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v.1, n.2 – julho 2014
Volume 1, número 2, julho 2014 Volume 1, issue 2, July 2014 
EDITORES GERAIS EDITORS-IN-CHIEF 
Vinicius Kauê Ferreira (UFSC) 
Barbara Maisonnave Arisi (UNILA) 
EDITORA DESTE NÚMERO CURRENT ISSUE 
Barbara Maisonnave Arisi (UNILA) 
EDITORES DE SEÇÃO SECTION EDITORS 
Felipe Bruno Martins Fernandes (UFBA) 
Wagner Xavier Camargo (UFSCAR) 
DESIGN E PROJETO GRÁFICO GRAPHIC DESIGNER 
Vinicius Kauê Ferreira 
IMAGEM DE CAPA COVER IMAGE 
Peter Terrin, Kayapó 1, 2014. Acrílico sobre tela. 
185 x 185 cm. 
Novos Debates: Fórum de Debates em Antropologia / Associação Brasileira de Antropologia. Vol.1, n.2, julho 2014. Brasília: Associação Brasileira de Antropologia, 2014. 
Semestral 
ISSN 2358-0097 
1. Antropologia – Periódicos. I. Associação Brasileira de Antropologia
SOBRE A IMAGEM DE CAPA 
Peter Terrin é artista plástico. Nascido na Bélgica, atualmente vive em Puerto Aventuras, no México, onde tem seu atelier e galeria. Após graduar-se como Desinger de Têxteis na Providenciaal Technisch Instituut Kortrijk, viajou extensamente nos últimos 14 anos, tendo trabalhado e vivido em Ibiza/Espanha, na Áustria, na Venezuela, na República Dominicana e no México. A pintura da senhora Kayapó que ilustra nossa capa integra uma série de 10 obras de retratos que Terrin fez de pessoas desse povo indígena. "Amo a sabedoria e a inocência em seus rostos, as pinturas coloridas que usam e sou tocado pela história que existe por trás de sua luta", escreveu o pintor. Essa coleção Kayapó será exposta durante o próximo outono em Toronto, no Canadá, junto a trabalhos dos fotógrafos Art Wolfe, Martin Schoeller e Crsitina Mittermeier. O autor afirma que doará grande parte dos lucros obtido com a venda dessas obras para ajudar o povo Kayapó. Para acompanhar o processo da obra que ilustra essa capa de Novos Debates: https://www.youtube.com/watch?v=yeaPdg2yoio#t=48.
V.1, N.2 
julho 2014 
__________ Editorial Barbara Arisi _____________ NOVAS PESQUISAS VMDL : Breves considerações sobre rolezinho, narrativas de classe, redes e a cidade Louise Scoz Pasteur de Faria, Moisés Kopper As situações-limite e seus desdobramentos sobre as vidas das mulheres que lutaram contra a ditadura no Brasil Lívia de Barros Salgado Homossexualidade indígena no Brasil: desafios de uma pesquisa Estevão Rafael Fernandes Sobre a possibilidade de se tornar uma “boa família”: afirmações e representações no pleito à adoção movido por gays e lésbicas Ricardo Andrade Coitinho Filho A homossexualidade na manutenção dos vínculos familiares Alessandra Caroline Ghiorzi, Flávio Luiz Tarnovski 
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Feira Krahô de Sementes Tradicionais: cosmologia, história e ritual no contexto de um projeto de segurança alimentar Júlio César Borges Índios, quilombolas, árabes e nordestinos e o sabor amargo do cacau Eduardo Alfredo Morais Guimarães _____________ FÓRUM O problema Wagner Xavier Camargo Vai ter Copa no Brasil Arlei Sander Damo FIFA, ópio do povo Luiz Henrique de Toledo A Copa e o Brasil Alexandre Fernandez Vaz Copa do Mundo 2014 José Renato de Campos Araújo Entre o óbvio e o escamoteado Wagner Xavier Camargo _____________ 
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RESENHAS "Esse obscuro objeto da pesquisa: um manual de método, técnicas e teses em Antropologia", de Oscar Calavia Sáez. Daniel Gordillo Sánchez Sapos e Princesas: prazer e segredo entre praticantes de crossdressing no Brasil, de Anna Paula Vencato Francisco Cleiton Vieira Silva do Rego _____________ OPINIÃO O que faz um animal de estimação na antropologia Jean Segata 
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EDITORIAL com alegria, apresentamos o segundo número da novos debates Novos Debates convida a todas para desfrutar de seu segundo número. Como aprendemos com os povos com os quais trabalhamos, queremos caminhar no fio da navalha entre “tradição”e “inovação” para produzir algo original e criativo que se localize no gume do “limite cortante” da pesquisa de ponta antropológica. Nessa edição, procuramos iniciar a avaliação com revisores duplos e cegos (doble-blind reviewers) de todos os textos da seção “novas pesquisas”. Agradecemos imensamente a colaboração das revisoras. Desse modo, esperamos contribuir para que jovens pesquisadoras melhorem sua capacidade crítica em relação a seus próprios textos e propostas de pesquisa e, desse modo, enriqueçam a produção antropológica da academia no Brasil. Incentivamos também jovens revisoras a participar do diálogo com novas pequisadoras, assim atendendo a uma de nossas metas fundamentais que é, justamente, renovar continuamente a Antropologia brasileira. Muitas de nossas pareceristas são estudantes de mestrado e doutorado e levaram muito à sério o convite, empenhando-se em colaborar para que as autoras melhorassem seus textos. Somos gratas ao empenho de todas e todos. Os textos que apresentamos devem muito à dedicação de vocês, pareceristas e autoras. Esperamos continuar a cumprir nosso papel de criar um espaço dinâmico de diálogo e debate entre pares, especialmente, estimulando a produção de qualidade de jovens pesquisadoras.
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9 Gostaríamos de agradecer também à dedicação de colegas que editaram as seções. A Fórum, aos cuidados do pós-doutorando Wagner Camargo (UFSCar), provocou um grupo seleto de cientistas sociais a apresentarem suas pesquisas sobre o megaevento realizado esse mês no Brasil: a Copa do Mundo de futebol (masculino, como enfatiza Camargo, pesquisador dedicado à área de gênero e sexualidades, especialmente em sua intersecção com esportes). Desse modo, procuramos expôr o debate super atual sobre a relação entre espetáculo, protestos, mercado e esporte. A vida cotidana e contemporânea é escrutinada e temos a chance de poder acompanhar “ao vivo” e “de camarote” tais discussões e reflexões. As resenhas foram editadas pelo jovem professor Felipe Fernandes (UFBA). Os últimos livros de Antropologia escritos por Anna Paula Vencato e Oscar Calavia Sáez são apresentados por estudantes que exercitam a fundamental atividade de compreender e explicitar os pontos principais dessas obras. Esperamos, com essa seção, estimular pesquisadoras a elaborarem mais e melhores sínteses. Consideramos que é a partir de resenhas bem escritas que aprende-se a dialogar com outras ideias. Procurar entender e interpretar o que outros escrevem é a base sólida de um diálogo profundo, por isso aproveitamos para estimular a que mais colegas mandem contribuições de resenhas de obras contemporâneas para que a gente siga promovendo as trocas acadêmicas a partir de nossa plataforma virtual. As seções Opinião e a Novas Pesquisas foram editadas por mim e agradeço a colaboração e os inúmeros emails trocados com autoras e revisoras, aprendi muito com vocês. Por fim, agradeço também a Vinicius Kauê Ferreira que realizou a alimentação do sítio e o trabalho de revisão. Muito obrigada também a Carine Lemos, da ABA, que tramitou e obteve a inscrição de nosso registro próprio no ISSN (na sigla em inglês International Standard Serial Number). Agora, somos oficialmente uma publicação seriada, o que também muito nos honra. Com alegria, mantemos a missão de criar um novo espaço para novas ideias, um fórum online de publicações. Promovida pela Associação Brasileira de Antropologia, a revista é voltada a pesquisadoras em formação e também à participação de professoras.
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10 Pretendemos ser um fórum de divulgação ampla e de reflexão crítica sobre a produção antropológica contemporânea, através de modelos alternativos de contribuições. Novos Debates é a criação de um espaço dinâmico de diálogo, circulação de opiniões e embates necessários à formação das novas gerações em antropologia. Que venham muitas edições futuras e muitas Novos Debates! Barbara Arisi Editora de Novos Debates
N O V A S P E S Q U I S A S
VMDL1 
breves considerações sobre rolezinho, narrativas de classe, redes e a cidade Louise Scoz Pasteur de Faria Doutoranda em Antropologia Social – Bolsa CNPq Universidade Federal do Rio Grande do Sul Moisés Kopper Doutorando em Antropologia Social – Bolsa CNPq Universidade Federal do Rio Grande do Sul 
1 VMDL é a abreviação do termo “rolezeiro” “VaMO DaLe”, operado em circunstâncias de rolé, que evoca o entusiasmo, a excitação e as expectativas depositadas sobre seus eventos e festas.
LOUISE SCOZ PASTEUR DE FARIA E MOISÉS KOPPER 
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Domingo, 23 de março de 2014. Um evento criado no site de rede social Facebook anunciava, para essa data, o Rolezinho no Shopping Praia de Belas2. Localizado entre a região central e sul da cidade de Porto Alegre, é ponto de convergência do constante fluxo de veículos que partem de ambas zonas urbanas e transeuntes que circulam na pista da Usina do Gasômetro, desenhada ao longo de parte do Rio Guaíba, e no Parque Marinha do Brasil que compreende uma área de pouco mais de 70 hectares ao lado do empreendimento. A expectativa era grande. A página indicava cerca de 1,2 mil presenças confirmadas desde o dia 16 de março, quando a proposta havia sido lançada, que se concentrariam nas dependências do shopping a partir da uma hora da tarde sem hora para acabar. 
Além do evidente interesse por parte de empresários ligados ao setor, o episódio atraiu a atenção de agentes da mídia e acadêmicos. Ao contrário da imagem massiva que o número de presença confirmadas suscitava, pequenos grupos pulverizados chegavam continuamente ao longo do dia e circulavam animadamente dentro e fora do empreendimento em um exercício de ver e ser visto, tanto que por certos momentos parecia haver mais seguranças do que rolezeiros3 curtindo no shopping. 
Uma cena em particular chamou nossa atenção. Um grupo de cinco garotas se reúnem na área de convivência do pavimento térreo, circundada por escadas rolantes, bancos e plantas decorativas, vistas até do último andar. Com câmeras fotográficas e celulares, conversam sobre a fotografia que seria tirada naquele momento. Entre risadas e brincadeiras, logo partem para debaixo da escada rolante cuja face é espelhada tal como as laterais. Elas enxergam seu reflexo e começam a arrumar sua imagem no espelho para produzir a melhor foto possível. Poses feitas, a imagem é capturada. 
Não somente as garotas e o shopping estariam amalgamados na composição. A imagem não servia apenas para elas verem a si próprias e para os outros as verem, mas como registro de que aquelas paredes e espelhos também as viram. Observamos cenas semelhantes em diferentes incursões de campo, 
2 https://www.facebook.com/events/1398139017123890/?fref=ts, Acesso em 26 de março de 2014. 
3 Termo pelo qual se passou a referir as pessoas que frequentam os rolés.
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conduzidas em eventos publicizados na cidade de Porto Alegre em 2014. Pequenos grupos que se cruzam aqui e ali, se reorganizam em aglomerações maiores, num circuito que transcende a arquitetura planejada dos shopping centers. 
A temática do rolezinho adquiriu surpreendente ressonância, provocando efeitos em discussões envolvendo setores especializados, leigos e intelectuais. A maneira como parece ecoar muito se assemelha ao jogo de espelhos daquelas cinco garotas: de que modo as imagens produzidas por esses campos colidem, cooperam ou nem ao menos dialogam para produzir esse amplo e, por muitas vezes, escorregadio debate que toca em questões político-econômicas, tecnológicas e teórico conceituais fundamentais do Brasil contemporâneo. Sobretudo, parece questionar nossa própria habilidade de enxergar e refletir. Sobre o que estamos realmente falando quando falamos de rolezinho? 
A ótica pela qual sugerimos perceber o fenômeno resiste a quaisquer separações radicais entre eventos e repercussões. A partir da antropologia urbana nosso “objeto” adquire inteligibilidade em uma dupla dimensão que nos faz repensar a cidade a partir de novas dinâmicas que conectam a materialidade do digital à concretude dos lugares, assim como os especialistas e seus projetos de conhecimento à sociedade brasileira na conformação das paisagens urbanas nacionais. 
Interessam-nos, nesse exercício reflexivo inicial, os modos pelos quais o rolezinho se converteu tanto em problema como em artigo valioso que merece atenção de diferentes modalidades especializadas e acadêmicas nas disputas por seu legado político, econômico e social. Na emergência de um fenômeno cujas fronteiras não estão sedimentadas eclodem diversas apropriações acionadas em disputas pelo seu entendimento. O que a aproximação de certos campos intelectuais pode indicar a respeito do que está em jogo na construção dessa população-alvo e que relações de poder estão implicadas na difusa noção de “inclusão social” pelo acesso a bens e espaços de consumo? 
Desde os primeiros estudos sobre os processos de ocupação de shopping centers enquanto espaços de prática de lazer e consumo na contemporaneidade, diversos esforços foram empreendidos na tentativa de compreendê-los a partir das trajetórias múltiplas de seus frequentadores e suas dinâmicas de circulação
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(Frugoli Jr, 2008; 2011). Tais predileções metodológicas estavam afinadas com a apropriação das teorias de classe oriundas do contexto sociológico francês (Bourdieu, 2008) e a proposição de modelos analíticos ainda emergentes, que teriam seu apogeu no trabalho de Gilberto Velho no Museu Nacional e José Cantor Magnani na USP com conceitos como “estilos de vida”, “manchas”, “pedaços”. 
O rápido processo de deterioração dos usos de espaços tidos como públicos e o deslocamento de práticas de sociabilidade de camadas médias e altas para esses empreendimentos na década de 1980 pautou parte desse debate. Como logo ficou claro, esses locais não eram isentos de processos de massificação. Converteram-se em palcos de dramatização de questões cruciais como nos lembra Frugoli Jr (2008: 234-240) com relação às manifestações de grupos homossexuais e negros na década de 2000. 
Nos dias de hoje, os shopping centers se colocam como cenário dos rolezinhos. A grande mídia parece situar sua origem em um evento no início de dezembro de 2013, quando milhares de jovens mobilizados através da rede social Facebook se reuniram para ouvir funk ostentação4 no estacionamento do Shopping Metrô Itaquera, em São Paulo. 
Esse evento disjuntivo converteu a categoria em baluarte definitório de uma série de outros acontecimentos em diferentes shoppings centers de São Paulo e de outras capitais brasileiras, caracterizados por pequenas aglomerações de jovens oriundos de periferias. Alguns deles, possuidores de milhares de seguidores nessas plataformas digitais, faziam desses encontros uma oportunidade de contato com seus fãs, distribuição de autógrafos e entrega de presentes. 
Isso produziu um debate acadêmico sobre os efeitos da inserção desses jovens em redes de consumo construindo dois pólos de tensão: de um lado a ocupação de shopping centers como resistência política à exclusão crônica que assolaria populações tradicionalmente à margem do consumo - e, supõe-se, da cidadania. De outro, o processo de reificação do fascínio pelas marcas e de seu 
4 O funk ostentação é um estilo musical que, diferentemente do funk carioca, não fala sobre crime ou drogas, mas sobre mulheres, dinheiro, marcas e bens de consumo. Sem discos lançados, os MCs adquiriram fama com clipes publicados no site YouTube.
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poder simbólico. 
Essa compreensão parte de alguns pressupostos tácitos. Em primeiro lugar, a ideia de que esses espaços se converteram em dispositivos agregadores de processos culturais, permitindo a coexistência de distintos estilos de vida que transcendem o escopo definitório de seus gestores. Isso implica o reordenamento do valor da noção de “público”, modelo que requer um constante tornar evidente o consumo como recurso de acesso a essa experiência. Com isso, a própria cidade do ponto de vista de fluxos imobiliários, subjetivos e expressivos tem por efeito acentuar a edificação de muros e empreendimentos privados (Caldeira, 2000) e o recrudescimento da vigilância, higienização, gentrificação e normatização desses espaços (Leite, 2001). 
Se invertêssemos a figura imóvel do shopping center, tão definida nessas análises, seríamos tentados a observar o material não mais na concretude física dos objetos, mas no espaço imaginado onde essas relações tomam forma. No caso dos rolezinhos, fica nítido que tal dimensão inclui necessariamente a esfera do virtual digital, muitas vezes mal descrita como malha disforme que resiste à concretude física (Miller, 2013), que alerta para modos de construção socio- técnica da cidade. 
Parece-nos que a potência da temática do rolezinho em sua dimensão epistêmica está em congregar uma série de elementos distintos que lhe dão corpo, alguns compreensíveis em contraste com um contexto histórico mais amplo dos fluxos urbanos e outros mais recentes, como os discursos relativos à “nova classe média” brasileira e ao crescimento do mercado consumidor interno, expansão do acesso à tecnologia e às redes telemáticas e a emergência de estéticas locais que animam esses agentes em suas vidas cotidianas, como é o caso do “funk ostentação”. Muitas das insuficiências explicativas sobre os efeitos dos rolezinhos, como a sensação de que somos incapazes de entendê-lo por meio de nossas estruturas de pensamento, parece decorrer do modo como categorias prévias operam no campo de debates, sugerindo passagens sutis entre retóricas e expertises fragmentadas. 
Em poucas palavras, falar sobre rolezinhos significa produzir justificações para questões políticas e intelectuais mais amplas: sobre o que é o Brasil, o que acontece com sua desigualdade e suas pessoas, problemas que
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tocam em projetos de conhecimento no Brasil sobre o Brasil. E, no trato etnográfico desses rastros, o antropólogo é convidado a dirigir sua atenção para o não dito refletido nessas operações de transubstanciação ideológica. 
Referências Bibliográficas 
BOURDIEU, Pierre. 2008. A Distinção: crítica social do julgamento. São Paulo: Edusp; Porto Alegre: Zouk. 
CALDEIRA, Teresa P. R.. 2000. Cidade de Muros: crime, segregação e cidadania em São Paulo. São Paulo: Editora 34. 
FRUGOLI JUNIOR, Heitor. 2008. “Sociabilidade e consumo nos shoppings centers de São Paulo: eventos e desafios recentes”. In: M.L. Bueno; L.O.L. Camargo (orgs.). Cultura e Consumo: estilos de vida na contemporaneidade. São Paulo: Editora Senac. 
_____. 2011. “Esboços de uma trajetória: cidade, pesquisa, universidade”. Iluminuras, 12(28): 18-40. 
LEITE, Rogerio Proença. 2001. Espaço público e política dos lugares: usos do patrimônio cultural na reinvenção contemporânea do Recife Antigo. Tese de Doutorado, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Unicamp, Campinas. 
MILLER, Daniel. 2013. “The Digital and the Human: A prospectus for Digital Anthropology”. In: H. Horst e D. Miller (orgs.). Digital Anthropology. Berg: New York. 
Louise Scoz Pasteur de Faria 
Doutoranda em Antropologia Social – Bolsa CNPq 
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Moisés Kopper 
Doutorando em Antropologia Social – Bolsa CNPq 
Universidade Federal do Rio Grande do Sul 
Currículo Lattes
AS SITUAÇÕES-LIMITE E SEUS DESDOBRAMENTOS SOBRE AS VIDAS DAS MULHERES QUE LUTARAM CONTRA A DITADURA NO BRASIL Lívia de Barros Salgado Mestranda em Ciências Sociais Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro Bolsista CAPES
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Introdução 
O período entre 1964 e 1985 foi marcado pela violência estatal e cerceamento da liberdade da população brasileira. O cenário era de opressão e perseguição aos opositores, resultando em centros de torturas clandestinos e da prática de “desaparecimentos forçados”. O Ato Institucional nº 5, em 1968, intensificou ainda mais o caráter ditatorial do regime, e o governo passou a ter plenos poderes para cassar mandatos, suspender direitos políticos e o habeas corpus em crimes contra a segurança nacional, além de outras medidas. Nesse contexto foi generalizado o uso da tortura e outros desmandos, tudo em nome da “segurança nacional”. 
Apesar da violência estatal, o período também se caracterizou por importantes focos de resistência. Esse cenário possibilitou uma maior participação feminina nas questões políticas do país. É importante destacar que as mulheres que se envolveram na luta política eram consideradas duplamente desviantes. Além de perseguição sofrida por serem contra a ordem vigente, o apoio à revolução era, para os padrões da época, uma forma de negar a própria condição feminina, ou negar determinado modelo de feminilidade, ligado à vocação da mulher para o lar e para a maternidade (Cordeiro, 2008). 
Em função da violência que sofreram, as mulheres tiveram que conviver e se adaptar a diferentes condições de vida. Essa experiência, a qual Gati Pietrocolla (1996) denominou de viver entre parênteses, retira o sujeito do seu ambiente, corta suas ligações com seu mundo e afetos originais. A partir de então, surgem novas formas de se perceber. À luz dessa questão, o objetivo desta pesquisa5 é perceber como a entrada na clandestinidade e a tortura afetaram o indivíduo6 e a identidade7 da militante, sobretudo em função da sua 
5 O presente trabalho faz parte da pesquisa, ainda em andamento, pelo PPGCS - UFRRJ. O texto apresentando é um recorte da pesquisa, cujo objetivo é apreender como homens e mulheres, que viveram durante a ditadura militar, concebem a violência sofrida. Intenciona-se comparar as narrativas a respeito da violência a fim de perceber em que medida os padrões de gênero conduzem formas de pensar e sentir os eventos. 
6 O indivíduo é entendido, no presente trabalho, a partir da perspectiva de Dumont (1992), e, portanto, diz respeito ao indivíduo “elementar”, indivisível, tanto no sentido biológico como enquanto sujeito pensante. 
7 É preciso considerar que identidade é uma categoria construída, na medida em que esse conceito assumiu diferentes sentidos nas diferentes sociedade, com bases em seus diferentes costumes e mentalidades. A partir do trabalho de Mauss (2003), considero a identidade como uma forma singular, uma individualidade específica, resultado dessa construção. Ela está
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condição de gênero. Para tanto, serão analisadas entrevista e depoimentos 8 obtidos por meio de trabalho de campo no Grupo Tortura Nunca Mais (GTNM) e na Comissão Estadual da Verdade (CEV), ambos do Rio de Janeiro9. 
As situações-limites 
Tortura 
Cecília10 menciona, em seu depoimento, a dificuldade de falar do período em que teve sua vida afetada pelo regime. Segundo a mesma, falar dos três meses em que esteve presa é falar de uma viagem ao inferno, marcada por sentimentos de desamparo, solidão, medo, pânico e desespero. Para ela, o objetivo da tortura não era fazer falar, mas calar através da dor, da humilhação e degradação do indivíduo. 
Além disso, Cecília menciona que a tortura destinada à mulher era “violentamente machista”, marcada por palavras ofensivas ditas de forma agressiva e violenta, com objetivo de anular a mulher que se encontrava naquela situação. Exemplo disso está presente na fala do então diretor do Dops, que a intimidava aos berros: “Fale, sua puta comunista, com quantos você trepou?”. Fica evidente, desse modo, o lugar da mulher subversiva na relação de poder 
relacionada à consciência e ao caráter pensante do ser humano. Assim, a identidade é entendida como uma forma fundamental do pensamento e da ação. 
