1) O documento discute a definição da psicologia como ciência e analisa diferentes perspectivas epistemológicas sobre o assunto.
2) É levantada a questão da dispersão no campo da psicologia e como autores como Canguilhem e Foucault enxergam isso de forma positiva.
3) A psicologia é descrita como uma reflexão das contradições do homem consigo mesmo, com seus impasses e problemas servindo como base para o desenvolvimento da área.
3. ˜z0q%qu2¥F¨Rw·
Ä ¼¿ à Á Á À¿ ¾ ½ ¼ » º ¹ ¸
61
da psicologia como ciência é uma tarefa Wundt e Canguilhem: a insistência do
incompleta a cumprir e que está na ordem do dia. problemático no saber psicológico
Foucault (1990) afirma que nos últimos 100 anos Para avançarmos nas reflexões sobre estas questões
a psicologia estabeleceu relações novas com a considero dois autores como nossos aliados: de um
prática: educação, medicina mental, organização lado, um autor clássico na história da psicologia
dos grupos. Essa prática tem se apresentado como chamado Wundt. E de outro lado, um autor também
o solo de fundação racional e científico da clássico na epistemologia, chamado Canguilhem.
psicologia. Além disso, a psicologia se propõe Estes dois autores são importantes para a nossa
questões oriundas dessas práticas: o problema do reflexão porque, de modo diferente, ambos nos
êxito ou do fracasso escolar, problema da permitem pensar que há na psicologia um campo
adaptação do homem às suas condições de problemático que deve ser tematizado. Ou seja, as
trabalho, as relações entre o doente e a sociedade. tensões e contradições que marcam a definição da
É interessante notar que, por esse laço constante psicologia como ciência devem ser tomadas como
com a prática, pela reciprocidade de suas trocas, a fios condutores que nos conduzem a afirmação da
psicologia no século XX se tornou semelhante a psicologia a partir das suas contradições.
todas as ciências da natureza. Mas é preciso fazer
uma ressalva, conforme adverte Foucault (1990). No século XIX Wundt (apud Figueiredo, 1986)
Enquanto as ciências naturais respondem apenas definiu a psicologia como ciência intermediária, isto
pelos problemas colocados pelas dificuldades da é, uma disciplina entre outras disciplinas. Mas é
prática, seus fracassos temporários, as limitações importante entendermos o sentido de intermediária.
provisórias de sua experiência, a psicologia, ao Não se trata para este autor de entender a psicologia
contrário, nasce no ponto em que a prática do como uma disciplina entre outras, porque afinal, isto é
homem encontra sua própria contradição; no próprio de qualquer ciência. As ciências convivem
ponto em que essa prática falha, erra. A psicologia umas com as outras e, em determinados momentos,
do desenvolvimento nasceu como uma reflexão várias disciplinas podem convergir para um mesmo
sobre as dificuldades do desenvolvimento; a ponto. Quando Wundt (apud Figueiredo, 1986)
psicologia da conduta, como uma análise dos aponta a psicologia como disciplina intermediária ele
desajustes, aquela da memória, da consciência, do pretende afirmá-la como sendo constituída no e pelo
sentimento, do pensamento apareceu de início entre. Wundt entendia (apud Figueiredo 1986) que a
como uma psicologia do esquecimento, do psicologia se constituía ao mesmo tempo por suas
inconsciente, das perturbações afetivas e dos relações com as ciências biológicas – nesse sentido, a
problemas do pensamento. Por isso, Foucault psicologia era fisiológica, e por suas relações com as
(1990) conclui que a psicologia contemporânea é ciências da cultura – nesse sentido, a psicologia era
uma reflexão das contradições do homem com ele etnopsicologia, psicologia social ou psicologia dos
mesmo. povos. A psicologia para definir-se deveria manter
relações tanto com as ciências biológicas quanto com
O que me parece importante é seguirmos a tese as ciências da cultura. Esta tese é polêmica porque se
proposta no trabalho de Foucault (1990), isto é, os trata de afirmar não que existem duas psicologias,
impasses e contradições encontrados pela mas de afirmar que a psicologia só se estabelece
psicologia para definir-se como ciência devem ser através destas relações com outras disciplinas.
tomados não como equívocos a serem superados,
mas como positividades, como aquilo mesmo de Os trabalhos de Canguilhem (1972, 1976, 1990),
que é feita a psicologia. epistemológo francês, também nos indicam uma certa
maneira de tratar como positividades as contradições
Então há na psicologia um campo problemático que estão na base da definição da psicologia como
que nós estamos propondo considerar como ciência. Este autor dedicou boa parte de sua atividade
positivo. O que significa dizer isso? acadêmica a pesquisar a epistemologia das ciências da
vida. Ele apresenta uma tese interessante para nós.
