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Martin Heidegger
Marcas do caminho
Tradução de Enio Paulo Giachini
e
Ernildo Stein
Ib EDITORA
Y VOZES
Petrópolis
Texto 06
o que é metafísica? (1929)
"Que é metafísica?" - A pergunta nos dá esperanças de
que se falará sobre a metafísica. Não o faremos. Em vez dis-
to, discutiremos uma determinada questão metafísica. Pare-
ce-nosque, desta maneira, nos transporemos imediatamente
para o interior da metafísica. Somente assim lhe damos a me-
lhor possibilidade de se apresentar a nós em si mesma.
Nosso intuito começa com o desdobramento de uma ques-
tão metafísica. Em seguida, ele procura elaborar a questão e
se consuma com a sua resposta.
o desenvolvimento de uma interrogação metafísica
Considerada sob o ponto de vista do saudável entendi-
mento humano, a filosofia é, nas palavras de Hegel, o "mun-
do às avessas". É por isto que a peculiaridade do que em-
preendemos requer uma especificação preparatória. Essa
especificação surge de uma dupla característica da interro-
gação metafísica.
De um lado, toda questão metafísica abarca sempre a to-
talidade da problemática da metafísica. Ela é a própria totali-
dade. De outro, toda questão metafísica só pode ser formula-
da de um tal modo que aquele que interroga, enquanto tal,
esteja implicado na questão, isto é, seja problematizado. Daí
retiramos a seguinte indicação: a interrogação metafísica de-
ve desenvolver-se na totalidade e na situação essencial do
ser-aí questionador. Nós perguntamos, aqui e agora, por nós.
Nosso ser-aí - na comunidade de pesquisadores, professores
e estudantes - é determinado pela ciência. O que acontece
HEIDEGGER, Martin. O que é metafísica?
In: ______. Marcas do caminho. Petrópolis:
Vozes, 2008, p. 113-133.
114 Marcas do caminho
de essencial nas raízes do ser-aí, na medida em que a ciência
tornou-se nossa paixão?
Os domínios das ciências distam muito entre si. Funda-
mentalmente diversa é a maneira de tratarem seus objetos.
Esta dispersa multiplicidade de disciplinas só continua sendo
mantida hoje em uma unidade por meio da organização téc-
nica de universidades e faculdades e só conserva um signifi-
cado pela fixação das finalidades práticas das especialidades.
Em contraste, o enraizamento das ciências em seu funda-
mento essencial desapareceu completamente.
Contudo, em todas as ciências nós nos relacionamos, dó-
ceis a seus propósitos mais autênticos, com o próprio ente.
Justamente sob o ponto de vista das ciências, nenhum domí-
nio possui hegemonia sobre o outro, nem a natureza sobre a
história, nem esta sobre aquela. Nenhum modo de tratamen-
to dos objetos supera os outros. Conhecimentos matemáti-
cos não são mais rigorosos que os filológico-históricos. A ma-
temática possui apenas o caráter de "exatidão" e esse não co-
incide com o rigor. Exigir da história exatidão seria chocar-se
contra a idéia do rigor específico das ciências humanas. A re-
ferência ao mundo, que impera através de todas as ciências
enquanto tais, faz com que elas procurem o próprio ente
para, conforme o seu conteúdo qüididativo e o seu modo de
ser, transformá-lo em objeto de investigação e determinação
fundante. Nas ciências realiza-se - no plano das idéias - uma
aproximação daquilo que é essencial em todas as coisas.
Esta privilegiada referência de mundo ao próprio ente é
sustentada e conduzida por uma postura livremente escolhida
da existência humana. Também a atividade e a inatividade
pré- e extra-científicas do homem assumem um determinado
comportamento em relação ao ente. A ciência, porém, distin-
gue-se pelo fato de dar, de um modo que lhe é próprio, ex-
pressa e unicamente, à própria coisa a primeira e última pala-
vra. Em uma maneira tão objetiva de perguntar, determinar e
fundar o ente, realiza-se uma submissão peculiarmente limi-
tada ao próprio ente, para que este realmente se manifeste.
o que é metafísica? 115
Este pôr-se a serviço da pesquisa e do ensino constitui-se co-
mo fundamento da possibilidade de um comando próprio,
ainda que delimitado, na totalidade da existência humana. A
referência particular ao mundo que é característica da ciência
e a postura que rege essa referência só são plenamente conce-
bidos, quando vemos e compreendemos o que acontece na
referência ao mundo assim sustentada. O homem - um ente
entre outros - "faz ciência". Neste "fazer" não acontece nada
menos do que a irrupção de um ente chamado homem na to-
talidade do ente; e isto de tal maneira, em verdade, que na e
por meio dessa irrupção se descobre o ente naquilo que e co-
mo ele é. Essa irrupção reveladora é o que, em primeiro lugar,
colabora, a seu modo, para que o ente chegue a si mesmo.
Estas três dimensões - referência ao mundo, postura, ir-
rupção - trazem, em sua radical unidade, a clara simplicida-
de e severidade do ser-aí para o interior da existência científi-
ca. Se quisermos nos apoderar expressamente do ser-aí cien-
tífico, assim iluminado, então precisamos dizer:
Aquilo para onde se dirige a referência ao mundo é o pró-
prio ente - e nada mais 1.
Aquilo de onde toda postura recebe a sua orientação é o
próprio ente - e nada para além dele.
Aquilo com que a confrontação investigadora acontece
na irrupção é o próprio ente - e nada para além dele.
Mas o estranho é que justamente no modo como o ho-
mem científico se assegura do que lhe é mais próprio, ele
fala, quer expressamente ou não, de outra coisa. Pesquisado
deve ser apenas o ente e mais - nada; somente o ente e além
dele - nada; unicamente o ente e para além disto - nada.
1. 1A edição de 1929: considera-se este adendo que segue o travessão co-
mo mencionado de maneira arbitrária e artificial, mas não se sabe que Tai-
ne, o qual pode ser tomado como representante e sinal de toda uma época
ainda. dominante, usou esta fórmula conscientemente para a caracteriza-
ção de sua posição fundamental e de sua intenção.
116 Marcas do caminho
Que acontece com este nada? É por acaso que esponta-
neamente falamos assim? É apenas um modo de falar - e
mais nada?
Mas porque nos preocupamos com este nada? O nada é
justamente rejeitado pela ciência e abandonado como o ele-
mento nadificante. E quando, assim, abandonamos o nada,
não admitimos precisamente então? Mas podemos nós falar
de que admitimos algo, se nada admitimos? Talvez já se per-
de tal insegurança da linguagem numa vazia querela de pala-
vras. Contra isto deve agora a ciência afirmar novamente sua
seriedade e sobriedade: ela se ocupa unicamente do ente. O
nada - que outra coisa poderá ser para a ciência que horror e
fantasmagoria? Se a ciência tem razão, então uma coisa é in-
discutível: a ciência nada quer saber do nada. Esta é afinal a
rigorosa concepção científica do nada. Dele sabemos, en-
quanto dele, do nada, nada queremos saber.
A ciência nada quer saber do nada. Mas não é menos cer-
to também que, justamente onde ela procura expressar a sua
própria essência", ela recorre ao nada. Aquilo que ela rejeita,
ela leva em consideração. Que essência ambívalente" se re-
vela aí?
Ao refletirmos sobre nossa existência presente - enquan-
to uma existência determinada pela ciência -, desemboca-
mos em um antagonismo. Através deste conflito já se desen-
volveu uma interrogação. A questão exige apenas uma for-
mulação adequada: o que acontece com este nada?
A elaboração da questão
A elaboração da questão acerca do nada deve colocar-nos
na situação, a partir da qual a resposta se mostra como possí-
velou, então, a impossibilidade de tal resposta se torna eviden-
2.5A edição de 1949: a postura positiva e exclusiva em relação ao ente.
3.3° edição de 1931: diferença ontológica. 5~ edição de 1949: o nada co-
mo o ser.
o que é metafísica? 117
te. O nada é admitido. A ciência, na sua sobranceira indiferen-
ça com relação a ele, rejeita-o como aquilo que "não há".
Nós, contudo, procuramos perguntar pelo nada. O que é o
nada? Já a primeira abordagem desta questão mostra algo in-
sólito. No nosso interrogar já pressupomos antecipadamente
o nada como algo que "é" de tal e tal modo - como um ente. É
dele precisamente, porém, que o nada se distingue pura e sim-
plesrnente". O perguntar pelo nada - pela sua essência e seu
modo de ser - converte o interrogado em seu contrário. A
questão priva-se a si mesma de seu objeto específico.
Se for assim, também toda resposta a esta questão é,
desde o início, impossível. Pois ela se desenvolve necessaria-
mente sob esta forma: o nada "é" isto ou aquilo. Tanto a per-
gunta como a resposta são, no que diz respeito ao nada,
igualmente contraditórias em si mesmas.
Assim, não é preciso, pois, que a ciência primeiro rejeite
o nada. A regra fundamental do pensamento a que comu-
mente se recorre, o princípio da não-contradição, a "lógica"
universal, arrasa esta pergunta. Pois o pensamento, que é
sempre essencialmente pensamento de alguma coisa, deve-
ria, enquanto pensamento do nada, agir contra a sua própria
essência.
Pelo fato de assim nos ficar vedado converter, de algum
modo, o nada em objeto, chegamos já ao fim com a nossa in-
terrogação pelo nada - contanto que pressuponhamos que
nesta questão a "lóqíca'" seja a última instância, que o enten-
dimento seja o meio e o pensamento o caminho para com-
preender originariamente o nada e para decidir o seu possível
desvelamento.
Mas é por acaso possível tocar no império da "lógica"?
Não é o entendimento realmente o senhor nesta pergunta so-
bre o nada? Com efeito, é só com o seu auxilio que podemos
4. 5D edição de 1949: a distinção, a diferença.
5. 1D edição de 1929: isto é, lógica no sentido habitual, aquilo que se consi-
dera como sendo a lógica.