8 Embora muitos trabalhos não utilizem o nome verdadeiro dos entrevistados, optei por utilizá- los. Quando entrevistei Victória Grabois, presidente do GTNM-RJ, a mesma autorizou a utilização de seu nome. Destaco que, em razão do lugar ocupado por ela, é necessário que seu nome esteja vinculado a suas falas, pois atribui ainda mais legitimidade ao que é dito. Seu nome, portanto, é dotado do que Bourdieu (2010) chama de capital simbólico. Além disso, no caso de Cecília, Lúcia e Dulce, uma vez que seu depoimentos foram dados em público, também optei por usar seus nomes verdadeiros. 
9 O GTNM/RJ foi fundado em 1985 por iniciativa de ex-presos políticos que viveram situações de tortura durante o regime militar e por familiares de mortos e desaparecidos políticos e, desde então, tornou-se uma referência importante no cenário nacional. No que se refere a Comissão da Verdade, existem muitas espalhadas pelo país, tanto a nível nacional como nos demais Estados. Porém, meu enfoque é dado sobre a CEV-Rio, criada em 2012, a partir da Lei nº 6335. A Comissão visa esclarecer as circunstâncias das violações de direitos humanos, elucidar os casos de torturas, mortes, desaparecimentos forçados, ocultação de cadáveres e sua autoria; além de outras medidas. 
10 Cecília Coimbra é vice-presidente e uma das fundadoras do GTNM-RJ. Esteve presa de agosto a novembro, de 1970. Cecília forneceu seu depoimento por escrito às Comissões da Verdade, Estadual e Nacional, e o mesmo foi disponibilizado a mim pelo GTNM.
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com o torturador. Colocar-se contra ao sistema de relação de gênero vigente fazia com que a mulher fosse considerada “puta” e, por isso, tinha sua tortura diretamente relacionada ao fato de ser mulher. 
Outro aspecto mencionado por Cecília foi o fato de ter sido forçada a assistir seu companheiro ser torturado, o que considerou pior do que a própria tortura que sofreu. Tal situação pode ser compreendida dentro do que Goffman chamou de mortificação do eu. Segundo o autor, nas instituições totais podem "haver ocasiões em que um indivíduo testemunha um ataque físico a alguém com quem tem ligações, e sofre a mortificação permanente de nada ter feito (e os outros saberem que nada fez)" (Goffman, 1996: p. 38). Assim, o indivíduo sofre não só pelo ataque direto, mas também quando vê seus companheiros sendo torturados, sem ter o que fazer diante da situação. 
Ao relatar sua experiência, Lúcia11 ressalta que as lembranças são confusas, pois se manifestam em sua memória sem continuidade. Além disso, ela menciona que a descrição da tortura que sofreu jamais seria compatível com o que ocorreu, pois se trata de um “horror indescritível”. Em diferentes momentos, afirma que foi a pior coisa que viveu. Desse modo, deixa clara a fragilidade da pessoa diante da tortura, que, segundo ela, era um método de aniquilamento progressivo, que nunca parecia ter fim. 
A partir da fala de Lúcia, é possível pensar no que Butler (2010) chama de “vidas precárias”. Para a autora, uma vida concreta não pode ser danificada ou perdida sem antes ter sido considerada como vida. Se certas vidas não são qualificadas enquanto tais, não serão consideradas vividas ou perdidas no sentido absoluto da palavra. Entendendo a vida das militantes a partir dessa perspectiva, a existência delas poderia ser desprezada pelo regime e, portanto, passível de todas as práticas de torturas e atrocidades. 
Outras questões que contribuíam para o desequilíbrio individual das militantes eram a perda da noção do tempo e a ausência de uma rotina. A esse 
11 Lúcia Murat é cineasta e foi presa no Congresso estudantil, em Ibiúna, em outubro de 1968. Seu depoimento encontra-se disponível em http://atarde.uol.com.br/politica/materias/1506981-depoimento-de-lucia-murat-a-comissao- da-verdade-do-rio .
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respeito, Dulce12 comenta em seu depoimento que, quando ficou sozinha na cela achava que enlouqueceria. Então, inventou duas atividades para passar o tempo: “eu contava ladrilhos do chão e fazia tranças com as palhas retiradas dos colchões.” Segundo Goffman, o tempo perdido na prisão justifica a prática de atividades de distração, capazes de fazer o internado esquecer um pouco da sua situação. Nesse sentido, a criação de atividades “pode ajudar o indivíduo a suportar a tensão psicológica usualmente criada pelos ataques ao eu.” (Goffman, 1996: p. 66). 
Clandestinidade 
Victória13 afirma em entrevista que, apesar de não ter sido presa, viveu uma situação-limite enquanto esteve clandestina. Victória revelou ter entrado na clandestinidade em 1964 e saído somente 1980 após a Lei de Anistia. Logo de início, tirou uma nova documentação, passando a se chamar Tereza. A clandestinidade, de acordo com Elizabeth Ferreira (1996), é uma experiência difícil, principalmente em relação ao peso cultural que o nome do indivíduo tem. Como defendeu Bourdieu (2006), o nome próprio transmite a identidade de seu portador e é uma apresentação oficial dele mesmo. Dessa forma, a interferência no nome é o mesmo que interferir no indivíduo “elementar”, proposto por Dumont (1992). 
Victória comenta ter vivido uma situação particular em relação às amizades. Ela diz que na clandestinidade não tinha amigas, quem as tinha era a Tereza. Contudo, começou a desenvolver uma amizade muito forte com Ana 14. Quando estava em situação de risco, Victória/Tereza deixava seu filho na casa dela para que tomasse conta, “eu comprometi a vida dela e dos filhos dela, sem ela saber.” Depois de algum tempo, começou a dar indícios de que vivia algo muito particular, para que quando Ana soubesse não levasse um choque. 
12 Dulce Paldolfi é historiadora e foi presa quando ainda estava na universidade, em agosto de 1970. Depoimento disponível em http://racismoambiental.net.br/2013/05/integra-do- depoimento-da-historiadora-dulce-pandolfi-a-comissao-estadual-da-verdade-do-rio-de- janeiro/ 
13 Victória Grabois é a atual presidente do Grupo Tortura Nunca Mais, e esteve clandestina durante quase todo o regime militar. Com a mesma, pude realizar entrevista pessoalmente. 
14 Nesse caso, optou-se por utilizar um nome fictício, na medida em que ela foi citada na entrevista de Victória.
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Assim que saiu a Anistia, Victória/Tereza precisou tirar uma nova carteira de identidade para voltar a ser Victória. Feito isso, foi contar para Ana sua história. Enquanto Ana dirigia, Victória explicou sua história a ela, que perguntou seu verdadeiro nome. Victória, porém, não conseguiu dizer: “eu não conseguia dizer meu nome. Não saia. (...) Aí quando chegou na porta de casa, eu abri minha bolsa, tirei minha carteira de identidade e mostrei pra ela”. Tal fato evidencia a dificuldade que Victória tinha de se reconhecer como tal, já que havia passado 16 anos sendo Tereza. 
A ditadura fez com que ela tivesse que abrir mão da sua vida. Porém, Victória afirma que faria tudo de novo, pois a militância lhe deu uma história. Dessa forma, sua vida “não foi em vão”. A partir do exposto, é possível inferir que sua vida se confunde com a militância. A mesma afirma que a militância a mantém viva: “Eu não posso parar. Enquanto eu puder lutar, né... e vai ser até o dia que eu morrer. Ou vou ficar numa cama se eu não puder sair de casa, mas assim mesmo se eu ainda puder falar e escrever, eu escrevo e falo.” Além disso, argumenta como se sua militância fizesse parte de sua “essência”, na medida em que afirma “Tá em mim. Eu sou filha de mãe e pai comunista, né?” 
Considerações finais 
As condições da experiência nas situações-limite não eliminam os arranjos sociais negociados pelas militantes, porém os reproduzem de outra forma em outro nível de realidade, dando novo significado à vida social. Uma nova conjuntura foi apresentada a elas, exigindo adaptação à nova situação. Há uma reorganização de sua relação com o espaço, com o tempo, além de um novo código social. Ao analisar a condição humana no viver entre parênteses, é possível perceber nas entrevistas a forma como suas identidades foram reconfiguradas pela ditadura. Na medida em que a tortura violava seus corpos femininos, dava a elas a condição de objeto e interferia em sua capacidade de sobrevivência, essas mulheres tinham a sua condição de indivíduo autônomo afetada pelo regime. Do mesmo modo, a clandestinidade também colocava as militantes em uma nova situação, na medida em que elas construíam para si novas formas de existir, uma nova identidade, e precisavam aprender a lidar com um novo “eu”.
LIVIA DE BARROS SALGADO 
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Bibliografia 
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Lívia de Barros Salgado 
Mestranda em Ciências Sociais 
Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro 
Bolsista CAPES 
Currículo Lattes
HOMOSSEXUALIDADE INDÍGENA NO BRASIL desafios de uma pesquisa 
Estevão Rafael Fernandes 
Professor da Universidade Federal de Rondônia 
Doutorando em Estudos Comparados sobre as Américas 
Universidade de Brasília Ilustração de Theodor de Bry (1528-1598)
ESTEVÃO RAFAEL FERNANDES 
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Este texto busca levantar alguns dos questionamentos que tenho elaborado desde que escolhi como tema de pesquisa o ativismo homossexual indígena no Brasil a partir de uma perspectiva comparada com os Estados Unidos. Na verdade, tratam estas reflexões justamente do que eu não tenho encontrado na literatura e como, a partir disso, minhas preocupações analíticas vêm tomando corpo. 
Ao longo da pesquisa tenho observado que há, no Brasil, diversas referências a sexualidades indígenas operando fora do modelo heteronormativo desde a colonização. Autores como Mott (2011), por exemplo, trazem inúmeros exemplos de como o “pecado nefando” e a “pederastia” eram algo relativamente comum entre os indígenas: os Tupinambá chamariam de tibira aos homens e de çacoaimbeguira às mulheres que fossem o que se chamaria hoje de “homossexuais” (adiante problematizarei isso, inclusive o título que dei a este texto); entre os Guaicurus eles seriam chamados cudinhos, entre os Mbya, guaxu; entre os Krahò, cunin; entre os Kadiwéu, kudina; entre os Javaé, hawakyni; e assim por diante. Vários antropólogos (Wagley, 1977; Clastres, 1995,2003; Lévi-Strauss, 1996; Gregor, 1985; Murphy, 1955; Métraux, 1948; Darcy Ribeiro, 1997; para citarmos apenas alguns) mencionariam, ainda que en passant em suas etnografias, práticas que seriam classificadas a primeira vista como “homo” ou “bissexualidade”1. 
Ao longo da pesquisa, noto que esse mapeamento de práticas e autores traz uma série de implicações (epistemológicas, políticas, conceituais, etc.) que compensam um esforço de sistematização como o que se pretende este artigo. 
Em primeiro lugar, termos como bi, homo, trans, etc., não são unívocos, nem política ou epistemologicamente neutros. Práticas como a masturbação 
1 Infelizmente, por uma questão tanto de estratégia de análise quanto de espaço não poderei aqui problematizar ou contextualizar da forma devida – e merecida – as menções que tais autores fazem sobre o tema, mesmo por ser algo ainda em desenvolvimento na confecção da minha tese. Posso adiantar, contudo, que tanto os etnólogos mencionados (incluindo outros, como Baldus, 1937; Couto de Magalhães, 1837; e Rosário, 1839) quanto os cronistas e missionários que abordam o tema (D’Abeville, Gandavo, Léry, Nóbrega, Thevet e Soares de Sousa) não problematizam a questão nem a inserem no corpus cosmológico ameríndio. Além disso – e como exponho a seguir – quase sempre esses autores não fazem maiores distinções em se tratando de terminologia, utilizando-se de “sodomia”, “nefando”, “homossexualidade”, “berdache”, etc., como se fossem termos sinônimos ou intercambiáveis, sem maiores problematizações. Se, por um lado, tal imprecisão oferece um problema ao pesquisador no que diz respeito à comparação e à análise, por outro, fornece uma outra possibilidade analítica, por colocar em questão o lugar de enunciação dessas fontes. Contudo, como assinalei, trata-se de um tema complexo cujo espaço e escopo, lamentavelmente, escapam a este texto.
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entre cunhados, ou o sexo anal ocasional em caçadas e rituais não podem ser percebidos como práticas homossexuais sem problematizações. Tampouco a simples tradução das práticas percebidas como “sexualmente desviantes” para termos indígenas (como feito acima) dá conta da complexidade analítica que a questão implica. Nesse sentido, e seguindo aqui o que escrevem os ativistas two- spirit (ver adiante a explicação sobre tal termo), talvez seja mais produtivo pensar em termos de “queer indígena”, uma vez que tal perspectiva deslocaria o foco analítico das práticas, em si, e colocaria em evidência as relações de poder que historicamente moldaram a heterossexualidade compulsória a que os indígenas foram submetidos. 
Justifico entretanto o mapeamento dessas condutas pelo interesse em mostrar como tal conjunto de práticas era comum em sociedades indígenas brasileiras, sem que houvessem estigmas sobre essas pessoas por parte de seu grupo. Tem sido bastante comum, ao longo da realização do trabalho de campo – realizado desde 2012 junto a indígenas e órgãos do governo responsável pela gestão da política indigenista no Brasil, além de setores dos movimentos indígenas e homossexuais no Brasil e nos Estados Unidos -; ouvir que casos de homo/bi/transexualidade nas aldeias existem por conta da “perda de cultura” ou da “depravação advinda do contato”. Contudo, há várias fontes apontando para um papel espiritual central desempenhado por esses indivíduos em suas aldeias: o que os missionários e colonizadores percebiam como uma depravação era, muitas vezes, percebido como potencial xamânico pelos indígenas. 
Assim, a experiência indígena norte-americana é bastante interessante. Lá, como cá, sexualidades fora do modelo predominante foram também perseguidas por portugueses, ingleses, franceses e espanhóis. Diversas denominações foram utilizadas para se referir a esses indígenas, quase sempre com uma forte carga estigmatizante (“berdache”, por exemplo, termo de uso corrente até bem recentemente entre antropólogos, tem sua origem em uma expressão árabe, que se refere ao menino submetido a relações de pederastia). Ao longo dos anos 80, quando os indígenas começam a ser infectados com HIV e retornam às suas aldeias para morrer com suas famílias são, em princípio, rechaçados por sua comunidade. De um modo geral, a acusação era de que eles seriam soropositivos por serem “degenerados”, uma vez que teriam abandonado suas culturas e se tornado gays, devido ao contato com o não-indígena. Sua
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resposta viria como uma crítica ao aparato colonial moldada a partir de uma identidade pan-indígena e amparada por um discurso espiritual. 
Em sua própria visão, eles não teriam abandonado suas culturas, ao contrário, seriam parte de uma tradição de diversos povos nativo-americanos de pessoas two-spirit - em uma tradução livre, aquele/a com dois espíritos. Assim, eles não seriam “gays”, mas pessoas de dois espíritos (de homem e de mulher), estando em transição entre os dois mundos: masculino e feminino, espiritual e terreno, indígena e não-indígena, o que lhes garantiria um papel de destaque em seus povos. Um exemplo disso seria We’wha, indígena Zuni que chegou a encontrar-se com o presidente Grover Cleveland no final do século XIX, passando seis meses em Washington. 
Assim, na década de 80 surgem diversas organizações two-spirit no Canadá e nos Estados Unidos e, em 1990, após um encontro em Winnipeg, esse/as indígenas passam a rechaçar qualquer outra denominação (como “berdache”, por exemplo). Na prática, isso significaria mais que uma simples mudança de denominação: assumir-se como dois espíritos não apenas focava no papel espiritual da pessoa (e não em suas práticas sexuais) como também significa uma crítica ao processo de colonização: parte considerável dos escritos produzidos por autores e ativistas two-spirit se assenta na análise e crítica aos processos de colonização que os estigmatizaram. 
Além disso, essas lideranças se viam diante do desafio de se consolidar como grupo autônomo e com agenda própria, estando à margem dos movimentos indígena e LGBTIQ2. Cabe notar que o movimento indígena não lhes dava espaço, por serem homo/bi/transexuais; tampouco o movimento LGBTIQ lhes dava voz, por serem indígenas. Mais recentemente, contudo, várias obras de autores e ativistas two-spirit vêm sendo publicadas e parte considerável dos estados dos Estados Unidos e Canadá contam já com organizações two-spirit. 
Nesse sentido, em um primeiro momento, minhas preocupações analíticas partiam da pergunta: “por que nos Estados Unidos e Canadá houve condições para um movimento continental, a partir de um discurso tradicional e 
2 Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transgêneros, Transexuais, Intersexuais e Queer. Vale notar que alguns intelectuais, ativistas e estudiosos cada vez mais vêm incorporando à sigla os 2-spirit, resultando na sigla LGBTIQ2
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de uma identidade pan-indígena em torno dessas sexualidades indígenas enquanto que, no Brasil, o fenômeno é enxergado (quando é) como perda cultural?”. Dito de forma mais direta: “por que lá sim e aqui não?”. Evidentemente que tais pontos de partida funcionaram como pontos de partida e só. Definir o movimento no Brasil pela falta, ou supervalorizar a iniciativa dos indígenas norte-americanos é algo que apenas reforça relações de poder e um modelo de Estado que nada tem a ver com o nosso. Lá, há uma solução que funciona lá, ponto final. 
Assim, a pergunta fundamental parece ser: para que desafios essas questões, trazidas aqui, apontam? Penso que elas nos impelem a repensar nossas próprias ferramentas analíticas e conceituais. O que tais processos nos permitem compreender sobre a própria articulação interna aos movimentos indígenas, movimentos LGBTIQ, academia, OnGs e Governo? De que maneiras podemos abordar essas questões sem que limitemos a diversidade de processos aqui descritos – mesmo que resumidamente – em nossa interpretação? Aspas – como chamar esses fenômenos de “homossexualidade”, ou “queer indígena” – bastam, ou é necessário repensarmos mesmo os paradigmas que perpassam essas categorias e outras, como “identidade”, “ativismo”, “movimentos sociais”, “poder”, “gênero”, “sexualidade”, “colonização”, para citarmos apenas algumas? 
Diversos elementos vêm surgindo no trabalho de campo3: quais as implicações, para gestores em saúde, da demanda de um indígena que recentemente entrou com pedido para uma cirurgia de mudança de sexo? Lideranças travestis assumem sua sexualidade em suas relações fora da aldeia mas, dentro do movimento indígena, não tocam no tema. O que tais fatos nos permitem compreender sobre a forma de articulação desses indivíduos com os 
3 Agradeço aos pareceristas e editores da Novos Debates por me chamarem a atenção para um ponto nos exemplos que se seguem neste parágrafo: de que cada uma das realidades que aponto possui especificidades e dinâmicas próprias e, da forma como os dados são apresentados no texto a sensação que se tem é que tais dinâmicas são suprimidas ou omitidas. Justifico, contudo, minha estratégia de apresentação dos dados por: a) uma questão de espaço, condição inerente a estratégia de se apresentar dados e reflexões em artigos – neste sentido espero dar conta de expô-los mais apropriadamente na apresentação final da pesquisa e em textos em preparação; b) de ética, posto que opto pelo anonimato de indígenas e respectivas etnias para salvaguardar os entrevistados (indígenas, lideranças, servidores de órgãos públicos, representantes de movimentos sociais, etc.); e c) epistemológica, pois me proponho a pensar justamente o processo político implicado nas relações coloniais e de colonialidade (incluindo tutela, políticas de integração, missões, etc.) que levaram a uma heterossexualização indígena. A/ao leitor/a mais interessado/a, inquietações aqui apresentadas devem ser compreendidas como complementares a dois textos (Fernandes 2013 e Fernandes, 2014), onde alguns dados são mais bem trabalhados.
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movimentos indígenas e com as organizações não-indígenas? Encontrei também o caso de um grupo indígena que tem seu próprio time de futebol de indígenas homo/bi/trans. Como essa realidade opera em termos de relações de poder dentro da aldeia, uma vez que se trata de um grupo – neste caso específico – vitimizado por preconceitos nas relações cotidianas? Em outro povo, registro grupos de indígenas que, se percebendo como sexualmente diferentes do restante do grupo, criaram padrões próprios de pintura corporal. 
Evidentemente que cada um desses casos citados acima possui especificidades e desafios analíticos próprios mas, em termos comparativos, eles nos servem para interpretação antropológica? A busca por tal resposta é, no mínimo, instigante. 
Referências Bibliográficas 
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32 GREGOR, Thomas. 1985. Anxious pleasures: the sexual lives of an Amazonia people. Chicago: University of Chicago Press. 
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WAGLEY, Charles. 1977. Welcome of Tears. Oxford University Press.
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Estevão Rafael Fernandes 
Professor da Universidade Federal de Rondônia 
Doutorando em Estudos Comparados sobre as Américas 
Universidade de Brasília 
Curriculo Lattes
SOBRE A POSSIBILIDADE DE SE TORNAR UMA “BOA FAMÍLIA” afirmações e representações no pleito à adoção movido por gays e lésbicas 
Ricardo Andrade Coitinho Filho 
Mestre em Ciências Sociais 
Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro
RICARDO ANDRADE COITINHO FILHO 
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Introdução 
O presente trabalho aponta como gays e lésbicas, ao pleitearem a adoção, procuram evidenciar, para a equipe técnica da Vara da Infância, da Juventude e do Idoso, que podem fazer um bom exercício da parentalidade. Em seu pleito, estes são identificados como "homoafetivos18". O objeto de análise foram processos e habilitações em adoção movidos no Rio de Janeiro. A questão central era compreender a forma com que gays e lésbicas têm sido tratados quando optam por compor uma família através do projeto filiativo da adoção19. 
O pleito movido por "homoafetivos" 
A questão da sexualidade passou por distintos processos de regulação social (Foucault, 1988). Ainda hoje, percebe-se mecanismos diversos de regulação e dispositivos de controle sobre a vida familiar. Nos processos analisados, podemos perceber como a questão da homossexualidade e da homoparentalidade ainda é questionada e debatida nos laudos técnicos dos peritos. 
Conforme estudo psicossocial: 
O tema central aqui exposto é a possibilidade de adoção por pares homossexuais. Embora não tenha havido qualquer oposição ao pedido da requerente e não tenham sido suscitadas quaisquer impeditivas, não se pode negar que a matéria é objeto de muitas polêmicas e de alta carga de preconceito e discriminação. Por essa razão, sob pena de não fazer jus à função judicante, principalmente em se tratando de competência em área de infância e juventude, entendi ser necessário o enfrentamento do tema, ainda que de forma concisa. 
18 Essa categoria procura enfatizar o caráter afetivo que homossexuais podem apresentar em suas relações. Essa estratégia visa modificar as representações sociais a respeito do homossexual. Além disso, reposiciona o indivíduo a uma concepção mais familista dentro do campo do direito no Brasil. 
19 Nesse respeito, as considerações de Uziel (2007) serviram como base para a pesquisa.
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Assim, constatamos que os pareceres técnicos procuraram se equiparar para além da discussão jurídica. Nesse sentido, constatou-se que alguns dados "são transformados em moralmente relevantes"20 (Rinaldi, 2011: 13). 
A homossexualidade frente ao exercício de uma parentalidade normal 
Partindo da versão produzida pelos postulantes, os técnicos procuram em suas falas pontos altos que possam colaborar para o deferimento de seu processo em habilitação ou adoção. 
A maioria destas falas constituía-se na afirmação da "normalidade" daqueles sujeitos, de modo a comprovarem estarem "aptos" para exercer a parentalidade e constituir famílias. Deste modo, a seleção das falas dos entrevistados durante o estudo psicossocial indicaria se esses postulantes estavam aptos ou não à adoção. 
