquer
  • 11. esperança de uma existência melhor. A central hidroeléctrica da grande barragem, a fábrica de produtos químicos e o horroroso edifício de betão para turistas denominado "New Cataract" impunham-se com sobranceria, desfigurando uma paisagem outrora fascinante de que o Nilo, as falésias ocre e as ilhas tinham sido os únicos amos. 26 Muitas vezes, ao fim do dia, Mark metia-se numa falua e, do meio do rio, ia admirar o pôr do sol. Com um brusco golpe de volante, evitou um garoto; perseguido por uma multidão de futebolistas em miniatura, o endiabrado corria atrás de uma bola que acabara de atirar do outro lado da rua. É melhor não sonhar quando se conduz no Egipto. Mais lentamente, o americano penetrou no bairro comercial; ali, o principal perigo vinha dos jovens motociclistas cujas acrobacias terminavam muitas vezes no hospital. Mark tinha duas surpresas para a noiva: a primeira, um enxoval oriental composto por uma vintena de galabiehs de algodão com cores variadas, bastante agradáveis de usar; a segunda, uma cerimónia muito privada numa igreja copta, apenas com a presença do padre e dos seus assistentes. Nem Hélène nem ele eram cristãos, mas descobrira num antiquário um velho ritual de ressonâncias mágicas. O padre Boutros, um amigo de longa data, aceitara celebrá-lo, desesperando de converter um pagão empedernido mas tão apaixonado pelo Egipto que Deus certamente lhe concederia o seu perdão. Apesar das tensões cada vez mais fortes, as comunidades muçulmanas e coptas, os cristãos do Egipto, continuavam a coabitar como faziam há séculos; a imprensa ocidental ampliara muito incidentes sem importância. Mark seguiu quase a passo pela Rua Sharq el-Bandar, onde turistas japoneses compravam especiarias e falsas patas de crocodilo. Correndo ao lado do carro, um garoto ofereceu-lhe um copo de chá que o condutor trocou por uma libra egípcia tão principesca retribuição provocou a hilariedade do vendedor. Mark parou em frente de um estabelecimento cuja porta de ferro enferrujado estava descida, saiu do carro e bateu três pancadas ao de leve, com receio de provocar a derrocada da loja. Rangendo, a porta foi levantada cerca de cinquenta centímetros. Duas mãos estenderam um pesado pacote, em troca do qual Mark entregou um envelope. As galabiehs estavam bem pagas. Uma vez trocados os cumprimentos da praxe, a loja fechou novamente; só Mark podia perturbar assim a longa sesta necessária à boa prática da profissão Não restava ao futuro noivo mais do que dirigir-se para a beira do Nota Libra egípcia Um pouco menos de trezentos escudos (N da T) 27 paredão, onde esperaria o carro da Misr Travei. Ele, casado! Ia-se habituando a essa ideia, perguntando a si mesmo como conseguiria Hélène modificar os seus hábitos de celibatário. Sem ser maníaco, gostava do silêncio da madrugada, a ver o nascer do sol; das discussões no café com as pessoas simples de Assuão, de Luxor ou do Cairo, três cidades onde tinha casa; dos seus intermináveis passeios pelo deserto. Sabia que Hélène lutaria contra a barragem com inteligência e lucidez. Formar um verdadeiro casal vivendo o mesmo ideal, não era o cúmulo da felicidade?
  • 12. Detectou-os a uma centena de metros da mesquita al-Rahma. Os homens das brigadas especiais de segurança, fardados de negro, com capacete de viseira, armados de kalachnikov e de escudos de plástico. Era impossível recuar; em poucos minutos, os polícias de elite tinham cercado o bairro. Mark viu cinco jovens, vestidos à maneira ocidental, surgir por trás de um polícia e partir-lhe a nuca com golpes de corrente de bicicleta. A resposta foi imediata: dois dos agressores caíram no chão com a cabeça em sangue. Uma bala perdida atravessou o pára-brisas do Range Rover e roçou a face direita de Mark; disparando curtas rajadas para a direita e para a esquerda, avançaram para ele vários polícias. Protestar a sua inocência teria sido um acto de suicídio: as forças da ordem consideravam-no um terrorista. Do lado da mesquita ouviam-se gritos e tiroteio. Mark abandonou o veículo e correu a direito na direcção de uma ruela deserta; sentia os ouvidos a zumbir. Um adolescente brandiu o Corão e tentou barrar-lhe a passagem; investindo como um touro, afastou-o e meteu-se por uma travessa escura. Estendidos entre os telhados, panos de algodão poeirentos impediam a luz de chegar às casas de dois andares. Um polícia teimoso perseguia-o, disparando às cegas. Ao fundo da viela erguia-se uma parede de lama seca. Um beco sem saída. Mark não tinha qualquer hipótese de acalmar o homem de preto; ia morrer estupidamente, num canto sórdido de Assuão, vítima de um excesso de zelo policial. Voltou-se para enfrentar a morte. Botas martelavam o solo. Uma mão forte agarrou-o pela cintura e puxou-o para o interior de 28 uma casa cuja porta se fechou. Lá fora, uma rajada perdeu-se na parede de terra batida. A mão largou Mark. Soleb! Mas como... O núbio falou com voz calma. Temos de nos despachar; pelos corredores interiores e pelos telhados sairemos do bairro. Levo-o para minha casa. O antigo criado do supervisor da alta barragem vivia num bloco de betão na saída sul da cidade. Ele e Mark tinham fugido na sua moto, cujo motor ameaçava entregar a alma ao criador em cada aceleração. Com majestade, Soleb deitou o chá na chávena do seu hóspede. Nunca mais o perdi de vista desde que saiu do gabinete de Gamal Shafir. Porquê?
  • 13. Porque o seu principal inimigo é a barragem e também é o meu. Os minúsculos dois compartimentos de paredes nuas estavam cheios de recordações da sua terra, de uma Núbia desaparecida sob as águas; tapetes coloridos, jóias de prata, vasos de terracota, ferraduras, mãos protectoras de marfim enfeitadas com pérolas azuis. Leia, ordenou Soleb, entregando a Mark um artigo de jornal amarelecido, quase a desfazer-se. Um empreendimento como a construção da grande barragem apresenta vantagens e inconvenientes. Por exemplo, a formação do lago Nasser provocou o deslocamento da população núbia, o que é sempre doloroso. No entanto, as pessoas deslocadas foram instaladas em modernos aglomerados populacionais, mais confortáveis do que as aldeias tradicionais onde viviam. São estas as mentiras que os ocidentais espalharam, enquanto os núbios são amontoados em casas mortas. A electricidade, os campos desportivos, o hospital, o reservatório da água, as ruas que se cruzam estupidamente em ângulo recto... Nós não queríamos esse falso progresso. Nós sabíamos alimentar-nos, cuidar de nós, educar os nossos filhos com os nossos métodos; vivíamos numa terra antiga que amávamos 29 e que nos amava. Os meus pais morreram de desgosto antes de serem expulsos da sua aldeia; eu, escolhi ficar aqui, à porta da Núbia, para poder contemplar todos os dias a minha terra desaparecida. Alojaram-me então nesta prisão e tornaram-me escravo de um funcionário preguiçoso, inchado com o seu poder. Nunca mais tornarei a ver a fachada da minha casa, ornada com desenhos de flores e aves; nunca mais voltarei à minha terra. Salvou-me a vida, Soleb. Porque luta contra a barragem e está em perigo. Senti que ele o ameaçava e decidi protegê-lo. Ainda perturbado, Mark olhou o relógio. O que aconteceu na cidade? Tenho que ir receber a minha noiva. Esta manhã, dois islamistas mataram o padre Boutros na sua igreja. A reacção da polícia foi brutal: assaltou a mesquita al-Rahma onde se reuniam os integristas. Quando estes tentaram resistir, as forças da ordem dispararam ao acaso. Mortos? Cerca de cinquenta, e muitos feridos. Pode levar-ma de volta a Assuão? Se a minha moto estiver de acordo... Mas antes, prometa-me destruir a barragem. É impossível. Mas juro-lhe lutar até ao meu último alento para reduzir os seus efeitos. A minha noiva auxiliar-me-á. A resposta pareceu satisfazer o núbio. A moto acedeu a pegar. 5.