118 Marcas do caminho
determinar o nada e colocá-lo como um problema, ainda que
seja como um problema que devora a si mesmo. Pois o nada
é a negação da totalidade do ente, o puro e simplesmente
não-ente. Com tal procedimento subsumimos o nada à deter-
minação mais alta do negativo e, com isto, ao que parece, do
negado. A negação é, contudo, conforme a doutrina domi-
nante e nunca alterada da "lógica", um ato específico do en-
tendimento. Como podemos nós, pois, pretender rejeitar o
entendimento na pergunta pelo nada e até na questão da
possibilidade de sua formulação? Mas será que é tão seguro
aquilo que aqui pressupomos? Será que o "não", a negativi-
dade e, com isto, a negação representam a determinação su-
prema a que se subordina o nada como uma espécie particu-
lar de negado? "Há" o nada apenas porque há o "não", isto é,
a negação? Ou será que não acontece o contrário? Existe a
negação e o "não" apenas porque "há" o nada? Isto não está
decidido; nem mesmo chegou a ser formulado expressamen-
te como questão. Nós afirmamos: o nada é mais oriqínárlo"
que o "não" e a negação.
Se esta tese é justa, então a possibilidade da negação, co-
mo atividade do entendimento, e, com isto, o próprio entendi-
mento dependem, de algum modo, do nada. Neste caso, co-
mo é que o entendimento poderá querer decidir sobre o nada?
Não se baseia afinal o aparente contra-senso de pergunta e
resposta no que diz respeito ao nada na cega obstinação? de
um entendimento que se pretende sem fronteiras?
Se, entretanto, não nos deixarmos enganar pela impossibi-
lidade formal da questão do nada e se apesar dessa impossibi-
lidade ainda a formulamos, então devemos satisfazer ao me-
nos aquilo que permanece válido como a exigência fundamen-
tal para a possível formulação de qualquer questão. Se o nada
deve ser questionado - ele mesmo -, então é preciso que ele
teja primeiramente dado. Devemos poder encontrá-Ia.
fi. f,1 ,'111<,.110ele 1949: ordem originária.
',i ..clh;/o d,' 1919: a cega obstinação: a certitudo do ego cogito, subjeti-
111<1.11
It
o Que é metafísica? 11
Onde procuramos o nada? Onde encontramos o nad
Para que encontremos algo não precisamos, por acaso, já s
ber que ele está presente? De fato! De início e na maioria das
vezes o homem só é capaz de buscar se tiver antecipado
presença do que busca. Agora, porém, aquilo que se busca é
o nada. Há, por fim, um buscar sem aquela antecipação, um
buscar ao qual pertence um puro encontrar?
Seja como for, nós conhecemos o nada, mesmo que seja
apenas aquilo sobre o que cotidianamente falamos inadverti-
damente. Podemos até, sem hesitar, ordenar este nada vul-
gar em uma "definição", com toda palidez do óbvio, que tão
discretamente ronda nossa conversa:
O nada é a plena negação da totalidade do ente. Esta ca-
racterística do nada não nos fornece, por fim, uma indicação
da direção na qual unicamente teremos uma possibilidade de
encontrá-Io?
A totalidade do ente deve ser previamente dada para que
possa ser submetida enquanto tal simplesmente à negação,
na qual, então, o próprio nada deverá se manifestar.
Mesmo, porém, que prescindamos da problematicidade
da relação entre a negação e o nada, como deveremos nós -
enquanto seres finitos - tornar acessível para nós, em si e
particularmente, o todo do ente em sua omnitude? Em todo
caso, contudo, podemos pensar a "idéia" da totalidade do
ente e, então, negar em pensamento o assim figurado e "pen-
sá-lo" enquanto negado. Por esta via obteremos, certamente,
o conceito formal do nada figurado, mas jamais o próprio
nada. O nada, porém, não é nada e entre o nada figurado e o
nada "autêntico" não pode imperar uma diferença, se é que o
nada representa realmente a absoluta indistinção. Mas e o
próprio nada "autêntico", ele não é por sua vez aquele concei-
to oculto, mas absurdo, de um nada que é? Paremos aqui
com as perguntas. Que tenha sido este o momento derradei-
ro em que as objeções do entendimento retiveram a nossa
busca, uma busca que só pode ser legitimada por uma expe-
riência fundamental do nada.
120 Marcas do caminho
Assim como é inconteste que nós nunca podemos apre-
ender a totalidade do ente em si e absolutamente, é certo, po-
rém, que nos encontramos postados em meio ao ente de al-
gum modo desvelado em sua totalidade. Por fim, há uma di-
ferença essencial entre a apreensão da totalidade do ente em
si e o encontrar-se em meio ao ente em sua totalidade. A pri-
meira é fundamentalmente impossível. O segundo, no entan-
to, acontece constantemente em nosso ser-aí. Parece, sem
dúvida, que em nossa rotina cotidiana estamos presos sem-
pre apenas a este ou àquele ente, como se estivéssemos per-
didos neste ou naquele domínio do ente. Mas por mais frag-
mentado que possa parecer o cotidiano, ele sempre retém,
mesmo que vagamente, o ente em uma unidade de "totalida-
de". Mesmo então e justamente então, quando não estamos
propriamente ocupados com as coisas e conosco mesmos,
sobrevém-nos este "na totalidade", por exemplo, no tédio
propriamente dito. Este tédio ainda está muito longe de nos-
sa experiência, quando nos entedia exclusivamente este livro
ou aquele espetáculo, aquela ocupação ou este ócio. Ele de-
sabrocha se "a gente está entediado". O tédio profundo, que
como névoa silenciosa desliza para cá e para lá, nos abismos
do ser-aí, nivela todas as coisas, os homens e a gente mesmo
com elas, em uma estranha indiferença. Esse tédio manifesta
o ente na totalidade.
Uma outra possibilidade de tal manifestação se revela na
alegria pela presença do ser-aí - não da pura pessoa - amado.
Semelhante afinação faz com que a gente se encontre
disposto de tal ou tal maneira - perpassados por esta afina-
ção - em meio ao ente na totalidade. A disposição própria à
tonalidade afetiva não revela apenas, sempre à sua maneira,
o ente em sua totalidade. Ao contrário, este revelar é simulta-
neamente - longe de ser um simples episódio - o aconteci-
mento fundamental de nosso ser-aí.
O que assim chamamos "sentimentos" não é nem um fe-
nômeno secundário fugidio de nosso comportamento pen-
sante e volitivo, nem um simples impulso causador de tal fe-
nômeno, nem um estado atual com o qual temos de nos ha-
ver de uma maneira ou de outra.
o que é metafísica? 121
Contudo, precisamente quando as tonalidades afetivas
nos levam, deste modo, para diante do ente na totalidade,
elas nos ocultam o nada que buscamos. Muito menos sere-
mos agora da opinião de que a negação do ente na totalida-
de, manifesta na tonalidade afetiva, nos ponha diante do
nada. Tal somente poderia acontecer, com a adequada origi-
nariedade, em uma tonalidade afetiva que revele o nada de
acordo com o seu próprio sentido revelador.
Acontece no ser-aí do homem semelhante tonalidade afe-
tiva, na qual ele seja levado à presença do próprio nada?
Este acontecer só é possível e também real - ainda que
bastante raro - por instantes na tonalidade afetiva fundamen-
tal da angústia. Por essa angústia não entendemos a assaz
freqüente ansiedade que, em última análise, pertence aos fe-
nômenos do temor que com tanta facilidade se mostram. A
angústia é radicalmente diferente do temor. Nós nos atemori-
zamos sempre diante deste ou daquele ente determinado que
nos ameaça sob um ou outro aspecto determinado. O temor
de... sempre teme por algo determinado. Pelo fato de o temor
ter como propriedade a limitação de seu "perante o que"
(Wovor) e de seu "pelo que" (Worum), o temeroso e o me-
droso são retidos por aquilo em que se encontram. Ao esfor-
çar-se por se salvar disto - de algo determinado - eles se tor-
nam inseguros com relação às outras coisas, isto é, no todo,
"perdem literalmente a cabeça".
A angústia não deixa mais surgir uma tal confusão. Muito
antes, perpassa-a uma estranha tranqüilidade. Sem dúvida, a
angústia é sempre angústia diante de ..., mas não angústia di-
ante disto ou daquilo. A angústia diante de ... é sempre angús-
tia por. .., mas não por isto ou aquilo. O caráter de indetermi-
nação daquilo diante de e pelo que nos angustiamos, contu-
do, não é apenas uma mera falta de determinação, mas a es-
sencial impossibilidade da determinabilidade. Um exemplo
conhecido nos pode revelar essa impossibilidade.
Na angústia - dizemos - "a gente se sente estranho". O que
suscita tal estranheza e quem é por ela afetado? Não podemos
122 Marcas do caminho
dizer diante de que a gente se sente estranho. A gente se sente
totalmente assim. Todas as coisas e nós mesmos afundamos
em uma índíferença". Isto, entretanto, não no sentido de um
mero desaparecer, mas em se afastando elas se voltam para
nós. Esse afastar-se do ente na totalidade, que nos assedia na
angústia, nos oprime. Não resta nenhum apoio. Só resta e nos
sobrevém - na fuga do ente - este "nenhum".
A angústia torna manifesto o nada.
"Estamos suspensos" na angústia. Dito de maneira mais
clara: a angústia nos suspende, porque ela faz com que o
ente na totalidade venha a se evadir. Nisto consiste o fato de
nós próprios - os homens que somos" - nos co-evadirrnos
em meio ao ente. É por isto que, em última análise, não sou
"eu" que me sinto ou não és "tu" que te sentes estranho, mas
a gente se sente assim. Somente continua presente o puro
ser-aí" no estremecimento deste estar suspenso onde nada
há em que se apoiar.
A angústia corta-nos a palavra. Pelo fato de o ente na totali-
dade se evadir e, assim, justamente o nada nos acossar, emu-
dece em sua presença qualquer dicção do "é". O fato de nós
procurarmos muitas vezes, na estranheza da angústia, buscar-
mos romper o silêncio vazio com palavras sem nexo é apenas
o testemunho da presença do nada. Que a angústia revela o
nada é confirmado imediatamente pelo próprio homem quan-
do a angústia se afasta. Na posse da claridade do olhar, a lem-
brança recente nos leva a dizer: Diante de que e por que nós
nos angustiávamos não era "propriamente" - nada. Efetiva-
mente: o nada mesmo - enquanto tal - estava aí' I.
8. 5Q
edição de 1949: o ente não nos fala mais.
9. 5D edição de 1949: mas não o homem enquanto homem "do" ser-aí.
10. 5D edição de 1949: o ser-aí "no" homem.
11. 5D edição de 1949: significa: revelou-se; desencobrimento e tonalidade
ilctlva.
o que é metafísica? 123
Com a determinação da tonalidade afetiva fundamental
da angústia atingimos o acontecer do ser-aí, no qual o nada
está manifesto e a partir do qual deve ser questionado.