André21, durante a entrevista com a psicóloga do judiciário, procurou destacar que estava motivado a ser pai. Assim, procurou afirmar que sua orientação homossexual não seria um impedimento. Conforme consta nos autos: 
O autor considera-se homossexual. Ele relatou que não tem intenção de ter um relacionamento afetivo e não sente falta. [...] Ele é discreto em relação à sua sexualidade. Em seu trabalho, ele afirma ser casado para não ser importunado. Porém, sua família e amigos sabem e aceitam sua opção. 
A atitude de André em ocultar sua homossexualidade perante a sociedade tem sido utilizada como estratégia por gays e lésbicas como forma de não sofrer formas de violência e estigmatização (Pecheny, 2004; Eribon, 2008)22. Assim, 
20 Para leitura da análise completa ver Coitinho Filho (2014). 
21 Os nomes foram alterados. 
22 É o que Goffman (2008) aponta como uma “dupla biografia”, em que este homem gay representa diferentes identidades, de acordo com as circunstâncias – uma para o âmbito público e outra para o privado.
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manter uma identidade discreta visa maior “tolerância” em relação à homossexualidade. 
O postulante ao realizar tal afirmação de ser “discreto”, procurou positivar sua homossexualidade, como forma de torná-la mais próxima do grau de respeitabilidade e aceitabilidade social (Rubin, s/d). 
No caso de Carlos e Henrique, a positivação da homossexualidade foi argumentada em um contexto distinto. Segundo as técnicas, em sua habilitação conjunta: "não observamos nada que possa inviabilizar o pleito. Percebemos que os requerentes levam uma vida ajustada, com comportamento ético e fiel aos seus princípios". 
Para indicar que "vida ajustada" era essa, a equipe técnica passou a narrar como o casal baseava seu relacionamento em laços de afeto, mantinha uma vida conjugal estável e poderia oferecer um "ambiente saudável" para a criança. 
Aventamos que essa "vida ajustada" propiciada por um "ambiente saudável" se refira a uma conformação ao modelo de conjugalidade e família estabelecida pelas normativas heterossexuais. Pensar na homoparentalidade dentro de uma lógica heteronormativa evoca considerar de que forma o direito à parentalidade pressupõe um ajustamento aos imperativos da heterossexualidade. 
Laura e Carolina indicaram que contaram com apoio profissional para o desenvolvimento psíquico das suas filhas já adotadas. Habilitando-se para adotar um terceiro filho, a técnica registrou que: 
Carolina comentou que, por intermédio da Igreja Messiânica, já conseguiram uma vaga para que as meninas tenham acompanhamento psicológico [...] isso devido, tanto às suas histórias de abandono, como em relação ao preconceito que a sociedade nutre em relação aos homossexuais para que elas entendessem sua 'nova' configuração familiar.
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Esse fato ao ser utilizado como argumento favorável procurou evidenciar que essas sujeitas estariam aptas para receber a nova criança pleiteada, na medida em que poderiam garantir a também esta um acompanhamento "normalizador". Além disso, o uso da psicologia como ajuda profissional corroborou para uma reificação da homossexualidade como algo distante da normalidade familiar. Tais estratégias parecem indicar um afastamento dos pânicos morais (Miskolci, 2007) associados à criação de crianças por homossexuais. 
Em seu processo de habilitação à adoção, André chegou a afirmar que "gostaria que seu filho não fosse homossexual", que "deseja que a criança tenha uma vida 'normal' e que se case e tenha filhos". Dentre as possibilidades interpretativas, aventamos que sua declaração se baseia na ideia de que a normalidade das famílias constituídas por pares do mesmo sexo só serão comprovadas na heterossexualidade dos filhos (Garcia et al, 2007). Ou seja, a boa parentalidade "homoafetiva" se evidenciaria pela não homossexualização parental. Tal compreensão corrobora, ainda, para tornar a homossexualidade marginalizada frente aos modelos parentais, como uma espécie de "falha" (Garcia, idem). 
Dessa forma, podemos perceber como os postulantes procuram indicar formas de "normalidade" ou de possível "normalização" de suas relações para atender aos requisitos da parentalidade heteronormativa (Butler, 2003). A adequação de suas famílias aos modelos hegemônicos, evidenciados pelas características heterossexuais, seria uma forma de confirmar o sucesso de sua paternidade/maternidade, ainda que "'homoafetiva". 
Referências Bibliográficas 
BUTLER, Judith. 2003. “O parentesco é sempre tido como heterossexual?”. Cadernos Pagu (21), pp. 219-260. 
COITINHO FILHO, Ricardo Andrade. 2014. Que ousadia é essa? A adoção “homoafetiva” e seus múltiplos sentidos. Dissertação de mestrado, Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais. Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro – Rio de Janeiro.
RICARDO ANDRADE COITINHO FILHO 
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ERIBON, Didier. 2008. Reflexões sobre a questão gay. Rio de Janeiro: Companhia de Freud. 
FOUCAULT, Michel. 1988. História da sexualidade I: a vontade de saber. Rio de Janeiro: Edições Graal. 
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GOFFMAN, Erving. 2008. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. Rio de Janeiro: LTC. 
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UZIEL, Ana Paula. 2007. Homossexualidade e adoção. Rio de Janeiro: Garamond. 
Ricardo Andrade Coitinho Filho 
Mestre em Ciências Sociais 
Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro 
Currículo Lattes
A HOMOSSEXUALIDADE NA MANUTENÇÃO DOS VÍNCULOS FAMILIARES Alessandra Caroline Ghiorzi Graduanda em Ciências Sociais Universidade Federal do Mato Grosso Flávio Luiz Tarnovski Professor do Departamento de Antropologia Universidade Federal do Mato Grosso
ALESSANDRA CAROLINE GHIORZI E FLAVIO LUIZ TARNOVSKI 
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Expressar o desejo por uma pessoa do mesmo sexo, vivendo em uma sociedade heteronormativa (Butler, 2003), é um desafio que confronta parte das pessoas nos dias atuais. Entre outras dificuldades, muitos sujeitos enfrentam o processo de se “revelar” perante a família de origem, o que pode se apresentar de forma dramática, devido aos significados negativos associados à homossexualidade. 
A partir do referencial teórico construtivista1, o presente trabalho objetiva descrever as consequências da “revelação” da homossexualidade para os vínculos familiares de mulheres e homens, por meio da análise de dados colhidos em uma pesquisa qualitativa realizada em Cuiabá (MT), entre 2012 e 20132. Foram entrevistadas onze pessoas: cinco mulheres e seis homens, de 19 a 44 anos, pertencentes a diferentes segmentos sociais. 
Quadro de informantes3 
Nome Idade Escolaridade Profissão Grupo doméstico 
Juliana 
22 
Graduanda 
Estudante 
Sozinha 
Lucas 
21 
Graduando 
Estudante 
Companheiro 
Camila 
27 
Graduada 
Liberal 
Sozinha 
Eduardo 
30 
Ensino médio 
Autônomo 
Companheiro 
Edmundo 
19 
Graduando 
Estudante 
Mãe, pai, irmão, cunhada e sobrinha 
Pedro 
19 
Graduando 
Estudante 
Mãe, pai, irmãos 
Aline 
44 
Graduada 
Assalariada 
Companheira e pai 
Rafael 
27 
Graduado 
Professor 
Sozinho 
1 Rubin (1989); Scott (1995); Vance (1995); Foucault (1997). 
2 A presente pesquisa foi realizada no âmbito do Plano de Trabalho Família e homossexualidade: estudo das relações familiares de homens e mulheres que se autodefinem como homossexuais na cidade de Cuiabá, inserido no Projeto de Pesquisa Gênero, sexualidade e construção de si: identidades e diferenças, coordenado pelo Prof. Dr. Flávio Luiz Tarnovski. 
3 Os nomes são fictícios, com o objetivo de preservar a identidade das(os) entrevistadas(os).
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Catarina 
25 
Graduada 
Saúde 
Mãe, pai, irmãos 
Luciano 
34 
Graduado 
Professor 
Sozinho 
Eduarda 
41 
Graduada 
Enfermeira 
Sozinha 
A “revelação” da homossexualidade nem sempre é fruto de planejamento, ela pode se apresentar como resultado de uma vivência de gênero que a expõe ou no decorrer de sistemáticas situações reveladoras (Tarnovski, 2004; Paiva, 2007; Oliveira, 2013). Contudo, há casos em que a orientação sexual é verbalizada, por meio de um anúncio ou a partir de um flagrante. Nesses casos, a conversa se estabelece como um momento determinante para a relação familiar e a trajetória individual desses sujeitos. 
Alguns entrevistados relataram que enfrentaram tentativas de controle por parte dos pais, após a verbalização da homossexualidade, uma fase caracterizada por conflitos: “era um período meio de terror assim, eu diria” (Pedro). No entanto, depois de certo tempo, essas relações se transformaram positivamente, ao que parece, em função da própria situação de crise que esses sujeitos passaram. Em alguns casos, ocorreu uma busca por desenvolver atividades em conjunto, assim como conversas em comum e, com isso, os laços entre pais e filhos se estreitam de um modo que não existia antes4. 
Esse momento de verbalização também propicia que os pais exponham suas angústias sobre a homossexualidade e alguns discursos se repetem nos variados casos estudados: os pais acreditam que o(a) filho(a) sempre foi heterossexual; negam que ele(a) possa ser homossexual; que está sendo “influenciado(a)”; culpam-se pela criação do(a) filho(a) homossexual. Diante desses argumentos “construtivistas”, os(as) filho(a)s respondem com explicações “essencialistas”: “não tem como eu mudar isso, é como você pedir pra um negro virar branco” (Pedro). Apenas Camila disse à mãe que “está” 
4 Em nenhum dos casos aqui estudados a filha ou o filho foi expulso(a) de casa após a revelação da homossexualidade. Porém, o “espectro” do rompimento definitivo dos laços familiares é uma constante no discurso dos sujeitos, que contam casos de amigos (ou amigos de amigos) que tiveram que sair de casa após a revelação.
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namorando uma garota, sem se atribuir uma identidade fixa que a defina como homossexual5. 
Os pais também demonstram receio sobre os possíveis comportamentos dos filhos, como explica Pedro: “ela [mãe] só queria que eu fosse quem eu fosse, mas que eu tivesse [...] certa conduta cabível na sociedade [...] que eu não fosse muito espalhafatoso”. Portanto, falar sobre a orientação sexual com a família coloca o filho em situação de se explicar, devido ao estigma carregado na ideia do que é “ser homossexual”. Os sujeitos buscam esclarecer aos pais que não correspondem ao estereótipo do homossexual e a “aceitação” se mostra como o desvelamento de que o filho não deixa de ser uma pessoa “normal”. 
É de se notar que, em alguns casos, os argumentos utilizados pelas filhas e filhos para positivar sua identidade sexual e de gênero são fundamentados na depreciação de outras identidades, como por exemplo, a da travesti ou da “bandeirosa”, discurso já identificado por outros pesquisadores (Tarnovski, 2004; Lopes, 2009). Essa comparação com outras categorias sociais no campo da sexualidade e do gênero segue a escala valorativa já descrita por Rubin (1989), em que se hierarquizam práticas sexuais, marginalizando identidades. Com isso, percebemos que a “aceitação” da orientação sexual também envolve uma performance de gênero. E ainda, os pais esperam e cobram que seus filhos “respeitem” (Lopes, 2009) a família, entre outras coisas, não trazendo o namorado em “casa”, local que se apresenta como espaço moral, ultrapassando a materialidade da habitação. 
Além disso, ser filha ou filho homossexual pode se associar com uma dinâmica familiar específica, já que algumas atividades, vínculos e favores são desempenhados em função da identidade sexual e de gênero exercidas por esses sujeitos. Por exemplo, Edmundo relatou que é o único que ajuda sua mãe na limpeza da casa, atividade que não é realizada nem pelo seu irmão, nem pelo seu pai. 
Na situação vivida por Aline, quase todos os parentes do seu núcleo familiar já moraram com ela quando passavam por dificuldades financeiras, físicas ou emocionais. Aline foi quem cuidou de sua mãe quando esta perdeu os 
5 Casos similares foram estudados por Heilborn (1996).
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movimentos do corpo. É interessante notar que esse papel desempenhado por Aline está relacionado com a “aceitação” de sua orientação sexual: “porque como eu sempre fui muito independente, né, trabalhei muito sempre, aquela coisa toda, então eles me viam meio que como um exemplo assim, então nunca ninguém me encheu o saco com isso aí [orientação sexual]” (Aline). Nesse sentido, também falou Eduarda: 
Sou meio que motorista da minha mãe, eu busco minha mãe, levo minha mãe, faço tudo. Fico tentando agradar, né? Na verdade, a gente fala que a gente procura ser os filhos perfeitos, mas é que a gente fica tentando agradar porque também a gente se sente culpado de não ser como elas querem. 
Essa transformação do estigma associado à homossexualidade, por meio do prestígio atribuído a outros papéis desempenhados pelos sujeitos, já foi observada por Peter Fry e Edward MacRae no caso de garotos que foram expulsos de casa após a descoberta de sua orientação sexual e, posteriormente, quando alcançaram prestígio dentro do candomblé, foram “aceitos” pela família. Segundo os autores: “Parece que a ridicularização é, de certa forma, contrabalançada com o prestígio de curador e profeta” (1991: 56). 
Por fim, gostaríamos de salientar o caráter inicial e provisório das análises, mas que abordam um tema de pesquisa que vem progressivamente se desenvolvendo no campo das Ciências Sociais (Oliveira, 2013). Percebemos a “rejeição” e a “aceitação” da homossexualidade como processos dinâmicos, que, apesar de amplamente utilizados na descrição dessas relações, não conseguem abarcar todos os aspectos das dinâmicas familiares. Assim, é complexa a coexistência de “aceitação-rejeição” nessas relações, que, para além de desavenças, desentendimentos e diferenças, também podem ser permeadas por afetos, vínculos e afinidades.
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Referências 
BUTLER, Judith. 2003. Problemas de gênero. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. 
FOUCAULT, Michel. 1997. História da sexualidade: a vontade de saber. 12. ed. Rio de Janeiro: Graal. 
FRY, Peter; MACRAE, Edward. 1991. O que é homossexualidade? São Paulo: Brasiliense. 
HEILBORN, Maria L. 1996. “Ser ou estar homossexual”. In: R. Parker; R. Barbosa (org.). Sexualidades brasileiras. Rio de Janeiro: Relume Dumará/ABIA-IMS-UERJ. pp. 136-145. 
LOPES, Moisés. 2009. “Casar e dar-se ao respeito”. In: M. L. Heilborn et al (org.). Sexualidade, reprodução e saúde. Rio de Janeiro: FGV. pp. 489-508. 
OLIVEIRA, Leandro. 2013. Os Sentidos da Aceitac a o: família e orientac a o sexual no Brasil contemporâneo. Tese de Doutorado, Museu Nacional/UFRJ – Rio de Janeiro. 
PAIVA, Antonio. 2007. “Reserva e Invisibilidade”. In: M. Grossi et al (org.). Conjugalidades, parentalidades e identidades lésbicas, gays e travestis. Rio de Janeiro: Garamond. pp. 23-46. 
RUBIN, Gayle. 1989. “Reflexionando sobre el sexo”. In: C. VANCE (org.), Placer y peligro: explorando la sexualidade feminina. Madrid: Revolución Madrid. pp. 113-190. 
SCOTT, Joan. 1995. “Gênero: uma categoria útil de análise histórica”. Educação e Realidade, 20(2): 71-99. 
TARNOVSKI, Flávio. 2004. “Pai é tudo igual?: significados da paternidade para homens que se autodefinem como homossexuais”. In: A. Piscitelli et al (org.). Sexualidade e saberes. Rio de Janeiro: Garamond. pp. 385- 414. 
VANCE, Carole. 1995. “A Antropologia Redescobre a Sexualidade: um comentário teórico”. PHYSIS Revista de Saúde Coletiva, 5(1): 7-31.
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Alessandra Caroline Ghiorzi 
Graduanda em Ciências Sociais 
Universidade Federal do Mato Grosso 
Currículo Lattes 
Flávio Luiz Tarnovski 
Professor do Departamento de Antropologia 
Universidade Federal do Mato Grosso 
Currículo Lattes
FEIRA KRAHÔ DE SEMENTES TRADICIONAIS cosmologia, história e ritual no contexto de um projeto de segurança alimentar 
Júlio César Borges Doutor em Antropologia Social Universidade de Brasília Consultor do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento
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Pra não acabar a história e a festa, tem que estar sempre fazendo, porque vai passando para os outros mais novos aprender a realizar. Para não acabar a festa. Porque essa história, desde não sei quantos mil anos atrás, faz parte dos Krahô. Através dessa festa é que mostramos que somos Mehĩ – temos outras cantigas, outra forma de nos organizar. Isso tudo é que chama Mehĩ, Krahô. A festa movimenta as músicas, as danças, as crenças. Por isso é que Mehĩ tem isso. Porque se não tiver isso, não é Mehĩ. Isso que mostra nossa identidade. É tudo isso. É a festa que faz fortalecer, tanto nas músicas [cantos] quanto no esporte [corrida de toras]. Pratica esporte durante as festas: no peso, na velocidade, na voz. Tudo! Então Pahpãm [“nosso pai”: Pyt: Sol] fez essas coisas pra nós. Tem nas histórias que as naturezas ensinaram e hoje não ensina mais. Mas não acabou. É isso que é importante saber. A festa é pra fortalecer, ficar mais forte, vivo. Pra sempre. De geração em geração. Porque sem a cultura, sem a língua, sem histórias, nós não somos mais índios Krahô. Sempre ouço: ‘Por que índio gosta de festa, de cantar?’ Aí digo sempre que é nossa crença. A música conta histórias da natureza. Quando tem festa, aí todo mundo vai estar falando dessa história. E os velhos contam para os mais novos durante aquele período em que vai estar sendo realizada a festa. Por isso é importante preservar, porque, digamos assim, essas coisas mostram a nossa cara. 
O trecho acima reflete o esforço de um eminente professor krahô, Dodanin Piken, em ensinar a este antropólogo algo sobre um aspecto central da vida sociocultural do seu povo. Sua lição é simples e direta: as festas diferenciam os Mehĩ! Elas lhes foram transmitidas pelas “naturezas” (animais, plantas, insetos) não se sabe há quantos mil anos atrás e desde então são praticadas para fortalecê-los, com as corridas de toras e os cantos. “A festa é pra fortalecer, ficar mais forte, vivo”, enfatiza, apontando alguns caminhos (pry)
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que procurei trilhar, em minha tese de doutorado, rumo a uma interpretação da festa como elemento central da resistência étnica do povo indígena Krahô1. 
O argumento central da tese Feira Krahô de Sementes Tradicionais: cosmologia, história e ritual no contexto de um projeto de segurança é que as festas são o espaço-tempo responsável pela manutenção de aspectos centrais da sua visão de mundo, organização social e solidariedade política frente aos desafios impostos pela sociedade nacional2. Ocorre aqui o que Coelho de Souza registra como constitutivo dos povos Jê: “[o] processo de diferenciação (recriação contínua da identidade humana) depende de uma constante incorporação de elementos que é preciso ir buscar no ‘exterior’ – um exterior que se vê sempre redefinido nesse processo de diferenciação” (2002: 230). No caso dos Mehĩ, defendo que as festas são o espaço-tempo que abre a sociedade para o exterior e, na apropriação da alteridade, assegura sua continuidade frente aos múltiplos coletivos que povoam o Pjê Cunẽa, “Nossa Terra”. 
Como fato social total (Mauss, 1974), a festa permite inúmeras entradas analíticas das quais adentrei pela cosmologia, história, relações interétnicas e sistema ritual com o intuito de demonstrar como a festa mantém vivos seu modo de vida e agencialidade frente ao cerco colonial. Procurei demonstrar que a apropriação (“furto”) e domínio do jogo de linguagem dos “projetos” é uma das principais estratégias atualmente utilizadas pelos Mehĩ para (re)produção de suas festas. 
Meu caso etnográfico foi a Festa dos Peixes e das Lontras (Tep me Têre), realizada no contexto da VII Feira Krahô de Sementes Tradicionais (Ampo Hy Per Xà 7º), no ano de 2007, com patrocínio da Petrobrás Cultural. Realizada bienalmente desde 1997, a feira faz parte de um projeto de segurança alimentar encabeçado pela associação indígena Kapey, em parceria com a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (EMBRAPA) e a Fundação 
1 Os Krahô (Mehĩ: “Nós, mesmo corpo/carne”) falam uma variante da língua Jê, tronco Macro- Jê e são classificados pela etnologia como Timbira Oriental, por se situarem na margem direita do rio Tocantins. Os Krahô têm uma população de cerca de dois mil e quinhentas pessoas espalhadas em vinte e oito aldeias numa reserva no nordeste do estado do Tocantins. 
2 Defendida, no dia 28 de fevereiro de 2014, no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade de Brasília (PPGAS/UnB). O trabalho de campo ocorreu entre os meses de março e dezembro de 2007, com novas imersões em março de 2008, outubro de 2010 e abril de 2012.
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Nacional do Índio (FUNAI). Como nas edições anteriores, a feira buscou fomentar a conservação on farm da agrobiodiversidade indígena através da troca de sementes3. Minha etnografia sugere que o interesse dos Krahô pela troca de cultivares conviveu com a atenção dirigida à festa que eles apre(e)nderam, no tempo mítico, junto aos peixes no fundo de um rio. 
Festa é amjkin. Com este termo, os Mehĩ recortam atividades sociais que se aproximam daquelas que os antropólogos denominam “ritual”. Sabemos que cada sociedade possui termos próprios com os quais nomeiam e recortam "performances e festividades que pode-se identificar como exemplos típicos ou focais de eventos 'rituais'" (Tambiah, 1985: 126). O amjkin que presenciei na Feira de Sementes - como tantas outras entre os Krahô e alhures - tem um aspecto ritual “dado que é também cerimônia, solenidade, ação formalizada, comportando regras de comportamento e expressões performáticas precisas e, no mais das vezes, rigorosas” (Perez, 2012: 25; cf. Van Gennep, 1978). Por esse caminho, chegamos à ordem cultural mehĩ subjacente à noção de festa: uma sequência de atos que giram em torno das corridas de toras, preparação e consumo de alimentos (em especial o paparuto, bolo cerimonial), troca de presentes, encenação de papéis rituais, danças e cantos das metades cerimoniais. E o amjkin é mais do que disso. É também abertura aos encontros inesperados que (re)produzem vínculos anti-estruturais – aqueles de caráter existencial, diretos (Turner, 1974). A festa é o espaço-tempo da sociabilidade espontânea que gira em torno dos momentos fugidios levados pela cantoria do pátio, com maracá, e de outros espaços da aldeia. É fruição individual e coletiva da beleza e respiração do Cosmo. O amjkin é o estado “alegre, feliz” do universo, que requer a atuação protagonista dos Mehĩ através da festa. “Festa” e “alegria” são sinônimos (Melatti, 1978: 14). 
A Feira de Sementes foi indigenizada para manter o movimento do mundo com a alegria e beleza da vida ritual, que coloca os Krahô em conexão com os heróis civilizadores, tal como aquele que conheceu a festa de Tep mẽ 
3 A conservação on farm ocorre com os recursos genéticos em uso (nas roças ou campos cultivados) e decorre dos interesses dos próprios agricultores locais. Assim, “agrobiodiversidade” deve ser entendida como a variedade de plantas importantes para a alimentação e agricultura resultante da interação entre o ambiente, recursos genéticos e práticas culturais integrantes dos sistemas de manejo (FAO 1996: 5).