  • 14. As forças da ordem abandonavam o bairro comercial; em redor da mesquita integrista, um cordão de polícia impedia o acesso. Um cortejo de ambulâncias com sirenes estridentes terminava a evacuação dos mortos e feridos. O Range Rover estava intacto; numerosos habitantes do bairro conheciam bem o carro de Mark e não passaria pela cabeça de nenhum roubá-lo. Ao arrancar, pensou no padre Boutros; como era possível ser-se suficientemente cobarde para abater um velho inofensivo, que passara a sua vida a tratar dos pobres? O padre fazia questão de celebrar um ritual caído no esquecimento; Mark já não poderia oferecer esse presente a Hélène. Na avenida do paredão tudo parecia calmo; Soleb seguia-o a boa distância. Aqui e além, havia grupos de pessoas; comentava-se o massacre. O sol do fim da tarde tornou-se suave; ergueu-se o vento do Norte, trazendo um pouco de fresco. Assuão saía pouco a pouco do seu torpor, como acontecia todos os dias àquela hora. As sirenes das ambulâncias tinham-se calado. Um incidente desta gravidade ensanguentava pela primeira vez a cidade do Sul; consciente do poderio crescente do fanatismo muçulmano, Mark confiava na tolerância natural dos egípcios para evitar uma guerra religiosa entre islamistas e cristãos e impedir o acesso ao poder dos loucos de Alá. Mas a epidemia alastrava e a violenta reacção da polícia 32 podia vir a provocar outras violências. Aborrecido, apressou o passo; estava já com um quarto de hora de atraso. Às dezoito e vinte, chegou ao local onde o carro da Misr Travei devia deixar os passageiros. Ninguém, a não ser um empregado da companhia sentado na beira do passeio. O carro vindo de Luxor? Ah, senhor Walker! Está atrasado. Muito? Bem vê, com estes problemas todos... Não há nada de concreto? Se o motorista tiver tido uma avaria, telefona. A menos que o telefone não esteja também avariado. Maalech, "c'estcomme ca". Não lhe resta senão esperar. Mark comprou duas Coca-Colas a um vendedor ambulante e ofereceu uma ao empregado da Misr Travei. Soleb tinha desaparecido; devia observar sem ser visto. Em matéria de magia, os núbios passavam por ser mestres desde a Antiguidade; até os especialistas dos faraós os receavam. Talvez Mark tivesse encontrado mesmo um feiticeiro. Na sua guerra contra a barragem, não deixaria de ser um auxiliar precioso.
  • 15. Passou uma hora. Mark sugeriu ao empregado que se fosse informar à sede. Ele afastou-se em passo lento. Regressou passados uns vinte minutos com um ar embaraçado. Parece que houve um acidente. Grave? Não, um problema mecânico. Farão a reparação ainda esta tarde? Não sei mais nada. Mark dirigiu-se aos escritórios da Misr Travei, cujo responsável estava ausente. Os empregados aconselharam-no a dirigir-se ao comissariado central. A polícia, que controlava os deslocamentos dos veículos de turismo, teria provavelmente outras informações. A sede da polícia de Assuão encontrava-se em efervescência; estavam a ser interrogados jovens suspeitos de integrismo. Mark foi muito mal recebido por um oficial da brigada especial. Levantando a voz, exigiu explicações sobre o acidente de que parecia ter sido vítima o carro 33 Luxor-Assuão. O interlocutor pediu-lhe que esperasse num pequeno gabinete com a tinta verde toda estalada. Uma mesa cambada, duas cadeiras de madeira do tempo da ocupação inglesa e um armário metálico constituíam um mobiliário sinistro. Caíra a noite quando um fulaninho nervoso entrou no gabinete com um dossier na mão. O que deseja, senhor Walker? Ter notícias concretas do carro Luxor-Assuão. Por que razão? Porque a minha noiva vem lá. O homem sentou-se, poisou o dossier sobre a mesa e começou a brincar com um clips. Sou o comissário encarregado desse caso. Como se chama a sua noiva? Hélène Doltin. Porque falou em "caso"? Bem... Na sequência de um lamentável acidente, o carro foi atrasado. Visto que se ocupa do "caso", diga-me quando chegarão os passageiros a Assuão. O comissário atirou o clips torcido para o chão e começou a martirizar outro. Há complicações. Que complicações? Para ser franco consigo, não se trata de um acidente vulgar. Explique-se.
  • 16. O carro foi atacado por terroristas. Mark engoliu em seco. Há... vítimas? Esses islamistas são fanáticos; não hesitam em disparar sobre pessoas inocentes e desarmadas. O motorista foi morto. E os passageiros? A emboscada foi bem preparada. Mark ergueu-se, com as pernas a tremer. A minha noiva... Acalme-se, as forças da ordem intervieram sem demora. Onde está ela? 34 Por exigências do inquérito, nós... Quero vê-la. Um pouco de paciência. Não me faça perder nem mais um segundo, comissário. Como queira. Bateu palmas e chamou um polícia uniformizado. Este homem vai conduzi-lo ao anexo do hospital; por causa dos incidentes desta tarde, as enfermarias estão a abarrotar. Chão manchado, paredes esboroadas, pintura esverdeada a cair, luz amortecida, odor acre, o anexo do hospital de Assuão dava vontade de fugir. Mark dirigiu-se a um médico barbudo que preenchia papeladas administrativas. Quero ver Hélène Doltin. Que doença? Está a brincar comigo? O médico ergueu a cabeça. Não admito que me falem nesse tom. Despache-se, doutor, ou eu não respondo por mim. A raiva que o médico viu no olhar de Mark incitou-o à conciliação. Abriu a gaveta central da secretária e tirou de lá uma lista. O indicador direito percorreu uma coluna de nomes. Hélène Doltin... Aqui está. Não tem visitas. Porquê? Está em observação. Aqui, nesta pocilga? Não lhe admito! Não tem o direito de a reter. Quero vê-la imediatamente.
  • 17. O médico fez estalar os dedos. Um enfermeiro, com a bata cheia de manchas acastanhadas, guiou Mark até um compartimento sobreaquecido com uma pequena janela com grades. Encostada à parede, uma cama com rodas sobre a qual tinha sido atirado um cobertor nojento. Onde está ela? Com uma mão indolente, o enfermeiro apontou a cama. Rígido, Mark aproximou-se e puxou lentamente o cobertor. 35 Hélène tinha o rosto e o peito ensanguentados; crivada de balas, estava quase irreconhecível. Da sua beleza e da sua juventude apenas restava um cadáver despedaçado. Mark gritou como se o coração lhe rebentasse. 6. No lugar do pequeno comissário nervoso estava instalada uma caricatura de sempre-em-pé oriental. O homem não devia pesar menos de cento e vinte quilos; tinha a barriga entalada de encontro ao rebordo da secretária, o triplo queixo suportava um rosto gordo de bochechas penduradas e os dedos grossos brincavam com um elástico. Logo que entrara pelo comissariado dentro, Mark fora ladeado por dois polícias e imediatamente conduzido ao gordo personagem. Que a paz seja consigo, bem como a misericórdia de Deus e as suas bênçãos, senhor Walker. Sou o substituto de Assuão, encarregado do caso do carro; um drama terrível, na verdade. Mas não é no Verão que os crimes aumentam sempre? Os insectos mutiplicam-se, os gabinetes administrativos estão sufocantes, os funcionários esperam novas nomeações... E estes islamistas tornam-nos a vida impossível! Já viu a grossura deste dossier? O substituto girou na cadeira, agarrou numa pasta empoleirada no topo do armário metálico e colocou-o em frente de Mark. São os processos dos delitos cometidos na região nos últimos quinze dias. Que miséria! Como havemos de combatê-los? Os nossos meios são demasiado limitados, mas actuamos de forma determinada, com a força da lei. A minha noiva morreu. Foi assassinada. O sempre-em-pé baixou os olhos. Uma tragédia... Não escapou nenhum passageiro às balas dos islamistas. 38 Esses homens são mais ferozes do que animais selvagens; hão-de ser presos, condenados e enforcados, pode ter a certeza. Mark sofria demais para chorar; cada partícula do seu corpo doía como se lhe tivessem batido durante horas. Identificou os assassinos?
  • 18. O inquérito avança. Posso garantir-lhe que o processo desse terrível drama está perfeitamente em ordem; eu próprio redigi os autos. Os gordos dedos amarrotaram com um certo prazer algumas folhas de papel de má qualidade. Onde aconteceu? Depois de atravessarem uma aldeiazinha, a meio caminho entre Luxor e Assuão. Testemunhas? Não. Nesse caso, como pode o inquérito avançar? A pergunta surpreendeu o substituto. Conte com a eficácia dos meus serviços. É imbatível na redacção de intermináveis relatórios que se acumulam sobre pilhas de outros relatórios, mas quem procura os culpados? A dor perturba-o, senhor Walker. Se um processo de assassínio deve comportar várias dezenas de páginas é para prestar homenagem a uma existência humana; a justiça testemunha-lhe assim o seu respeito. Por outras palavras, nunca identificará os assassinos de Hélène. Uma das forças dos terroristas não reside em serem impossíveis de capturar? Não me contentarei com essa resposta. Compreendo o seu desgosto, mas recomendo-lhe que se mantenha dentro do campo da legalidade e trave qualquer iniciativa que possa vir a cair sob a minha alçada. É uma pessoa muito activa, senhor Walker. Criticar a grande barragem com tanta fúria não será condenável? As autoridades acabarão por aborrecer-se com a sua atitude negativa. Pode dar-me as coisas da minha noiva? Infelizmente, é impossível. Se fossem casados... Quando o inquérito terminar, enviaremos todos os objectos pessoais para a família, 39 em França. No entanto, por compaixão, consinto numa coisa. A vítima tinha uns documentos apertados ao peito quando o terrorista a abateu. Reflexo estranho, não acha? A menos que os tenha considerado como um bem precioso. Os originais fazem parte das peças do dossier, mas supus que lhe interessariam fotocópias. O substituto estendeu três folhas a Mark. Desenhos abstractos, com curvas e linhas em todos os sentidos. Uma espécie de delírio geométrico. O que representa isto, na sua opinião? Não faço a mínima ideia. Espero que não me oculte nada; seria indesculpável. A sua noiva nunca evocara os seus talentos de desenhadora?