O que acontece com o nada?
A resposta à questão
A resposta, de início a única essencial para o nosso pro-
pósito, já foi alcançada, se tivermos a precaução de manter
realmente formulada a questão acerca do nada. Para isto, se
exige que reproduz amos a transformação do homem 12 em
seu ser-aí que toda angústia deixa acontecer em nós, a fim de
captarmos o nada que nela se manifesta tal como ele se reve-
la. Com isto se impõe, ao mesmo tempo, a exigência de man-
termos expressamente distante a determinação do nada que
não se desenvolveu na abordagem do mesmo.
O nada se revela na angústia - mas não enquanto ente.
Tampouco nos é dado como objeto. A angústia não é uma
apreensão do nada. Não obstante, o nada se torna manifesto
por ela e nela, ainda que não de uma maneira tal como se o
nada se mostrasse separado, "ao lado" do ente na totalidade,
o qual caiu na estranheza". Nós dizemos muito mais o se-
guinte: o nada vem ao encontro na angústia juntamente com
o ente na totalidade. O que significa esse "juntamente com"?
Na angústia, o ente em sua totalidade se torna caduco.
Em que sentido isto acontece? Pois, certamente, o ente não é
destruí do pela angústia para que sobre assim o nada. Como é
que ela poderia fazê-lo quando justamente a angústia se en-
contra na absoluta impotência em face do ente na totalidade.
Ao contrário, o nada anuncia-se propriamente com o e no
ente como algo que se evade na totalidade.
12. 5ª edição de 1949: desencobrimento.
13. 5ª edição de 1949: a diferença.
124 Marcas do caminho
Na angústia não acontece nenhuma destruição de todo o
ente em si, mas tampouco realizamos nós uma negação do
ente na totalidade para, somente então, atingirmos o nada.
Por mais que não consideremos o fato de que é alheio à an-
gústia enquanto tal a formulação expressa de uma enuncia-
ção negativa, mesmo com uma tal negação que deveria ter
por resultado o nada nós chegaríamos sempre tarde demais.
Já antes disto o nada nos visita. Dizíamos que nos visitava
justamente com o ente que se evade na totalidade.
Na angústia reside um retroceder diante de ... que, sem
dúvida, não é mais nenhuma fuga, mas uma quietude fasci-
nada. Esse retroceder diante de ... recebe o seu impulso inicial
do nada. Esse não atrai para si, mas se caracteriza fundamen-
talmente pela rejeição. Tal rejeição que afasta de si é, porém,
enquanto tal, um remeter que deixa o ente desvanecente se
evadir na totalidade. Essa remissão" que rejeita na totalida-
de, uma remissão ao ente que se evade na totalidade, é o
modo de o nada assediar na angústia o ser-aí - é a essência
do nada: a nadificação. Ela não é nem uma destruição do
ente, nem se origina de uma negação. A nadificação também
não se deixa compensar com a destruição e a negação. O
próprio nada nadifica 15.
O nadíficar do nada não é um episódio casual, mas, co-
mo remissão (que rejeita) ao ente na totalidade que se eva-
de, ele torna manifesto esse ente em sua plena, até então
oculta, estranheza como o pura e simplesmente outro - em
face do nada.
Somente na clara noite do nada da angústia surge a aber-
tura originária do ente enquanto tal: o fato de que o ente é - e
não nada. Mas esse "e não nada", acrescentado em nosso
discurso, não é uma explicação tardia e secundária, mas a
14. 511
edição de 1949: re-jeitar: o ente por si; re-meter: ao ser do ente.
15. SG edlçao de 1949: se essencializa como nadificar, dura, outorga o
nada.
o que é metafísica? 125
possibilitação prévia da manífestabllídade" do ente em geral.
A essência do nada originariamente nadíficante consiste em:
conduzir primeiramente o ser-aí para diante 17 do ente enquan-
to tal.
Somente com base na manifestabilidade originária do
nada, o ser-aí do homem pode chegar ao ente e nele entrar.
Na medida, porém, em que o ser-ai assume, de acordo com
sua essência, um comportamento em relação ao ente que ele
próprio não é e que ele próprio é, ele já sempre provém como
tal ser-ai do nada manifesto.
Ser-aí quer dizer": estar suspenso dentro do nada.
Retendo-se" no nada, o ser-aí já está sempre para além do
ente na totalidade. Esse estar para além do ente, nós designa-
mos a transcendência. Se o ser-aí, no fundo de sua essência,
não exercesse o ato de transcender, o que significa agora, se ele
não estivesse retido desde o princípio no nada, então ele ja-
mais poderia assumir um comportamento" em relação ao ente
e, portanto, também não em relação a si mesmo.
Sem a rnanifestabilidade originária do nada, não há ne-
nhum ser-si-mesmo e nenhuma liberdade".
Com isto, conquistamos a resposta à pergunta sobre o
nada. O nada não é nem um objeto, nem um ente em geral. O
nada não ocorre nem para si mesmo, nem ao lado do ente ao
qual, por assim dizer, aderiria. O nada é a possibilitação da
16. 5A edição de 1949: isto é, ser.
17. 511 edição de 1949: expressamente diante do ser do ente, diante da dife-
rença.
18. IA edição de 1929: 1) entre outras coisas não apenas, 2) daí não se se-
gue: portanto, tudo é nada, mas o inverso: assunção e apreensão do ente,
ser e finitude.
19. 5A edição de 1949: quem mantém originariamente?
20. 5i! edição de 1949: isto é, ser e nada o mesmo.
21. 511 edição de 1949: liberdade e verdade no ensaio "Da essência da ver-
dade".
126 Marcas do caminho
manifestabilídade do ente enquanto tal para" o ser-aí huma-
no. O nada não fornece pela primeira vez um conceito oposto
•• • • 23
ao ente, mas pertence ongmanamente ao essenciar mes-
mo. No ser do ente acontece o nadíficar do nada.
Mas agora devemos dar finalmente voz a uma objeção já
por um tempo demasiado reprimida. Se o ser-aí só pode as-
sumir um comportamento em relação ao ente na auto-reten-
ção no nada, se, portanto, somente assim pode existir; e se o
nada só se torna manifesto originariamente na angústia, não
devemos nós, então, pairar constantemente nesta angústia
para, afinal, podermos existir? Não reconhecemos nós mes-
mos que esta angústia originária é rara? Antes de tudo, po-
rém, nós todos existimos de qualquer modo e nos comporta-
mos em relação ao ente que nós não somos e que nós mes-
mos - sem essa angústia. Não é ela uma invenção arbitrária e
o nada a ela atribuído, um exagero?
Ora, mas o que quer dizer: essa angústia originária não
acontece senão em momentos raros? Não outra coisa senão:
o nada nos é de início e na maioria das vezes dissimulado em
sua originariedade. Por meio do que afinal? Pelo fato de nos
perdermos, de determinada maneira, completamente no en-
te. Quanto mais nos voltamos para o ente em nossas ocupa-
ções, tanto menos o deixamos se evadir enquanto tal e tanto
mais voltamos as costas para o nada. E tanto mais segura-
mente, contudo, nos jogamos na superfície pública do ser-aí.
E, no entanto, é este constante, ainda que ambíguo voltar
as costas para o nada que se mostra, em certos limites, como
o sentido seu mais próprio. Ele, o nada em seu nadificar, nos
remete justamente ao ente
24
. O nada nadífica ininterrupta-
mente, sem que saibamos propriamente algo sobre essa na-
dificação com o conhecimento no qual nos movemos cotidia-
namente.
22. 5D edição de 1949: não "por meio de".
3. 5D edição de 1949: essência: verbal; essenciar do ser.
24. lção de 1949: porque no ser do ente.
o que é metafísica? 127
O que testemunha, de modo mais convincente, a constan-
te e difundida, ainda que dissimulada, manífestabllidade do
nada em nosso ser-aí do que a negação? De modo algum, po-
rém, essa negação acrescenta por si o não como meio de distin-
ção e oposição do que é dado, para, por assim dizer, colocá-Io
entre ambos. Como é que a negação poderia também produzir
por si o não, se ela só pode negar se lhe foi previamente dado
algo que pode ser negado? Mas como é que algo negável e a
ser negado pode ser visto como afetado pelo não, se isto não se
der de um modo tal que todo o pensamento enquanto tal já visa
de antemão ao não? Mas o "não" só pode se tornar manifesto,
se sua origem, o nadificar do nada em geral e, com isto, o pró-
prio nada, for retirada de seu velamento. O não não surge por
meio da negação, mas a negação se funda no nã0
25
que, por
sua vez, emerge do nadificar do nada. Mas a negação é tam-
bém apenas um modo de uma relação nadiflcadora, isto quer
dizer, previamente fundado no nadificar do nada.
Com isto queda demonstrada, em seus elementos bási-
cos, a tese acima: o nada é a origem da negação e não o in-
verso, a negação a origem do nada. Se assim se rompe o po-
der do entendimento no campo da interrogação acerca do
nada e do ser, então também se decide, com isto, o destino
do domínio da "lógica"26 no interior da filosofia. A própria
idéia da "lógica" dissolve-se no redemoinho de uma interro-
gação mais originária.
Por mais freqüente e rnultifacetada que seja a forma co-
mo a negação - expressamente ou não - atravessa todo o
pensamento, ela por si só não é de modo algum o testemu-
nho totalmente válido da rnanífestabílidade do nada que per-
tence essencialmente ao ser-aí. Pois a negação não pode ser
proclamada nem o único, nem mesmo o comportamento na-
dificador condutor, pelo qual o ser-aí é sacudido pelo nadifi-
25. 1~ edição de 1929: não obstante, a negação é concebida aqui - assim
como o enunciado - de uma maneira por demais ulterior e extrinseca.
26. 1A edição de 1929: "lógica", isto é, a interpretação tradicional do pen-
samento.
1
128 Marcas do caminho
car do nada. Mais abissal que a pura conveniência da nega-
ção pensante é a dureza da contra-atividade e a agudeza da
indignação. Mais responsável é a dor da frustração e a incle-
mência do proibir. Mais importuna é a aspereza da privação.