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Têre junto aos peixes no fundo de um rio. A produção das festas, no contexto contemporâneo dos projetos, se presta à afirmação da humanidade dos Mehĩ frente ao concerto de coletivos que anima o universo. Por isso, o amjkin produz (e diferencia) os Mehĩ. 
Bibliografia: 
COELHO de SOUZA, Marcela. 2002. O traço e o círculo: o conceito de parentesco entre os Jê e seus antropólogos. Tese de doutorado em Antropologia Social, Museu Nacional/UFRJ - Rio de Janeiro. 
FAO. 1996. Background Paper 1: Agricultural biodiversity. Netherlands: Conference on the Multifunctional Character of Agriculture and Land. 
MAUSS, Marcel. 1974. “Ensaio sobre a dádiva. Forma e razão da troca nas sociedades arcaicas”. In: Sociologia e Antropologia. Vol. 2. São Paulo: EPU, EdUSP. 
MELATTI, Julio Cezar. 1978. Ritos de uma Tribo Timbira. São Paulo: Ática. 
PEREZ, Léa Freitas. 2012. “Festa para além da festa”. In: Perez, L. F; Amaral, L.; Mesquita, W (orgs.). Festa como perspectiva e em perspectiva. Rio de Janeiro: Garamond. 
TAMBIAH, Stanley. 1985. “A performative approach of ritual”. In: Culture, thought, and social action. Havard: Havard University Press. 
TURNER, Victor. 1974. Dramas, fields and metaphors: symbolic action in human society. Ithaca, London: Cornell Unviersity Press. 
VAN GENNEP, Arnold. 1978. Ritos de passagem. Petrópolis: Vozes.
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Júlio César Borges 
Doutor em Antropologia Social 
Universidade de Brasília 
Consultor do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento 
Currículo Lattes
ÍNDIOS, QUILOMBOLAS, ÁRABES E NORDESTINOS E O SABOR AMARGO DO CACAU 
Eduardo Alfredo Morais Guimarães Professor assistente da Universidade do Estado da Bahia Doutorando em Estudos Étnicos e Africanos Universidade Federal da Bahia Bolsista FAPESB 
Sistema agroflorestal municipio de Ubaitaba. Foto do autor
EDUARDO ALFREDO MORAIS GUIMARÃES 
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As ideias aqui desenvolvidas são fruto das primeiras reflexões sobre a Comunidade Quilombola de Empata Viagem, localizada no Município de Marau, Região Sul da Bahia. Como outras comunidades localizadas na região31, Empata Viagem alcançou notoriedade em decorrência da qualidade da farinha de mandioca produzida artesanalmente e, sobretudo, do domínio das técnicas de plantio do cacau sob a floresta raleada. 
Ninho de pássaro sangue de boi - cabruca Ubaitaba. Foto do autor 
O Cacau Cabruca e os pioneiros Não obstante a Revolução Agrícola, alicerçada no modelo agrícola monocultural, desencadeada pela CEPLAC,32 entre o inicio dos anos 1960 e final 
31 Existem em Maraú mais 5 Comunidades Quilombolas reconhecidas pela Fundação Palmares. 32 Comissão Executiva de Planejamento da Lavoura Cacaueira. Órgão federal de pesquisa e assistência técnica vinculado ao Ministério da Agricultura, criado em 1957.
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55 dos anos 1980, que resultou na elevação da produção nacional de cacau em 310% e o aumento da produtividade de 220 kg/ha, em 1962, para 740 kg/ha33, cerca de 70% das roças cacau da Bahia ainda são sistemas agroflorestais – Cacau Cabruca34 – (Araujo et. al., 1998). O cenário de devastação instaurado pela Revolução Verde35 (Setenta & Lobão, 2012) não conseguiu, portanto, obscurecer as potencialidades dos sistemas ancestrais de cultivo, fato que coloca em relevo as dificuldades da agricultura que se intitula moderna que parece não alcançar bem seus objetivos no ambiente de floresta tropical. Aplicam-se aqui reflexões de Boaventura Souza Santos: as cabrucas, fruto de “conhecimentos populares, leigos, plebeus, camponeses ou indígenas”, resistem em meio a uma disputa “entre as formas de verdade científicas e não-científicas” (2007: 72). 
Não obstante a importância das “Cabruca para a sustentabilidade da agricultura, as origens do sistema estão enredadas em um “Mito Histórico” que obscurece desigualdades raciais e justifica uma concentração fundiária e de renda (Mahony, 2007: 738), a partir da exclusão de indígenas e escravizados e seus descendentes da “saga do cacau” (Adonias Filho, 1976: 173; Falcón, 1995: 26). Desafiando os alicerces do mito, a hipótese da qual se pretende partir é a de que o sistema está alicerçado em conhecimentos ancestrais de indígenas e africanos, condenados à inexistência diante de uma suposta superioridade posicional da ciência agronômica moderna. 
O Cacau Cabruca é referência praticamente obrigatória nos estudos realizados no âmbito da ciência agronômica na região. Pesquisadores do IESB - Instituto de Estudos Socioambientais da Bahia,36 atribuem o seu surgimento aos “grapiúnas (...) que a revelia das recomendações técnicas (...) (plantaram) o cacau à sombra das espécies nativas” (Araújo et al., 1998: 36). Com efeito, a referência explícita aos “grapiúnas”, de certa forma, exclui indígenas e africanos escravizados e seus descendentes da “saga do cacau” e isso não é um mero 
33 Dados disponíveis no Site da CEPLAC .http://www.CEPLAC.gov.br/restrito/lerNoticia.asp?id=1719. Acesso em 02.02.2014; 
34 Cacau plantado sob a sombra da floresta raleada 
35 Modelo agrícola direcionado ao aumento da produção agrícola alicerçado em melhorias genéticas em sementes, uso intensivo de insumos industriais, mecanização e monocultivos. 
36 Organização não-governamental criada em 1994, com sede no município de Ilhéus.
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detalhe que possa ser negligenciado, pois tal noção está no âmago do Mito Histórico: grapiúnas são as pessoas que migraram do Nordeste para o Sul da Bahia no inicio do século XX e colonizaram o interior da Zona Cacaueira (Mahony, 2007; Costa, 2012). 
Cacau na cabruca. Foto do autor 
Os engenheiros agrônomos Wallace Setenta37 e Dan Erico Lobão38 expõem de forma ainda mais clara os elos que ligam o Cacau Cabruca ao “Mito” ao atribuir aos “pioneiros da cacauicultura” o plantio do cacau em cabrucas abertas na Mata Atlântica, “transformada em espaço vivido e habitável” pela Civilização do Cacau; um sistema de cultivo sui generis, predecessor dos sistemas agroflorestais (Setenta & Lobão, 2012: 39). Nos argumentos, os 
37 Presidente do CNPC – Conselho Nacional dos Produtores de Cacau e Presidente do Sindicato Rural de Itabuna. 
38 Pesquisador da CEPLAC e professo da UESC.
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pesquisadores desconsideram a presença indígena no território ao situar o cacau no centro do “processo civilizatório”: responsável pela transformação da Floresta em espaço vivido e habitável. Para Setenta e Lobão quando da chegada dos colonizadores portugueses a Mata Atlântica seria uma espécie de terra nullius, um território nominalmente inabitado (Balée, 2008) – com “florestas virgens”.
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Lurdes Rocha, em sua Tese de Doutorado, redimensiona a narrativa acrescentando os agenciamentos de sergipanos que cultivaram o cacau com “persistência, denodo, trabalho árduo, muito suor derramado irrigando o chão” (2006). De acordo com Rocha a grande seca da década de 1890 e a Guerra de Canudos (1896-1897) foram os dois fatores que influenciaram a migração em massa dos sergipanos para a região cacaueira. É importante lembrar que no final do século XIX o cacau já se constituía no principal produto da pauta de exportações da Bahia e que segundo Rosário et. al. (1978: 20), “as plantações feitas naquela época correspondem a grande parte das existentes hoje no Sul da Bahia”. 
Com efeito, não há como negligenciar os agenciamentos de indígenas, escravizados e seus descendentes na criação e desenvolvimento das cabrucas e deixar de perceber que, mesmo atualmente, com os avanços tecnológicos possibilitados pela ciência agronômica moderna, não é fácil prescindir de conhecimentos ancestrais indígenas e africanos no manejo das roças de cacau. É importante ter em mente que as populações indígenas são portadoras de um histórico de coexistência com a floresta tropical (Munari, 2009: 9), que pequenos agricultores africanos no período pré-colonial manejavam sistemas agroflorestais em África “que para ‘não entendidos’ pouco se distinguem das florestas originais” (Temudo, 2009: 246) e que de acordo com dados etnoecológicos, é possível afirmar que em África a própria formação de florestas está relacionada à atividade humana - cultivo, plantação e transplante deliberado de árvores, pelas populações locais - que culminou, inclusive, com a formação de florestas onde antes não havia florestas (Balée, 2008: 15). Bibliografia ADONIAS FILHO. 1976. Sul da Bahia: chão de cacau. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. 
BALÉE, W. 2008. “Sobre a Indigeneidade das Paisagens”. Revista de Arqueologia, 21(2): 09-23. Disponível em: http://www.ies.ufpb.br/ojs/index.php/ra/article/viewFile/3003/2524. FALCON, Gustavo. 1995. Os coronéis do cacau. Salvador: Iananá/ UFBA.
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59 LOBÃO, D. E.; SETENTA, W. C.; VALLE, R. R. 2004. “Sistema agrossilvicultural cacaueiro: modelo de agricultura sustentável”. Revista da Sociedade de Agrosilvicultura, 1(2): 163-173. LOBÃO, Dan Érico. 2007. Agroecossistema Cacaueiro Da Bahia: Cacau Cabruca e Fragmentos Florestais na Conservação de Espécies Arbóreas. Tese de Doutorado, Universidade Estadual Paulista. MAHONY, Mary Ann. 2007. “Um passado para justificar o presente: memória coletiva, representação histórica e dominação política na região cacaueira da Bahia”. Cadernos de Ciências Humanas – Especiaria, 10(18): 737- 793. MUNARI, Lucia Chamlian. 2010. Memória Social e Ecologia Histórica: a Agricultura de Coivara das populações quilombolas do Vale do Ribeira e sua relação com a formação da Mata Atlântica. Dissertação de mestrado, Universidade de São Paulo. ROCHA, Lurdes Bertol. 2006. A região cacaueira da Bahia: uma abordagem fenomenológica. Tese de Doutorado. Universidade Federal de Sergipe. ROSÁRIO et. al. 1978. Cacau História e Evolução no Brasil e no Mundo. Ilhéus: CEPLAC. SANTOS, Marcio Ceo dos. 2010. A Crise da Região Cacaueira e os Desafios Para o Desenvolvimento Local. Dissertação de mestrado. Universidade Municipal de São Caetano do Sul. SETENTA, Wallace & LOBÃO, Dan Érico. 2012. Conservação Produtiva: cacau por mais 250 anos. Itabuna. SOUZA SANTOS, Boaventura de. 2007. Para além do pensamento abissal: das linhas globais a uma ecologia de saberes. São Paulo. Novos Estud. – CEBRAP. 79. TEMUDO, Marina Padrão. 2009. “A narrativa da degradação ambiental no Sul da Guiné-Bissau: uma desconstrução etnográfica”. Etnográfica, Lisboa, 13(2): 237-364.
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Eduardo Alfredo Morais Guimarães 
Professor assistente da Universidade do Estado da Bahia 
Doutorando em Estudos Étnicos e Africanos 
Universidade Federal da Bahia 
Bolsista FAPESB 
Currículo Lattes
F Ó R U M
O PROBLEMA 
Wagner Xavier Camargo 
Pós-doutorando em Antropologia 
Universidade Federal de São Carlos 
Bolsista FAPESP
WAGNER XAVIER CAMARGO 
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Se você quer compreender o que é a ciência, você deve olhar, em primeiro lugar, não para as suas teorias ou as suas descobertas, e certamente não para o que seus apologistas dizem sobre ela; você deve ver o que os praticantes da ciência fazem. (Clifford Geertz, 2011: 4) 
A Copa do Mundo de Futebol tem mobilizado emoções de diversas ordens, ocasionado revoltas de indivíduos e grupos, de militantes e ativistas, de ricos, pobres e de uma “classe média alta” (que até fez protesto com camiseta, em campanha publicitária), incitado debates públicos acerca de gastos com as estruturas, gerado debates infinitos sobre desvio de verbas e causado um desconforto generalizado. Nos momentos anteriores à abertura e ao início do torneio internacional em terras brasileiras, não sabemos exatamente o que sentimos, e muito menos o que esperamos de dentro e fora dos gramados. 
Numa iniciativa inédita, a Revista Novos Debates traz a/aos leitoras/es deste fórum de discussões uma polêmica viva acerca do momento em que vivemos: o que pensar da Copa do Mundo de Futebol (masculino) e quais as implicações de todas as problemáticas que a envolvem na atualidade? Para tanto, alguns cientistas sociais que se debruçam sobre uma sociologia/antropologia práticas esportivas foram convidados a se expressarem e a nos mostrarem como as pensam cientificamente. 
Assim, o propósito deste espaço de discussão não é engessar problemáticas ou pré-determinar linhas de argumentação. As temáticas sobre a Copa do Mundo de Futebol (masculino) estavam à disposição e cada um ponderou como quis. Eis o resultado. A seguir, temos belos e críticos textos de cientistas sociais empenhados a entender (mais e melhor) os fenômenos que envolvem este evento e os (então denominados) megaeventos esportivos. Partindo, desse modo, de todo um emaranhado de questões, o texto de entrada do fórum de discussões é de Arlei Damo, que reitera, à semelhança do que faz um psicólogo frente a um surto psicótico de seu paciente, um dado de realidade visível e inconteste: vai ter Copa no Brasil! Sua afirmação principal é a de que, em que pese a campanha “não vai ter Copa”, impulsionada por movimentos sociais e partidos políticos específicos, a competição efetivamente
WAGNER XAVIER CAMARGO 
novos debates, vol.1, n.2, julho 2014 
64 se realizará. Por isso, segundo o autor, “Copa para quem?” seria um slogan mais instigante para refletir sobre o contexto. Da leitura de suas inquietações, resta- nos indagar se os ativistas, direta ou indiretamente, semearão, de fato, durante a Copa a colheita dos protagonistas das Eleições Gerais de outubro? A seguir, deparamo-nos com o ensaio sagaz de Luiz Henrique de Toledo. O autor mostra o triunfante retorno do bordão “futebol, ópio do povo”, agora insinuado dentro do contexto caótico da realização da Copa mundial de futebol e o recoloca justamente no centro dos protestos contra o evento, no sentido de dizer que a FIFA, com suas imposições, controle e designações acerca do imponente “Padrão FIFA”, reatualizaria tal pecha para si mesma na atualidade. Além disso, pondera ainda sobre uma provocação de Bruno Latour, pensada a partir de uma exposição de artes, na Alemanha, início dos anos 2000. Iconoclash é a instabilidade, o enigma, distante da iconofilia e da iconoclastia, escolhido para “lugares, objetos e situações em que há uma ambiguidade, uma hesitação, (...) quanto a como interpretar a construção da imagem e a destruição da imagem” (Latour, 2008: 123). Para Toledo, o interessante agora é perceber os iconoclashes que circundam e envolvem o futebol, produzindo contrapontos ou desestabilizações acerca da iconoclastia em torno do próprio fenômeno (e de sua estrutura). Por sua vez, Alexandre Vaz brinda-nos com um escrito que traz algumas facetas do futebol enquanto negócio. Há, para ele, uma dimensão mercadológica em torno do esporte que se iniciou nos anos 1970 e já expusera, àquela época, os volumosos ganhos da então FIFA, sob o comando do brasileiro João Havelange. Passados 40 anos, o business em torno do fenômeno futebolístico só cresceu: haja vista, segundo o autor, as obras de recuperação ou construção dos 12 estádios e suas estruturas. Como bem salienta Vaz – e de tácita concordância para quem conhece algumas das megaestruturas esportivas em âmbito internacional – tais estádios oferecerão mais do que espaço para uma contenda. São lugares de conforto, de venda e consumo de mercadorias, de visibilização de produtos dos clubes, de construção de verdadeiras experiências, no sentido estrito do termo. Participando ou não de tudo isso, Vaz profetiza que nada, nem ninguém, ficará imune à Copa de Futebol no Brasil. Em seguida há as ponderações de José Renato Araújo, que arquiteta uma conexão entre as políticas públicas adotadas no país em respeito aos
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65 megaeventos esportivos e a tentativa de compreensão das mesmas por parte de cientistas sociais, que estabelecem pressupostos importantes para desvelar os arranjos responsáveis pelo pagamento das contas em níveis municipal, estadual e federal. Relata-nos, portanto, sobre suas investigações junto aos Tribunais de Contas Estaduais, responsáveis oficiais pelo controle de gastos das unidades da federação, e sobre suas intenções de pesquisa nos Tribunais de Conta da União. Das etapas preliminares, segundo o autor, resulta que os investimentos feitos para a realização da Copa provieram de recursos públicos, fato que realmente alça ao centro do debate tais tribunais de contas e o próprio Estado brasileiro, passando a serem, assim, tópicos investigativos fundamentais. Um último exercício de escrita deste compêndio crítico, e notadamente desviante das problemáticas em pauta até então postuladas, encontra-se na reflexão de minha autoria que generifica a Copa e o futebol. Deixo leitoras/es instigadas/os a lê-la, porém, adianto que tento desvelar pressupostos e prerrogativas tácitas em relação a gêneros, corpos e sexualidades que estão subsumidos a todas essas discussões que dizem respeito ao futebol e a sua Copa Mundial (masculina) em processo de realização no Brasil. Ao fim e ao cabo, os escritos deste fórum pretenderam abordar o futebol nacional/global e a Copa masculina mundial da FIFA sob distintas perspectivas analíticas (interdisciplinares, inclusive), que, juntas, oferecem um mosaico interessante de ser apreciado. Como de praxe, resta-me apenas desejar-lhes boa leitura! 
Referências Bibliográficas 
GEERTZ, Clifford. 2011. A Interpretação das Culturas. 1 ed [reimpr.]. Rio de Janeiro: LTC. 
LATOUR, Bruno. 2008. “O que é iconoclash? ou, há um mundo além das guerras de imagem?” Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 14, n. 29, p. 111-150, jan./jun.
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Wagner Xavier Camargo 
Pós-doutorando em Antropologia 
Universidade Federal de São Carlos 
Bolsista FAPESP 
Currículo Lattes
VAI TER COPA NO BRASIL Arlei Sander Damo Doutor em Antropologia Social Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social/UFRGS
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  • 3. Volume 1, número 2, julho 2014 Volume 1, issue 2, July 2014 EDITORES GERAIS EDITORS-IN-CHIEF Vinicius Kauê Ferreira (UFSC) Barbara Maisonnave Arisi (UNILA) EDITORA DESTE NÚMERO CURRENT ISSUE Barbara Maisonnave Arisi (UNILA) EDITORES DE SEÇÃO SECTION EDITORS Felipe Bruno Martins Fernandes (UFBA) Wagner Xavier Camargo (UFSCAR) DESIGN E PROJETO GRÁFICO GRAPHIC DESIGNER Vinicius Kauê Ferreira IMAGEM DE CAPA COVER IMAGE Peter Terrin, Kayapó 1, 2014. Acrílico sobre tela. 185 x 185 cm. Novos Debates: Fórum de Debates em Antropologia / Associação Brasileira de Antropologia. Vol.1, n.2, julho 2014. Brasília: Associação Brasileira de Antropologia, 2014. Semestral ISSN 2358-0097 1. Antropologia – Periódicos. I. Associação Brasileira de Antropologia
  • 4. SOBRE A IMAGEM DE CAPA Peter Terrin é artista plástico. Nascido na Bélgica, atualmente vive em Puerto Aventuras, no México, onde tem seu atelier e galeria. Após graduar-se como Desinger de Têxteis na Providenciaal Technisch Instituut Kortrijk, viajou extensamente nos últimos 14 anos, tendo trabalhado e vivido em Ibiza/Espanha, na Áustria, na Venezuela, na República Dominicana e no México. A pintura da senhora Kayapó que ilustra nossa capa integra uma série de 10 obras de retratos que Terrin fez de pessoas desse povo indígena. "Amo a sabedoria e a inocência em seus rostos, as pinturas coloridas que usam e sou tocado pela história que existe por trás de sua luta", escreveu o pintor. Essa coleção Kayapó será exposta durante o próximo outono em Toronto, no Canadá, junto a trabalhos dos fotógrafos Art Wolfe, Martin Schoeller e Crsitina Mittermeier. O autor afirma que doará grande parte dos lucros obtido com a venda dessas obras para ajudar o povo Kayapó. Para acompanhar o processo da obra que ilustra essa capa de Novos Debates: https://www.youtube.com/watch?v=yeaPdg2yoio#t=48.
  • 5. V.1, N.2 julho 2014 __________ Editorial Barbara Arisi _____________ NOVAS PESQUISAS VMDL : Breves considerações sobre rolezinho, narrativas de classe, redes e a cidade Louise Scoz Pasteur de Faria, Moisés Kopper As situações-limite e seus desdobramentos sobre as vidas das mulheres que lutaram contra a ditadura no Brasil Lívia de Barros Salgado Homossexualidade indígena no Brasil: desafios de uma pesquisa Estevão Rafael Fernandes Sobre a possibilidade de se tornar uma “boa família”: afirmações e representações no pleito à adoção movido por gays e lésbicas Ricardo Andrade Coitinho Filho A homossexualidade na manutenção dos vínculos familiares Alessandra Caroline Ghiorzi, Flávio Luiz Tarnovski 8 12 19 26 34 40
  • 6. Feira Krahô de Sementes Tradicionais: cosmologia, história e ritual no contexto de um projeto de segurança alimentar Júlio César Borges Índios, quilombolas, árabes e nordestinos e o sabor amargo do cacau Eduardo Alfredo Morais Guimarães _____________ FÓRUM O problema Wagner Xavier Camargo Vai ter Copa no Brasil Arlei Sander Damo FIFA, ópio do povo Luiz Henrique de Toledo A Copa e o Brasil Alexandre Fernandez Vaz Copa do Mundo 2014 José Renato de Campos Araújo Entre o óbvio e o escamoteado Wagner Xavier Camargo _____________ 47 53 62 67 74 87 93 99
  • 7. RESENHAS "Esse obscuro objeto da pesquisa: um manual de método, técnicas e teses em Antropologia", de Oscar Calavia Sáez. Daniel Gordillo Sánchez Sapos e Princesas: prazer e segredo entre praticantes de crossdressing no Brasil, de Anna Paula Vencato Francisco Cleiton Vieira Silva do Rego _____________ OPINIÃO O que faz um animal de estimação na antropologia Jean Segata 111 118 123
  • 8. EDITORIAL com alegria, apresentamos o segundo número da novos debates Novos Debates convida a todas para desfrutar de seu segundo número. Como aprendemos com os povos com os quais trabalhamos, queremos caminhar no fio da navalha entre “tradição”e “inovação” para produzir algo original e criativo que se localize no gume do “limite cortante” da pesquisa de ponta antropológica. Nessa edição, procuramos iniciar a avaliação com revisores duplos e cegos (doble-blind reviewers) de todos os textos da seção “novas pesquisas”. Agradecemos imensamente a colaboração das revisoras. Desse modo, esperamos contribuir para que jovens pesquisadoras melhorem sua capacidade crítica em relação a seus próprios textos e propostas de pesquisa e, desse modo, enriqueçam a produção antropológica da academia no Brasil. Incentivamos também jovens revisoras a participar do diálogo com novas pequisadoras, assim atendendo a uma de nossas metas fundamentais que é, justamente, renovar continuamente a Antropologia brasileira. Muitas de nossas pareceristas são estudantes de mestrado e doutorado e levaram muito à sério o convite, empenhando-se em colaborar para que as autoras melhorassem seus textos. Somos gratas ao empenho de todas e todos. Os textos que apresentamos devem muito à dedicação de vocês, pareceristas e autoras. Esperamos continuar a cumprir nosso papel de criar um espaço dinâmico de diálogo e debate entre pares, especialmente, estimulando a produção de qualidade de jovens pesquisadoras.