  • 19. Perante mim, não. Pense bem. Mark concentrou-se, mas o enigma permanecia total. Se se lembrar de alguma coisa, contacte-me; entretanto, deixe a polícia e a justiça actuarem. Acredite que o trabalho será bem feito. E aceite as minhas sinceras condolências. Mark dobrou as fotocópias, agarrando-se a esses pobres papéis, última recordação de Hélène. Ergueu-se, muito rígido, avançou para a porta do gabinete, abriu-a e voltou-se. Hei-de encontrar os assassinos da minha noiva, sejam eles quem forem, e matá- los-ei. A porta bateu com uma violência inaudita, fazendo estremecer o substituto. Com o dossier debaixo do braço, passou para o compartimento do lado onde um homem de uns cinquenta anos, muito elegante no seu fato azul de paletó, fumava um Dunhill mentolado enfiado numa boquilha de ouro. Ouviu bem? interrogou o substituto. Não perdi uma palavra dessa interessante conversa. Está satisfeito? Senhor substituto, pode ter a certeza da sua promoção. O Nilo morria por causa da grande barragem. Em breve não passaria de um imenso esgoto onde apodreceria a memória de séculos gloriosos 40 e de um passado destruído, no decurso do qual o homem soubera aliar-se com o deus-rio. Sentado na margem, Mark não saboreava a doçura de uma noite de Verão iluminada pela lua cheia. Os projectores iluminavam os túmulos da margem ocidental, envolvendo-os numa luz dourada. Suicidar-se afogando-se no Nilo não seria um belo fim para um adversário do alto dique? Os antigos pretendiam que os seres puros que morriam afogados no Nilo iam directamente para o Paraíso. Mark não tinha a ideia de ter espalhado o mal em seu redor; não seria o melhor caminho para ir juntar-se a Hélène, sem a qual a vida deixava de ter sentido? Uma mão poisou no seu ombro e impediu-o de se erguer. Nada de loucuras disse Soleb, sentando-se ao lado de Mark. Será loucura morrer quando se perdeu tudo? Eu também perdi tudo Mas nós os dois temos um combate a travar. Já não tenho forças. Porque ainda não sabe tudo sobre a morte da sua noiva. Intrigado, Mark voltou-se para o núbio.
  • 20. Que queres dizer? Com quem falou lá na Polícia? Com um comissário e com o substituto de Assuão. O que lhe disseram? Que fanáticos muçulmanos atacaram o carro e mataram os passageiros, sem esquecerem o motorista. Pretendem fazer um inquérito, mas não passará de um montão de papelada inútil. E se eles mentissem? Mark agarrou-se a uma rocha como se estivesse a perder o pé. Circula um rumor na cidade continuou Soleb. O atentado não teve testemunhas directas mas os aldeões viram os agressores partir para o Norte. Em geral, uma vez realizadas as suas façanhas, os terroristas escondem-se num campo de cana-de-açúcar ou dispersam-se nos arredores de uma cidade. Aqueles, subiram para um camião novinho em folha e fizeram-se à estrada sem serem incomodados. Não eram fanáticos, mas sim militares pertencentes a um corpo de elite estacionado no Cairo. 41 Mark julgou que o núbio delirava. Obrigou-o a repetir a sua versão dos factos, encaixando cada palavra como um soco. Isso é insensato, Soleb, completamente insensato! Eu tenho a certeza de que lhe mentiram. Com a cabeça em fogo, Mark permaneceu em silêncio durante longos minutos; o núbio respeitou a sua meditação. Vou ao Cairo. Se esse rumor tiver algum fundamento, só lá o conseguirei saber. Quer tenham sido integristas, imãs, soldados ou generais que assassinaram Hélène, hei-de dar cabo deles. Juro-o ao Nilo. A barragem e eu esperaremos por si. 7. Chovia em Aix-la-Chapelle. Enregelados, os turistas refugiavam-se nos cafés da velha cidade para beber café e cerveja; a Primavera fora uma desgraça, o Verão começava mal, mas a Alemanha, apesar da crise económica, preparava-se para ser a dona da Europa. O futuro Santo Império romano-germânico retomava forma, embora um banqueiro substituísse o imperador. Mohamed Bokar gostava dos banqueiros alemães. A maioria dos financeiros estava persuadida de que a maior parte dos países árabes se tornariam, mais cedo ou mais tarde, repúblicas islamistas e que era necessário encorajar os dirigentes da sua laia a derrubar os regimes corruptos. Cognominado "o emir afegão", Mohamed Bokar era o chefe oculto dos islamistas egípcios. Com cinquenta e cinco anos, alto, um pouco curvado, nariz proeminente, testa
  • 21. baixa, lábios finos, mãos esguias, voz rouca, fizera estudos de Sociologia em Londres, Paris e Nova Iorque. Marxista convicto, lutara no Afeganistão contra os russos; fora lá que descobrira as virtudes do fundamentalismo muçulmano e aprendera o manejo de explosivos. A cave da mesquita Bilal abrigava um centro de estudos islâmicos que as autoridades alemãs toleravam; Mohamed Bokar preparava-se para viver ali a sua hora de glória. Finalmente, depois de tantos anos de luta, ia dispor de meios de acção que sempre lhe tinham faltado. Ainda era preciso, no entanto, ultrapassar um delicado obstáculo: uma 44 reunião secreta com os seus irmãos, no decurso da qual tinha de impor o seu ponto de vista de forma definitiva. Nervoso, passeava de um lado para outro na sala climatizada cujos únicos ornamentos eram os versículos do Corão apelando à guerra santa e um retrato do ayatollah Khomeyni. Perto da porta encontrava-se Kaboul, também ele um "afegão", o fiel companheiro de Mohamed Bokar. Baixo, gordo, barbudo, com cabeça em forma de ovo, nascido num bairro miserável do Cairo, ao mínimo sinal obedecia às ordens do seu senhor, que considerava um grande imã, um verdadeiro chefe espiritual de quem nenhuma ordem devia ser discutida. Por muito inculto que fosse, não faltavam a Kaboul dons para as finanças; encarregava-se portanto das contas da célula revolucionária dirigida por Bokar. Além disso, Kaboul gostava de matar; o desencadear da violência exercia sobre ele uma fascinação de que nunca se saciava. Bokar não tinha tido qualquer dificuldade em convencê-lo de que a felicidade do povo passava pela eliminação física dos seus adversários. Bokar e Kaboul tinham estado na origem da maior parte dos atentados cometidos no Egipto contra o exército, a polícia, os coplas e os turistas, quer participando neles de forma directa, quer mandando-os levar a cabo. Bokar mantinha-se na sombra, Kaboul atacava. O primeiro era tão frio e distante quanto o segundo apaixonado e barulhento; formavam um duo perfeito, protegendo-se um ao outro. Mohamed Bokar olhou o relógio; os Irmãos estavam atrasados. Viriam ou anulariam o encontro no último momento, devido a ordens recebidas de Damasco ou de Teerão? Bokar sentiu-se mais sossegado quando o representante dos Gamaat Islamiyya, as "associações islâmicas" do Egipto, franqueou a porta. Os dois homens abraçaram- se longamente. Os Gamaat, reunindo um grande número de estudantes, tinham nascido por volta dos anos 70 para lutar contra o marxismo e os nasserianos; mas a paz estabelecida em 1978 com Israel modificara a orientação do movimento, agora embrenhado no caminho da islamização radical da sociedade egípcia. A seguir ao representante dos Gamaat, chegou o de El Djihad, "a guerra santa", amigo e confidente do célebre cheique cego Ornar Abder Rahman, exilado em Nova Iorque desde 1990; o santo homem tinha ordenado 45 o assassínio de Sadate e era considerado por alguns investigadores americanos como o "cérebro" do mortífero atentado contra o World Trade Center. Adversário convicto do turismo no Egipto, que considerava como "um pecado indiscutível e uma grande
  • 22. ofensa", o cheique conseguira um visto para os Estados Unidos aquando da sua estadia entre os integristas sudaneses. "Erro administrativo", segundo a embaixada americana. Transformado no meigo esposo de uma negra islamista americana, expedia de Nova Iorque cassetes apelando à destruição do regime ímpio do Cairo. Preso durante algum tempo, afirmava a sua inocência e passava por um mártir. Como explicava o seu confidente, "o cheique Ornar não se refugiou num país árabe, porque eles são capazes de todas as cobardias. Entre os cristãos, tem a certeza de que não haverá problemas". Os Gamaat Islamiyya e El Djihad lutavam de mãos dadas, em perfeita harmonia. Tinham há muito ultrapassado a velha associação dos Irmãos Muçulmanos, cujo delegado lhes caiu no entanto nos braços, depois de ter jurado que o seu movimento, embora afirmando o contrário, estava pronto a entrar na luta armada. Na hora da grande reconciliação e da unidade revolucionária, cada um devia mostrar a sua boa vontade. Os representantes do Irão e do Sudão chegaram juntos e cumprimentaram Mohamed Bokar; quanto ao emissário da milícia do Hezbollah, que era treinada no Líbano na companhia dos palestinianos extremistas, louvou a coragem e a competência do chefe oculto da revolução egípcia. Este último não podia sonhar com melhor atmosfera e encorajamentos mais cordiais; mas faltava o principal convidado, quem realmente decidiria. Sentaram-se, no entanto, em torno da mesa; foram servidas bebidas, entre as quais uísque e conhaque. Estava frio e a regra da lei islâmica, proibindo o consumo de álcool, aplicava-se sobretudo ao povo ignorante. Quando as discussões já estavam animadas, apareceu finalmente o negociador vindo da Arábia Saudita, vestindo uma djellaba branca e com a cabeça coberta por um turbante à moda antiga. Kaboul, com deferência, revistou como os outros o homem que detinha a chave do financiamento da acção terrorista. Grande aliada dos Estados Unidos, a 46 Arábia Saudita não condenava os atentados em nome do Islão e recusara-se a assinar, juntamente com a Tunísia, Marrocos e Argélia, um projecto de sanção moral em relação aos estados que apoiavam o terrorismo. Os Sauditas, cujo país era um dos mais sectários e intolerantes do planeta, conseguiam assumir a posição de moderados inofensivos aos olhos dos ocidentais, cuja ingenuidade os fazia sorrir. O diplomata sentou-se com vagar e pediu um "sumo de laranja", nome de código para um bourbon bem servido. Sinto-me feliz por encontrar tantos irmãos empenhados na grandeza do Islão; todos juntos, pela graça de Alá todo poderoso e misericordioso, construiremos um mundo melhor. A Arábia Saudita, cuja fama tinha sido um pouco prejudicada devido ao apoio dado aos infiéis durante a guerra do Golfo, procurava redourar o seu brasão junto dos fundamentalistas.