Estas possibilidades do comportamento nadificador -
forças em que o ser-ai sustenta seu estar-jogado, ainda que
não o domine - não são modos de mera negação. Mas isto
não os impede de se expressar no "não" e na negação. Atra-
vés daí é que se revela, sem dúvida, de modo mais radical, o
vazio e a amplidão da negação. Este estar o ser-aí totalmente
perpassado pelo comportamento nadificador testemunha a
constante e, sem dúvida, obscurecida manifestabilidade do
nada, que somente a angústia desvela originariamente. Nis-
to, porém, reside o fato de a angústia originária ser na mais
das vezes sufocada no ser-aí. A angústia está aí. Ela apenas
dorme. Seu hálito palpita sem cessar através do ser-aí: mais
raramente o seu tremor perpassa a medrosa e imperceptível
atitude do ser-aí agitado, envolvido pelo "sim, sim" e pelo
"não, não"; bem mais cedo perpassa o ser-aí senhor de si
mesmo; com maior certeza surpreende, com o seu estreme-
cimento, o ser-aí radicalmente audaz. No último caso, contu-
do, isto só acontece a partir daquilo pelo que o ser-aí se prodi-
galiza, para assim conservar a sua derradeira grandeza.
A angústia do audaz não tolera contra posição alguma à
alegria ou mesmo à agradável diversão do tranqüilo abando-
nar-se à deriva. Ela situa-se - aquém de tais oposições - em
uma secreta aliança com a serenidade e com a doçura do
anelo criador. A angústia originária pode despertar a qual-
quer instante no ser-aí. Para tanto, ela não necessita ser des-
pertada por um acontecimento inusitado. À profundidade de
seu vigorar corresponde a insignificância do elemento que
pode provocá-Ia. Ela está continuamente à espreita e, con-
tudo, apenas raramente salta sobre nós para arrastar-nos à si-
tuação em que nos sentimos suspensos.
O estar retido do ser-aí no nada com base na angústia ve-
da transforma o homem no lugar-tenente do nada. Somos
finitos que nós precisamente não somos capazes de nos
o que é metafísica? 1
colocarmos originariamente diante do nada por decisão
vontade próprias. A finitização escava tão insondavelmente
as raízes do ser-aí, que a mais genuína e profunda finitude es-
capa à nossa liberdade.
O estar retido do ser-aí no nada com base na angústia ve-
lada é o ultrapassamento do ente na totalidade: a transcen-
dência.
Nossa interrogação pelo nada tem por meta apresen-
tar-nos a própria metafísica. O nome "metafísica" vem do
grego: J.1€1:ã -rã <pUcrLXcl. Esta expressão surpreendente foi
mais tarde interpretada como designação da interrogação que
vai J.1€-rcl - trans - "além" do ente enquanto tal.
Metafísica é o questionamento que se lança para além do
ente, a fim de recuperá-Io, enquanto tal e na totalidade, para a
compreensão.
Na pergunta pelo nada acontece um tal ir além do ente
enquanto ente na totalidade. Com isto, prova-se que ela é
uma questão "metafísica". No início, demos uma dupla ca-
racterização das questões deste tipo: cada questão metafísi-
ca sempre compreende, por um lado, toda a metafísica. Em
cada questão metafísica, por outro lado, o ser-aí que interro-
ga sempre se encontra co-envolvido.
Em que medida a questão do nada perpassa e compreen-
de a totalidade da metafísica?
A metafísica expressa-se desde a Antigüidade sobre o
nada em uma sentença sem dúvida multívoca: ex nihilo niiu!
[it, do nada nada vem a ser. Ainda que, na discussão da sen-
tença, o nada mesmo nunca se torne problema, a sentença
expressa, contudo, a partir do respectivo ponto de vista sobre
o nada a concepção fundamental do ente que aí é condutora.
A metafísica antiga concebe o nada no sentido do não-ente,
ou seja, da matéria informe que a si mesma não pode dar a
forma de um ente com caráter de figura e, desta maneira, por-
tador de um aspecto (eidos). O ente é a figura que forma a si
mesma e que, enquanto tal, se apresenta como imagem (co-
mo visada). A origem, a justificação e os limites desta con-
130 Marcas do caminho
cepção de ser são tão pouco discutidos como o é o próprio
nada. A dogmática cristã, pelo contrário, nega a verdade da
sentença: ex nihilo nihil tu e dá, com isto, uma significação
modificada ao nada, que, então, passa a significar a absoluta
ausência de ente fora de Deus: ex nihilo tu - ens creatum. O
nada torna-se agora o conceito oposto ao ente propriamente
dito, ao summum ens, a Deus enquanto ens increatum. A
explicação do nada também indica aqui a concepção funda-
mental do ente. A discussão rnetafisica do ente mantém-se,
porém, no mesmo nível que a questão do nada. As questões
do ser e do nada enquanto tais não têm lugar. É por isto que
nem mesmo preocupa a dificuldade de que, se Deus cria do
nada, justamente ele precisa poder entrar em relação com o
nada. Se, porém, Deus é Deus, não pode ele conhecer o
nada, se é certo que o "absoluto" exclui de si tudo o que tem
caráter de nada.
A recordação historiográfica superficial mostra o nada
como conceito oposto ao ente propriamente dito, quer dizer,
como a sua negação. No entanto, se o nada se torna de al-
gum modo problema, então esta relação de oposição não ex-
perimenta apenas, por exemplo, uma determinação mais cla-
ra, mas se suscita então pela primeira vez a colocação propria-
mente metafísica da questão a respeito do ser do ente. O nada
não permanece a face oposta indeterminada do ente, mas se
desvela como pertencente ao ser do ente.
"O puro ser e o puro nada são, portanto, o mesmo". Esta
sentença de Hegel (Ciência da Lógica, Livro I, WW 11I,p. 74)
enuncia algo correto. Ser e nada se compertencem; mas não
porque ambos - vistos a partir da concepção hegeliana do
pensamento - coincidem em sua indeterminação e irnediati-
dade, mas porque o ser mesmo é finito em essência, e somen-
te se manifesta na transcendência do ser-aí suspenso no nada.
Se, por outro lado, a questão acerca do ser enquanto tal é
a questão que envolve a meta física, então está demonstrado
que a questão acerca do nada é uma questão do tipo que
compreende a totalidade da rnetafísíca. A questão acerca do
nada pervade, porém, ao mesmo tempo, a totalidade da me-
o que é metafísica? 131
tafísíca, na medida em que nos força a enfrentar o problema
da origem da negação, isto é, na medida em que nos coloca
fundamentalmente diante da decisão sobre a ligitimidade
com que a "lógica?" impera na rnetafísica.
A velha sentença ex nihilo nihil fit contém, então, um ou-
tro sentido que atinge o próprio problema do ser e diz: ex ni-
hilo omne ens qua ens tit. Somente no nada do ser-aí, o ente
na totalidade chega a si mesmo conforme a sua possibilidade
mais própria, isto é, de modo finito. Em que medida, então, a
questão acerca do nada, se é que ela é uma questão rnetafisi-
ca, já envolveu em si mesma o nosso ser-aí questionador?
Nós caracterizamos o nosso ser-aí experimentado aqui e ago-
ra como essencialmente determinado pela ciência. Se o nos-
so ser-aí assim determinado está colocado na questão acerca
do nada, então ele precisa ter se tornado questionável por
meio desta questão.
O ser-aí científico recebe a sua simplicidade e acribia do
fato de se relacionar com o ente e unicamente com ele de
modo especialíssimo. A ciência quisera abandonar, com um
gesto sobranceiro, o nada. Agora, porém, se torna patente na
interrogação, que esse ser-aí científico só é possível, se ele se
retém previamente no nada. Ele só se compreende realmente
naquilo que ele é, quando não abandona o nada. A aparente
sobriedade e superioridade da ciência transforma-se em ridí-
culo, se não leva a sério o nada. Somente porque o nada é
manifesto, a ciência pode transformar o próprio ente em obje-
to da investigação. Somente se a ciência existe a partir da
rnetafísica, ela é capaz de conquistar sempre novamente a
sua tarefa essencial, que não consiste primeiramente em re-
colher e ordenar conhecimentos, mas na descoberta de todo
o espaço da verdade da natureza e da história, cuja realização
sempre se deve renovar.
É somente porque o nada está manifesto nas raízes do
ser-aí que pode sobrevir-nos a completa estranheza do ente.
27. 1A edição de 1929: isto é, sempre a lógica tradicional e seu logos como
origem das categorias.
132 Marcas do caminho
Somente quando a estranheza do ente nos acossa, ela des-
perta e atrai para si a admiração. É somente baseado na ad-
miração - quer dizer, na manifestabilidade do nada - que sur-
ge o "por quê"? É somente porque é possível o "porquê" en-
quanto tal que podemos perguntar, de maneira determinada,
pelos fundamentos e fundamentar. É somente porque pode-
mos perguntar e fundamentar que foi entregue à nossa exis-
tência o destino do pesquisador.
A questão acerca do nada põe a nós mesmos - que per-
guntamos - em questão. Ela é uma questão metafísica.
O ser-aí humano somente pode entrar em relação com o
ente, se ele se retém no nada. O ultrapassamento do ente
acontece na essência do ser-aí. Esse ultrapassamento, po-
rém, é a própria metafísica. Nisto reside o fato de que a meta-
física pertence à "natureza do homem". Ela não é uma disci-
plina da filosofia "acadêmica", nem um campo de idéias arbi-
trariamente excogitados. A meta física é o acontecimento fun-
damental no ser-aí. Ela é o próprio ser-aí, Pelo fato de a verda-
de da metafísica residir neste fundamento abissal, ela sempre
possui à espreita, como vizinhança mais próxima, a possibili-
dade do erro mais profundo. É por isto que nenhum rigor de
qualquer ciência alcança a seriedade da metafísica. A filoso-
fia jamais pode ser medida pelo padrão da idéia da ciência.
Se realmente acompanhamos, com nossa interrogação,
a questão desenvolvida em torno do nada, então não nos te-
remos representado a metafísica apenas de fora. Nem nos
transportamos também simplesmente para dentro dela. Nem
somos disto capazes porque - na medida em que existimos -
já sempre estamos colocados nela. q>ÚO"€lráp, {;;q>(À€, €V€OL(
nç q>LÀooO<p(a-.TI "tou lxvópÜç ÓLavola (Platão, Fedro, 279a).