Ele faz uma pergunta semelhante a que levantamos
aqui hoje, ele pergunta: o que é a vida? E mais ainda,
5HYLVW Å G Æ 3VLFRORJL Å G Å 8Q
Ç YR É ¥È
Ç Q É
Ç S É
ZZZQHDGXQFQHWEUUHYLVWDSVLFRORJLD
4. ˜z0q%qu2¥F¨RwÊ
× ÏÒ Ö ÔÕ Ô ÓÒ Ñ Ð Ï Î Í Ì Ë
62
a partir desta pergunta, ele avança e indaga: se há Dito de outro modo, podemos afirmar que a
entre os vivos aqueles que são capazes de psicologia é o que tolera a diferença, isto é, a
conhecer, temos que perguntar o que é o conhecer psicologia é o que se constitui através da dispersão,
para estes seres? Então, as características da vida da interface com outros saberes. Não é que existam
são também aquelas do conhecimento, porque o muitas psicologias, mas que a psicologia só existe
conhecer está, do ponto de vista deste autor, através dessa dispersão. Este é o seu destino e a sua
enraizado na vida. positividade.
Para este autor a vida é o que tolera Considerações Finais
monstruosidades. Isto é, a vida é a capacidade de
errar, de derivar. A vida é experimentação, Esta tese nos faz retomar o tema com que
experiência em todo o sentido. Para Canguilhem começamos: e a formação em psicologia? Então como
(1990) o que define a vida é a incessante podemos definir o profissional de psicologia? Onde e
capacidade de questionar as normas e instituir como ele se forma? Como vimos, no vestibular a
outras normas, sempre locais, provisórias e psicologia ora está com as ciências biológicas, ora
parciais. Assim, não é possível considerar o com as ciências humanas. As instituições acadêmicas
normal como algo exterior à história de um convivem mal com essa dispersão da psicologia.
indivíduo. Isto é, o normal só é normal para Somos organizados institucionalmente em
aquele indivíduo. E só é patológico aquilo que coordenações, depar-tamentos, sub-divisões sempre
impede a vida de diferir. Assim sendo, nem toda muito especializadas. E esta situação “entre” que
anomalia é patológica, porque nem toda anomalia caracteriza a psicologia não casa bem com esse
impede a vida de derivar, de errar. O que é modelo universitário. Como enquadrar em
interessante nesta tese é o estudo dessa deriva, departamentos, áreas e sub-áreas uma disciplina que é
desse campo problemático que faz a vida diferir. atravessada por outras, uma disciplina que, ao que
É nesse sentido, que o autor afirma que a vida parece, está sempre indo além dos limites da
tolera monstruosidade (Canguilhem, 1976). A disciplina?
vida tolera contradição, diferença. Viver não é
mais do que diferir. E se como dissemos acima, o Luis Claudio Figueiredo, professor da PUC de São
conhecimento está enraizado na vida, é forçoso Paulo, afirma que “para se manter viva e crescer a
concluir que o conhecer tolera a diferença. Isto é, psicologia deve abrir-se para um pensamento e uma
o erro não é algo a ser expurgado do campo do prática de pesquisa transdisciplinar, ou seja, para um
conhecimento. O conhecimento – o científico pensamento capaz de circular, afetando e sendo
inclusive – só se produz através dos erros. afetado por outros saberes” (Figueiredo, 1995, p. 82).