  • 23. No Afeganistão, Mohamed Bokar perdera o gosto pelas longas conversas diplomáticas e os discursos arrebicados; entrou a direito na questão. Na segunda surata do Corão está escrito: Combatei no caminho de Alá aqueles que vos combatem, matai-os. É esta a "recompensa" dos infiéis. Os participantes na reunião secreta concordaram com o chefe. Estejam bem conscientes de que o mundo é partilhado entre dois: dar al-Islam, a casa do Islão de um lado; Darb al-Harb, a casa da guerra do outro, isto é, os territórios infiéis que é necessário converter, por bem ou à força. A guerra santa deve estender-se a toda a humanidade: é essa a vontade do Profeta, é essa a nossa missão. É o que temos tentado observou o iraniano. Considerem a Europa: hoje ela transforma-se em terra do Islão. Onde estamos reunidos senão na Alemanha? Todos os dias, em França, na Inglaterra e noutros países, as conversões são cada vez mais numerosas. Este continente será conquistado pela persuasão, a infiltração e o próprio jogo da democracia. Os intelectuais serão para nós um auxílio precioso; graças a uma boa utilização dos direitos do homem e dos media, acabaremos por ganhar sem luta e transformaremos as igrejas em mesquitas. Não se passa o mesmo em toda a parte objectou Mohamed Bokar. No tempo das suas mais belas conquistas, o Islão não se Nota: Tradução para francês de Régis Blachère, Paris, Maisonneuve et Larose, 1966, p. 56. (N. do A.) 47 contentou com a paciência e sempre atacou primeiro. Os nossos pais exterminaram os cristãos, os zoroastrianos e os mazdianos, nós apoderámo-nos de grande quantidade de terras para aí difundirmos a verdadeira fé. É preciso impor por toda a parte a lei corânica e reunir a umma, a comunidade dos crentes. Sem esquecer o Egipto precisou o iraniano. O presidente e os ministros são ímpios; o povo odeia-os. O Egipto está pronto para se transformar numa república islâmica de que nos poderemos orgulhar. Os meus amigos e eu somos a vanguarda da conquista! O que vos falta para triunfarem? interrogou o diplomata saudita. Dinheiro. Tenho de financiar a nossa acção, comprar armas e acalmar alguns militares demasiado inquietos. A voz rouca de Mohamed Bokar ressoara no meio de um silêncio absoluto; todos os olhares convergiram para o saudita. Este bebeu um gole de "sumo de laranja" e poisou o copo delicadamente. O domínio internacional é um labirinto em que muitos se perdem; é por isso que é necessário avançar com passos prudentes. No que diz respeito à transformação do Egipto, devemos obter o acordo, mais que não seja tácito, dos nossos amigos americanos. A partida não está ganha de antemão, mas tenho esperanças. Do ponto de vista do Islão, em contrapartida, a situação é mais clara. Os projectos do nosso bem- amado Irmão Mohamed satisfazem-nos, pelo que nos mostraremos generosos e lhe damos
  • 24. a nossa confiança. Enquanto Mohamed Bokar permanecia impassível com um ligeiro sorriso nos lábios, Kaboul bateu palmas e gritou: "Alá é o maior!" Desenvolveremos a nossa acção a partir do Sudão informou o chefe terrorista. A fronteira com o Egipto não é vigiada constantemente? inquietou-se o iraniano. Isso não é problema. O sudanês estava delirante. Do seu país em ruínas, minado pela fome e pela miséria, partiria a cruzada islâmica que reconduziria o Egipto, esse odiado vizinho, ao rebanho do deus exterminador. 8. O avião proveniente de Luxor aterrou no Cairo com uma hora e dez de atraso. Mark, esgotado, tinha dormitado durante o trajecto. À saída do aeroporto esperava-o um espectáculo incrível: milhares de fiéis tinham invadido a rua, cobrindo-a com tapetes mais ou menos gastos, e faziam as suas orações voltados para Meca. Os bustos curvavam-se cadenciadamente, a fronte tocava o chão, e uma maré de traseiros, cobertos de calças ou de galabiehs, expunham-se aos raios do sol ardente das onze horas da manhã. Sexta-feira, o dia em que todo o muçulmano devia honrar Alá de forma ostensiva... Encerrado no seu desgosto e nas suas interrogações, Mark tinha-se esquecido disso. Embora o dinheiro saudita tivesse permitido a construção de quarenta mil mesquitas no Egipto durante os últimos dez anos, a população tinha ainda falta de lugares santos e via-se obrigada a ocupar a rua. À hora da oração era impossível circular; os que não tinham conseguido entrar numa mesquita amontoavam-se em seu redor. Havia cada vez mais mulheres veladas nas ruas do Cairo; durante quanto tempo mais aceitariam a presença de raparigas indecentes, com o rosto e as pernas descobertas, ousando pavonear-se com saias curtas? As estudantes eram as mais fanáticas; em breve, nenhuma das suas condiscípulas seria autorizada a penetrar num local universitário sem o vestuário imposto pela lei corânica. Quem se lembrava do aviso do advogado Kasim Amin, morto em 1908: "O véu é a forma mais vil de escravidão para a mulher"! 50 Mark contornou um amontoado de fiéis e procurou o táxi que tinha chamado pelo telefone; Naguib Ghali nunca lhe faltava quando ele vinha ao Cairo. Mas com aquela multidão... Quando a oração terminou, um homem ergueu a mão e agitou-a. Naguib! Mark abriu passagem até ao Peugeot de seis lugares, sempre muito bem cuidado: em torno do volante, feltro vermelho; sobre os assentos, uma cobertura felpuda; preso ao retrovisor, uma mola para papéis em ouro proveniente da pilhagem do palácio de Koubbèh, pertencente a Farouk. O americano subiu para o assento da frente e os dois homens cumprimentaram-se efusivamente.