, ,
Na medida em que o homem existe, acontece, de certa ma-
neira, o filosofar. Filosofia - o que nós assim designamos - é
nas o pôr em marcha a metafísica, na qual a filosofia che-
JéI a si mesma e conquista as suas tarefas expressas". A filo-
minha, 1a edição de 1967: dito duas vezes: "essência"
dtl 1I1t'lull,lc 11e sua histórica antológico-destinamental; as duas coisas
IlIlIh IllId,''! !:IllIdas da "transversão".
o que é metafísica? 1
sofia somente se põe em movimento por um peculiar salto d
própria existência nas possibilidades fundamentais do ser-aí
na totalidade. Para este salto é decisivo: primeiro, o abrir es-
paço para o ente na totalidade; segundo, o abandonar-se no
nada, quer dizer, o libertar-se dos ídolos que cada qual possui
e para onde costuma refugiar-se subrepticiamente; e, por últi-
mo, permitir que se desenvolva este estar suspenso para que
constantemente retome à questão fundamental da metafísi-
ca que domina o próprio nada:
Por que existe afinal o ente e não antes o Nada?

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O que é metafísica_Heidegger.pdf

  • 1. Martin Heidegger Marcas do caminho Tradução de Enio Paulo Giachini e Ernildo Stein Ib EDITORA Y VOZES Petrópolis Texto 06 o que é metafísica? (1929) "Que é metafísica?" - A pergunta nos dá esperanças de que se falará sobre a metafísica. Não o faremos. Em vez dis- to, discutiremos uma determinada questão metafísica. Pare- ce-nosque, desta maneira, nos transporemos imediatamente para o interior da metafísica. Somente assim lhe damos a me- lhor possibilidade de se apresentar a nós em si mesma. Nosso intuito começa com o desdobramento de uma ques- tão metafísica. Em seguida, ele procura elaborar a questão e se consuma com a sua resposta. o desenvolvimento de uma interrogação metafísica Considerada sob o ponto de vista do saudável entendi- mento humano, a filosofia é, nas palavras de Hegel, o "mun- do às avessas". É por isto que a peculiaridade do que em- preendemos requer uma especificação preparatória. Essa especificação surge de uma dupla característica da interro- gação metafísica. De um lado, toda questão metafísica abarca sempre a to- talidade da problemática da metafísica. Ela é a própria totali- dade. De outro, toda questão metafísica só pode ser formula- da de um tal modo que aquele que interroga, enquanto tal, esteja implicado na questão, isto é, seja problematizado. Daí retiramos a seguinte indicação: a interrogação metafísica de- ve desenvolver-se na totalidade e na situação essencial do ser-aí questionador. Nós perguntamos, aqui e agora, por nós. Nosso ser-aí - na comunidade de pesquisadores, professores e estudantes - é determinado pela ciência. O que acontece HEIDEGGER, Martin. O que é metafísica? In: ______. Marcas do caminho. Petrópolis: Vozes, 2008, p. 113-133.
  • 2. 114 Marcas do caminho de essencial nas raízes do ser-aí, na medida em que a ciência tornou-se nossa paixão? Os domínios das ciências distam muito entre si. Funda- mentalmente diversa é a maneira de tratarem seus objetos. Esta dispersa multiplicidade de disciplinas só continua sendo mantida hoje em uma unidade por meio da organização téc- nica de universidades e faculdades e só conserva um signifi- cado pela fixação das finalidades práticas das especialidades. Em contraste, o enraizamento das ciências em seu funda- mento essencial desapareceu completamente. Contudo, em todas as ciências nós nos relacionamos, dó- ceis a seus propósitos mais autênticos, com o próprio ente. Justamente sob o ponto de vista das ciências, nenhum domí- nio possui hegemonia sobre o outro, nem a natureza sobre a história, nem esta sobre aquela. Nenhum modo de tratamen- to dos objetos supera os outros. Conhecimentos matemáti- cos não são mais rigorosos que os filológico-históricos. A ma- temática possui apenas o caráter de "exatidão" e esse não co- incide com o rigor. Exigir da história exatidão seria chocar-se contra a idéia do rigor específico das ciências humanas. A re- ferência ao mundo, que impera através de todas as ciências enquanto tais, faz com que elas procurem o próprio ente para, conforme o seu conteúdo qüididativo e o seu modo de ser, transformá-lo em objeto de investigação e determinação fundante. Nas ciências realiza-se - no plano das idéias - uma aproximação daquilo que é essencial em todas as coisas. Esta privilegiada referência de mundo ao próprio ente é sustentada e conduzida por uma postura livremente escolhida da existência humana. Também a atividade e a inatividade pré- e extra-científicas do homem assumem um determinado comportamento em relação ao ente. A ciência, porém, distin- gue-se pelo fato de dar, de um modo que lhe é próprio, ex- pressa e unicamente, à própria coisa a primeira e última pala- vra. Em uma maneira tão objetiva de perguntar, determinar e fundar o ente, realiza-se uma submissão peculiarmente limi- tada ao próprio ente, para que este realmente se manifeste. o que é metafísica? 115 Este pôr-se a serviço da pesquisa e do ensino constitui-se co- mo fundamento da possibilidade de um comando próprio, ainda que delimitado, na totalidade da existência humana. A referência particular ao mundo que é característica da ciência e a postura que rege essa referência só são plenamente conce- bidos, quando vemos e compreendemos o que acontece na referência ao mundo assim sustentada. O homem - um ente entre outros - "faz ciência". Neste "fazer" não acontece nada menos do que a irrupção de um ente chamado homem na to- talidade do ente; e isto de tal maneira, em verdade, que na e por meio dessa irrupção se descobre o ente naquilo que e co- mo ele é. Essa irrupção reveladora é o que, em primeiro lugar, colabora, a seu modo, para que o ente chegue a si mesmo. Estas três dimensões - referência ao mundo, postura, ir- rupção - trazem, em sua radical unidade, a clara simplicida- de e severidade do ser-aí para o interior da existência científi- ca. Se quisermos nos apoderar expressamente do ser-aí cien- tífico, assim iluminado, então precisamos dizer: Aquilo para onde se dirige a referência ao mundo é o pró- prio ente - e nada mais 1. Aquilo de onde toda postura recebe a sua orientação é o próprio ente - e nada para além dele. Aquilo com que a confrontação investigadora acontece na irrupção é o próprio ente - e nada para além dele. Mas o estranho é que justamente no modo como o ho- mem científico se assegura do que lhe é mais próprio, ele fala, quer expressamente ou não, de outra coisa. Pesquisado deve ser apenas o ente e mais - nada; somente o ente e além dele - nada; unicamente o ente e para além disto - nada. 1. 1A edição de 1929: considera-se este adendo que segue o travessão co- mo mencionado de maneira arbitrária e artificial, mas não se sabe que Tai- ne, o qual pode ser tomado como representante e sinal de toda uma época ainda. dominante, usou esta fórmula conscientemente para a caracteriza- ção de sua posição fundamental e de sua intenção.
  • 3. 116 Marcas do caminho Que acontece com este nada? É por acaso que esponta- neamente falamos assim? É apenas um modo de falar - e mais nada? Mas porque nos preocupamos com este nada? O nada é justamente rejeitado pela ciência e abandonado como o ele- mento nadificante. E quando, assim, abandonamos o nada, não admitimos precisamente então? Mas podemos nós falar de que admitimos algo, se nada admitimos? Talvez já se per- de tal insegurança da linguagem numa vazia querela de pala- vras. Contra isto deve agora a ciência afirmar novamente sua seriedade e sobriedade: ela se ocupa unicamente do ente. O nada - que outra coisa poderá ser para a ciência que horror e fantasmagoria? Se a ciência tem razão, então uma coisa é in- discutível: a ciência nada quer saber do nada. Esta é afinal a rigorosa concepção científica do nada. Dele sabemos, en- quanto dele, do nada, nada queremos saber. A ciência nada quer saber do nada. Mas não é menos cer- to também que, justamente onde ela procura expressar a sua própria essência", ela recorre ao nada. Aquilo que ela rejeita, ela leva em consideração. Que essência ambívalente" se re- vela aí? Ao refletirmos sobre nossa existência presente - enquan- to uma existência determinada pela ciência -, desemboca- mos em um antagonismo. Através deste conflito já se desen- volveu uma interrogação. A questão exige apenas uma for- mulação adequada: o que acontece com este nada? A elaboração da questão A elaboração da questão acerca do nada deve colocar-nos na situação, a partir da qual a resposta se mostra como possí- velou, então, a impossibilidade de tal resposta se torna eviden- 2.5A edição de 1949: a postura positiva e exclusiva em relação ao ente. 3.3° edição de 1931: diferença ontológica. 5~ edição de 1949: o nada co- mo o ser. o que é metafísica? 117 te. O nada é admitido. A ciência, na sua sobranceira indiferen- ça com relação a ele, rejeita-o como aquilo que "não há". Nós, contudo, procuramos perguntar pelo nada. O que é o nada? Já a primeira abordagem desta questão mostra algo in- sólito. No nosso interrogar já pressupomos antecipadamente o nada como algo que "é" de tal e tal modo - como um ente. É dele precisamente, porém, que o nada se distingue pura e sim- plesrnente". O perguntar pelo nada - pela sua essência e seu modo de ser - converte o interrogado em seu contrário. A questão priva-se a si mesma de seu objeto específico. Se for assim, também toda resposta a esta questão é, desde o início, impossível. Pois ela se desenvolve necessaria- mente sob esta forma: o nada "é" isto ou aquilo. Tanto a per- gunta como a resposta são, no que diz respeito ao nada, igualmente contraditórias em si mesmas. Assim, não é preciso, pois, que a ciência primeiro rejeite o nada. A regra fundamental do pensamento a que comu- mente se recorre, o princípio da não-contradição, a "lógica" universal, arrasa esta pergunta. Pois o pensamento, que é sempre essencialmente pensamento de alguma coisa, deve- ria, enquanto pensamento do nada, agir contra a sua própria essência. Pelo fato de assim nos ficar vedado converter, de algum modo, o nada em objeto, chegamos já ao fim com a nossa in- terrogação pelo nada - contanto que pressuponhamos que nesta questão a "lóqíca'" seja a última instância, que o enten- dimento seja o meio e o pensamento o caminho para com- preender originariamente o nada e para decidir o seu possível desvelamento. Mas é por acaso possível tocar no império da "lógica"? Não é o entendimento realmente o senhor nesta pergunta so- bre o nada? Com efeito, é só com o seu auxilio que podemos 4. 5D edição de 1949: a distinção, a diferença. 5. 1D edição de 1929: isto é, lógica no sentido habitual, aquilo que se consi- dera como sendo a lógica.