  • 9. novos debates, vol.1, n.2, julho 2014 9 Gostaríamos de agradecer também à dedicação de colegas que editaram as seções. A Fórum, aos cuidados do pós-doutorando Wagner Camargo (UFSCar), provocou um grupo seleto de cientistas sociais a apresentarem suas pesquisas sobre o megaevento realizado esse mês no Brasil: a Copa do Mundo de futebol (masculino, como enfatiza Camargo, pesquisador dedicado à área de gênero e sexualidades, especialmente em sua intersecção com esportes). Desse modo, procuramos expôr o debate super atual sobre a relação entre espetáculo, protestos, mercado e esporte. A vida cotidana e contemporânea é escrutinada e temos a chance de poder acompanhar “ao vivo” e “de camarote” tais discussões e reflexões. As resenhas foram editadas pelo jovem professor Felipe Fernandes (UFBA). Os últimos livros de Antropologia escritos por Anna Paula Vencato e Oscar Calavia Sáez são apresentados por estudantes que exercitam a fundamental atividade de compreender e explicitar os pontos principais dessas obras. Esperamos, com essa seção, estimular pesquisadoras a elaborarem mais e melhores sínteses. Consideramos que é a partir de resenhas bem escritas que aprende-se a dialogar com outras ideias. Procurar entender e interpretar o que outros escrevem é a base sólida de um diálogo profundo, por isso aproveitamos para estimular a que mais colegas mandem contribuições de resenhas de obras contemporâneas para que a gente siga promovendo as trocas acadêmicas a partir de nossa plataforma virtual. As seções Opinião e a Novas Pesquisas foram editadas por mim e agradeço a colaboração e os inúmeros emails trocados com autoras e revisoras, aprendi muito com vocês. Por fim, agradeço também a Vinicius Kauê Ferreira que realizou a alimentação do sítio e o trabalho de revisão. Muito obrigada também a Carine Lemos, da ABA, que tramitou e obteve a inscrição de nosso registro próprio no ISSN (na sigla em inglês International Standard Serial Number). Agora, somos oficialmente uma publicação seriada, o que também muito nos honra. Com alegria, mantemos a missão de criar um novo espaço para novas ideias, um fórum online de publicações. Promovida pela Associação Brasileira de Antropologia, a revista é voltada a pesquisadoras em formação e também à participação de professoras.
  • 10. novos debates, vol.1, n.2, julho 2014 10 Pretendemos ser um fórum de divulgação ampla e de reflexão crítica sobre a produção antropológica contemporânea, através de modelos alternativos de contribuições. Novos Debates é a criação de um espaço dinâmico de diálogo, circulação de opiniões e embates necessários à formação das novas gerações em antropologia. Que venham muitas edições futuras e muitas Novos Debates! Barbara Arisi Editora de Novos Debates
  • 11. N O V A S P E S Q U I S A S
  • 12. VMDL1 breves considerações sobre rolezinho, narrativas de classe, redes e a cidade Louise Scoz Pasteur de Faria Doutoranda em Antropologia Social – Bolsa CNPq Universidade Federal do Rio Grande do Sul Moisés Kopper Doutorando em Antropologia Social – Bolsa CNPq Universidade Federal do Rio Grande do Sul 1 VMDL é a abreviação do termo “rolezeiro” “VaMO DaLe”, operado em circunstâncias de rolé, que evoca o entusiasmo, a excitação e as expectativas depositadas sobre seus eventos e festas.
  • 13. LOUISE SCOZ PASTEUR DE FARIA E MOISÉS KOPPER novos debates, vol.1, n.2, julho 2014 13 Domingo, 23 de março de 2014. Um evento criado no site de rede social Facebook anunciava, para essa data, o Rolezinho no Shopping Praia de Belas2. Localizado entre a região central e sul da cidade de Porto Alegre, é ponto de convergência do constante fluxo de veículos que partem de ambas zonas urbanas e transeuntes que circulam na pista da Usina do Gasômetro, desenhada ao longo de parte do Rio Guaíba, e no Parque Marinha do Brasil que compreende uma área de pouco mais de 70 hectares ao lado do empreendimento. A expectativa era grande. A página indicava cerca de 1,2 mil presenças confirmadas desde o dia 16 de março, quando a proposta havia sido lançada, que se concentrariam nas dependências do shopping a partir da uma hora da tarde sem hora para acabar. Além do evidente interesse por parte de empresários ligados ao setor, o episódio atraiu a atenção de agentes da mídia e acadêmicos. Ao contrário da imagem massiva que o número de presença confirmadas suscitava, pequenos grupos pulverizados chegavam continuamente ao longo do dia e circulavam animadamente dentro e fora do empreendimento em um exercício de ver e ser visto, tanto que por certos momentos parecia haver mais seguranças do que rolezeiros3 curtindo no shopping. Uma cena em particular chamou nossa atenção. Um grupo de cinco garotas se reúnem na área de convivência do pavimento térreo, circundada por escadas rolantes, bancos e plantas decorativas, vistas até do último andar. Com câmeras fotográficas e celulares, conversam sobre a fotografia que seria tirada naquele momento. Entre risadas e brincadeiras, logo partem para debaixo da escada rolante cuja face é espelhada tal como as laterais. Elas enxergam seu reflexo e começam a arrumar sua imagem no espelho para produzir a melhor foto possível. Poses feitas, a imagem é capturada. Não somente as garotas e o shopping estariam amalgamados na composição. A imagem não servia apenas para elas verem a si próprias e para os outros as verem, mas como registro de que aquelas paredes e espelhos também as viram. Observamos cenas semelhantes em diferentes incursões de campo, 2 https://www.facebook.com/events/1398139017123890/?fref=ts, Acesso em 26 de março de 2014. 3 Termo pelo qual se passou a referir as pessoas que frequentam os rolés.
  • 14. LOUISE SCOZ PASTEUR DE FARIA E MOISÉS KOPPER novos debates, vol.1, n.2, julho 2014 14 conduzidas em eventos publicizados na cidade de Porto Alegre em 2014. Pequenos grupos que se cruzam aqui e ali, se reorganizam em aglomerações maiores, num circuito que transcende a arquitetura planejada dos shopping centers. A temática do rolezinho adquiriu surpreendente ressonância, provocando efeitos em discussões envolvendo setores especializados, leigos e intelectuais. A maneira como parece ecoar muito se assemelha ao jogo de espelhos daquelas cinco garotas: de que modo as imagens produzidas por esses campos colidem, cooperam ou nem ao menos dialogam para produzir esse amplo e, por muitas vezes, escorregadio debate que toca em questões político-econômicas, tecnológicas e teórico conceituais fundamentais do Brasil contemporâneo. Sobretudo, parece questionar nossa própria habilidade de enxergar e refletir. Sobre o que estamos realmente falando quando falamos de rolezinho? A ótica pela qual sugerimos perceber o fenômeno resiste a quaisquer separações radicais entre eventos e repercussões. A partir da antropologia urbana nosso “objeto” adquire inteligibilidade em uma dupla dimensão que nos faz repensar a cidade a partir de novas dinâmicas que conectam a materialidade do digital à concretude dos lugares, assim como os especialistas e seus projetos de conhecimento à sociedade brasileira na conformação das paisagens urbanas nacionais. Interessam-nos, nesse exercício reflexivo inicial, os modos pelos quais o rolezinho se converteu tanto em problema como em artigo valioso que merece atenção de diferentes modalidades especializadas e acadêmicas nas disputas por seu legado político, econômico e social. Na emergência de um fenômeno cujas fronteiras não estão sedimentadas eclodem diversas apropriações acionadas em disputas pelo seu entendimento. O que a aproximação de certos campos intelectuais pode indicar a respeito do que está em jogo na construção dessa população-alvo e que relações de poder estão implicadas na difusa noção de “inclusão social” pelo acesso a bens e espaços de consumo? Desde os primeiros estudos sobre os processos de ocupação de shopping centers enquanto espaços de prática de lazer e consumo na contemporaneidade, diversos esforços foram empreendidos na tentativa de compreendê-los a partir das trajetórias múltiplas de seus frequentadores e suas dinâmicas de circulação
  • 15. LOUISE SCOZ PASTEUR DE FARIA E MOISÉS KOPPER novos debates, vol.1, n.2, julho 2014 15 (Frugoli Jr, 2008; 2011). Tais predileções metodológicas estavam afinadas com a apropriação das teorias de classe oriundas do contexto sociológico francês (Bourdieu, 2008) e a proposição de modelos analíticos ainda emergentes, que teriam seu apogeu no trabalho de Gilberto Velho no Museu Nacional e José Cantor Magnani na USP com conceitos como “estilos de vida”, “manchas”, “pedaços”. O rápido processo de deterioração dos usos de espaços tidos como públicos e o deslocamento de práticas de sociabilidade de camadas médias e altas para esses empreendimentos na década de 1980 pautou parte desse debate. Como logo ficou claro, esses locais não eram isentos de processos de massificação. Converteram-se em palcos de dramatização de questões cruciais como nos lembra Frugoli Jr (2008: 234-240) com relação às manifestações de grupos homossexuais e negros na década de 2000. Nos dias de hoje, os shopping centers se colocam como cenário dos rolezinhos. A grande mídia parece situar sua origem em um evento no início de dezembro de 2013, quando milhares de jovens mobilizados através da rede social Facebook se reuniram para ouvir funk ostentação4 no estacionamento do Shopping Metrô Itaquera, em São Paulo. Esse evento disjuntivo converteu a categoria em baluarte definitório de uma série de outros acontecimentos em diferentes shoppings centers de São Paulo e de outras capitais brasileiras, caracterizados por pequenas aglomerações de jovens oriundos de periferias. Alguns deles, possuidores de milhares de seguidores nessas plataformas digitais, faziam desses encontros uma oportunidade de contato com seus fãs, distribuição de autógrafos e entrega de presentes. Isso produziu um debate acadêmico sobre os efeitos da inserção desses jovens em redes de consumo construindo dois pólos de tensão: de um lado a ocupação de shopping centers como resistência política à exclusão crônica que assolaria populações tradicionalmente à margem do consumo - e, supõe-se, da cidadania. De outro, o processo de reificação do fascínio pelas marcas e de seu 4 O funk ostentação é um estilo musical que, diferentemente do funk carioca, não fala sobre crime ou drogas, mas sobre mulheres, dinheiro, marcas e bens de consumo. Sem discos lançados, os MCs adquiriram fama com clipes publicados no site YouTube.
  • 16. LOUISE SCOZ PASTEUR DE FARIA E MOISÉS KOPPER novos debates, vol.1, n.2, julho 2014 16 poder simbólico. Essa compreensão parte de alguns pressupostos tácitos. Em primeiro lugar, a ideia de que esses espaços se converteram em dispositivos agregadores de processos culturais, permitindo a coexistência de distintos estilos de vida que transcendem o escopo definitório de seus gestores. Isso implica o reordenamento do valor da noção de “público”, modelo que requer um constante tornar evidente o consumo como recurso de acesso a essa experiência. Com isso, a própria cidade do ponto de vista de fluxos imobiliários, subjetivos e expressivos tem por efeito acentuar a edificação de muros e empreendimentos privados (Caldeira, 2000) e o recrudescimento da vigilância, higienização, gentrificação e normatização desses espaços (Leite, 2001). Se invertêssemos a figura imóvel do shopping center, tão definida nessas análises, seríamos tentados a observar o material não mais na concretude física dos objetos, mas no espaço imaginado onde essas relações tomam forma. No caso dos rolezinhos, fica nítido que tal dimensão inclui necessariamente a esfera do virtual digital, muitas vezes mal descrita como malha disforme que resiste à concretude física (Miller, 2013), que alerta para modos de construção socio- técnica da cidade. Parece-nos que a potência da temática do rolezinho em sua dimensão epistêmica está em congregar uma série de elementos distintos que lhe dão corpo, alguns compreensíveis em contraste com um contexto histórico mais amplo dos fluxos urbanos e outros mais recentes, como os discursos relativos à “nova classe média” brasileira e ao crescimento do mercado consumidor interno, expansão do acesso à tecnologia e às redes telemáticas e a emergência de estéticas locais que animam esses agentes em suas vidas cotidianas, como é o caso do “funk ostentação”. Muitas das insuficiências explicativas sobre os efeitos dos rolezinhos, como a sensação de que somos incapazes de entendê-lo por meio de nossas estruturas de pensamento, parece decorrer do modo como categorias prévias operam no campo de debates, sugerindo passagens sutis entre retóricas e expertises fragmentadas. Em poucas palavras, falar sobre rolezinhos significa produzir justificações para questões políticas e intelectuais mais amplas: sobre o que é o Brasil, o que acontece com sua desigualdade e suas pessoas, problemas que
  • 17. LOUISE SCOZ PASTEUR DE FARIA E MOISÉS KOPPER novos debates, vol.1, n.2, julho 2014 17 tocam em projetos de conhecimento no Brasil sobre o Brasil. E, no trato etnográfico desses rastros, o antropólogo é convidado a dirigir sua atenção para o não dito refletido nessas operações de transubstanciação ideológica. Referências Bibliográficas BOURDIEU, Pierre. 2008. A Distinção: crítica social do julgamento. São Paulo: Edusp; Porto Alegre: Zouk. CALDEIRA, Teresa P. R.. 2000. Cidade de Muros: crime, segregação e cidadania em São Paulo. São Paulo: Editora 34. FRUGOLI JUNIOR, Heitor. 2008. “Sociabilidade e consumo nos shoppings centers de São Paulo: eventos e desafios recentes”. In: M.L. Bueno; L.O.L. Camargo (orgs.). Cultura e Consumo: estilos de vida na contemporaneidade. São Paulo: Editora Senac. _____. 2011. “Esboços de uma trajetória: cidade, pesquisa, universidade”. Iluminuras, 12(28): 18-40. LEITE, Rogerio Proença. 2001. Espaço público e política dos lugares: usos do patrimônio cultural na reinvenção contemporânea do Recife Antigo. Tese de Doutorado, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Unicamp, Campinas. MILLER, Daniel. 2013. “The Digital and the Human: A prospectus for Digital Anthropology”. In: H. Horst e D. Miller (orgs.). Digital Anthropology. Berg: New York. Louise Scoz Pasteur de Faria Doutoranda em Antropologia Social – Bolsa CNPq Universidade Federal do Rio Grande do Sul Currículo Lattes
  • 18. LOUISE SCOZ PASTEUR DE FARIA E MOISÉS KOPPER novos debates, vol.1, n.2, julho 2014 18 Moisés Kopper Doutorando em Antropologia Social – Bolsa CNPq Universidade Federal do Rio Grande do Sul Currículo Lattes
  • 19. AS SITUAÇÕES-LIMITE E SEUS DESDOBRAMENTOS SOBRE AS VIDAS DAS MULHERES QUE LUTARAM CONTRA A DITADURA NO BRASIL Lívia de Barros Salgado Mestranda em Ciências Sociais Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro Bolsista CAPES
  • 20. LIVIA DE BARROS SALGADO novos debates, vol.1, n.2, julho 2014 20 Introdução O período entre 1964 e 1985 foi marcado pela violência estatal e cerceamento da liberdade da população brasileira. O cenário era de opressão e perseguição aos opositores, resultando em centros de torturas clandestinos e da prática de “desaparecimentos forçados”. O Ato Institucional nº 5, em 1968, intensificou ainda mais o caráter ditatorial do regime, e o governo passou a ter plenos poderes para cassar mandatos, suspender direitos políticos e o habeas corpus em crimes contra a segurança nacional, além de outras medidas. Nesse contexto foi generalizado o uso da tortura e outros desmandos, tudo em nome da “segurança nacional”. Apesar da violência estatal, o período também se caracterizou por importantes focos de resistência. Esse cenário possibilitou uma maior participação feminina nas questões políticas do país. É importante destacar que as mulheres que se envolveram na luta política eram consideradas duplamente desviantes. Além de perseguição sofrida por serem contra a ordem vigente, o apoio à revolução era, para os padrões da época, uma forma de negar a própria condição feminina, ou negar determinado modelo de feminilidade, ligado à vocação da mulher para o lar e para a maternidade (Cordeiro, 2008). Em função da violência que sofreram, as mulheres tiveram que conviver e se adaptar a diferentes condições de vida. Essa experiência, a qual Gati Pietrocolla (1996) denominou de viver entre parênteses, retira o sujeito do seu ambiente, corta suas ligações com seu mundo e afetos originais. A partir de então, surgem novas formas de se perceber. À luz dessa questão, o objetivo desta pesquisa5 é perceber como a entrada na clandestinidade e a tortura afetaram o indivíduo6 e a identidade7 da militante, sobretudo em função da sua 5 O presente trabalho faz parte da pesquisa, ainda em andamento, pelo PPGCS - UFRRJ. O texto apresentando é um recorte da pesquisa, cujo objetivo é apreender como homens e mulheres, que viveram durante a ditadura militar, concebem a violência sofrida. Intenciona-se comparar as narrativas a respeito da violência a fim de perceber em que medida os padrões de gênero conduzem formas de pensar e sentir os eventos. 6 O indivíduo é entendido, no presente trabalho, a partir da perspectiva de Dumont (1992), e, portanto, diz respeito ao indivíduo “elementar”, indivisível, tanto no sentido biológico como enquanto sujeito pensante. 7 É preciso considerar que identidade é uma categoria construída, na medida em que esse conceito assumiu diferentes sentidos nas diferentes sociedade, com bases em seus diferentes costumes e mentalidades. A partir do trabalho de Mauss (2003), considero a identidade como uma forma singular, uma individualidade específica, resultado dessa construção. Ela está
  • 21. LIVIA DE BARROS SALGADO novos debates, vol.1, n.2, julho 2014 21 condição de gênero. Para tanto, serão analisadas entrevista e depoimentos 8 obtidos por meio de trabalho de campo no Grupo Tortura Nunca Mais (GTNM) e na Comissão Estadual da Verdade (CEV), ambos do Rio de Janeiro9. As situações-limites Tortura Cecília10 menciona, em seu depoimento, a dificuldade de falar do período em que teve sua vida afetada pelo regime. Segundo a mesma, falar dos três meses em que esteve presa é falar de uma viagem ao inferno, marcada por sentimentos de desamparo, solidão, medo, pânico e desespero. Para ela, o objetivo da tortura não era fazer falar, mas calar através da dor, da humilhação e degradação do indivíduo. Além disso, Cecília menciona que a tortura destinada à mulher era “violentamente machista”, marcada por palavras ofensivas ditas de forma agressiva e violenta, com objetivo de anular a mulher que se encontrava naquela situação. Exemplo disso está presente na fala do então diretor do Dops, que a intimidava aos berros: “Fale, sua puta comunista, com quantos você trepou?”. Fica evidente, desse modo, o lugar da mulher subversiva na relação de poder relacionada à consciência e ao caráter pensante do ser humano. Assim, a identidade é entendida como uma forma fundamental do pensamento e da ação. 8 Embora muitos trabalhos não utilizem o nome verdadeiro dos entrevistados, optei por utilizá- los. Quando entrevistei Victória Grabois, presidente do GTNM-RJ, a mesma autorizou a utilização de seu nome. Destaco que, em razão do lugar ocupado por ela, é necessário que seu nome esteja vinculado a suas falas, pois atribui ainda mais legitimidade ao que é dito. Seu nome, portanto, é dotado do que Bourdieu (2010) chama de capital simbólico. Além disso, no caso de Cecília, Lúcia e Dulce, uma vez que seu depoimentos foram dados em público, também optei por usar seus nomes verdadeiros. 9 O GTNM/RJ foi fundado em 1985 por iniciativa de ex-presos políticos que viveram situações de tortura durante o regime militar e por familiares de mortos e desaparecidos políticos e, desde então, tornou-se uma referência importante no cenário nacional. No que se refere a Comissão da Verdade, existem muitas espalhadas pelo país, tanto a nível nacional como nos demais Estados. Porém, meu enfoque é dado sobre a CEV-Rio, criada em 2012, a partir da Lei nº 6335. A Comissão visa esclarecer as circunstâncias das violações de direitos humanos, elucidar os casos de torturas, mortes, desaparecimentos forçados, ocultação de cadáveres e sua autoria; além de outras medidas. 10 Cecília Coimbra é vice-presidente e uma das fundadoras do GTNM-RJ. Esteve presa de agosto a novembro, de 1970. Cecília forneceu seu depoimento por escrito às Comissões da Verdade, Estadual e Nacional, e o mesmo foi disponibilizado a mim pelo GTNM.
  • 22. LIVIA DE BARROS SALGADO novos debates, vol.1, n.2, julho 2014 22 com o torturador. Colocar-se contra ao sistema de relação de gênero vigente fazia com que a mulher fosse considerada “puta” e, por isso, tinha sua tortura diretamente relacionada ao fato de ser mulher. Outro aspecto mencionado por Cecília foi o fato de ter sido forçada a assistir seu companheiro ser torturado, o que considerou pior do que a própria tortura que sofreu. Tal situação pode ser compreendida dentro do que Goffman chamou de mortificação do eu. Segundo o autor, nas instituições totais podem "haver ocasiões em que um indivíduo testemunha um ataque físico a alguém com quem tem ligações, e sofre a mortificação permanente de nada ter feito (e os outros saberem que nada fez)" (Goffman, 1996: p. 38). Assim, o indivíduo sofre não só pelo ataque direto, mas também quando vê seus companheiros sendo torturados, sem ter o que fazer diante da situação. Ao relatar sua experiência, Lúcia11 ressalta que as lembranças são confusas, pois se manifestam em sua memória sem continuidade. Além disso, ela menciona que a descrição da tortura que sofreu jamais seria compatível com o que ocorreu, pois se trata de um “horror indescritível”. Em diferentes momentos, afirma que foi a pior coisa que viveu. Desse modo, deixa clara a fragilidade da pessoa diante da tortura, que, segundo ela, era um método de aniquilamento progressivo, que nunca parecia ter fim. A partir da fala de Lúcia, é possível pensar no que Butler (2010) chama de “vidas precárias”. Para a autora, uma vida concreta não pode ser danificada ou perdida sem antes ter sido considerada como vida. Se certas vidas não são qualificadas enquanto tais, não serão consideradas vividas ou perdidas no sentido absoluto da palavra. Entendendo a vida das militantes a partir dessa perspectiva, a existência delas poderia ser desprezada pelo regime e, portanto, passível de todas as práticas de torturas e atrocidades. Outras questões que contribuíam para o desequilíbrio individual das militantes eram a perda da noção do tempo e a ausência de uma rotina. A esse 11 Lúcia Murat é cineasta e foi presa no Congresso estudantil, em Ibiúna, em outubro de 1968. Seu depoimento encontra-se disponível em http://atarde.uol.com.br/politica/materias/1506981-depoimento-de-lucia-murat-a-comissao- da-verdade-do-rio .