Interessante notar que quando este autor investiga
o conhecimento científico ele aponta o erro como E é o mesmo autor paulista quem pergunta: “Aonde,
próprio do pensamento. Dito de outro modo, o afinal, pode ir se formando um psicólogo?” E a
pensamento ele mesmo está inserido na deriva da expressão ir se formando é intencional, serve para
vida. assinalar o fato de que nunca estamos completamente
formados. O profissional de psicologia se forma nos
Tanto Wundt (apud Figueiredo, 1986) quanto cursos de graduação, nos estágios supervisionados,
Canguilhem (1972, 1990) são autores que nos nas atividades de pesquisa e extensão. Certamente
permitem pensar o que é a psicologia longe de estes procedimentos acadêmicos são indispensáveis à
qualquer estratégia purificadora que buscasse formação do profissional. São necessários, mas não
encontrar no rigor do método científico ou na suficientes. Se levarmos a cabo o que dissemos hoje é
estreiteza do objeto a definição última sobre o que preciso considerar que o profissional de psicologia se
é a psicologia. Tanto um quanto outro apontam forma também através da literatura, das artes, dos
para a possibilidade de pensarmos a psicologia estudos em filosofia. Tarefa para uma vida inteira.
como aquilo que se define através das relações
com outros saberes.
5HYLVW Ø G Ù 3VLFRORJL Ø G Ø 8Q
Ú YR Ü ¥Û
Ú Q Ü
Ú S Ü
ZZZQHDGXQFQHWEUUHYLVWDSVLFRORJLD
5. ˜z0q%qu2¥F¨RwÝ
ê âå é çè ç æå ä ã â á à ß Þ
63
Para concluir eu gostaria de mais uma vez lembrar Porque não existe nada mais sem graça que um
o psicanalista Rubem Alves, o mesmo que nos brinquedo que dá certo sempre. Brinquedo, para ser
ajudou a começar esta aula. Ele conta a história do brinquedo, tem de ser um desafio. Um brinquedo é
professor Pardal. É sabido que o “professor Pardal um objeto que, olhando para mim, me diz: ‘Veja se
gostava muito do Huguinho, do Zezinho e do você pode comigo!’. O brinquedo me põe à prova.
Luizinho e queria fazê-los felizes. Inventou, Testa as minhas habilidades (Alves, 2003-b).” Eu
então, brinquedos que os fariam felizes para perguntava no início: por que estamos aqui, todos
sempre, brinquedos que davam certo sempre: uma nós, num curso de psicologia e não em outro? Talvez
pipa que voava sempre, um peão que rodava porque para nós todos – veteranos e calouros – a
sempre e um taco de beisebol que acertava sempre psicologia seja isso, um brinquedo que desafia a
na bola. Os três patinhos ficaram felicíssimos ao inteligência.
receber os presentes e se puseram logo a brincar
com seus brinquedos que funcionavam sempre. Desejo a todos um semestre letivo cheio desafios,
Mas a alegria durou pouco. Veio logo o enfado. porque sem eles a inteligência não funciona.
Referências Bibliográficas
Alves, R. (2003-a). A arte de produzir fome. Disponível na World Wide Web
http://www.uol.com.br/aprendiz/n_colunas/r_alves/index.htm.
Alves, R. (2003-b). É brincando que se aprende. Disponível na World Wide Web
http://www.uol.com.br/aprendiz/n_colunas/r_alves/index.htm.
Canguilhem, G. (1972). O que é a Psicologia? Epistemologia 2. Revista Tempo Brasileiro, nº 30 /31, 104-
123.
Canguilhem, G. (1976). El Conocimiento de la Vida. Barcelona, Ed. Angrama.
Canguilhem, G. (1990). O Normal e o Patológico. Rio de Janeiro, Forense Universitária.
Feitosa, M. A. G. et al. (1999). Notícia: Proposta de Diretrizes Curriculares para Curso de Graduação em
Psicologia e Projeto de Resolução para sua Regulamentação. Psicologia: Teoria e Pesquisa, 15, 1, 79-86.
Figueiredo, L. C. (1992). Psicologia. Uma Introdução. São Paulo: Educ.
Figueiredo, L. C. (1995). Revisitando as psicologias. São Paulo, Educ.
Figueiredo, L. C. W. (1986). Wundt e alguns impasses permanentes da Psicologia: uma proposta de
interpretação. História da Psicologia, Cadernos da PUC - SP,23, 25-49.
Foucault, M. (1990). La Psychologie de 1850 a 1950. Revue Internationale de Philosophie, nº 173, 2, 159 -
176.
Recebido em: 29/09/2003
Aceito em: 27/02/2004
5HYLVW ë G ì 3VLFRORJL ë G ë 8Q í YR ï ¥î
í Q ï
í S ï
ZZZQHDGXQFQHWEUUHYLVWDSVLFRORJLD