  • 4. 118 Marcas do caminho determinar o nada e colocá-lo como um problema, ainda que seja como um problema que devora a si mesmo. Pois o nada é a negação da totalidade do ente, o puro e simplesmente não-ente. Com tal procedimento subsumimos o nada à deter- minação mais alta do negativo e, com isto, ao que parece, do negado. A negação é, contudo, conforme a doutrina domi- nante e nunca alterada da "lógica", um ato específico do en- tendimento. Como podemos nós, pois, pretender rejeitar o entendimento na pergunta pelo nada e até na questão da possibilidade de sua formulação? Mas será que é tão seguro aquilo que aqui pressupomos? Será que o "não", a negativi- dade e, com isto, a negação representam a determinação su- prema a que se subordina o nada como uma espécie particu- lar de negado? "Há" o nada apenas porque há o "não", isto é, a negação? Ou será que não acontece o contrário? Existe a negação e o "não" apenas porque "há" o nada? Isto não está decidido; nem mesmo chegou a ser formulado expressamen- te como questão. Nós afirmamos: o nada é mais oriqínárlo" que o "não" e a negação. Se esta tese é justa, então a possibilidade da negação, co- mo atividade do entendimento, e, com isto, o próprio entendi- mento dependem, de algum modo, do nada. Neste caso, co- mo é que o entendimento poderá querer decidir sobre o nada? Não se baseia afinal o aparente contra-senso de pergunta e resposta no que diz respeito ao nada na cega obstinação? de um entendimento que se pretende sem fronteiras? Se, entretanto, não nos deixarmos enganar pela impossibi- lidade formal da questão do nada e se apesar dessa impossibi- lidade ainda a formulamos, então devemos satisfazer ao me- nos aquilo que permanece válido como a exigência fundamen- tal para a possível formulação de qualquer questão. Se o nada deve ser questionado - ele mesmo -, então é preciso que ele teja primeiramente dado. Devemos poder encontrá-Ia. fi. f,1 ,'111<,.110ele 1949: ordem originária. ',i ..clh;/o d,' 1919: a cega obstinação: a certitudo do ego cogito, subjeti- 111<1.11 It o Que é metafísica? 11 Onde procuramos o nada? Onde encontramos o nad Para que encontremos algo não precisamos, por acaso, já s ber que ele está presente? De fato! De início e na maioria das vezes o homem só é capaz de buscar se tiver antecipado presença do que busca. Agora, porém, aquilo que se busca é o nada. Há, por fim, um buscar sem aquela antecipação, um buscar ao qual pertence um puro encontrar? Seja como for, nós conhecemos o nada, mesmo que seja apenas aquilo sobre o que cotidianamente falamos inadverti- damente. Podemos até, sem hesitar, ordenar este nada vul- gar em uma "definição", com toda palidez do óbvio, que tão discretamente ronda nossa conversa: O nada é a plena negação da totalidade do ente. Esta ca- racterística do nada não nos fornece, por fim, uma indicação da direção na qual unicamente teremos uma possibilidade de encontrá-Io? A totalidade do ente deve ser previamente dada para que possa ser submetida enquanto tal simplesmente à negação, na qual, então, o próprio nada deverá se manifestar. Mesmo, porém, que prescindamos da problematicidade da relação entre a negação e o nada, como deveremos nós - enquanto seres finitos - tornar acessível para nós, em si e particularmente, o todo do ente em sua omnitude? Em todo caso, contudo, podemos pensar a "idéia" da totalidade do ente e, então, negar em pensamento o assim figurado e "pen- sá-lo" enquanto negado. Por esta via obteremos, certamente, o conceito formal do nada figurado, mas jamais o próprio nada. O nada, porém, não é nada e entre o nada figurado e o nada "autêntico" não pode imperar uma diferença, se é que o nada representa realmente a absoluta indistinção. Mas e o próprio nada "autêntico", ele não é por sua vez aquele concei- to oculto, mas absurdo, de um nada que é? Paremos aqui com as perguntas. Que tenha sido este o momento derradei- ro em que as objeções do entendimento retiveram a nossa busca, uma busca que só pode ser legitimada por uma expe- riência fundamental do nada.
  • 5. 120 Marcas do caminho Assim como é inconteste que nós nunca podemos apre- ender a totalidade do ente em si e absolutamente, é certo, po- rém, que nos encontramos postados em meio ao ente de al- gum modo desvelado em sua totalidade. Por fim, há uma di- ferença essencial entre a apreensão da totalidade do ente em si e o encontrar-se em meio ao ente em sua totalidade. A pri- meira é fundamentalmente impossível. O segundo, no entan- to, acontece constantemente em nosso ser-aí. Parece, sem dúvida, que em nossa rotina cotidiana estamos presos sem- pre apenas a este ou àquele ente, como se estivéssemos per- didos neste ou naquele domínio do ente. Mas por mais frag- mentado que possa parecer o cotidiano, ele sempre retém, mesmo que vagamente, o ente em uma unidade de "totalida- de". Mesmo então e justamente então, quando não estamos propriamente ocupados com as coisas e conosco mesmos, sobrevém-nos este "na totalidade", por exemplo, no tédio propriamente dito. Este tédio ainda está muito longe de nos- sa experiência, quando nos entedia exclusivamente este livro ou aquele espetáculo, aquela ocupação ou este ócio. Ele de- sabrocha se "a gente está entediado". O tédio profundo, que como névoa silenciosa desliza para cá e para lá, nos abismos do ser-aí, nivela todas as coisas, os homens e a gente mesmo com elas, em uma estranha indiferença. Esse tédio manifesta o ente na totalidade. Uma outra possibilidade de tal manifestação se revela na alegria pela presença do ser-aí - não da pura pessoa - amado. Semelhante afinação faz com que a gente se encontre disposto de tal ou tal maneira - perpassados por esta afina- ção - em meio ao ente na totalidade. A disposição própria à tonalidade afetiva não revela apenas, sempre à sua maneira, o ente em sua totalidade. Ao contrário, este revelar é simulta- neamente - longe de ser um simples episódio - o aconteci- mento fundamental de nosso ser-aí. O que assim chamamos "sentimentos" não é nem um fe- nômeno secundário fugidio de nosso comportamento pen- sante e volitivo, nem um simples impulso causador de tal fe- nômeno, nem um estado atual com o qual temos de nos ha- ver de uma maneira ou de outra. o que é metafísica? 121 Contudo, precisamente quando as tonalidades afetivas nos levam, deste modo, para diante do ente na totalidade, elas nos ocultam o nada que buscamos. Muito menos sere- mos agora da opinião de que a negação do ente na totalida- de, manifesta na tonalidade afetiva, nos ponha diante do nada. Tal somente poderia acontecer, com a adequada origi- nariedade, em uma tonalidade afetiva que revele o nada de acordo com o seu próprio sentido revelador. Acontece no ser-aí do homem semelhante tonalidade afe- tiva, na qual ele seja levado à presença do próprio nada? Este acontecer só é possível e também real - ainda que bastante raro - por instantes na tonalidade afetiva fundamen- tal da angústia. Por essa angústia não entendemos a assaz freqüente ansiedade que, em última análise, pertence aos fe- nômenos do temor que com tanta facilidade se mostram. A angústia é radicalmente diferente do temor. Nós nos atemori- zamos sempre diante deste ou daquele ente determinado que nos ameaça sob um ou outro aspecto determinado. O temor de... sempre teme por algo determinado. Pelo fato de o temor ter como propriedade a limitação de seu "perante o que" (Wovor) e de seu "pelo que" (Worum), o temeroso e o me- droso são retidos por aquilo em que se encontram. Ao esfor- çar-se por se salvar disto - de algo determinado - eles se tor- nam inseguros com relação às outras coisas, isto é, no todo, "perdem literalmente a cabeça". A angústia não deixa mais surgir uma tal confusão. Muito antes, perpassa-a uma estranha tranqüilidade. Sem dúvida, a angústia é sempre angústia diante de ..., mas não angústia di- ante disto ou daquilo. A angústia diante de ... é sempre angús- tia por. .., mas não por isto ou aquilo. O caráter de indetermi- nação daquilo diante de e pelo que nos angustiamos, contu- do, não é apenas uma mera falta de determinação, mas a es- sencial impossibilidade da determinabilidade. Um exemplo conhecido nos pode revelar essa impossibilidade. Na angústia - dizemos - "a gente se sente estranho". O que suscita tal estranheza e quem é por ela afetado? Não podemos
  • 6. 122 Marcas do caminho dizer diante de que a gente se sente estranho. A gente se sente totalmente assim. Todas as coisas e nós mesmos afundamos em uma índíferença". Isto, entretanto, não no sentido de um mero desaparecer, mas em se afastando elas se voltam para nós. Esse afastar-se do ente na totalidade, que nos assedia na angústia, nos oprime. Não resta nenhum apoio. Só resta e nos sobrevém - na fuga do ente - este "nenhum". A angústia torna manifesto o nada. "Estamos suspensos" na angústia. Dito de maneira mais clara: a angústia nos suspende, porque ela faz com que o ente na totalidade venha a se evadir. Nisto consiste o fato de nós próprios - os homens que somos" - nos co-evadirrnos em meio ao ente. É por isto que, em última análise, não sou "eu" que me sinto ou não és "tu" que te sentes estranho, mas a gente se sente assim. Somente continua presente o puro ser-aí" no estremecimento deste estar suspenso onde nada há em que se apoiar. A angústia corta-nos a palavra. Pelo fato de o ente na totali- dade se evadir e, assim, justamente o nada nos acossar, emu- dece em sua presença qualquer dicção do "é". O fato de nós procurarmos muitas vezes, na estranheza da angústia, buscar- mos romper o silêncio vazio com palavras sem nexo é apenas o testemunho da presença do nada. Que a angústia revela o nada é confirmado imediatamente pelo próprio homem quan- do a angústia se afasta. Na posse da claridade do olhar, a lem- brança recente nos leva a dizer: Diante de que e por que nós nos angustiávamos não era "propriamente" - nada. Efetiva- mente: o nada mesmo - enquanto tal - estava aí' I. 8. 5Q edição de 1949: o ente não nos fala mais. 9. 5D edição de 1949: mas não o homem enquanto homem "do" ser-aí. 10. 5D edição de 1949: o ser-aí "no" homem. 11. 5D edição de 1949: significa: revelou-se; desencobrimento e tonalidade ilctlva. o que é metafísica? 123 Com a determinação da tonalidade afetiva fundamental da angústia atingimos o acontecer do ser-aí, no qual o nada está manifesto e a partir do qual deve ser questionado. O que acontece com o nada? A resposta à questão A resposta, de início a única essencial para o nosso pro- pósito, já foi alcançada, se tivermos a precaução de manter realmente formulada a questão acerca do nada. Para isto, se exige que reproduz amos a transformação do homem 12 em seu ser-aí que toda angústia deixa acontecer em nós, a fim de captarmos o nada que nela se manifesta tal como ele se reve- la. Com isto se impõe, ao mesmo tempo, a exigência de man- termos expressamente distante a determinação do nada que não se desenvolveu na abordagem do mesmo. O nada se revela na angústia - mas não enquanto ente. Tampouco nos é dado como objeto. A angústia não é uma apreensão do nada. Não obstante, o nada se torna manifesto por ela e nela, ainda que não de uma maneira tal como se o nada se mostrasse separado, "ao lado" do ente na totalidade, o qual caiu na estranheza". Nós dizemos muito mais o se- guinte: o nada vem ao encontro na angústia juntamente com o ente na totalidade. O que significa esse "juntamente com"? Na angústia, o ente em sua totalidade se torna caduco. Em que sentido isto acontece? Pois, certamente, o ente não é destruí do pela angústia para que sobre assim o nada. Como é que ela poderia fazê-lo quando justamente a angústia se en- contra na absoluta impotência em face do ente na totalidade. Ao contrário, o nada anuncia-se propriamente com o e no ente como algo que se evade na totalidade. 12. 5ª edição de 1949: desencobrimento. 13. 5ª edição de 1949: a diferença.