  • 23. LIVIA DE BARROS SALGADO novos debates, vol.1, n.2, julho 2014 23 respeito, Dulce12 comenta em seu depoimento que, quando ficou sozinha na cela achava que enlouqueceria. Então, inventou duas atividades para passar o tempo: “eu contava ladrilhos do chão e fazia tranças com as palhas retiradas dos colchões.” Segundo Goffman, o tempo perdido na prisão justifica a prática de atividades de distração, capazes de fazer o internado esquecer um pouco da sua situação. Nesse sentido, a criação de atividades “pode ajudar o indivíduo a suportar a tensão psicológica usualmente criada pelos ataques ao eu.” (Goffman, 1996: p. 66). Clandestinidade Victória13 afirma em entrevista que, apesar de não ter sido presa, viveu uma situação-limite enquanto esteve clandestina. Victória revelou ter entrado na clandestinidade em 1964 e saído somente 1980 após a Lei de Anistia. Logo de início, tirou uma nova documentação, passando a se chamar Tereza. A clandestinidade, de acordo com Elizabeth Ferreira (1996), é uma experiência difícil, principalmente em relação ao peso cultural que o nome do indivíduo tem. Como defendeu Bourdieu (2006), o nome próprio transmite a identidade de seu portador e é uma apresentação oficial dele mesmo. Dessa forma, a interferência no nome é o mesmo que interferir no indivíduo “elementar”, proposto por Dumont (1992). Victória comenta ter vivido uma situação particular em relação às amizades. Ela diz que na clandestinidade não tinha amigas, quem as tinha era a Tereza. Contudo, começou a desenvolver uma amizade muito forte com Ana 14. Quando estava em situação de risco, Victória/Tereza deixava seu filho na casa dela para que tomasse conta, “eu comprometi a vida dela e dos filhos dela, sem ela saber.” Depois de algum tempo, começou a dar indícios de que vivia algo muito particular, para que quando Ana soubesse não levasse um choque. 12 Dulce Paldolfi é historiadora e foi presa quando ainda estava na universidade, em agosto de 1970. Depoimento disponível em http://racismoambiental.net.br/2013/05/integra-do- depoimento-da-historiadora-dulce-pandolfi-a-comissao-estadual-da-verdade-do-rio-de- janeiro/ 13 Victória Grabois é a atual presidente do Grupo Tortura Nunca Mais, e esteve clandestina durante quase todo o regime militar. Com a mesma, pude realizar entrevista pessoalmente. 14 Nesse caso, optou-se por utilizar um nome fictício, na medida em que ela foi citada na entrevista de Victória.
  • 24. LIVIA DE BARROS SALGADO novos debates, vol.1, n.2, julho 2014 24 Assim que saiu a Anistia, Victória/Tereza precisou tirar uma nova carteira de identidade para voltar a ser Victória. Feito isso, foi contar para Ana sua história. Enquanto Ana dirigia, Victória explicou sua história a ela, que perguntou seu verdadeiro nome. Victória, porém, não conseguiu dizer: “eu não conseguia dizer meu nome. Não saia. (...) Aí quando chegou na porta de casa, eu abri minha bolsa, tirei minha carteira de identidade e mostrei pra ela”. Tal fato evidencia a dificuldade que Victória tinha de se reconhecer como tal, já que havia passado 16 anos sendo Tereza. A ditadura fez com que ela tivesse que abrir mão da sua vida. Porém, Victória afirma que faria tudo de novo, pois a militância lhe deu uma história. Dessa forma, sua vida “não foi em vão”. A partir do exposto, é possível inferir que sua vida se confunde com a militância. A mesma afirma que a militância a mantém viva: “Eu não posso parar. Enquanto eu puder lutar, né... e vai ser até o dia que eu morrer. Ou vou ficar numa cama se eu não puder sair de casa, mas assim mesmo se eu ainda puder falar e escrever, eu escrevo e falo.” Além disso, argumenta como se sua militância fizesse parte de sua “essência”, na medida em que afirma “Tá em mim. Eu sou filha de mãe e pai comunista, né?” Considerações finais As condições da experiência nas situações-limite não eliminam os arranjos sociais negociados pelas militantes, porém os reproduzem de outra forma em outro nível de realidade, dando novo significado à vida social. Uma nova conjuntura foi apresentada a elas, exigindo adaptação à nova situação. Há uma reorganização de sua relação com o espaço, com o tempo, além de um novo código social. Ao analisar a condição humana no viver entre parênteses, é possível perceber nas entrevistas a forma como suas identidades foram reconfiguradas pela ditadura. Na medida em que a tortura violava seus corpos femininos, dava a elas a condição de objeto e interferia em sua capacidade de sobrevivência, essas mulheres tinham a sua condição de indivíduo autônomo afetada pelo regime. Do mesmo modo, a clandestinidade também colocava as militantes em uma nova situação, na medida em que elas construíam para si novas formas de existir, uma nova identidade, e precisavam aprender a lidar com um novo “eu”.
  • 25. LIVIA DE BARROS SALGADO novos debates, vol.1, n.2, julho 2014 25 Bibliografia BOURDIEU, Pierre. 2006. “A ilusão biográfica”. In: Janaína Amado; Marieta de Moraes Ferreira (orgs.). Usos e abusos da história oral. Rio de Janeiro: Editora FGV. _____. 2010. “A representação política: elementos para uma teoria do campo político”. In: O poder simbólico. 14ª Ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2010. BUTLER, Judith. 2010. Marcos de guerra: lãs vidas lloradas. Buenos Aires: Paidós, 2010. CORDEIRO, Janaina Martins. 2008. “A nação que se salvou a si mesma”. Entre memória e história, a Campanha da Mulher pela democracia (1962 - 1974). Dissertação de mestrado. Universidade Federal Fluminense. DUMONT, Louis. 1992. Homo Hierarchicus: O sistema das castas e suas implicações. São Paulo: EDUSP. FERREIRA, Elizabeth Fernandes Xavier. 1996. Mulheres, militância e memória. Rio de Janeiro: Editora Fundação Getúlio Vargas. GATI PIETROCOLLA, Luci. 1996. “Anos 60/70: do sonho revolucionário ao amargo retorno”. Tempo Social: Rev. Sociol. USP, São Paulo, 8(2): 119-145, outubro. GOFFMAN, Erving. 1996. Manicômios, prisões e conventos. São Paulo: Perspectiva. MAUSS, Marcel. 2003. “Uma categoria do espírito humano: a noção de pessoa, a de ‘eu’”. In: Sociologia e antropologia. São Paulo: Cosac & Naify. Lívia de Barros Salgado Mestranda em Ciências Sociais Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro Bolsista CAPES Currículo Lattes
  • 26. HOMOSSEXUALIDADE INDÍGENA NO BRASIL desafios de uma pesquisa Estevão Rafael Fernandes Professor da Universidade Federal de Rondônia Doutorando em Estudos Comparados sobre as Américas Universidade de Brasília Ilustração de Theodor de Bry (1528-1598)
  • 27. ESTEVÃO RAFAEL FERNANDES novos debates, vol.1, n.2, julho 2014 27 Este texto busca levantar alguns dos questionamentos que tenho elaborado desde que escolhi como tema de pesquisa o ativismo homossexual indígena no Brasil a partir de uma perspectiva comparada com os Estados Unidos. Na verdade, tratam estas reflexões justamente do que eu não tenho encontrado na literatura e como, a partir disso, minhas preocupações analíticas vêm tomando corpo. Ao longo da pesquisa tenho observado que há, no Brasil, diversas referências a sexualidades indígenas operando fora do modelo heteronormativo desde a colonização. Autores como Mott (2011), por exemplo, trazem inúmeros exemplos de como o “pecado nefando” e a “pederastia” eram algo relativamente comum entre os indígenas: os Tupinambá chamariam de tibira aos homens e de çacoaimbeguira às mulheres que fossem o que se chamaria hoje de “homossexuais” (adiante problematizarei isso, inclusive o título que dei a este texto); entre os Guaicurus eles seriam chamados cudinhos, entre os Mbya, guaxu; entre os Krahò, cunin; entre os Kadiwéu, kudina; entre os Javaé, hawakyni; e assim por diante. Vários antropólogos (Wagley, 1977; Clastres, 1995,2003; Lévi-Strauss, 1996; Gregor, 1985; Murphy, 1955; Métraux, 1948; Darcy Ribeiro, 1997; para citarmos apenas alguns) mencionariam, ainda que en passant em suas etnografias, práticas que seriam classificadas a primeira vista como “homo” ou “bissexualidade”1. Ao longo da pesquisa, noto que esse mapeamento de práticas e autores traz uma série de implicações (epistemológicas, políticas, conceituais, etc.) que compensam um esforço de sistematização como o que se pretende este artigo. Em primeiro lugar, termos como bi, homo, trans, etc., não são unívocos, nem política ou epistemologicamente neutros. Práticas como a masturbação 1 Infelizmente, por uma questão tanto de estratégia de análise quanto de espaço não poderei aqui problematizar ou contextualizar da forma devida – e merecida – as menções que tais autores fazem sobre o tema, mesmo por ser algo ainda em desenvolvimento na confecção da minha tese. Posso adiantar, contudo, que tanto os etnólogos mencionados (incluindo outros, como Baldus, 1937; Couto de Magalhães, 1837; e Rosário, 1839) quanto os cronistas e missionários que abordam o tema (D’Abeville, Gandavo, Léry, Nóbrega, Thevet e Soares de Sousa) não problematizam a questão nem a inserem no corpus cosmológico ameríndio. Além disso – e como exponho a seguir – quase sempre esses autores não fazem maiores distinções em se tratando de terminologia, utilizando-se de “sodomia”, “nefando”, “homossexualidade”, “berdache”, etc., como se fossem termos sinônimos ou intercambiáveis, sem maiores problematizações. Se, por um lado, tal imprecisão oferece um problema ao pesquisador no que diz respeito à comparação e à análise, por outro, fornece uma outra possibilidade analítica, por colocar em questão o lugar de enunciação dessas fontes. Contudo, como assinalei, trata-se de um tema complexo cujo espaço e escopo, lamentavelmente, escapam a este texto.
  • 28. ESTEVÃO RAFAEL FERNANDES novos debates, vol.1, n.2, julho 2014 28 entre cunhados, ou o sexo anal ocasional em caçadas e rituais não podem ser percebidos como práticas homossexuais sem problematizações. Tampouco a simples tradução das práticas percebidas como “sexualmente desviantes” para termos indígenas (como feito acima) dá conta da complexidade analítica que a questão implica. Nesse sentido, e seguindo aqui o que escrevem os ativistas two- spirit (ver adiante a explicação sobre tal termo), talvez seja mais produtivo pensar em termos de “queer indígena”, uma vez que tal perspectiva deslocaria o foco analítico das práticas, em si, e colocaria em evidência as relações de poder que historicamente moldaram a heterossexualidade compulsória a que os indígenas foram submetidos. Justifico entretanto o mapeamento dessas condutas pelo interesse em mostrar como tal conjunto de práticas era comum em sociedades indígenas brasileiras, sem que houvessem estigmas sobre essas pessoas por parte de seu grupo. Tem sido bastante comum, ao longo da realização do trabalho de campo – realizado desde 2012 junto a indígenas e órgãos do governo responsável pela gestão da política indigenista no Brasil, além de setores dos movimentos indígenas e homossexuais no Brasil e nos Estados Unidos -; ouvir que casos de homo/bi/transexualidade nas aldeias existem por conta da “perda de cultura” ou da “depravação advinda do contato”. Contudo, há várias fontes apontando para um papel espiritual central desempenhado por esses indivíduos em suas aldeias: o que os missionários e colonizadores percebiam como uma depravação era, muitas vezes, percebido como potencial xamânico pelos indígenas. Assim, a experiência indígena norte-americana é bastante interessante. Lá, como cá, sexualidades fora do modelo predominante foram também perseguidas por portugueses, ingleses, franceses e espanhóis. Diversas denominações foram utilizadas para se referir a esses indígenas, quase sempre com uma forte carga estigmatizante (“berdache”, por exemplo, termo de uso corrente até bem recentemente entre antropólogos, tem sua origem em uma expressão árabe, que se refere ao menino submetido a relações de pederastia). Ao longo dos anos 80, quando os indígenas começam a ser infectados com HIV e retornam às suas aldeias para morrer com suas famílias são, em princípio, rechaçados por sua comunidade. De um modo geral, a acusação era de que eles seriam soropositivos por serem “degenerados”, uma vez que teriam abandonado suas culturas e se tornado gays, devido ao contato com o não-indígena. Sua
  • 29. ESTEVÃO RAFAEL FERNANDES novos debates, vol.1, n.2, julho 2014 29 resposta viria como uma crítica ao aparato colonial moldada a partir de uma identidade pan-indígena e amparada por um discurso espiritual. Em sua própria visão, eles não teriam abandonado suas culturas, ao contrário, seriam parte de uma tradição de diversos povos nativo-americanos de pessoas two-spirit - em uma tradução livre, aquele/a com dois espíritos. Assim, eles não seriam “gays”, mas pessoas de dois espíritos (de homem e de mulher), estando em transição entre os dois mundos: masculino e feminino, espiritual e terreno, indígena e não-indígena, o que lhes garantiria um papel de destaque em seus povos. Um exemplo disso seria We’wha, indígena Zuni que chegou a encontrar-se com o presidente Grover Cleveland no final do século XIX, passando seis meses em Washington. Assim, na década de 80 surgem diversas organizações two-spirit no Canadá e nos Estados Unidos e, em 1990, após um encontro em Winnipeg, esse/as indígenas passam a rechaçar qualquer outra denominação (como “berdache”, por exemplo). Na prática, isso significaria mais que uma simples mudança de denominação: assumir-se como dois espíritos não apenas focava no papel espiritual da pessoa (e não em suas práticas sexuais) como também significa uma crítica ao processo de colonização: parte considerável dos escritos produzidos por autores e ativistas two-spirit se assenta na análise e crítica aos processos de colonização que os estigmatizaram. Além disso, essas lideranças se viam diante do desafio de se consolidar como grupo autônomo e com agenda própria, estando à margem dos movimentos indígena e LGBTIQ2. Cabe notar que o movimento indígena não lhes dava espaço, por serem homo/bi/transexuais; tampouco o movimento LGBTIQ lhes dava voz, por serem indígenas. Mais recentemente, contudo, várias obras de autores e ativistas two-spirit vêm sendo publicadas e parte considerável dos estados dos Estados Unidos e Canadá contam já com organizações two-spirit. Nesse sentido, em um primeiro momento, minhas preocupações analíticas partiam da pergunta: “por que nos Estados Unidos e Canadá houve condições para um movimento continental, a partir de um discurso tradicional e 2 Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transgêneros, Transexuais, Intersexuais e Queer. Vale notar que alguns intelectuais, ativistas e estudiosos cada vez mais vêm incorporando à sigla os 2-spirit, resultando na sigla LGBTIQ2
  • 30. ESTEVÃO RAFAEL FERNANDES novos debates, vol.1, n.2, julho 2014 30 de uma identidade pan-indígena em torno dessas sexualidades indígenas enquanto que, no Brasil, o fenômeno é enxergado (quando é) como perda cultural?”. Dito de forma mais direta: “por que lá sim e aqui não?”. Evidentemente que tais pontos de partida funcionaram como pontos de partida e só. Definir o movimento no Brasil pela falta, ou supervalorizar a iniciativa dos indígenas norte-americanos é algo que apenas reforça relações de poder e um modelo de Estado que nada tem a ver com o nosso. Lá, há uma solução que funciona lá, ponto final. Assim, a pergunta fundamental parece ser: para que desafios essas questões, trazidas aqui, apontam? Penso que elas nos impelem a repensar nossas próprias ferramentas analíticas e conceituais. O que tais processos nos permitem compreender sobre a própria articulação interna aos movimentos indígenas, movimentos LGBTIQ, academia, OnGs e Governo? De que maneiras podemos abordar essas questões sem que limitemos a diversidade de processos aqui descritos – mesmo que resumidamente – em nossa interpretação? Aspas – como chamar esses fenômenos de “homossexualidade”, ou “queer indígena” – bastam, ou é necessário repensarmos mesmo os paradigmas que perpassam essas categorias e outras, como “identidade”, “ativismo”, “movimentos sociais”, “poder”, “gênero”, “sexualidade”, “colonização”, para citarmos apenas algumas? Diversos elementos vêm surgindo no trabalho de campo3: quais as implicações, para gestores em saúde, da demanda de um indígena que recentemente entrou com pedido para uma cirurgia de mudança de sexo? Lideranças travestis assumem sua sexualidade em suas relações fora da aldeia mas, dentro do movimento indígena, não tocam no tema. O que tais fatos nos permitem compreender sobre a forma de articulação desses indivíduos com os 3 Agradeço aos pareceristas e editores da Novos Debates por me chamarem a atenção para um ponto nos exemplos que se seguem neste parágrafo: de que cada uma das realidades que aponto possui especificidades e dinâmicas próprias e, da forma como os dados são apresentados no texto a sensação que se tem é que tais dinâmicas são suprimidas ou omitidas. Justifico, contudo, minha estratégia de apresentação dos dados por: a) uma questão de espaço, condição inerente a estratégia de se apresentar dados e reflexões em artigos – neste sentido espero dar conta de expô-los mais apropriadamente na apresentação final da pesquisa e em textos em preparação; b) de ética, posto que opto pelo anonimato de indígenas e respectivas etnias para salvaguardar os entrevistados (indígenas, lideranças, servidores de órgãos públicos, representantes de movimentos sociais, etc.); e c) epistemológica, pois me proponho a pensar justamente o processo político implicado nas relações coloniais e de colonialidade (incluindo tutela, políticas de integração, missões, etc.) que levaram a uma heterossexualização indígena. A/ao leitor/a mais interessado/a, inquietações aqui apresentadas devem ser compreendidas como complementares a dois textos (Fernandes 2013 e Fernandes, 2014), onde alguns dados são mais bem trabalhados.
  • 31. ESTEVÃO RAFAEL FERNANDES novos debates, vol.1, n.2, julho 2014 31 movimentos indígenas e com as organizações não-indígenas? Encontrei também o caso de um grupo indígena que tem seu próprio time de futebol de indígenas homo/bi/trans. Como essa realidade opera em termos de relações de poder dentro da aldeia, uma vez que se trata de um grupo – neste caso específico – vitimizado por preconceitos nas relações cotidianas? Em outro povo, registro grupos de indígenas que, se percebendo como sexualmente diferentes do restante do grupo, criaram padrões próprios de pintura corporal. Evidentemente que cada um desses casos citados acima possui especificidades e desafios analíticos próprios mas, em termos comparativos, eles nos servem para interpretação antropológica? A busca por tal resposta é, no mínimo, instigante. Referências Bibliográficas BALDUS, Herbert. 1937. Ensaios de etnologia Brasileira. São Paulo, Rio de Janeiro, Recife: Companhia Editora Nacional. CLASTRES, Pierre. 1995. Crônica dos Índios Guayaki: o que sabem os Aché, caçadores nômades do Paraguai. Rio de Janeiro: Ed.34. _____. 2003. A sociedade contra o Estado: pesquisas de Antropologia Política. São Paulo: Cosac & Naify. D’ABEVILLE, Claude. 1945. História da Missão dos Padres Capuchinhos na Ilha do Maranhão e terras circunvizinhas; em que se trata das singularidades admiráveis e dos costumes estranhos dos índios habitantes do país. São Paulo: Livraria Martins Fontes Editora. FERNANDES, Estevão R. “Ativismo homossexual indígena e decolonialidade: da teoria queer às críticas two-spirit”. 37º Encontro Anual da ANPOCS, SPG 16 Sexualidade e gênero: espaço, corporalidades e relações de poder. Águas de Lindoia, SP, de 23 a 27 de setembro de 2013. _____. “Homossexualidades indígenas e decolonialidade: algumas reflexões a partir das críticas two-spirit”. Tabula Rasa (Colômbia). 2014. No prelo. GANDAVO, Pero de Magalhães de. 1858. História da Província de Santa Cruz a que vulgarmente chamamos Brasil. Lisboa: Typographia da Academia Real das Sciencias.
  • 32. ESTEVÃO RAFAEL FERNANDES novos debates, vol.1, n.2, julho 2014 32 GREGOR, Thomas. 1985. Anxious pleasures: the sexual lives of an Amazonia people. Chicago: University of Chicago Press. LÉRY, Jean de. 1941. Viagem à terra do Brasil. São Paulo. Livraria Martins. LÉVI-STRAUSS, Claude. 1996. Tristes Trópicos. São Paulo: Companhia das Letras. 1996. MAGALHÃES, Couto de. 1876. “Parte II: Origens, costumes e região selvagem”. O Selvagem. Rio de Janeiro: Typographia da Reforma. MÉTRAUX, Alfred. 1948. “Ethnography of the Chaco”. In: J. H. Steward (Ed). Handbook of South American Indians. Vol 1. The Marginal Tribes. Smithsonian Institution Bureau of American Ethnology. Bulletin 143. Washington: United States Government Printing Office. MURPHY, Robert; QUAIN, Buell Quain. 1955. The Trumaí Indians of Central Brazil. Seattle & London: University of Washington Press. MOTT, Luiz. 2011. “A homossexualidade entre os índios do Novo Mundo antes da chegada do homem branco”. In: Ivo Brito et al. Sexualidade e saúde indígenas. Brasília: Paralelo 15. NÓBREGA, Manuel da. 1931. Cartas do Brasil (1549-1560). Rio de Janeiro: officina Industrial Graphica. RIBEIRO, Darcy. 1997. Confissões. São Paulo: Companhia das Letras. ROSÁRIO, José Manuel. 1839. “História dos índios cavalleiros, ou da nação guaycurú, escripta no real presídio de Coimbra por Francisco Rodrigues do Prado – Trasladada de um manuscripto offerecido ao Instituto pelo Socio Correspondente José Manuel do Rosário”. Revista do Instituto Histórico e Geographico do Brazil, Tomo I, n. 1, 1º trimestre. SOUSA, Gabriel Soares de. 2000. Tratado descritivo do Brasil em 1587; edição castigada pelo estudo e exame de muitos códices manuscritos existentes no Brasil, em Portugal, Espanha e França, acrescentada de alguns comentários por Francisco Adolfo de Varnhagen. Belo Horizonte: Editora Itatiaia. THEVET, André. 1944. Singularidades da França Antarctica: a que outros chamam de América. São Paulo: Companhia Editora Nacional. WAGLEY, Charles. 1977. Welcome of Tears. Oxford University Press.
  • 33. ESTEVÃO RAFAEL FERNANDES novos debates, vol.1, n.2, julho 2014 33 Estevão Rafael Fernandes Professor da Universidade Federal de Rondônia Doutorando em Estudos Comparados sobre as Américas Universidade de Brasília Curriculo Lattes
  • 34. SOBRE A POSSIBILIDADE DE SE TORNAR UMA “BOA FAMÍLIA” afirmações e representações no pleito à adoção movido por gays e lésbicas Ricardo Andrade Coitinho Filho Mestre em Ciências Sociais Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro
  • 35. RICARDO ANDRADE COITINHO FILHO novos debates, vol.1, n.2, julho 2014 35 Introdução O presente trabalho aponta como gays e lésbicas, ao pleitearem a adoção, procuram evidenciar, para a equipe técnica da Vara da Infância, da Juventude e do Idoso, que podem fazer um bom exercício da parentalidade. Em seu pleito, estes são identificados como "homoafetivos18". O objeto de análise foram processos e habilitações em adoção movidos no Rio de Janeiro. A questão central era compreender a forma com que gays e lésbicas têm sido tratados quando optam por compor uma família através do projeto filiativo da adoção19. O pleito movido por "homoafetivos" A questão da sexualidade passou por distintos processos de regulação social (Foucault, 1988). Ainda hoje, percebe-se mecanismos diversos de regulação e dispositivos de controle sobre a vida familiar. Nos processos analisados, podemos perceber como a questão da homossexualidade e da homoparentalidade ainda é questionada e debatida nos laudos técnicos dos peritos. Conforme estudo psicossocial: O tema central aqui exposto é a possibilidade de adoção por pares homossexuais. Embora não tenha havido qualquer oposição ao pedido da requerente e não tenham sido suscitadas quaisquer impeditivas, não se pode negar que a matéria é objeto de muitas polêmicas e de alta carga de preconceito e discriminação. Por essa razão, sob pena de não fazer jus à função judicante, principalmente em se tratando de competência em área de infância e juventude, entendi ser necessário o enfrentamento do tema, ainda que de forma concisa. 18 Essa categoria procura enfatizar o caráter afetivo que homossexuais podem apresentar em suas relações. Essa estratégia visa modificar as representações sociais a respeito do homossexual. Além disso, reposiciona o indivíduo a uma concepção mais familista dentro do campo do direito no Brasil. 19 Nesse respeito, as considerações de Uziel (2007) serviram como base para a pesquisa.