  • 25. Como vais, Naguib? O meu quinto filho está com sarampo e o hospital recusou-se a aumentar-me. À parte isso, vai tudo bem. Com quarenta e cinco anos, robusto e maciço, Naguib Ghali já tinha cabelos brancos. Como médico, ganhava pouco mais de sessenta libras por mês e não conseguia providenciar às necessidades da sua família; assim, trabalhava como motorista de táxi a meio tempo. Durante a noite, ganhava três vezes mais do que no hospital. Uns pequenos óculos redondos davam a Naguib um ar respeitável; como conhecia bem o Cairo, não lhe faltavam clientes importantes. Estás com o rosto muito vincado, Mark. Ouviste falar do atentado contra um carro de turistas, entre Luxor e Assuão? Mais um golpe sujo dos integristas. Entre as vítimas estava a minha noiva. Naguib Ghali encostou o carro junto a um passeio semidestruído. Incrédulo, contemplou o amigo de infância. Tu ias-te casar? Hélène era uma mulher extraordinária. Para te conseguir seduzir tinha mesmo que o ser. Então tu amava-la? Teríamos sido felizes. Não sei o que te hei-de dizer... Quero vingá-la, Naguib. Não será fácil, mas compreendo-te. Agiria da mesma maneira no teu lugar. 51 Aceitas ajudar-me? Se souber do mínimo pormenor serás imediatamente informado. Onde queres ir? À avenida do paredão. Tenho que encontrar-me com um amigo influente. Posso passar em casa primeiro? É só para deixar um embrulho. Claro! Sabes a que escapei quando era novo? A três anos de serviço militar! Um erro administrativo... Enquanto tentava demonstrá-lo, apodrecia numa caserna. Felizmente, isentam os que conhecem o Corão de cor, pois são considerados como detentores de títulos universitários. Usei o meu título de médico e consegui recitar uma boa parte da primeira surata. O examinador libertou-me; Alá protegeu-me. O táxi mergulhou num trânsito de loucos, cujas regras apenas os cairotas conheciam: semáforos vermelhos para decoração, sentidos únicos facultativos, polícias com apitos inoperantes, disputas permanentes entre veículos e peões. Viadutos e periféricos suspensos não conseguiam desengarrafar a capital que, todos os anos,
  • 26. contava com quinze por cento de automóveis a mais, cujas buzinas funcionavam dia e noite. Ninguém se queixava, porque não havia qualquer hipótese de sobrevivência para quem quisesse encontrar o seu lugar a não ser no Cairo; dos serviços administrativos às grandes empresas, passando pelas diversões, tudo estava no Cairo e muito pouco no resto do país. A cidade gigante, com pelo menos doze milhões de habitantes, atraía os provincianos como um íman. Insaciável, o grande Cairo estendia-se sem cessar, devorando todos os dias preciosas terras cultiváveis para as transformar em sinistros arrabaldes. O táxi enfiou-se por uma ruela onde os peões, os burros, um bando de patos e um camelo disputavam o espaço aos automóveis, quase encostados uns aos outros; um quiosque de jornais, vendedores de cigarros, transístores, legumes e bolos ocupavam os passeios. Odores fortes, em que se misturavam poeira, gasolina, especiarias, fritos, urina, água de rosas e jasmim, agrediam as narinas; o fuel com elevado teor em enxofre, utilizado por milhões de automóveis, contribuía para colocar o Cairo na lista das cidades mais poluídas do mundo. Nove veículos em cada dez produziam uma elevada taxa de monóxido de carbono, a 52 que se juntavam emissões de ácido sulfúrico e nítrico e fumos não filtrados das fábricas de produtos químicos. Uma nuvem ameaçadora pairava permanentemente sobre a cidade; todos os meses, uma centena de toneladas de chumbo, de silício e de enxofre poluía cada quilómetro quadrado do imenso aglomerado, a contas com as doenças respiratórias e as alergias. Que restava do sonho inglês, das suas vivendas luxuosas, dos seus relvados bem regados, das suas caleches e burros numerados, dos seus agentes com uniformes mais elegantes do que os da Europa, da sua tentativa para domesticar o Oriente, instalando ali a mais requintada arte de viver? O Cairo moderno tinha-se sobreposto definitivamente, enferrujado os gradeamentos de ferro forjado e corroído os mais belos edifícios até os reduzir ao estado de pardieiros. Naguib Ghali parou numa rua miserável do bairro de Bassatine, onde a maior parte das casas não tinham água nem electricidade. Num apartamento a cair aos bocados, com dois compartimentos apenas, vivia com a mulher e os seus sete filhos. Devido às leis promulgadas por Nasser, era proibido aos proprietários aumentar as rendas, fixas para sempre; isso fazia com que recusassem fazer a manutenção de bens estéreis e os locatários também não procediam a qualquer reparação. A cada nova visita, Mark verificava que o Cairo estava mais degradado. Como podia a cidade "triunfante", como lhe tinham chamado os conquistadores árabes, resistir a uma população que duplicara em vinte anos e não cessava de aumentar a um ritmo perfeitamente louco? Havia anualmente quatro vezes mais nascimentos, cerca de quatrocentos mil, do que mortes, sem falar do afluxo permanente de camponeses, que vinham procurar na capital uma existência mais simples. No fim do século, vinte milhões de cairotas e setenta e cinco milhões de egípcios amontoar-se-iam num território
  • 27. comparável ao dos Países Baixos, ocupado por quinze milhões de habitantes. No bairro de Bab e-Sbaria, viviam já cento e vinte e sete mil habitantes por quilómetro quadrado. Arruinadas, "as casas da morte certa" desabavam, a rede de esgotos agonizava, os fios eléctricos apodreciam e até os edifícios modernos se desmoronavam porque os seus alicerces, previstos para quatro andares, suportavam dificilmente um aumento de mais cinco, realizado sem autorização. 53 Mark sentiu uma vertigem; Naguib notou. Não estás bem? Não é nada. Há quanto tempo não comes? Não sei. Não te mexas daqui; vou deixar o meu embrulho e volto já. O motorista de táxi ofereceu ao seu passageiro uma bola com favas quentes e cebola cozida. Se dás de comer aos teus clientes, o preço da corrida vai duplicar. Come e cala-te. Depois do recente tremor de terra, algumas ruas tinham sido interditas e assim ficariam até que um decreto administrativo, devidamente assinado por responsáveis que era difícil encontrar, as reabrisse à circulação. Uma das barreiras, guardada por um polícia, não incomodou Naguib, que apertou a mão à sentinela, lhe pediu para levantar a barreira e meteu por um dos seus atalhos preferidos. Estás a ver este montão de entulho, Mark? Tem uns trinta anos mas rendeu bastante dinheiro aos meus colegas. Explicavam aos turistas que o tremor de terra tinha começado aqui e que se podiam ouvir os pedidos de socorro das pessoas soterradas; por uma boa maquia, os palermas tinham direito a uns minutos apenas de espectáculo, porque a polícia proibia qualquer permanência naquele lugar devido aos perigos de desabamento. De cinquenta mil altifalantes brotou de súbito uma voz tonitruante e agressiva; surpreendido, Naguib largou o volante e evitou à justa uma mulher velada, com um cesto de tâmaras à cabeça. Não é ainda a hora da oração espantou-se ele. Cinco vezes por dia, uma abominável cacofonia invadia o Cairo, cobrindo o ruído dos motores e das buzinas. A modernidade tinha relegado para o esquecimento a voz melodiosa dos muezzins, substituída por gravações em altos berros. Que ditador teria podido sonhar com um melhor doutrinamento quotidiano das massas? Havia mesmo uma estação de rádio difundindo ininterruptamente a leitura do Corão. Mark aguçou o ouvido; o orador estava excitadíssimo.
  • 28. Não precisamos de hospitais berrava ele não precisamos 54 de médicos, não precisamos de medicamentos pois estamos na morgue, no meio dos mortos, porque um regime ímpio nos impede de aplicar a lei corânica! Revoltemo- nos! Naguib Ghali assegurou-se de que um exemplar do Corão estava bem em evidência no banco de trás do táxi. Quem é este fulano? perguntou Mark. Um homem do Afeganistão chamado Kaboul. Há uma semana que ele debita esse género de mensagem a qualquer momento do dia. Como as mesquitas o toleram, a polícia não intervém. A voz de Kaboul inflamou-se: Que o Islão combata os ídolos! Quando o verdadeiro Islão estiver no poder, pela vontade de Alá todo poderoso e misericordioso, destruiremos o mais horrível de todos eles, a grande esfinge de Gizé, essa criatura diabólica que atrai os infiéis! A seguir sobreveio o silêncio, brutal e pesado. O povo não está de acordo com estas pessoas declarou Naguib mas tem medo delas. São capazes do pior. Olha a tua noiva.. Não te metas com eles, são demasiado poderosos. Jurei vingá-la. Se me recusares a tua ajuda, compreenderei sem problemas; não tens as mesmas razões que eu para correr riscos. Conduzir-te-ei onde quiseres; como as minhas orelhas andam por todo o lado, ser- te-ão úteis. Não esqueças que és pai de sete crianças. Cerca de vinte metros à sua frente, uma montra voou em estilhaços. Armados com barras de ferro, integristas castigavam os comerciantes que se tinham esquecido de fechar a loja durante o breve discurso de Kaboul. Naguib meteu a marcha-atrás e acelerou a fundo; bateu numa carroça, atirou ao chão um garoto demasiado lento a afastar-se, mas não abrandou. O comando atacava agora um adelo, culpado de expor saias indecentes roubadas a turistas. Como um condutor de rali, Naguib deu meia-volta e arrancou a direito, sempre em frente, sem se importar com os obstáculos. Durante cinco minutos não descerrou os dentes. Quando viu pessoas a andar de maneira normal e a olhar as montras, descontraiu-se. Tivemos sorte; aqueles tipos são drogados. Teriam dado cabo de 55 nós. Estás quase a chegar; liga-me para o hospital ou para um dos cafés onde costumo parar. Facilmente entrarão em contacto comigo. Antes de sair do carro, Mark bateu na mão aberta de Naguib. A avenida do
  • 29. paredão, um bairro elegante do Cairo, exibia uma tranquilidade perfeita. 9. Quem não conhecesse do Cairo senão a avenida do paredão da margem direita, o seu aspecto moderno e ocidental, poderia julgar que a cidade estava decididamente orientada para o século xxi, com os seus edifícios de escritórios, hotéis de luxo, vias de circulação com diversas faixas nos dois sentidos, ladeadas de árvores. Ali estavam instaladas as sedes de vários ministérios, depois da expropriação de antigas mansões onde decorrera a existência dourada de ricos estrangeiros. Em frente da branca vivenda de Farag Moustakbel havia uma tamargueira em flor e dois polícias de guarda. Industrial e jornalista, muçulmano convicto, lutava com todas as suas energias contra os integristas e os fanáticos que acusava de corromperem o Islão. Para Farag Moustakbel, a sua religião devia exaltar a tolerância: "a guerra santa" não podia passar de uma reacção normal de defesa de um país ou de um grupo ameaçado de desaparecimento e nunca ser uma doutrina guerreira aplicável a todo o planeta. Em quase todos os editoriais fustigava os fundamentalistas e recusava a instauração de uma república islâmica que fizesse reinar o terror como no Irão ou no Sudão. O seu último artigo tinha causado grande agitação nas mesquitas; evocava um dos episódios da conquista árabe do Egipto, quando Ornar se apoderara da biblioteca de Alexandria. Que fazer daqueles milhares de volumes? "Queimá-los", respondera Ornar: ou diziam a mesma coisa que o Corão, e eram inúteis; ou diziam o contrário, e eram prejudiciais. Moustakbel condenava esse Islão; amava um Egipto colorido, onde 58 se misturassem muçulmanos e coptas, onde os turistas vindos do mundo inteiro circulassem livremente, onde uma mulher velada e uma rapariga vestida à maneira ocidental vivessem lado a lado sem animosidade. O americano mostrou os seus papéis de identificação aos polícias. Um deles foi prevenir o criado de Farag Moustakbel, que fez entrar o visitante num salão mobilado em estilo Luís XV, com imitações fabricadas no Cairo profusamente douradas. Mark!... Que alegria rever-te! Moustakbel era de estatura mediana, corpulento, quase calvo e de sorriso fácil; aos quarenta e sete anos, ostentava uma energia extraordinária, comia muito e dormia pouco. Celibatário, consagrava-se à sua empresa de obras públicas e aos seus artigos. Óculos de espessas lentes ocultavam-lhe boa parte do rosto. Farag conhecia Mark desde o nascimento; ensinara-o a descobrir o Egipto. Farag... O que aconteceu? Pareces perturbado. Hélène morreu. Não é verdade...
