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"Não é crise. É que não te quero mais"




Manuel Castells diz que, diante das novas turbulências financeiras, é preciso propor grandes mudanças -- entre elas, reinvenção da
democracia

Por Manuel Castells, La Vangardia | Tradução Cauê Seigner Ameni



Quando milhares de [jovens] indignados, [que ocuparam as praças da Espanha], tiram de foco a ?crise? e atacam diretamente o
sistema que produz tantos desarranjos, estão sustentando algo importante. Querem dizer que é preciso ir à raiz dos problemas, olhar
para suas causas. Porque se elas persistirem, continuarão produzindo as mesmas consequências.

Mas de que sistema falamos? Muitos diriam capitalismo, mais é algo pouco útil: há muitos capitalismos. Precisamos analisar o que
vivemos como crise para entender que não se trata de uma patologia do sistema,mas do resultado deste capitalismo. Além disso, a
critica se estende à gestão política. E surge no contexto de uma Europa desequilibrada por um sistema financeiro destrutivo que
provoca a crise do euro e suscita a desunião europeia.

Nas ultimas décadas, constituiu-se um capitalismo global, dominado por instituições financeiras (os bancos são apenas uma parte)
que vivem de produzir dívida e ganhar com ela. Para aumentar seus lucros, as instituições financeiras criam capital virtual por meio
dos chamados ?derivativos? [ou, basicamente, apostas na evolução futura de todo tipo de preço]. Emprestam umas às outras,
aumentando o capital circulante e, portanto, os juros [e comissões] a receber. Em média, os bancos dispõem, nos Estados Unidos ou
na Europa, de apenas 3% do capital que devem ao público. Se este percentual chega a 5%, são considerados solventes, [em boa
saúde financeira]. Enquanto isso, 95% [do dinheiro dos depositantes] não está disponível: alimenta incessantemente operações que
envolvem múltiplos credores e devedores, que estabelecem relações num mercado volátil, em grande parte desregulado.

Diz-se que umas transações compensam umas às outras e o risco se dilui. Para cobrir os riscos, há os seguros ? mas as seguradoras
também emprestam o capital que deveriam reservar para fazer frente a sinistros. Ainda assim, permanecem tranquilos, porque
supõem que, em ultima estancia, o Estado (ou seja, nós) vai salvá-los das dívidas ? desde que sejam grandes o suficiente [para
ameaçar toda a economia]... O efeito perverso deste sistema, operado por redes de computadores mediadas por modelos matemáticos
sofisticados, é: quanto menos garantias tiverem, mais rentáveis (para as instituições financeiras e seus dirigentes) as operações serão.
E aqui entra outro fator: o modelo consumista que busca o sentido da vida comprando-a em prestações....

Como o maior investimento das pessoas são suas próprias casas, o mercado hipotecário (alimentado por juros reais negativos) criou
um paraíso artificial. Estimulou uma industria imobiliária especulativa e desmesurada, predadora do meio ambiente, que se alimenta
de trabalhadores imigrantes e dinheiro emprestado a baixo custo. Diante de tal facilidade, poucos empreendedores apostaram em
inovações. Mesmo empresas de desenvolvimento tecnológico, grandes ou pequenas, passaram a buscar a autovalorização no
mercado financeiro, ao invés de inovar. O que importava não eram as habilidades e virtudes da empresa, mas seu valor no mercado
de capitais. O que muitos ?inovadores? desejavam, na verdade, é que sua empresa fosse comprada por uma maior. A chave desta




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piramide especulativa era o entrelaçamento de toda essa divida: os passivos se convertiam em ativos para garantir outros
empréstimos. Quando os empréstimos não puderam mais ser pagos, começou a insolvência de empresas e pessoas. As quebras
propagaram-se em cadeia, até chegar no coração do sistema: as grandes seguradoras.

Diante do perigo do colapso de todo o sistema, os governos salvaram bancos e demais instituições financeiras.

Quando secou o credito às empresas, a crise financeira converteu-se em crise industrial e de emprego. Os governos assumiram o
custo de evitar o desemprego em massa e tentar reanimar a economia moribunda. Como pagar a conta? Aumentar os impostos não
dá votos. Por isso, recorreram aos próprios mercados financeiros, aumentando sua já elevada dívida pública. Quanto mais
especulativas eram as economias (Grécia, Irlanda, Portugal, Itália, Espanha) e quanto mais os governos pensavam apenas no curto
prazo, maior eram o gasto público e o aumento da dívida. Como ela estava lastreada por uma modea forte ? o euro ?, os mercados
continuaram emprestando. Contavam com a força e o crédito da União Europeia. O resultado foi uma crise financeira de vários
Estados, ameaçados de falência. Esta crise fiscal converteu-se, em seguida, numa nova crise financeira: porque colocou em perigo o
euro e aumentou o risco de países suspeitos de futura insolvência.

Mas quem quebraria, se fossem à falência os países em condições financeiras mais precárias, eram os bancos alemães e franceses.
Para salvar tais bancos, era, portanto, preciso resgatar os países devedores. A condição foi impor cortes nos gastos dos Estados e a
redução de empregos em empresas e no setor público. Muitos países ? incluindo a Espanha ? perderam sua soberania econômica.
Assim chegaram as ondas de demissões, o aumento do desemprego, a redução de salários e os cortes nos serviços sociais. Coexistem
com lucros recordes para o setor financeiro. Claro que alguns bancos perderam muito, e terão de sofrer intervenção do Estado ? para
serem, em seguida, reprivatizados. Por isso, os ?indignados? afirmam que o sistema não está em crise. O capital financeiro continua
ganhadondo, e transfere os prejuízos à sociedade e aos Estados. Assim se disciplinam os sindicatos e os cidadãos. Assim, a crise das
finanças torna-se crise política.

Por que a outra característica-chave do sistema não é econômica, mas política. Trata-se da ruptura do vinculo entre cidadão e
governantes. ?Não nos representam?, dizem muitos. Os partidos vivem entre si e para si. A classe política tornou-se uma casta que
compartilha o interesse comum de manter o poder dividido entre si mesma, através de um mercado político-midiatico que se renova
a cada quatro anos. Auto-absolvendo-se da corrupção e dos abusos, já que tem o poder de designar a cúpula do Poder Judiciário.

Protegido desta forma, o poder Político, pactua com os outros dois poderes: o Financeiro e o Midiático, que estão profundamente
imbricados. Enquanto a dívida econômica puder ser rolada, e a comunicação controlada, as pessoas tocarão suas vidas passivamente.
Esse é o sistema. Por isso, acreditavam-se invencíveis. Até que a surgiu a comunicação autônoma e as pessoas, juntas, perderam o
medo e se indignaram. Adonde ván? Cada um tem sua ideia, mas há temas em comuns. Que os bancos paguem a crise. Controle
sobre os políticos. Internet livre. Uma economia da criatividade e um modo de vida sustentável. E, sobretudo, reinventar a
democracia, a partir de valores como participação, transparência e prestação de contas aos cidadãos. Porque como dizia um cartaz
dos indignados: ?Não é que estamos em crise. Es que ya no te quiero?.




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