  • 7. 124 Marcas do caminho Na angústia não acontece nenhuma destruição de todo o ente em si, mas tampouco realizamos nós uma negação do ente na totalidade para, somente então, atingirmos o nada. Por mais que não consideremos o fato de que é alheio à an- gústia enquanto tal a formulação expressa de uma enuncia- ção negativa, mesmo com uma tal negação que deveria ter por resultado o nada nós chegaríamos sempre tarde demais. Já antes disto o nada nos visita. Dizíamos que nos visitava justamente com o ente que se evade na totalidade. Na angústia reside um retroceder diante de ... que, sem dúvida, não é mais nenhuma fuga, mas uma quietude fasci- nada. Esse retroceder diante de ... recebe o seu impulso inicial do nada. Esse não atrai para si, mas se caracteriza fundamen- talmente pela rejeição. Tal rejeição que afasta de si é, porém, enquanto tal, um remeter que deixa o ente desvanecente se evadir na totalidade. Essa remissão" que rejeita na totalida- de, uma remissão ao ente que se evade na totalidade, é o modo de o nada assediar na angústia o ser-aí - é a essência do nada: a nadificação. Ela não é nem uma destruição do ente, nem se origina de uma negação. A nadificação também não se deixa compensar com a destruição e a negação. O próprio nada nadifica 15. O nadíficar do nada não é um episódio casual, mas, co- mo remissão (que rejeita) ao ente na totalidade que se eva- de, ele torna manifesto esse ente em sua plena, até então oculta, estranheza como o pura e simplesmente outro - em face do nada. Somente na clara noite do nada da angústia surge a aber- tura originária do ente enquanto tal: o fato de que o ente é - e não nada. Mas esse "e não nada", acrescentado em nosso discurso, não é uma explicação tardia e secundária, mas a 14. 511 edição de 1949: re-jeitar: o ente por si; re-meter: ao ser do ente. 15. SG edlçao de 1949: se essencializa como nadificar, dura, outorga o nada. o que é metafísica? 125 possibilitação prévia da manífestabllídade" do ente em geral. A essência do nada originariamente nadíficante consiste em: conduzir primeiramente o ser-aí para diante 17 do ente enquan- to tal. Somente com base na manifestabilidade originária do nada, o ser-aí do homem pode chegar ao ente e nele entrar. Na medida, porém, em que o ser-ai assume, de acordo com sua essência, um comportamento em relação ao ente que ele próprio não é e que ele próprio é, ele já sempre provém como tal ser-ai do nada manifesto. Ser-aí quer dizer": estar suspenso dentro do nada. Retendo-se" no nada, o ser-aí já está sempre para além do ente na totalidade. Esse estar para além do ente, nós designa- mos a transcendência. Se o ser-aí, no fundo de sua essência, não exercesse o ato de transcender, o que significa agora, se ele não estivesse retido desde o princípio no nada, então ele ja- mais poderia assumir um comportamento" em relação ao ente e, portanto, também não em relação a si mesmo. Sem a rnanifestabilidade originária do nada, não há ne- nhum ser-si-mesmo e nenhuma liberdade". Com isto, conquistamos a resposta à pergunta sobre o nada. O nada não é nem um objeto, nem um ente em geral. O nada não ocorre nem para si mesmo, nem ao lado do ente ao qual, por assim dizer, aderiria. O nada é a possibilitação da 16. 5A edição de 1949: isto é, ser. 17. 511 edição de 1949: expressamente diante do ser do ente, diante da dife- rença. 18. IA edição de 1929: 1) entre outras coisas não apenas, 2) daí não se se- gue: portanto, tudo é nada, mas o inverso: assunção e apreensão do ente, ser e finitude. 19. 5A edição de 1949: quem mantém originariamente? 20. 5i! edição de 1949: isto é, ser e nada o mesmo. 21. 511 edição de 1949: liberdade e verdade no ensaio "Da essência da ver- dade".
  • 8. 126 Marcas do caminho manifestabilídade do ente enquanto tal para" o ser-aí huma- no. O nada não fornece pela primeira vez um conceito oposto •• • • 23 ao ente, mas pertence ongmanamente ao essenciar mes- mo. No ser do ente acontece o nadíficar do nada. Mas agora devemos dar finalmente voz a uma objeção já por um tempo demasiado reprimida. Se o ser-aí só pode as- sumir um comportamento em relação ao ente na auto-reten- ção no nada, se, portanto, somente assim pode existir; e se o nada só se torna manifesto originariamente na angústia, não devemos nós, então, pairar constantemente nesta angústia para, afinal, podermos existir? Não reconhecemos nós mes- mos que esta angústia originária é rara? Antes de tudo, po- rém, nós todos existimos de qualquer modo e nos comporta- mos em relação ao ente que nós não somos e que nós mes- mos - sem essa angústia. Não é ela uma invenção arbitrária e o nada a ela atribuído, um exagero? Ora, mas o que quer dizer: essa angústia originária não acontece senão em momentos raros? Não outra coisa senão: o nada nos é de início e na maioria das vezes dissimulado em sua originariedade. Por meio do que afinal? Pelo fato de nos perdermos, de determinada maneira, completamente no en- te. Quanto mais nos voltamos para o ente em nossas ocupa- ções, tanto menos o deixamos se evadir enquanto tal e tanto mais voltamos as costas para o nada. E tanto mais segura- mente, contudo, nos jogamos na superfície pública do ser-aí. E, no entanto, é este constante, ainda que ambíguo voltar as costas para o nada que se mostra, em certos limites, como o sentido seu mais próprio. Ele, o nada em seu nadificar, nos remete justamente ao ente 24 . O nada nadífica ininterrupta- mente, sem que saibamos propriamente algo sobre essa na- dificação com o conhecimento no qual nos movemos cotidia- namente. 22. 5D edição de 1949: não "por meio de". 3. 5D edição de 1949: essência: verbal; essenciar do ser. 24. lção de 1949: porque no ser do ente. o que é metafísica? 127 O que testemunha, de modo mais convincente, a constan- te e difundida, ainda que dissimulada, manífestabllidade do nada em nosso ser-aí do que a negação? De modo algum, po- rém, essa negação acrescenta por si o não como meio de distin- ção e oposição do que é dado, para, por assim dizer, colocá-Io entre ambos. Como é que a negação poderia também produzir por si o não, se ela só pode negar se lhe foi previamente dado algo que pode ser negado? Mas como é que algo negável e a ser negado pode ser visto como afetado pelo não, se isto não se der de um modo tal que todo o pensamento enquanto tal já visa de antemão ao não? Mas o "não" só pode se tornar manifesto, se sua origem, o nadificar do nada em geral e, com isto, o pró- prio nada, for retirada de seu velamento. O não não surge por meio da negação, mas a negação se funda no nã0 25 que, por sua vez, emerge do nadificar do nada. Mas a negação é tam- bém apenas um modo de uma relação nadiflcadora, isto quer dizer, previamente fundado no nadificar do nada. Com isto queda demonstrada, em seus elementos bási- cos, a tese acima: o nada é a origem da negação e não o in- verso, a negação a origem do nada. Se assim se rompe o po- der do entendimento no campo da interrogação acerca do nada e do ser, então também se decide, com isto, o destino do domínio da "lógica"26 no interior da filosofia. A própria idéia da "lógica" dissolve-se no redemoinho de uma interro- gação mais originária. Por mais freqüente e rnultifacetada que seja a forma co- mo a negação - expressamente ou não - atravessa todo o pensamento, ela por si só não é de modo algum o testemu- nho totalmente válido da rnanífestabílidade do nada que per- tence essencialmente ao ser-aí. Pois a negação não pode ser proclamada nem o único, nem mesmo o comportamento na- dificador condutor, pelo qual o ser-aí é sacudido pelo nadifi- 25. 1~ edição de 1929: não obstante, a negação é concebida aqui - assim como o enunciado - de uma maneira por demais ulterior e extrinseca. 26. 1A edição de 1929: "lógica", isto é, a interpretação tradicional do pen- samento. 1
  • 9. 128 Marcas do caminho car do nada. Mais abissal que a pura conveniência da nega- ção pensante é a dureza da contra-atividade e a agudeza da indignação. Mais responsável é a dor da frustração e a incle- mência do proibir. Mais importuna é a aspereza da privação. Estas possibilidades do comportamento nadificador - forças em que o ser-ai sustenta seu estar-jogado, ainda que não o domine - não são modos de mera negação. Mas isto não os impede de se expressar no "não" e na negação. Atra- vés daí é que se revela, sem dúvida, de modo mais radical, o vazio e a amplidão da negação. Este estar o ser-aí totalmente perpassado pelo comportamento nadificador testemunha a constante e, sem dúvida, obscurecida manifestabilidade do nada, que somente a angústia desvela originariamente. Nis- to, porém, reside o fato de a angústia originária ser na mais das vezes sufocada no ser-aí. A angústia está aí. Ela apenas dorme. Seu hálito palpita sem cessar através do ser-aí: mais raramente o seu tremor perpassa a medrosa e imperceptível atitude do ser-aí agitado, envolvido pelo "sim, sim" e pelo "não, não"; bem mais cedo perpassa o ser-aí senhor de si mesmo; com maior certeza surpreende, com o seu estreme- cimento, o ser-aí radicalmente audaz. No último caso, contu- do, isto só acontece a partir daquilo pelo que o ser-aí se prodi- galiza, para assim conservar a sua derradeira grandeza. A angústia do audaz não tolera contra posição alguma à alegria ou mesmo à agradável diversão do tranqüilo abando- nar-se à deriva. Ela situa-se - aquém de tais oposições - em uma secreta aliança com a serenidade e com a doçura do anelo criador. A angústia originária pode despertar a qual- quer instante no ser-aí. Para tanto, ela não necessita ser des- pertada por um acontecimento inusitado. À profundidade de seu vigorar corresponde a insignificância do elemento que pode provocá-Ia. Ela está continuamente à espreita e, con- tudo, apenas raramente salta sobre nós para arrastar-nos à si- tuação em que nos sentimos suspensos. O estar retido do ser-aí no nada com base na angústia ve- da transforma o homem no lugar-tenente do nada. Somos finitos que nós precisamente não somos capazes de nos o que é metafísica? 