  • 30. Terroristas massacraram-na e desfiguraram-na com uma pistola metralhadora. Mark caiu nos braços de Farag e juntos choraram. Quando a crise de lágrimas se acalmou, o egípcio encheu dois copos com aguardente de framboesa que lhe fora oferecida por um cliente francês. Beberam em silêncio, com os olhos fixos no chão. A polícia protege-te, Farag? Depende dos dias; ou seja, é inútil. O nosso governo erra ao pactuar com os integristas; a sua atitude é suicidária. Por agora, considera a minha vida preciosa... Mas porque hei-de importunar-te com esses pormenores num momento destes. Só tu me podes ajudar. Como? Quero identificar os assassinos. Não vai ser fácil, mas vou tentar obter o máximo de informações Talvez não tenham sido os islamistas a atacar o carro onde Hélène seguia. 59 Farag franziu o sobrolho. Então, quem? Soldados de elite. Onde foste buscar essa hipótese? Corre o boato. Inverosímil, mas não há fumo sem fogo. Qual é a tua ideia? Os comandos egípcios que combateram os russos no Afeganistão aprenderam lá a ser astutos. Que queres mais digno de confiança para os turistas do que militares encarregados da sua protecção? A imprensa ficou silenciosa. Falou de uma agressão integrista e de alguns turistas gravemente feridos, sem referir os nomes. É por isso que eu ignorava que Hélène... Mas nenhum jornalista se atreverá a escrever que os terroristas se disfarçaram de forças de segurança! Podes imaginar o pânico que uma informação dessas ia provocar? Preciso de uma confirmação. Farag reflectiu. Hás-de tê-la; amanhã de manhã vais visitar um dos meus amigos que é capaz de te esclarecer. Se a minha hipótese for correcta, ficarás com um princípio de pista. Vou escrever uma carta de apresentação. Irei até ao fim. Conheço-te; e se eu te pedisse para me ajudares? Conheces de antemão a minha resposta. O industrial ergueu-se e olhou pela
  • 31. janela. Os islamistas procuram apoderar-se das editoras e da imprensa; praticam já uma censura subreptícia, proibindo as publicações que os incomodam, mas esperam conseguir muito mais. E dizer que o nosso prémio Nobel da Literatura, Naguib Mahfouz, que escapou aos oitenta e dois anos a um ignóbil atentado integrista, ousa escrever que "a corrente islamista é a única que tem princípios e ideias que podem ser postas em prática"! Por causa dos intelectuais e dos teóricos, corremos para o abismo. Cego, incompetente e corrupto, o estado deixou os integristas ocuparem-se da vida quotidiana das pessoas e convencê-las de que a aplicação da lei corânica suavizaria a sua miséria. Engenheiros, físicos, dentistas, farmacêuticos e advogados são actualmente controlados 60 pelos Irmãos Muçulmanos e pelos seus aliados. Repetem constantemente a mesma fórmula: "O Islão é a solução". Que loucura! Mas os extremistas infiltraram-se nos partidos políticos, nas associações culturais, nos organismos de saúde e nos movimentos de assistência. Oferecem aos jovens roupas e livros de propaganda; defendendo a separação absoluta dos sexos, recusam a contracepção, um veneno vindo do Ocidente para enfraquecer o Islão. Mas um nascimento a cada vinte e cinco segundos é a epidemia que vai matar o Egipto! Por causa da inflacção demográfica, nenhuma política económica poderá pôr cobro à miséria e ao desemprego. O salário dos funcionários, por si só, representa um quinto do orçamento nacional, ao mesmo tempo que os serviços administrativos se revelam ineficazes! Tenho medo, Mark; tenho medo pelo meu país. Esqueces a barragem. Farag Moustakbel sorriu. A sua ameaça é mais distante, não achas? Mas igualmente inquietante. Tem calma, porque eu fiz chegar os teus dossiers aos ministérios correspondentes e encarrego-me de verificar que não fiquem esquecidos. Antes de conseguir a abertura de um canal de derivação, o caminho ainda vai ser longo. O auxílio de Hélène teria sido determinante. Por ela, tens de continuar a lutar. Não falaste de um serviço que eu te poderia prestar? A situação é mais grave do que a maior parte dos egípcios e dos observadores estrangeiros imaginam. A alavanca do governo é o dinheiro, como é óbvio; embora se apresentem como os grandes adversários da corrupção, os islamistas controlam numerosos bancos e fundos de poupança clandestinos, onde se acumulam capitais consideráveis. Se conseguir demonstrar que os extremistas são, simultaneamente, corrompidos e corruptores, a sua influência diminuirá e o povo acordará. Há um técnico que me pode apoiar, um especialista financeiro que vem dos Estados Unidos; gostaria que o fosses buscar ao aeroporto. O meu rosto é um pouco conhecido demais.
  • 32. Combinado. Mark sentia grande dificuldade em se concentrar; o rosto de Hélène 61 dançava em frente dos seus olhos. Dominava-o o mesmo sentimento que depois da morte dos pais, mas mais intenso e mais angustiante por causa do sentimento de revolta contra os cobardes que não tinham hesitado em abater uma mulher desarmada, a mulher que ele amava. Cada segundo fortificava mais o seu desejo de vingança; o tempo, em vez de o atenuar, reforçava-o. Devias tomar um calmante e dormir aqui. Prefiro vaguear ao acaso, procurar aturdir-me. As ruas do Cairo serão as melhores drogas. 10. Mark vagueara até ao anoitecer, deixando-se guiar pelos seus passos. Numa ruela tinha saciado a fome com almôndegas de favas com ervas aromáticas e bebido um chá escaldante. Indiferente ao calor que anestesiava muitos cairotas, teimara em perseguir a fugidia imagem de Hélène ao longo do Nilo, convencendo-se de que ela ainda estava viva. Por momentos, julgou que o pesadelo se dissipava, que ela se ocultava atrás do sol, caminhava a seu lado, tão próxima, tão terna. Mas apenas existiam as buzinas, a poeira, o cheiro simultaneamente doce e pestilento da enorme cidade que devorava o país e os seus habitantes. O desespero queimava-o como gelo; ao mesmo tempo que lhe corroía a alma, alimentava uma vontade indomável de saber a verdade e estrangular os que tinham morto Hélène. Graças a Farag, seguiria a sua pista. Antes de cair a noite, os altifalantes berraram o apelo à oração; depois, as cores do poente apagaram a fealdade da grande urbe e realçaram a beleza do rio. Mark pensou num texto de El Kadi el-Fadel, o primeiro autor árabe que tinha lido: "O Nilo projecta sobre a terra uma luz ondulante; a sua corrente vai espalhar a abundância nas planícies, formando ao longo das margens campos verdejantes e recobrindo a terra do Egipto com as suas benesses. Correndo ao longo do país, cria um firmamento cujas estrelas são as aldeias." Por causa da grande barragem, esse firmamento desfazer-se-ia numa terra queimada de adubo que o rio não viria mais fecundar. Desamparados, 64 os velhos esperavam em vão a subida das águas; os citadinos tinham saudades das festas da cheia, aliança entre o povo do Egipto e o seu rio. Sem Hélène, teria a força necessária para lutar contra o monstro gigantesco cuja forma evocava o rictus de um demónio satisfeito por estrangular o Nilo? Dizia-se que era impossível contemplar o deus-rio sem sentir um perfume de eternidade; mas as suas águas, cada vez menos vivas, não eram testemunha da morte inevitável do país dos faraós? A circulação intensificou-se; nas pontes e nas margens, as pessoas reuniam-se para comer qualquer coisa, discutir e saborear o fresco. Mark regressara ao
  • 33. bairro de Dokki, povoado de enormes edifícios e de torres erigidas num dos terrenos mais caros da capital: iluminada, a torre do Cairo, com uma altura de cento e oitenta e cinco metros, pretendia assemelhar-se a uma flor de lótus, mas os cairotas comparavam-na mais a um falo bizarro, cujo elevador estava muitas vezes avariado. Uma garota envergando um vestido cor de laranja propôs-lhe a compra de um colar de flores de jasmim. Hélène adorava esse perfume; comprou-lho e notou que se encontrava próximo de um edifício que conhecia bem. Depois de todas aquelas horas a vaguear em silêncio, sentiu desejo de falar. Sem dúvida esbarraria com uma porta fechada, mas tentou a sua sorte. O prédio, com cerca de dez anos, começava a degradar-se; no Cairo, manutenção e reparação eram um milagre. Mark subiu pela escada até ao terceiro andar e tocou à porta. Ela abriu. Mark! Continuas tão bela como sempre, Safinaz. Permite que te ofereça este colar de flores. Julguei que tínhamos acabado definitivamente. É verdade, mas... Entra depressa. Uma mulher só recebendo em sua casa um homem que não pertencia à sua família e que, para mais, era um infiel, podia vir a ter graves aborrecimentos. Safinaz fechou a porta sem ruído. Mark contemplou-a; aceitara o jasmim. 65 Os cabelos negros de comprimento médio, tocando nos ombros, o rosto oval, olhos de gazela de um negro fascinante, nariz fino e direito, lábios sensuais, era magnífica, tão deslumbrante como o pode ser uma jovem egípcia que cuide do seu corpo. O baton rosado e uns brincos prateados em forma de papiros davam uma nota de doçura ao rosto orgulhoso. Safinaz estudara Economia em Inglaterra e nos Estados Unidos, onde tinha família, e depois fora nomeada professora na Universidade do Cairo. Era a mais jovem professora de nível superior e defendia ferozmente a sua independência; não estar casada aos vinte e seis anos arriscava-se a fazê-la perder o lugar. Mark encontrara-a durante um concerto na Ópera do Cairo; a atracção entre ambos fora imediata. Tornaram-se amantes nessa mesma noite, conscientes de que a aventura não teria futuro. Desde que Mark decidira casar, explicara-lhe a situação sem nada ocultar; Safinaz apreciara a sua franqueza. Qual a razão desta visita inesperada? Pensava nunca mais te ver. - A minha noiva morreu.