  • 36. RICARDO ANDRADE COITINHO FILHO novos debates, vol.1, n.2, julho 2014 36 Assim, constatamos que os pareceres técnicos procuraram se equiparar para além da discussão jurídica. Nesse sentido, constatou-se que alguns dados "são transformados em moralmente relevantes"20 (Rinaldi, 2011: 13). A homossexualidade frente ao exercício de uma parentalidade normal Partindo da versão produzida pelos postulantes, os técnicos procuram em suas falas pontos altos que possam colaborar para o deferimento de seu processo em habilitação ou adoção. A maioria destas falas constituía-se na afirmação da "normalidade" daqueles sujeitos, de modo a comprovarem estarem "aptos" para exercer a parentalidade e constituir famílias. Deste modo, a seleção das falas dos entrevistados durante o estudo psicossocial indicaria se esses postulantes estavam aptos ou não à adoção. André21, durante a entrevista com a psicóloga do judiciário, procurou destacar que estava motivado a ser pai. Assim, procurou afirmar que sua orientação homossexual não seria um impedimento. Conforme consta nos autos: O autor considera-se homossexual. Ele relatou que não tem intenção de ter um relacionamento afetivo e não sente falta. [...] Ele é discreto em relação à sua sexualidade. Em seu trabalho, ele afirma ser casado para não ser importunado. Porém, sua família e amigos sabem e aceitam sua opção. A atitude de André em ocultar sua homossexualidade perante a sociedade tem sido utilizada como estratégia por gays e lésbicas como forma de não sofrer formas de violência e estigmatização (Pecheny, 2004; Eribon, 2008)22. Assim, 20 Para leitura da análise completa ver Coitinho Filho (2014). 21 Os nomes foram alterados. 22 É o que Goffman (2008) aponta como uma “dupla biografia”, em que este homem gay representa diferentes identidades, de acordo com as circunstâncias – uma para o âmbito público e outra para o privado.
  • 37. RICARDO ANDRADE COITINHO FILHO novos debates, vol.1, n.2, julho 2014 37 manter uma identidade discreta visa maior “tolerância” em relação à homossexualidade. O postulante ao realizar tal afirmação de ser “discreto”, procurou positivar sua homossexualidade, como forma de torná-la mais próxima do grau de respeitabilidade e aceitabilidade social (Rubin, s/d). No caso de Carlos e Henrique, a positivação da homossexualidade foi argumentada em um contexto distinto. Segundo as técnicas, em sua habilitação conjunta: "não observamos nada que possa inviabilizar o pleito. Percebemos que os requerentes levam uma vida ajustada, com comportamento ético e fiel aos seus princípios". Para indicar que "vida ajustada" era essa, a equipe técnica passou a narrar como o casal baseava seu relacionamento em laços de afeto, mantinha uma vida conjugal estável e poderia oferecer um "ambiente saudável" para a criança. Aventamos que essa "vida ajustada" propiciada por um "ambiente saudável" se refira a uma conformação ao modelo de conjugalidade e família estabelecida pelas normativas heterossexuais. Pensar na homoparentalidade dentro de uma lógica heteronormativa evoca considerar de que forma o direito à parentalidade pressupõe um ajustamento aos imperativos da heterossexualidade. Laura e Carolina indicaram que contaram com apoio profissional para o desenvolvimento psíquico das suas filhas já adotadas. Habilitando-se para adotar um terceiro filho, a técnica registrou que: Carolina comentou que, por intermédio da Igreja Messiânica, já conseguiram uma vaga para que as meninas tenham acompanhamento psicológico [...] isso devido, tanto às suas histórias de abandono, como em relação ao preconceito que a sociedade nutre em relação aos homossexuais para que elas entendessem sua 'nova' configuração familiar.
  • 38. RICARDO ANDRADE COITINHO FILHO novos debates, vol.1, n.2, julho 2014 38 Esse fato ao ser utilizado como argumento favorável procurou evidenciar que essas sujeitas estariam aptas para receber a nova criança pleiteada, na medida em que poderiam garantir a também esta um acompanhamento "normalizador". Além disso, o uso da psicologia como ajuda profissional corroborou para uma reificação da homossexualidade como algo distante da normalidade familiar. Tais estratégias parecem indicar um afastamento dos pânicos morais (Miskolci, 2007) associados à criação de crianças por homossexuais. Em seu processo de habilitação à adoção, André chegou a afirmar que "gostaria que seu filho não fosse homossexual", que "deseja que a criança tenha uma vida 'normal' e que se case e tenha filhos". Dentre as possibilidades interpretativas, aventamos que sua declaração se baseia na ideia de que a normalidade das famílias constituídas por pares do mesmo sexo só serão comprovadas na heterossexualidade dos filhos (Garcia et al, 2007). Ou seja, a boa parentalidade "homoafetiva" se evidenciaria pela não homossexualização parental. Tal compreensão corrobora, ainda, para tornar a homossexualidade marginalizada frente aos modelos parentais, como uma espécie de "falha" (Garcia, idem). Dessa forma, podemos perceber como os postulantes procuram indicar formas de "normalidade" ou de possível "normalização" de suas relações para atender aos requisitos da parentalidade heteronormativa (Butler, 2003). A adequação de suas famílias aos modelos hegemônicos, evidenciados pelas características heterossexuais, seria uma forma de confirmar o sucesso de sua paternidade/maternidade, ainda que "'homoafetiva". Referências Bibliográficas BUTLER, Judith. 2003. “O parentesco é sempre tido como heterossexual?”. Cadernos Pagu (21), pp. 219-260. COITINHO FILHO, Ricardo Andrade. 2014. Que ousadia é essa? A adoção “homoafetiva” e seus múltiplos sentidos. Dissertação de mestrado, Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais. Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro – Rio de Janeiro.
  • 39. RICARDO ANDRADE COITINHO FILHO novos debates, vol.1, n.2, julho 2014 39 ERIBON, Didier. 2008. Reflexões sobre a questão gay. Rio de Janeiro: Companhia de Freud. FOUCAULT, Michel. 1988. História da sexualidade I: a vontade de saber. Rio de Janeiro: Edições Graal. GARCIA, Marcos [et al]. 2007. "Não podemos falhar": a busca pela normalidade em famílias monoparentais. In: Miriam Grossi, Anna Paula Uziel e Luiz Mello. 2007. Conjugalidades, parentalidades e identidades lésbicas, gays e travestis. Rio de Janeiro: Garamond. GOFFMAN, Erving. 2008. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. Rio de Janeiro: LTC. MISKOLCI, Richard. 2007. Pânicos morais e controle social: reflexões sobre o casamento gay. Cadernos Pagu. PECHENY, Mario. 2004. Identidades Discretas. In: Luís Felipe Rios et al. Homossexualidade: produção cultural, cidadania e saúde. Rio de Janeiro: ABIA. RINALDI, Alessandra. 2011. A arte de lutar contra a natureza. In: Cynthia Ladvocat; Solange Diuana (orgs.). Guia de adoção: no jurídico, no social, no psicológico e na terapia familiar. São Paulo: Roca. RUBIN, Gayle. (s/d) Pensando o sexo: notas para uma teoria radical da política da sexualidade. Disponível em: http://www.miriamgrossi.cfh.prof.ufsc.br/pdf/gaylerubin.pdf. Acessado em: 3/5/2012. UZIEL, Ana Paula. 2007. Homossexualidade e adoção. Rio de Janeiro: Garamond. Ricardo Andrade Coitinho Filho Mestre em Ciências Sociais Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro Currículo Lattes
  • 40. A HOMOSSEXUALIDADE NA MANUTENÇÃO DOS VÍNCULOS FAMILIARES Alessandra Caroline Ghiorzi Graduanda em Ciências Sociais Universidade Federal do Mato Grosso Flávio Luiz Tarnovski Professor do Departamento de Antropologia Universidade Federal do Mato Grosso
  • 41. ALESSANDRA CAROLINE GHIORZI E FLAVIO LUIZ TARNOVSKI novos debates, vol.1, n.2, julho 2014 41 Expressar o desejo por uma pessoa do mesmo sexo, vivendo em uma sociedade heteronormativa (Butler, 2003), é um desafio que confronta parte das pessoas nos dias atuais. Entre outras dificuldades, muitos sujeitos enfrentam o processo de se “revelar” perante a família de origem, o que pode se apresentar de forma dramática, devido aos significados negativos associados à homossexualidade. A partir do referencial teórico construtivista1, o presente trabalho objetiva descrever as consequências da “revelação” da homossexualidade para os vínculos familiares de mulheres e homens, por meio da análise de dados colhidos em uma pesquisa qualitativa realizada em Cuiabá (MT), entre 2012 e 20132. Foram entrevistadas onze pessoas: cinco mulheres e seis homens, de 19 a 44 anos, pertencentes a diferentes segmentos sociais. Quadro de informantes3 Nome Idade Escolaridade Profissão Grupo doméstico Juliana 22 Graduanda Estudante Sozinha Lucas 21 Graduando Estudante Companheiro Camila 27 Graduada Liberal Sozinha Eduardo 30 Ensino médio Autônomo Companheiro Edmundo 19 Graduando Estudante Mãe, pai, irmão, cunhada e sobrinha Pedro 19 Graduando Estudante Mãe, pai, irmãos Aline 44 Graduada Assalariada Companheira e pai Rafael 27 Graduado Professor Sozinho 1 Rubin (1989); Scott (1995); Vance (1995); Foucault (1997). 2 A presente pesquisa foi realizada no âmbito do Plano de Trabalho Família e homossexualidade: estudo das relações familiares de homens e mulheres que se autodefinem como homossexuais na cidade de Cuiabá, inserido no Projeto de Pesquisa Gênero, sexualidade e construção de si: identidades e diferenças, coordenado pelo Prof. Dr. Flávio Luiz Tarnovski. 3 Os nomes são fictícios, com o objetivo de preservar a identidade das(os) entrevistadas(os).
  • 42. ALESSANDRA CAROLINE GHIORZI E FLAVIO LUIZ TARNOVSKI novos debates, vol.1, n.2, julho 2014 42 Catarina 25 Graduada Saúde Mãe, pai, irmãos Luciano 34 Graduado Professor Sozinho Eduarda 41 Graduada Enfermeira Sozinha A “revelação” da homossexualidade nem sempre é fruto de planejamento, ela pode se apresentar como resultado de uma vivência de gênero que a expõe ou no decorrer de sistemáticas situações reveladoras (Tarnovski, 2004; Paiva, 2007; Oliveira, 2013). Contudo, há casos em que a orientação sexual é verbalizada, por meio de um anúncio ou a partir de um flagrante. Nesses casos, a conversa se estabelece como um momento determinante para a relação familiar e a trajetória individual desses sujeitos. Alguns entrevistados relataram que enfrentaram tentativas de controle por parte dos pais, após a verbalização da homossexualidade, uma fase caracterizada por conflitos: “era um período meio de terror assim, eu diria” (Pedro). No entanto, depois de certo tempo, essas relações se transformaram positivamente, ao que parece, em função da própria situação de crise que esses sujeitos passaram. Em alguns casos, ocorreu uma busca por desenvolver atividades em conjunto, assim como conversas em comum e, com isso, os laços entre pais e filhos se estreitam de um modo que não existia antes4. Esse momento de verbalização também propicia que os pais exponham suas angústias sobre a homossexualidade e alguns discursos se repetem nos variados casos estudados: os pais acreditam que o(a) filho(a) sempre foi heterossexual; negam que ele(a) possa ser homossexual; que está sendo “influenciado(a)”; culpam-se pela criação do(a) filho(a) homossexual. Diante desses argumentos “construtivistas”, os(as) filho(a)s respondem com explicações “essencialistas”: “não tem como eu mudar isso, é como você pedir pra um negro virar branco” (Pedro). Apenas Camila disse à mãe que “está” 4 Em nenhum dos casos aqui estudados a filha ou o filho foi expulso(a) de casa após a revelação da homossexualidade. Porém, o “espectro” do rompimento definitivo dos laços familiares é uma constante no discurso dos sujeitos, que contam casos de amigos (ou amigos de amigos) que tiveram que sair de casa após a revelação.
  • 43. ALESSANDRA CAROLINE GHIORZI E FLAVIO LUIZ TARNOVSKI novos debates, vol.1, n.2, julho 2014 43 namorando uma garota, sem se atribuir uma identidade fixa que a defina como homossexual5. Os pais também demonstram receio sobre os possíveis comportamentos dos filhos, como explica Pedro: “ela [mãe] só queria que eu fosse quem eu fosse, mas que eu tivesse [...] certa conduta cabível na sociedade [...] que eu não fosse muito espalhafatoso”. Portanto, falar sobre a orientação sexual com a família coloca o filho em situação de se explicar, devido ao estigma carregado na ideia do que é “ser homossexual”. Os sujeitos buscam esclarecer aos pais que não correspondem ao estereótipo do homossexual e a “aceitação” se mostra como o desvelamento de que o filho não deixa de ser uma pessoa “normal”. É de se notar que, em alguns casos, os argumentos utilizados pelas filhas e filhos para positivar sua identidade sexual e de gênero são fundamentados na depreciação de outras identidades, como por exemplo, a da travesti ou da “bandeirosa”, discurso já identificado por outros pesquisadores (Tarnovski, 2004; Lopes, 2009). Essa comparação com outras categorias sociais no campo da sexualidade e do gênero segue a escala valorativa já descrita por Rubin (1989), em que se hierarquizam práticas sexuais, marginalizando identidades. Com isso, percebemos que a “aceitação” da orientação sexual também envolve uma performance de gênero. E ainda, os pais esperam e cobram que seus filhos “respeitem” (Lopes, 2009) a família, entre outras coisas, não trazendo o namorado em “casa”, local que se apresenta como espaço moral, ultrapassando a materialidade da habitação. Além disso, ser filha ou filho homossexual pode se associar com uma dinâmica familiar específica, já que algumas atividades, vínculos e favores são desempenhados em função da identidade sexual e de gênero exercidas por esses sujeitos. Por exemplo, Edmundo relatou que é o único que ajuda sua mãe na limpeza da casa, atividade que não é realizada nem pelo seu irmão, nem pelo seu pai. Na situação vivida por Aline, quase todos os parentes do seu núcleo familiar já moraram com ela quando passavam por dificuldades financeiras, físicas ou emocionais. Aline foi quem cuidou de sua mãe quando esta perdeu os 5 Casos similares foram estudados por Heilborn (1996).
  • 44. ALESSANDRA CAROLINE GHIORZI E FLAVIO LUIZ TARNOVSKI novos debates, vol.1, n.2, julho 2014 44 movimentos do corpo. É interessante notar que esse papel desempenhado por Aline está relacionado com a “aceitação” de sua orientação sexual: “porque como eu sempre fui muito independente, né, trabalhei muito sempre, aquela coisa toda, então eles me viam meio que como um exemplo assim, então nunca ninguém me encheu o saco com isso aí [orientação sexual]” (Aline). Nesse sentido, também falou Eduarda: Sou meio que motorista da minha mãe, eu busco minha mãe, levo minha mãe, faço tudo. Fico tentando agradar, né? Na verdade, a gente fala que a gente procura ser os filhos perfeitos, mas é que a gente fica tentando agradar porque também a gente se sente culpado de não ser como elas querem. Essa transformação do estigma associado à homossexualidade, por meio do prestígio atribuído a outros papéis desempenhados pelos sujeitos, já foi observada por Peter Fry e Edward MacRae no caso de garotos que foram expulsos de casa após a descoberta de sua orientação sexual e, posteriormente, quando alcançaram prestígio dentro do candomblé, foram “aceitos” pela família. Segundo os autores: “Parece que a ridicularização é, de certa forma, contrabalançada com o prestígio de curador e profeta” (1991: 56). Por fim, gostaríamos de salientar o caráter inicial e provisório das análises, mas que abordam um tema de pesquisa que vem progressivamente se desenvolvendo no campo das Ciências Sociais (Oliveira, 2013). Percebemos a “rejeição” e a “aceitação” da homossexualidade como processos dinâmicos, que, apesar de amplamente utilizados na descrição dessas relações, não conseguem abarcar todos os aspectos das dinâmicas familiares. Assim, é complexa a coexistência de “aceitação-rejeição” nessas relações, que, para além de desavenças, desentendimentos e diferenças, também podem ser permeadas por afetos, vínculos e afinidades.
  • 45. ALESSANDRA CAROLINE GHIORZI E FLAVIO LUIZ TARNOVSKI novos debates, vol.1, n.2, julho 2014 45 Referências BUTLER, Judith. 2003. Problemas de gênero. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. FOUCAULT, Michel. 1997. História da sexualidade: a vontade de saber. 12. ed. Rio de Janeiro: Graal. FRY, Peter; MACRAE, Edward. 1991. O que é homossexualidade? São Paulo: Brasiliense. HEILBORN, Maria L. 1996. “Ser ou estar homossexual”. In: R. Parker; R. Barbosa (org.). Sexualidades brasileiras. Rio de Janeiro: Relume Dumará/ABIA-IMS-UERJ. pp. 136-145. LOPES, Moisés. 2009. “Casar e dar-se ao respeito”. In: M. L. Heilborn et al (org.). Sexualidade, reprodução e saúde. Rio de Janeiro: FGV. pp. 489-508. OLIVEIRA, Leandro. 2013. Os Sentidos da Aceitac a o: família e orientac a o sexual no Brasil contemporâneo. Tese de Doutorado, Museu Nacional/UFRJ – Rio de Janeiro. PAIVA, Antonio. 2007. “Reserva e Invisibilidade”. In: M. Grossi et al (org.). Conjugalidades, parentalidades e identidades lésbicas, gays e travestis. Rio de Janeiro: Garamond. pp. 23-46. RUBIN, Gayle. 1989. “Reflexionando sobre el sexo”. In: C. VANCE (org.), Placer y peligro: explorando la sexualidade feminina. Madrid: Revolución Madrid. pp. 113-190. SCOTT, Joan. 1995. “Gênero: uma categoria útil de análise histórica”. Educação e Realidade, 20(2): 71-99. TARNOVSKI, Flávio. 2004. “Pai é tudo igual?: significados da paternidade para homens que se autodefinem como homossexuais”. In: A. Piscitelli et al (org.). Sexualidade e saberes. Rio de Janeiro: Garamond. pp. 385- 414. VANCE, Carole. 1995. “A Antropologia Redescobre a Sexualidade: um comentário teórico”. PHYSIS Revista de Saúde Coletiva, 5(1): 7-31.
  • 46. ALESSANDRA CAROLINE GHIORZI E FLAVIO LUIZ TARNOVSKI novos debates, vol.1, n.2, julho 2014 46 Alessandra Caroline Ghiorzi Graduanda em Ciências Sociais Universidade Federal do Mato Grosso Currículo Lattes Flávio Luiz Tarnovski Professor do Departamento de Antropologia Universidade Federal do Mato Grosso Currículo Lattes
  • 47. FEIRA KRAHÔ DE SEMENTES TRADICIONAIS cosmologia, história e ritual no contexto de um projeto de segurança alimentar Júlio César Borges Doutor em Antropologia Social Universidade de Brasília Consultor do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento
  • 48. JULIO CÉSAR BORGES novos debates, vol.1, n.2, julho 2014 48 Pra não acabar a história e a festa, tem que estar sempre fazendo, porque vai passando para os outros mais novos aprender a realizar. Para não acabar a festa. Porque essa história, desde não sei quantos mil anos atrás, faz parte dos Krahô. Através dessa festa é que mostramos que somos Mehĩ – temos outras cantigas, outra forma de nos organizar. Isso tudo é que chama Mehĩ, Krahô. A festa movimenta as músicas, as danças, as crenças. Por isso é que Mehĩ tem isso. Porque se não tiver isso, não é Mehĩ. Isso que mostra nossa identidade. É tudo isso. É a festa que faz fortalecer, tanto nas músicas [cantos] quanto no esporte [corrida de toras]. Pratica esporte durante as festas: no peso, na velocidade, na voz. Tudo! Então Pahpãm [“nosso pai”: Pyt: Sol] fez essas coisas pra nós. Tem nas histórias que as naturezas ensinaram e hoje não ensina mais. Mas não acabou. É isso que é importante saber. A festa é pra fortalecer, ficar mais forte, vivo. Pra sempre. De geração em geração. Porque sem a cultura, sem a língua, sem histórias, nós não somos mais índios Krahô. Sempre ouço: ‘Por que índio gosta de festa, de cantar?’ Aí digo sempre que é nossa crença. A música conta histórias da natureza. Quando tem festa, aí todo mundo vai estar falando dessa história. E os velhos contam para os mais novos durante aquele período em que vai estar sendo realizada a festa. Por isso é importante preservar, porque, digamos assim, essas coisas mostram a nossa cara. O trecho acima reflete o esforço de um eminente professor krahô, Dodanin Piken, em ensinar a este antropólogo algo sobre um aspecto central da vida sociocultural do seu povo. Sua lição é simples e direta: as festas diferenciam os Mehĩ! Elas lhes foram transmitidas pelas “naturezas” (animais, plantas, insetos) não se sabe há quantos mil anos atrás e desde então são praticadas para fortalecê-los, com as corridas de toras e os cantos. “A festa é pra fortalecer, ficar mais forte, vivo”, enfatiza, apontando alguns caminhos (pry)
  • 49. JULIO CÉSAR BORGES novos debates, vol.1, n.2, julho 2014 49 que procurei trilhar, em minha tese de doutorado, rumo a uma interpretação da festa como elemento central da resistência étnica do povo indígena Krahô1. O argumento central da tese Feira Krahô de Sementes Tradicionais: cosmologia, história e ritual no contexto de um projeto de segurança é que as festas são o espaço-tempo responsável pela manutenção de aspectos centrais da sua visão de mundo, organização social e solidariedade política frente aos desafios impostos pela sociedade nacional2. Ocorre aqui o que Coelho de Souza registra como constitutivo dos povos Jê: “[o] processo de diferenciação (recriação contínua da identidade humana) depende de uma constante incorporação de elementos que é preciso ir buscar no ‘exterior’ – um exterior que se vê sempre redefinido nesse processo de diferenciação” (2002: 230). No caso dos Mehĩ, defendo que as festas são o espaço-tempo que abre a sociedade para o exterior e, na apropriação da alteridade, assegura sua continuidade frente aos múltiplos coletivos que povoam o Pjê Cunẽa, “Nossa Terra”. Como fato social total (Mauss, 1974), a festa permite inúmeras entradas analíticas das quais adentrei pela cosmologia, história, relações interétnicas e sistema ritual com o intuito de demonstrar como a festa mantém vivos seu modo de vida e agencialidade frente ao cerco colonial. Procurei demonstrar que a apropriação (“furto”) e domínio do jogo de linguagem dos “projetos” é uma das principais estratégias atualmente utilizadas pelos Mehĩ para (re)produção de suas festas. Meu caso etnográfico foi a Festa dos Peixes e das Lontras (Tep me Têre), realizada no contexto da VII Feira Krahô de Sementes Tradicionais (Ampo Hy Per Xà 7º), no ano de 2007, com patrocínio da Petrobrás Cultural. Realizada bienalmente desde 1997, a feira faz parte de um projeto de segurança alimentar encabeçado pela associação indígena Kapey, em parceria com a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (EMBRAPA) e a Fundação 1 Os Krahô (Mehĩ: “Nós, mesmo corpo/carne”) falam uma variante da língua Jê, tronco Macro- Jê e são classificados pela etnologia como Timbira Oriental, por se situarem na margem direita do rio Tocantins. Os Krahô têm uma população de cerca de dois mil e quinhentas pessoas espalhadas em vinte e oito aldeias numa reserva no nordeste do estado do Tocantins. 2 Defendida, no dia 28 de fevereiro de 2014, no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade de Brasília (PPGAS/UnB). O trabalho de campo ocorreu entre os meses de março e dezembro de 2007, com novas imersões em março de 2008, outubro de 2010 e abril de 2012.