1 colocarmos originariamente diante do nada por decisão vontade próprias. A finitização escava tão insondavelmente as raízes do ser-aí, que a mais genuína e profunda finitude es- capa à nossa liberdade. O estar retido do ser-aí no nada com base na angústia ve- lada é o ultrapassamento do ente na totalidade: a transcen- dência. Nossa interrogação pelo nada tem por meta apresen- tar-nos a própria metafísica. O nome "metafísica" vem do grego: J.1€1:ã -rã <pUcrLXcl. Esta expressão surpreendente foi mais tarde interpretada como designação da interrogação que vai J.1€-rcl - trans - "além" do ente enquanto tal. Metafísica é o questionamento que se lança para além do ente, a fim de recuperá-Io, enquanto tal e na totalidade, para a compreensão. Na pergunta pelo nada acontece um tal ir além do ente enquanto ente na totalidade. Com isto, prova-se que ela é uma questão "metafísica". No início, demos uma dupla ca- racterização das questões deste tipo: cada questão metafísi- ca sempre compreende, por um lado, toda a metafísica. Em cada questão metafísica, por outro lado, o ser-aí que interro- ga sempre se encontra co-envolvido. Em que medida a questão do nada perpassa e compreen- de a totalidade da metafísica? A metafísica expressa-se desde a Antigüidade sobre o nada em uma sentença sem dúvida multívoca: ex nihilo niiu! [it, do nada nada vem a ser. Ainda que, na discussão da sen- tença, o nada mesmo nunca se torne problema, a sentença expressa, contudo, a partir do respectivo ponto de vista sobre o nada a concepção fundamental do ente que aí é condutora. A metafísica antiga concebe o nada no sentido do não-ente, ou seja, da matéria informe que a si mesma não pode dar a forma de um ente com caráter de figura e, desta maneira, por- tador de um aspecto (eidos). O ente é a figura que forma a si mesma e que, enquanto tal, se apresenta como imagem (co- mo visada). A origem, a justificação e os limites desta con-
  • 10. 130 Marcas do caminho cepção de ser são tão pouco discutidos como o é o próprio nada. A dogmática cristã, pelo contrário, nega a verdade da sentença: ex nihilo nihil tu e dá, com isto, uma significação modificada ao nada, que, então, passa a significar a absoluta ausência de ente fora de Deus: ex nihilo tu - ens creatum. O nada torna-se agora o conceito oposto ao ente propriamente dito, ao summum ens, a Deus enquanto ens increatum. A explicação do nada também indica aqui a concepção funda- mental do ente. A discussão rnetafisica do ente mantém-se, porém, no mesmo nível que a questão do nada. As questões do ser e do nada enquanto tais não têm lugar. É por isto que nem mesmo preocupa a dificuldade de que, se Deus cria do nada, justamente ele precisa poder entrar em relação com o nada. Se, porém, Deus é Deus, não pode ele conhecer o nada, se é certo que o "absoluto" exclui de si tudo o que tem caráter de nada. A recordação historiográfica superficial mostra o nada como conceito oposto ao ente propriamente dito, quer dizer, como a sua negação. No entanto, se o nada se torna de al- gum modo problema, então esta relação de oposição não ex- perimenta apenas, por exemplo, uma determinação mais cla- ra, mas se suscita então pela primeira vez a colocação propria- mente metafísica da questão a respeito do ser do ente. O nada não permanece a face oposta indeterminada do ente, mas se desvela como pertencente ao ser do ente. "O puro ser e o puro nada são, portanto, o mesmo". Esta sentença de Hegel (Ciência da Lógica, Livro I, WW 11I,p. 74) enuncia algo correto. Ser e nada se compertencem; mas não porque ambos - vistos a partir da concepção hegeliana do pensamento - coincidem em sua indeterminação e irnediati- dade, mas porque o ser mesmo é finito em essência, e somen- te se manifesta na transcendência do ser-aí suspenso no nada. Se, por outro lado, a questão acerca do ser enquanto tal é a questão que envolve a meta física, então está demonstrado que a questão acerca do nada é uma questão do tipo que compreende a totalidade da rnetafísíca. A questão acerca do nada pervade, porém, ao mesmo tempo, a totalidade da me- o que é metafísica? 131 tafísíca, na medida em que nos força a enfrentar o problema da origem da negação, isto é, na medida em que nos coloca fundamentalmente diante da decisão sobre a ligitimidade com que a "lógica?" impera na rnetafísica. A velha sentença ex nihilo nihil fit contém, então, um ou- tro sentido que atinge o próprio problema do ser e diz: ex ni- hilo omne ens qua ens tit. Somente no nada do ser-aí, o ente na totalidade chega a si mesmo conforme a sua possibilidade mais própria, isto é, de modo finito. Em que medida, então, a questão acerca do nada, se é que ela é uma questão rnetafisi- ca, já envolveu em si mesma o nosso ser-aí questionador? Nós caracterizamos o nosso ser-aí experimentado aqui e ago- ra como essencialmente determinado pela ciência. Se o nos- so ser-aí assim determinado está colocado na questão acerca do nada, então ele precisa ter se tornado questionável por meio desta questão. O ser-aí científico recebe a sua simplicidade e acribia do fato de se relacionar com o ente e unicamente com ele de modo especialíssimo. A ciência quisera abandonar, com um gesto sobranceiro, o nada. Agora, porém, se torna patente na interrogação, que esse ser-aí científico só é possível, se ele se retém previamente no nada. Ele só se compreende realmente naquilo que ele é, quando não abandona o nada. A aparente sobriedade e superioridade da ciência transforma-se em ridí- culo, se não leva a sério o nada. Somente porque o nada é manifesto, a ciência pode transformar o próprio ente em obje- to da investigação. Somente se a ciência existe a partir da rnetafísica, ela é capaz de conquistar sempre novamente a sua tarefa essencial, que não consiste primeiramente em re- colher e ordenar conhecimentos, mas na descoberta de todo o espaço da verdade da natureza e da história, cuja realização sempre se deve renovar. É somente porque o nada está manifesto nas raízes do ser-aí que pode sobrevir-nos a completa estranheza do ente. 27. 1A edição de 1929: isto é, sempre a lógica tradicional e seu logos como origem das categorias.
  • 11. 132 Marcas do caminho Somente quando a estranheza do ente nos acossa, ela des- perta e atrai para si a admiração. É somente baseado na ad- miração - quer dizer, na manifestabilidade do nada - que sur- ge o "por quê"? É somente porque é possível o "porquê" en- quanto tal que podemos perguntar, de maneira determinada, pelos fundamentos e fundamentar. É somente porque pode- mos perguntar e fundamentar que foi entregue à nossa exis- tência o destino do pesquisador. A questão acerca do nada põe a nós mesmos - que per- guntamos - em questão. Ela é uma questão metafísica. O ser-aí humano somente pode entrar em relação com o ente, se ele se retém no nada. O ultrapassamento do ente acontece na essência do ser-aí. Esse ultrapassamento, po- rém, é a própria metafísica. Nisto reside o fato de que a meta- física pertence à "natureza do homem". Ela não é uma disci- plina da filosofia "acadêmica", nem um campo de idéias arbi- trariamente excogitados. A meta física é o acontecimento fun- damental no ser-aí. Ela é o próprio ser-aí, Pelo fato de a verda- de da metafísica residir neste fundamento abissal, ela sempre possui à espreita, como vizinhança mais próxima, a possibili- dade do erro mais profundo. É por isto que nenhum rigor de qualquer ciência alcança a seriedade da metafísica. A filoso- fia jamais pode ser medida pelo padrão da idéia da ciência. Se realmente acompanhamos, com nossa interrogação, a questão desenvolvida em torno do nada, então não nos te- remos representado a metafísica apenas de fora. Nem nos transportamos também simplesmente para dentro dela. Nem somos disto capazes porque - na medida em que existimos - já sempre estamos colocados nela. q>ÚO"€lráp, {;;q>(À€, €V€OL( nç q>LÀooO<p(a-.TI "tou lxvópÜç ÓLavola (Platão, Fedro, 279a). , , Na medida em que o homem existe, acontece, de certa ma- neira, o filosofar. Filosofia - o que nós assim designamos - é nas o pôr em marcha a metafísica, na qual a filosofia che- JéI a si mesma e conquista as suas tarefas expressas". A filo- minha, 1a edição de 1967: dito duas vezes: "essência" dtl 1I1t'lull,lc 11e sua histórica antológico-destinamental; as duas coisas IlIlIh IllId,''! !:IllIdas da "transversão". o que é metafísica? 1 sofia somente se põe em movimento por um peculiar salto d própria existência nas possibilidades fundamentais do ser-aí na totalidade. Para este salto é decisivo: primeiro, o abrir es- paço para o ente na totalidade; segundo, o abandonar-se no nada, quer dizer, o libertar-se dos ídolos que cada qual possui e para onde costuma refugiar-se subrepticiamente; e, por últi- mo, permitir que se desenvolva este estar suspenso para que constantemente retome à questão fundamental da metafísi- ca que domina o próprio nada: Por que existe afinal o ente e não antes o Nada?