  • 34. Safinaz permaneceu impassível. Um acidente? Um assassinato. Aqui, no Cairo? Terroristas, na estrada entre Luxor e Assuão. Amava-la realmente? Amava. A jovem afastou-se, elegante e altiva. Se te incomodo, vou-me embora. Ninguém pode partilhar a tua dor. Apenas quero falar. Dela, de ti, da barragem. Continuas esse combate insensato? Nos ministérios lêem os meus relatórios. Ela encolheu os ombros. Esperas que o Egipto destrua a grande barragem? Conto conseguir a construção de um canal de desvio, a fim de restabelecer a cheia, pelo menos em parte. És um homem do passado. 66 Que importa, se é para o bem do país? Suponho que queres beber? Dantes tinhas um excelente Porto. Safinaz serviu-lhe um vintage que até o mais exigente britânico teria apreciado. O que esperavas, ao vir aqui? Ver-te. Ela desapareceu. A fadiga abateu-se sobre Mark; com as pernas moles e os músculos a doer, deixou- se cair num sofá de cabedal e fechou os olhos. Naquela sala acolhedora, mobilada com gosto, gozava o seu primeiro momento de descontracção depois do drama. O seu espírito vagueava num paraíso impossível onde Hélène, de pé à proa de uma falua, deixava os cabelos voar ao vento. Agarrava-a pela cintura e beijava-a no pescoço, embriagando-se de sol. Um deslizar arrancou-o ao seu sonho; abriu os olhos. A dois metros dele, Safinaz acabava de tirar o vestido. Nua, espalhou sobre o púbis de jade uma pasta obtida com uma mistura, feita em lume brando, de açúcar
  • 35. e sumo de limão. Com uma mão segura, depilava-se com soberana graça. Nunca ele assistira a espectáculo tão erótico, em que o mínimo gesto atiçava o desejo. Safinaz desnudava a sua nudez, oferecia a sua intimidade secreta retirando os últimos véus. Mark levantou-se. Espera ordenou ela. A jovem pintou os pés com henné, a alfena do Egipto, cujas folhas eram reduzidas a pó para se obter um vermelho alaranjado, e maquiIhou as pestanas e as sobrancelhas com um pincel molhado em khôl, antimónio misturado com plantas carbonizadas, que dava um negro profundo. Agora estou doce e bela. Hélène dançava em frente dos seus olhos, mas Safinaz enfeitiçava-o; os rostos das duas mulheres sobrepunham-se. Mark, como que embriagado, avançou. Ela segurou-lhe na mão e atraiu-o para si. Não era o perfume de Hélène; no momento em que ele recuou, a jovem cuspiu-lhe na cara e empurrou-o para trás. 67 Porco! Estás de luto e querias foder-me... Uma árabe ainda te excita? Olha bem para mim porque nunca mais verás uma nua em frente de ti, como uma escrava dócil. Mark julgou estar a ter uma alucinação. Que se passa contigo, Safinaz? Não compreendeste? Envergou um vestido comprido que lhe tocava nos tornozelos, cobriu a cabeça e o rosto com o neqab, um véu pesado que apenas tinha duas fendas para os olhos, e enfiou luvas negras para não haver nenhum contacto directo com um homem. Compreendi finalmente que o Islão é a solução declarou. Desde que fiz a primeira peregrinação a Meca descobri a minha verdadeira identidade, a de uma muçulmana. A lei corânica é perfeita, pois é um dom de Alá. Pretender reformá-la é obra de demónios que abateremos uns a seguir aos outros, quer sejam políticos, soldados ou polícias! Se possuímos o livro de Deus, por que havemos de ir procurar noutro lado e confundirmo-nos com democracia, comunismo ou liberalismo? Só há um poder: o de Alá. Nós, os muçulmanos fiéis, imporemos a sua lei ao Egipto e ao mundo. Enlouqueceste? Achas que falo como uma louca? O Islão é a solução, eis a verdade absoluta e definitiva. Utilizas palavras que não me agradam; lembras-te que a "solução final" era o objectivo do nazismo? Os teus discursos são ultrapassados, meu pobre Mark. Amanhã reinará a charia, a lei corânica. Expulsaremos os turistas e os estrangeiros, exterminaremos os coplas, fecharemos os bancos ímpios, proibiremos o álcool, restabeleceremos os castigos
  • 36. corporais e manteremos a ordem instituída pelo Profeta. Se queres sobreviver, dirige-te à mesquita al-Azhar com duas testemunhas e proclama cinco vezes: "Declaro que não há senão um Deus e que Maomé é o seu profeta." O teu nome ficará inscrito num registo, passarás a ser muçulmano e entrarás na via da redenção. Vais aceitar, como boa muçulmana integrista, ser privada da tua profissão e ficar reclusa dentro de uma casa para tomares conta de um bando de crianças? Não esqueças que a lei corânica exige a lapidação da mulher infiel. 68 Safinaz sorriu, triunfante. Caso-me depois de amanhã, ao cair da noite, na cidade dos mortos; vem ver, se te atreves! 11. Mark tinha passado a noite num café iluminado a néon. Ao lado dele, um velho cairota fumava sem interrupção um narguilé oscilante. Pelas cinco horas da manhã, a cidade começou a despertar; merceeiros, ebanistas e alfaiates começavam a trabalhar já fatigados. Os estabelecimentos abriram e as discussões começaram. Um engraxador desdentado devolveu o brilho aos sapatos de Mark e um barbeiro tornou o seu rosto de novo apresentável. Na rua passavam burros pelados puxando carroças sobrecarregadas com cebolas, mulheres com grandes bolas à cabeça, funcionários envergando saarianas e exibindo as pastas, jovens de jeans, integristas barbudos com galabieh branca. Enquanto bebia um café muito forte com um gosto infecto, Mark leu um jornal que exaltava a firmeza do governo face ao terrorismo islâmico. Não continuava o Egipto a ser o país mais seguro do Médio Oriente? Com o passar dos minutos, a multidão foi-se tornando cada vez mais densa, como se a monstruosa cidade se divertisse a ver as suas presas correr em todas as direcções. Na praça el-Tahrir, a "praça da Libertação", a estação de autocarros era, como habitualmente, palco de um engarrafamento de carros de turismo e autocarros apinhados, dos quais se penduravam verdadeiros cachos humanos. Apenas um cairota muito habituado descobria o destino de cada um. No meio de um concerto ininterrupto de buzinas e de rangidos de pneus, táxis brancos e pretos, carros a cair aos pedaços e Mercedes abriam caminho avançando sobre os peões que arriscavam a vida para atravessar. O Metro, 70 construído pelos franceses, apesar do seu êxito e da limpeza devida a uma impressionante presença policial, não tinha diminuído a intensidade do trânsito. A praça da Libertação, onde um jardim e um espaço verde tentavam sobreviver, devia o seu nome à destruição das casernas inglesas que ocupavam a zona antes da revolução de Nasser. O museu egípcio, o mais rico do mundo em obras-primas da época faraónica, conseguira sobreviver enquanto esperava para ser deslocado. Mas o bloco de imóveis de estilo soviético para o qual se dirigiam todos os dias milhares de egípcios era o mogamah, a cidade administrativa onde trabalhava um exército de
  • 37. funcionários, detentores de carimbos sem os quais um documento não tinha qualquer valor. As filas de espera eram intermináveis, os funcionários competentes eram inexistentes, faltavam coisas indispensáveis. A simples descoberta do gabinete certo exigia uma paciência infinita, tanto mais que muitos dossiers se perdiam ou ficavam em estudo durante meses, anos mesmo. O americano entrou no edifício do mogamah às seis horas. Apesar das equipas de limpeza, o local continuava a ser cinzento e poeirento. Em frente de cada porta, em cada canto, havia um funcionário encarregado de informar as pessoas que iam chegando. A maior parte deles dava indicações erradas. Os elevadores estavam avariados. Mark meteu-se por uma escada de degraus gastos; uma maré humana subia e outra descia. Graças ao plano fornecido por Farag, descobriu em menos de vinte minutos o reduto onde o secretário de um alto funcionário desaparecia entre pilhas de papeladas escritas à mão. Com o rosto crispado e os olhos sonolentos, escrevia um relatório sobre a lentidão do seu serviço, de que os seus subordinados eram os únicos responsáveis. O americano cumprimentou-o com deferência e entregou-lhe uma mensagem dirigida ao seu superior, acompanhada de vinte libras egípcias. Tendo em consideração os baixos salários, nenhum dossier avançava sem uma contribuição financeira. Considerando correcta a do candidato, o funcionário abandonou o seu relatório e prometeu fazer o que lhe fosse possível. O mogamah era o lugar do Cairo onde se verificavam mais suicídios; apanhados nas armadilhas da burocracia, envolvidos em atrasos 71 que se iam somando uns aos outros, incapazes de compreender por que razão o justificativo aceite ontem já hoje não era válido, alguns estoiravam, como os humildes operários, idosos e cansados, que consideravam ter direito a uma reforma miserável mas que nunca conseguiam o famoso carimbo. De acordo com uma lei que datava da época de Nasser, qualquer licenciado da Universidade tinha direito a um lugar de funcionário, o que fazia com que as fileiras já a abarrotar da administração egípcia se enchessem mais e mais de ano para ano. Esses funcionários formavam contingentes mal pagos, incompetentes, venais e insatisfeitos, tão numerosos que alguns nem sequer dispunham de uma cadeira nem de uma mesa. Ter um gabinete, mesmo minúsculo e degradado, mesmo partilhado com numerosos colegas, era um verdadeiro privilégio. De duas em duas horas, uma nova equipa vinha ocupar o lugar da anterior; esta rotação permitia a cada um trabalhar pouco e mal, para grande prejuízo da população. Passou uma hora e Mark começou a inquietar-se. Dentro em pouco, um novo arranha- papéis instalar-se-ia no lugar do secretário, a carta de Farag perder-se-ia e teria de recomeçar tudo no dia seguinte, tornando a partir do zero. O homem regressou, quase sorridente.