  • 50. JULIO CÉSAR BORGES novos debates, vol.1, n.2, julho 2014 50 Nacional do Índio (FUNAI). Como nas edições anteriores, a feira buscou fomentar a conservação on farm da agrobiodiversidade indígena através da troca de sementes3. Minha etnografia sugere que o interesse dos Krahô pela troca de cultivares conviveu com a atenção dirigida à festa que eles apre(e)nderam, no tempo mítico, junto aos peixes no fundo de um rio. Festa é amjkin. Com este termo, os Mehĩ recortam atividades sociais que se aproximam daquelas que os antropólogos denominam “ritual”. Sabemos que cada sociedade possui termos próprios com os quais nomeiam e recortam "performances e festividades que pode-se identificar como exemplos típicos ou focais de eventos 'rituais'" (Tambiah, 1985: 126). O amjkin que presenciei na Feira de Sementes - como tantas outras entre os Krahô e alhures - tem um aspecto ritual “dado que é também cerimônia, solenidade, ação formalizada, comportando regras de comportamento e expressões performáticas precisas e, no mais das vezes, rigorosas” (Perez, 2012: 25; cf. Van Gennep, 1978). Por esse caminho, chegamos à ordem cultural mehĩ subjacente à noção de festa: uma sequência de atos que giram em torno das corridas de toras, preparação e consumo de alimentos (em especial o paparuto, bolo cerimonial), troca de presentes, encenação de papéis rituais, danças e cantos das metades cerimoniais. E o amjkin é mais do que disso. É também abertura aos encontros inesperados que (re)produzem vínculos anti-estruturais – aqueles de caráter existencial, diretos (Turner, 1974). A festa é o espaço-tempo da sociabilidade espontânea que gira em torno dos momentos fugidios levados pela cantoria do pátio, com maracá, e de outros espaços da aldeia. É fruição individual e coletiva da beleza e respiração do Cosmo. O amjkin é o estado “alegre, feliz” do universo, que requer a atuação protagonista dos Mehĩ através da festa. “Festa” e “alegria” são sinônimos (Melatti, 1978: 14). A Feira de Sementes foi indigenizada para manter o movimento do mundo com a alegria e beleza da vida ritual, que coloca os Krahô em conexão com os heróis civilizadores, tal como aquele que conheceu a festa de Tep mẽ 3 A conservação on farm ocorre com os recursos genéticos em uso (nas roças ou campos cultivados) e decorre dos interesses dos próprios agricultores locais. Assim, “agrobiodiversidade” deve ser entendida como a variedade de plantas importantes para a alimentação e agricultura resultante da interação entre o ambiente, recursos genéticos e práticas culturais integrantes dos sistemas de manejo (FAO 1996: 5).
  • 51. JULIO CÉSAR BORGES novos debates, vol.1, n.2, julho 2014 51 Têre junto aos peixes no fundo de um rio. A produção das festas, no contexto contemporâneo dos projetos, se presta à afirmação da humanidade dos Mehĩ frente ao concerto de coletivos que anima o universo. Por isso, o amjkin produz (e diferencia) os Mehĩ. Bibliografia: COELHO de SOUZA, Marcela. 2002. O traço e o círculo: o conceito de parentesco entre os Jê e seus antropólogos. Tese de doutorado em Antropologia Social, Museu Nacional/UFRJ - Rio de Janeiro. FAO. 1996. Background Paper 1: Agricultural biodiversity. Netherlands: Conference on the Multifunctional Character of Agriculture and Land. MAUSS, Marcel. 1974. “Ensaio sobre a dádiva. Forma e razão da troca nas sociedades arcaicas”. In: Sociologia e Antropologia. Vol. 2. São Paulo: EPU, EdUSP. MELATTI, Julio Cezar. 1978. Ritos de uma Tribo Timbira. São Paulo: Ática. PEREZ, Léa Freitas. 2012. “Festa para além da festa”. In: Perez, L. F; Amaral, L.; Mesquita, W (orgs.). Festa como perspectiva e em perspectiva. Rio de Janeiro: Garamond. TAMBIAH, Stanley. 1985. “A performative approach of ritual”. In: Culture, thought, and social action. Havard: Havard University Press. TURNER, Victor. 1974. Dramas, fields and metaphors: symbolic action in human society. Ithaca, London: Cornell Unviersity Press. VAN GENNEP, Arnold. 1978. Ritos de passagem. Petrópolis: Vozes.
  • 52. JULIO CÉSAR BORGES novos debates, vol.1, n.2, julho 2014 52 Júlio César Borges Doutor em Antropologia Social Universidade de Brasília Consultor do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento Currículo Lattes
  • 53. ÍNDIOS, QUILOMBOLAS, ÁRABES E NORDESTINOS E O SABOR AMARGO DO CACAU Eduardo Alfredo Morais Guimarães Professor assistente da Universidade do Estado da Bahia Doutorando em Estudos Étnicos e Africanos Universidade Federal da Bahia Bolsista FAPESB Sistema agroflorestal municipio de Ubaitaba. Foto do autor
  • 54. EDUARDO ALFREDO MORAIS GUIMARÃES novos debates, vol.1, n.2, julho 2014 54 As ideias aqui desenvolvidas são fruto das primeiras reflexões sobre a Comunidade Quilombola de Empata Viagem, localizada no Município de Marau, Região Sul da Bahia. Como outras comunidades localizadas na região31, Empata Viagem alcançou notoriedade em decorrência da qualidade da farinha de mandioca produzida artesanalmente e, sobretudo, do domínio das técnicas de plantio do cacau sob a floresta raleada. Ninho de pássaro sangue de boi - cabruca Ubaitaba. Foto do autor O Cacau Cabruca e os pioneiros Não obstante a Revolução Agrícola, alicerçada no modelo agrícola monocultural, desencadeada pela CEPLAC,32 entre o inicio dos anos 1960 e final 31 Existem em Maraú mais 5 Comunidades Quilombolas reconhecidas pela Fundação Palmares. 32 Comissão Executiva de Planejamento da Lavoura Cacaueira. Órgão federal de pesquisa e assistência técnica vinculado ao Ministério da Agricultura, criado em 1957.
  • 55. EDUARDO ALFREDO MORAIS GUIMARÃES novos debates, vol.1, n.2, julho 2014 55 dos anos 1980, que resultou na elevação da produção nacional de cacau em 310% e o aumento da produtividade de 220 kg/ha, em 1962, para 740 kg/ha33, cerca de 70% das roças cacau da Bahia ainda são sistemas agroflorestais – Cacau Cabruca34 – (Araujo et. al., 1998). O cenário de devastação instaurado pela Revolução Verde35 (Setenta & Lobão, 2012) não conseguiu, portanto, obscurecer as potencialidades dos sistemas ancestrais de cultivo, fato que coloca em relevo as dificuldades da agricultura que se intitula moderna que parece não alcançar bem seus objetivos no ambiente de floresta tropical. Aplicam-se aqui reflexões de Boaventura Souza Santos: as cabrucas, fruto de “conhecimentos populares, leigos, plebeus, camponeses ou indígenas”, resistem em meio a uma disputa “entre as formas de verdade científicas e não-científicas” (2007: 72). Não obstante a importância das “Cabruca para a sustentabilidade da agricultura, as origens do sistema estão enredadas em um “Mito Histórico” que obscurece desigualdades raciais e justifica uma concentração fundiária e de renda (Mahony, 2007: 738), a partir da exclusão de indígenas e escravizados e seus descendentes da “saga do cacau” (Adonias Filho, 1976: 173; Falcón, 1995: 26). Desafiando os alicerces do mito, a hipótese da qual se pretende partir é a de que o sistema está alicerçado em conhecimentos ancestrais de indígenas e africanos, condenados à inexistência diante de uma suposta superioridade posicional da ciência agronômica moderna. O Cacau Cabruca é referência praticamente obrigatória nos estudos realizados no âmbito da ciência agronômica na região. Pesquisadores do IESB - Instituto de Estudos Socioambientais da Bahia,36 atribuem o seu surgimento aos “grapiúnas (...) que a revelia das recomendações técnicas (...) (plantaram) o cacau à sombra das espécies nativas” (Araújo et al., 1998: 36). Com efeito, a referência explícita aos “grapiúnas”, de certa forma, exclui indígenas e africanos escravizados e seus descendentes da “saga do cacau” e isso não é um mero 33 Dados disponíveis no Site da CEPLAC .http://www.CEPLAC.gov.br/restrito/lerNoticia.asp?id=1719. Acesso em 02.02.2014; 34 Cacau plantado sob a sombra da floresta raleada 35 Modelo agrícola direcionado ao aumento da produção agrícola alicerçado em melhorias genéticas em sementes, uso intensivo de insumos industriais, mecanização e monocultivos. 36 Organização não-governamental criada em 1994, com sede no município de Ilhéus.
  • 56. EDUARDO ALFREDO MORAIS GUIMARÃES novos debates, vol.1, n.2, julho 2014 56 detalhe que possa ser negligenciado, pois tal noção está no âmago do Mito Histórico: grapiúnas são as pessoas que migraram do Nordeste para o Sul da Bahia no inicio do século XX e colonizaram o interior da Zona Cacaueira (Mahony, 2007; Costa, 2012). Cacau na cabruca. Foto do autor Os engenheiros agrônomos Wallace Setenta37 e Dan Erico Lobão38 expõem de forma ainda mais clara os elos que ligam o Cacau Cabruca ao “Mito” ao atribuir aos “pioneiros da cacauicultura” o plantio do cacau em cabrucas abertas na Mata Atlântica, “transformada em espaço vivido e habitável” pela Civilização do Cacau; um sistema de cultivo sui generis, predecessor dos sistemas agroflorestais (Setenta & Lobão, 2012: 39). Nos argumentos, os 37 Presidente do CNPC – Conselho Nacional dos Produtores de Cacau e Presidente do Sindicato Rural de Itabuna. 38 Pesquisador da CEPLAC e professo da UESC.
  • 57. EDUARDO ALFREDO MORAIS GUIMARÃES novos debates, vol.1, n.2, julho 2014 57 pesquisadores desconsideram a presença indígena no território ao situar o cacau no centro do “processo civilizatório”: responsável pela transformação da Floresta em espaço vivido e habitável. Para Setenta e Lobão quando da chegada dos colonizadores portugueses a Mata Atlântica seria uma espécie de terra nullius, um território nominalmente inabitado (Balée, 2008) – com “florestas virgens”.
  • 58. EDUARDO ALFREDO MORAIS GUIMARÃES novos debates, vol.1, n.2, julho 2014 58 Lurdes Rocha, em sua Tese de Doutorado, redimensiona a narrativa acrescentando os agenciamentos de sergipanos que cultivaram o cacau com “persistência, denodo, trabalho árduo, muito suor derramado irrigando o chão” (2006). De acordo com Rocha a grande seca da década de 1890 e a Guerra de Canudos (1896-1897) foram os dois fatores que influenciaram a migração em massa dos sergipanos para a região cacaueira. É importante lembrar que no final do século XIX o cacau já se constituía no principal produto da pauta de exportações da Bahia e que segundo Rosário et. al. (1978: 20), “as plantações feitas naquela época correspondem a grande parte das existentes hoje no Sul da Bahia”. Com efeito, não há como negligenciar os agenciamentos de indígenas, escravizados e seus descendentes na criação e desenvolvimento das cabrucas e deixar de perceber que, mesmo atualmente, com os avanços tecnológicos possibilitados pela ciência agronômica moderna, não é fácil prescindir de conhecimentos ancestrais indígenas e africanos no manejo das roças de cacau. É importante ter em mente que as populações indígenas são portadoras de um histórico de coexistência com a floresta tropical (Munari, 2009: 9), que pequenos agricultores africanos no período pré-colonial manejavam sistemas agroflorestais em África “que para ‘não entendidos’ pouco se distinguem das florestas originais” (Temudo, 2009: 246) e que de acordo com dados etnoecológicos, é possível afirmar que em África a própria formação de florestas está relacionada à atividade humana - cultivo, plantação e transplante deliberado de árvores, pelas populações locais - que culminou, inclusive, com a formação de florestas onde antes não havia florestas (Balée, 2008: 15). Bibliografia ADONIAS FILHO. 1976. Sul da Bahia: chão de cacau. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. BALÉE, W. 2008. “Sobre a Indigeneidade das Paisagens”. Revista de Arqueologia, 21(2): 09-23. Disponível em: http://www.ies.ufpb.br/ojs/index.php/ra/article/viewFile/3003/2524. FALCON, Gustavo. 1995. Os coronéis do cacau. Salvador: Iananá/ UFBA.
  • 59. EDUARDO ALFREDO MORAIS GUIMARÃES novos debates, vol.1, n.2, julho 2014 59 LOBÃO, D. E.; SETENTA, W. C.; VALLE, R. R. 2004. “Sistema agrossilvicultural cacaueiro: modelo de agricultura sustentável”. Revista da Sociedade de Agrosilvicultura, 1(2): 163-173. LOBÃO, Dan Érico. 2007. Agroecossistema Cacaueiro Da Bahia: Cacau Cabruca e Fragmentos Florestais na Conservação de Espécies Arbóreas. Tese de Doutorado, Universidade Estadual Paulista. MAHONY, Mary Ann. 2007. “Um passado para justificar o presente: memória coletiva, representação histórica e dominação política na região cacaueira da Bahia”. Cadernos de Ciências Humanas – Especiaria, 10(18): 737- 793. MUNARI, Lucia Chamlian. 2010. Memória Social e Ecologia Histórica: a Agricultura de Coivara das populações quilombolas do Vale do Ribeira e sua relação com a formação da Mata Atlântica. Dissertação de mestrado, Universidade de São Paulo. ROCHA, Lurdes Bertol. 2006. A região cacaueira da Bahia: uma abordagem fenomenológica. Tese de Doutorado. Universidade Federal de Sergipe. ROSÁRIO et. al. 1978. Cacau História e Evolução no Brasil e no Mundo. Ilhéus: CEPLAC. SANTOS, Marcio Ceo dos. 2010. A Crise da Região Cacaueira e os Desafios Para o Desenvolvimento Local. Dissertação de mestrado. Universidade Municipal de São Caetano do Sul. SETENTA, Wallace & LOBÃO, Dan Érico. 2012. Conservação Produtiva: cacau por mais 250 anos. Itabuna. SOUZA SANTOS, Boaventura de. 2007. Para além do pensamento abissal: das linhas globais a uma ecologia de saberes. São Paulo. Novos Estud. – CEBRAP. 79. TEMUDO, Marina Padrão. 2009. “A narrativa da degradação ambiental no Sul da Guiné-Bissau: uma desconstrução etnográfica”. Etnográfica, Lisboa, 13(2): 237-364.
  • 60. EDUARDO ALFREDO MORAIS GUIMARÃES novos debates, vol.1, n.2, julho 2014 60 Eduardo Alfredo Morais Guimarães Professor assistente da Universidade do Estado da Bahia Doutorando em Estudos Étnicos e Africanos Universidade Federal da Bahia Bolsista FAPESB Currículo Lattes
  • 61. F Ó R U M
  • 62. O PROBLEMA Wagner Xavier Camargo Pós-doutorando em Antropologia Universidade Federal de São Carlos Bolsista FAPESP
  • 63. WAGNER XAVIER CAMARGO novos debates, vol.1, n.2, julho 2014 63 Se você quer compreender o que é a ciência, você deve olhar, em primeiro lugar, não para as suas teorias ou as suas descobertas, e certamente não para o que seus apologistas dizem sobre ela; você deve ver o que os praticantes da ciência fazem. (Clifford Geertz, 2011: 4) A Copa do Mundo de Futebol tem mobilizado emoções de diversas ordens, ocasionado revoltas de indivíduos e grupos, de militantes e ativistas, de ricos, pobres e de uma “classe média alta” (que até fez protesto com camiseta, em campanha publicitária), incitado debates públicos acerca de gastos com as estruturas, gerado debates infinitos sobre desvio de verbas e causado um desconforto generalizado. Nos momentos anteriores à abertura e ao início do torneio internacional em terras brasileiras, não sabemos exatamente o que sentimos, e muito menos o que esperamos de dentro e fora dos gramados. Numa iniciativa inédita, a Revista Novos Debates traz a/aos leitoras/es deste fórum de discussões uma polêmica viva acerca do momento em que vivemos: o que pensar da Copa do Mundo de Futebol (masculino) e quais as implicações de todas as problemáticas que a envolvem na atualidade? Para tanto, alguns cientistas sociais que se debruçam sobre uma sociologia/antropologia práticas esportivas foram convidados a se expressarem e a nos mostrarem como as pensam cientificamente. Assim, o propósito deste espaço de discussão não é engessar problemáticas ou pré-determinar linhas de argumentação. As temáticas sobre a Copa do Mundo de Futebol (masculino) estavam à disposição e cada um ponderou como quis. Eis o resultado. A seguir, temos belos e críticos textos de cientistas sociais empenhados a entender (mais e melhor) os fenômenos que envolvem este evento e os (então denominados) megaeventos esportivos. Partindo, desse modo, de todo um emaranhado de questões, o texto de entrada do fórum de discussões é de Arlei Damo, que reitera, à semelhança do que faz um psicólogo frente a um surto psicótico de seu paciente, um dado de realidade visível e inconteste: vai ter Copa no Brasil! Sua afirmação principal é a de que, em que pese a campanha “não vai ter Copa”, impulsionada por movimentos sociais e partidos políticos específicos, a competição efetivamente
  • 64. WAGNER XAVIER CAMARGO novos debates, vol.1, n.2, julho 2014 64 se realizará. Por isso, segundo o autor, “Copa para quem?” seria um slogan mais instigante para refletir sobre o contexto. Da leitura de suas inquietações, resta- nos indagar se os ativistas, direta ou indiretamente, semearão, de fato, durante a Copa a colheita dos protagonistas das Eleições Gerais de outubro? A seguir, deparamo-nos com o ensaio sagaz de Luiz Henrique de Toledo. O autor mostra o triunfante retorno do bordão “futebol, ópio do povo”, agora insinuado dentro do contexto caótico da realização da Copa mundial de futebol e o recoloca justamente no centro dos protestos contra o evento, no sentido de dizer que a FIFA, com suas imposições, controle e designações acerca do imponente “Padrão FIFA”, reatualizaria tal pecha para si mesma na atualidade. Além disso, pondera ainda sobre uma provocação de Bruno Latour, pensada a partir de uma exposição de artes, na Alemanha, início dos anos 2000. Iconoclash é a instabilidade, o enigma, distante da iconofilia e da iconoclastia, escolhido para “lugares, objetos e situações em que há uma ambiguidade, uma hesitação, (...) quanto a como interpretar a construção da imagem e a destruição da imagem” (Latour, 2008: 123). Para Toledo, o interessante agora é perceber os iconoclashes que circundam e envolvem o futebol, produzindo contrapontos ou desestabilizações acerca da iconoclastia em torno do próprio fenômeno (e de sua estrutura). Por sua vez, Alexandre Vaz brinda-nos com um escrito que traz algumas facetas do futebol enquanto negócio. Há, para ele, uma dimensão mercadológica em torno do esporte que se iniciou nos anos 1970 e já expusera, àquela época, os volumosos ganhos da então FIFA, sob o comando do brasileiro João Havelange. Passados 40 anos, o business em torno do fenômeno futebolístico só cresceu: haja vista, segundo o autor, as obras de recuperação ou construção dos 12 estádios e suas estruturas. Como bem salienta Vaz – e de tácita concordância para quem conhece algumas das megaestruturas esportivas em âmbito internacional – tais estádios oferecerão mais do que espaço para uma contenda. São lugares de conforto, de venda e consumo de mercadorias, de visibilização de produtos dos clubes, de construção de verdadeiras experiências, no sentido estrito do termo. Participando ou não de tudo isso, Vaz profetiza que nada, nem ninguém, ficará imune à Copa de Futebol no Brasil. Em seguida há as ponderações de José Renato Araújo, que arquiteta uma conexão entre as políticas públicas adotadas no país em respeito aos
  • 65. WAGNER XAVIER CAMARGO novos debates, vol.1, n.2, julho 2014 65 megaeventos esportivos e a tentativa de compreensão das mesmas por parte de cientistas sociais, que estabelecem pressupostos importantes para desvelar os arranjos responsáveis pelo pagamento das contas em níveis municipal, estadual e federal. Relata-nos, portanto, sobre suas investigações junto aos Tribunais de Contas Estaduais, responsáveis oficiais pelo controle de gastos das unidades da federação, e sobre suas intenções de pesquisa nos Tribunais de Conta da União. Das etapas preliminares, segundo o autor, resulta que os investimentos feitos para a realização da Copa provieram de recursos públicos, fato que realmente alça ao centro do debate tais tribunais de contas e o próprio Estado brasileiro, passando a serem, assim, tópicos investigativos fundamentais. Um último exercício de escrita deste compêndio crítico, e notadamente desviante das problemáticas em pauta até então postuladas, encontra-se na reflexão de minha autoria que generifica a Copa e o futebol. Deixo leitoras/es instigadas/os a lê-la, porém, adianto que tento desvelar pressupostos e prerrogativas tácitas em relação a gêneros, corpos e sexualidades que estão subsumidos a todas essas discussões que dizem respeito ao futebol e a sua Copa Mundial (masculina) em processo de realização no Brasil. Ao fim e ao cabo, os escritos deste fórum pretenderam abordar o futebol nacional/global e a Copa masculina mundial da FIFA sob distintas perspectivas analíticas (interdisciplinares, inclusive), que, juntas, oferecem um mosaico interessante de ser apreciado. Como de praxe, resta-me apenas desejar-lhes boa leitura! Referências Bibliográficas GEERTZ, Clifford. 2011. A Interpretação das Culturas. 1 ed [reimpr.]. Rio de Janeiro: LTC. LATOUR, Bruno. 2008. “O que é iconoclash? ou, há um mundo além das guerras de imagem?” Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 14, n. 29, p. 111-150, jan./jun.
  • 66. WAGNER XAVIER CAMARGO novos debates, vol.1, n.2, julho 2014 66 Wagner Xavier Camargo Pós-doutorando em Antropologia Universidade Federal de São Carlos Bolsista FAPESP Currículo Lattes
  • 67. VAI TER COPA NO BRASIL Arlei Sander Damo Doutor em Antropologia Social Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social/UFRGS