  • 38. Tem sorte! O vice-ministro aceita recebê-lo. Siga o guarda do andar. Mark fez deslizar algumas notas para a mão do seu guia para que ele não o conduzisse a outro lugar qualquer. Sábia precaução, porque o percurso era tão complicado que o próprio vice-ministro se devia perder. O gabinete do alto funcionário era imenso, quase luxuoso, com tapetes espampanantes, mobília inglesa de boa qualidade, um batalhão de telefones de diversas cores, duas televisões, vídeo, fax e computadores. Um homem de estatura média, apagado, com cerca de sessenta anos, envergando um fato cinzento, deu as boas vindas ao seu visitante e convidou-o a sentar-se numa poltrona, a respeitosa distância. De que ministério dependia e qual era realmente o seu posto? Não valia a pena tentar descobrir. Pela simples observação do gabinete podia ser avaliada a importância que tinha. Ouvi falar de si, senhor Walker. Parece que não é um ardente defensor da nossa grande barragem. 72 A minha posição é estritamente científica, Excelência. Considero o Egipto como a minha verdadeira pátria, desejo a sua felicidade e a dos seus habitantes; ora, essa barragem conduz à ruína e à infelicidade. Uma posição bem definitiva! No entanto, o meu amigo Farag aprecia-o muito; suponho que partilha as suas ideias, não? O seu combate merece todo o meu respeito. O alto funcionário tocou uma campainha e um criado trouxe dois cafés sem açúcar. Foi afectado por um cruel luto. A minha noiva foi assassinada. Permita-me que lhe apresente as minhas condolências. Agradeço muito a sua atenção. O que espera de mim? O substituto de Assuão afirma que os assassinos são terroristas fanáticos, mas o rumor que corre é que se trataria de soldados de uma unidade de elite. O vice-ministro pôs os óculos de tartaruga e contemplou as mãos unidas. Dado que me ocupo dos problemas de segurança, senhor Walker, posso afirmar-lhe que os rumores são muitas vezes enganosos. Foi por isso que vim procurar a verdade junto de Vossa Excelência. Essa atitude honra-me muito, mas quem, a não ser Deus, é detentor da verdade? Por vezes o homem recebe uma parcela. Conhecê-la ressuscitaria a sua noiva? Deixar esse crime impune matá-la-ia uma segunda vez. Quem lhe fala de semelhante injustiça? Pode ter a certeza de que a polícia está a fazer o seu inquérito.
  • 39. Quem matou a minha noiva? O vice-ministro evitava o olhar de Mark, concentrando-se no seu corta-papéis, numa pilha de dossiers ou no fax que debitava uma mensagem. O telefone tocou, atendeu e pediu que não o incomodassem nos próximos dez minutos. O Egipto atravessa um período difícil, durante o qual é conveniente não atear o incêndio que nos ameaça. Suponha que os media locais, logo seguidos pelos media internacionais, revelam que os islamistas 73 se disfarçaram de soldados de elite para atacar um carro de turistas e assassinar os seus ocupantes... Pode imaginar as consequências disso? Portanto, Farag não se enganara. Tem nomes, Excelência? Não o vão surpreender: a Djihad, os Gamaat Islamiyya e os Irmãos Muçulmanos, associados no crime, são cada vez mais perigosos. É por isso que, nas actuais circunstâncias, o nosso dever é manter silêncio. O que eu queria dizer era: nomes concretos? Não peça demais, senhor Walker; obteve a verdade que pretendia. Visto que ama o Egipto, saiba calar-se. A condução do inquérito pertence à polícia; os assassinos serão presos e condenados. O tom, que se tornara cortante, marcava o fim da entrevista. Mark agradeceu ao vice-ministro e cumprimentou-o ao sair. Logo que ele saiu do gabinete, uma porta acolchoada abriu-se por trás do alto funcionário. Entrou um personagem elegante que fumava um Dunhill mentolado numa boquilha de ouro. Excelente declarou. Como verificou, meu caro amigo, este americano não vai desistir. Devo continuar a... Estou muito satisfeito com a sua cooperação; esqueça-o. As ruas do Cairo eram percorridas por um vento violento, arrastando areia do deserto; quando sopravam algumas rajadas, ultrapassando os cem quilómetros por hora, o céu escurecia, tingido de um vermelho escuro. "Mais uma consequência da barragem", pensou Mark; geralmente, aquele género de flagelo só surgia na Primavera. A tempestade sobrepunha-se aos gritos dos vendedores ambulantes: "Os meus bagos de uva são ovos de rola", portanto, grandes e de primeira qualidade, ou "As minhas favas estão cobertas de orvalho", isto é, muito frescas. Até os táxis abrandavam. O americano não teve que percorrer grande distância para chegar a um edifício opulento, próximo da Praça el-Tahrir. Ali residiam os oficiais superiores. Em frente da entrada, um banco quadrado, coberto com um tecido verde e impecável; o
  • 40. baouab, o guarda, desertara do seu posto. 74 Mark entrou. Quem é o senhor? A voz vinha da esquerda. Mark voltou-se e viu o baouab deitado por baixo da escada. Ahmed! Tens medo do vento? O guarda ergueu-se sem pressa. Tão velho que já nem tinha idade, envergando uma galabieh castanha, cabeça coberta com um turbante de um branco imaculado e o rosto sulcado por inúmeras rugas, abraçou Mark. A misericórdia de Alá seja contigo, meu irmão. Sabes da Hélène? Sei. Ahmed, o decano dos baouabs do Cairo, nunca abandonava o seu banco e o seu cubículo da escada; recebia confidências, discutia, prestava pequenos serviços e dava tantas informações preciosas que se tornara uma verdadeira instituição. Cláxons, gritos dos vendedores, ruído dos motores, apelos à oração, nada perturbava a sua serenidade. A maior parte do tempo, parecia dormitar; em determinadas circunstâncias, fingia ser surdo. Rico, mantinha duas mulheres e doze filhos; poderia passar junto deles uma reforma feliz mas, embora repetisse todos os dias que ia deixar de trabalhar, permanecia fiel ao seu edifício. No entanto, os jornais não divulgaram o nome das vítimas. Se nos limitássemos aos jornais, o que saberíamos da vida e da morte? Vamos sentar-nos; na minha idade, é difícil estar de pé. Sentaram-se no banco interior, de onde se observava a escada, o elevador e a entrada do edifício sem ser visto. Ias-te casar, não é verdade? A mão pesada do baouab poisou no ombro de Mark. Que Deus venha em teu auxílio e acalme a tua dor. O que consta dos assassinos? Preferia não falar disso. Segundo o meu próprio inquérito, eram islamistas disfarçados de soldados de elite. Conduziste mal o teu inquérito, mas pára por aí. Porquê, Ahmed? Este assunto cheira mal, muito mal. 75 Quero vingar Hélène.